O jornalista e crítico de arte Gonzaga Duque foi um dos primeiros responsáveis pelo estudo sobre a definição daquilo que compreendemos por arte brasileira. Em livro lançado em 1888, Duque entendia a chegada da Missão francesa ao Brasil e a concomitante fundação da Academia Imperial de Belas Artes como o início daquilo que poderíamos nomear por arte brasileira. Essa, que começaria por um viés eurocêntrico, foi, de lá pra cá, revista e ampliada por diversos estudos e iniciativas, como os modernistas de 22, os escritos de Mário Barata, Mário Pedrosa, Aracy Amaral, entre outros.
Apesar dessas pesquisas apontarem uma arte brasileira composta por produções diversas, em linguagens e autorias, ainda mantemos em seu interior estruturas que naturalizam a predominância das autorias brancas e de origem ou descendência europeia. Nesse sentido, o crítico e curador Paulo Herkenhoff, ao escrever sobre a chamada produção nipo-brasileira, aponta para o fato de que, “nesse viés, prenuncia-se um certo racismo das diferenças internas, pois deve haver crítico e historiador universitário que nunca sequer escreveu o nome de um artista nipo-brasileiro em sua trajetória ensaística”. Podemos estender essa observação também para os artistas afro-brasileiros, indígenas brasileiros e aos demais de outras origens asiáticas, sendo o comentário de Herkenhoff a denúncia de uma realidade presente e constante aos artistas cujas produções estão marcadas pela racialização. No caso do uso do termo nipo-brasileiro, quando adotado como padrão para mencionar as contribuições de artistas de origem asiática, ocorre uma segunda exclusão, pois este é insuficiente para contemplar as demais origens asiáticas e invisibiliza contribuições para além da de origem japonesa.
É comum encontrarmos livros de arte brasileira que não citam nenhum artista negro, indígena e de ascendência asiática, nem mesmo os nipo-brasileiros, que possuem trajetória relevante na historiografia da arte brasileira. Nesse sentido, precisamos sempre nos perguntar o porquê de racializarmos determinadas populações e atribuirmos a elas termos específicos, como afro-brasileiras, indígenas brasileiras ou asiático-brasileiras (termo este ainda pouco difundido, mas que visa abranger vivências de brasileiros de origem asiática mais amplas do que a narrativa somente pautada pelas experiências nipo-brasileiras): será porque reconhecemos a chamada arte euro-brasileira como sendo apenas arte brasileira? Segundo a artista e pesquisadora Grada Kilomba, isso não ocorre por acaso. De acordo com a autora, a universalização e predominância da pessoa branca nas artes é parte de uma construção ideológica, colonial e racialista que define o ser branco e europeu como o padrão das narrativas do mundo, atribuindo a ele noção de neutralidade e normalidade. Em contraposição, abordam os demais como específicos e diferentes, elaborando nesse “outro” a sua oposição. Esse debate foi realizado recentemente pelo curador e pesquisador Hélio Menezes, em sua dissertação de mestrado Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira, defendida em 2018, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Para ele, as discussões sobre os “direitos civis, identidade negra, combate às desigualdades racializadas de renda e de acesso a bens e serviços, direito à memória e a diversidade têm se avolumado na agenda política do país”, e, no campo das artes, têm sido reivindicadas por algumas vias, como a exigência de “releitura crítica dos modos de representação”, a “revisão das políticas de branqueamento” e o “combate do anonimato” de diversos artistas.
Evidenciar tal disparidade no tratamento dado a determinados grupos torna-se importante e urgente. Presenciamos nas últimas semanas debates em torno dos racismos e as disparidades sociais que afetam a vida das pessoas negras no mundo. Desde o dia 25 de maio, data do assassinato do afro-estadunidense George Floyd, um intenso conjunto de ações demonstraram a necessidade de combate ao racismo estrutural e sistemático como uma responsabilidade de toda a sociedade contemporânea. Nesse período, diversas instituições utilizaram suas redes para demonstrar apoio a campanha Black lives matter, inclusive instituições e profissionais das artes. Entretanto, mais que apoio verbal, a luta antirracista precisa de ações efetivas e permanentes, que, no campo das artes, vão para além de escrever uma mensagem nas redes sociais, incluir um artista em uma exposição, citar um autor ou ser amigo de alguém cuja identidade foi marcada pela racialização. Essas ações são válidas e merecem o reconhecimento, mas precisam ser ampliadas para que possam alcançar dimensões que modifiquem as estruturas e dinâmicas do funcionamento das artes no país. É necessário que, tanto no micro quanto no macro, façamos a defesa de políticas que gerem permanência da mudança.
Nessa perspectiva, destacamos aqui algumas iniciativas recentes que têm apontado caminhos possíveis para o combate a hegemonia branca nas artes brasileiras. Com projetos que falam para além das já conhecidas ausências, pesquisadores, artistas e curadores, principalmente negros, indígenas e de ascendência asiática, se empenham em trabalhos que constroem um cenário artístico crítico e diverso. São projetos que primam pelo profissionalismo e conhecimento de pesquisa em arte, que revelam novos processos para as artes contemporâneas e suas movimentações.
A 12ª Bienal do Mercosul é um exemplo salutar. A mostra, que em decorrência da pandemia de Covid-19 está sendo realizada virtualmente, por meio de uma plataforma online, conta com a curadoria geral da argentina Andrea Graciela Giunta e tem como título Feminino(s). visualidades, ações e afetos. Para essa edição, a curadora formou uma equipe composta por mais três curadores adjuntos, Dorota Biczel, Fabiana Lopes e Igor Simões, sendo dois deles negros. Além da contribuição relevante que esse curadores deixam para o projeto da bienal, suas presenças já são históricas por ser uma das poucas vezes que a equipe curatorial de uma bienal no Brasil foi composta 50% por curadores negros. Esse dado é simbólico, representativo e respeitoso com a população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras.
Apesar desse avanço, ainda há muito o que ser feito. Tanto a Bienal do Mercosul como a Bienal de São Paulo, as duas maiores exposições com esse perfil no país, nunca contaram com a curadoria geral de uma pessoa negra. Essa é uma discussão antiga, uma questão já levantada por diversos curadores, mas que, insistentemente, se repete.
Além de marcar a presença de profissionais negros na equipe curatorial, a 12ª Bienal do Mercosul conta também com a histórica lista de artistas majoritariamente composta pelo gênero feminino. Um vasto grupo de produções, linguagens, idades, origens e identidades, são mulheres que se destacam na cena contemporânea, mas que ainda enfrentam barreiras para se estabelecerem. No caso das artistas negras, o desafio é ainda maior. Em 2018, o Coletivo Mulheres Negras nas Artes realizou uma pesquisa acerca das participações de mulheres negras em três edições da Bienal de São Paulo (30ª, 31ª e 32ª). Segundo o coletivo, dos 390 artistas que participaram das três edições, 154 eram brasileiros, 45 mulheres, e, desse total, apenas 4 eram negras.
O número é assustador. Mas, para a curadora Fabiana Lopes, apontar esses percentuais, apesar de importante, é insuficientes se não houver um compromisso de ir além da estatística. Segundo a curadora, “a produção intelectual e artística de autoria negra oferece um vasto campo de referências que contribuem para um entendimento expandido da arte brasileira, além de deixar pistas importantes sobre o contexto social contemporâneo”. Para ela, “pensar a equidade no espaço expositivo deve ser responsabilidade de todo curador comprometido com uma transformação social tão necessária”. Por outro lado, “o compromisso com equidade não deve nos deter de um aprofundamento nos debates, referências e propostas que tal produção apresenta, nem nos privar de engajar numa leitura generosa e ampliada que essa produção merece”.
Outra ação recente que merece destaque é o Projeto Afro, uma plataforma digital idealizada e criada pelo pesquisador Deri Andrade. Lançado em 21 de junho, o site tem como propósito ser um local de armazenamento e difusão do estudo das produções de autoria negra, tanto práticas quanto teóricas, servindo para experimentações e mutações curatoriais e artísticas. Segundo Andrade, o Projeto Afro “servirá para consulta e divulgação da produção artística do país, entendendo a produção de autoria negra como fundamental na compreensão das artes brasileiras, atribuindo a elas um tratamento adequado as suas complexidades e especificidades”. O pesquisador acrescenta que “a abertura do site já estava em desenvolvimento e que foi uma grande coincidência que o seu lançamento viesse ao encontro com o atual período de manifestações antirracistas”. Para ele, o Projeto Afro é “uma via possível de descolonizar os olhares, já formados historicamente para ver essas artes como ‘menores’, ‘primitivas’, ‘regionais’, ‘periféricas’, entre outros adjetivos responsáveis por caracterizá-las e intitulá-las no tempo”.
Pensar a narrativa das artes brasileiras para além das autorias brancas também é o objetivo do Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva. O projeto, coordenado pelas Profª Drª Carolina Ruoso, Profª Drª Joana D’Arc de Sousa Lima e a Profª Drª Rita Lages Rodrigues, conta com uma lista extensa de parcerias, como a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM/Recife), o Laboratório de Arte-educação, curadorias e histórias das exposições da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/Ceará), o Caderno Vida & Arte do Jornal O povo e a Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), e tem por objetivo apresentar um estudo das histórias das curadorias e exposições no Brasil.
O grupo, além de ser formado por pesquisadores de diversas áreas e regiões do país, está preocupado em realizar o estudo das curadorias e exposições brasileiras sem reproduzir as já marcadas exclusões históricas. Além de tomarem o eixo Norte, Nordeste e Centro-oeste como participantes centrais na construção da arte brasileira, o grupo também se preocupa em contemplar diferentes identidades, idades, gêneros, temas, formatos e modelos de realização e atuação dos curadores no país. Segundo Ruoso, “a pesquisa sobre os curadores nasceu da linha de pesquisa Teorias e Metodologias de Curadoria de Exposição e foi financiada pelo edital 11/2017 para os recém doutores da UFMG, mas que, de toda forma, é uma iniciativa que nasce do Laboratório de Curadoria de Exposição Bisi Silva, cujo o propósito é construir uma narrativa crítica sobre as artes e as curadorias no Brasil, entendendo-as como fundamentais na construção dos discursos artísticos no país”.
Essa preocupação já se faz visível pelo nome do grupo, que optou por homenagear uma curadora mulher, negra e nigeriana. Bisi Silva, que faleceu em março de 2019, é reconhecida internacionalmente pela sua atuação no Centro de Arte Contemporânea de Lagos (CCA) e na Escola de Arte Asiko, espaços que ela fundou e dirigiu por muitos anos. Além de promover a pesquisa, o ensino, a exibição e a circulação das produções contemporâneas nigerianas, Bisi Silva colaborou para a criação de redes artísticas com os demais países africanos e com outros territórios, como o europeu.
Entender a curadoria como um campo em disputa também é o lema de duas das curadoras indígenas brasileiras de destaque nos últimos anos, Naine Terena e Sandra Benites. Ambas, demonstram que é preciso pensar novos modos de se fazer curadoria. Sandra é de origem Guarani, estudante de doutorado no Museu Nacional e a primeira curadora indígena contratada por uma instituição artística brasileira, o Museu de Arte de São Paulo. Sua contratação foi realizada no final de 2019 como parte do processo de organização da exposição Histórias indígenas, programada pelo MASP para ser realizada em 2021. Naine é de origem Terena, é doutora em educação, professora universitária e curadora da exposição Véxoa: Nós sabemos, que ocuparia a Pinacoteca do Estado de São Paulo neste ano e que está suspensa em decorrência da pandemia. Ela atua como curadora e educadora, e entende que a educação atravessa todos os âmbitos da sua atuação. Segundo Naine, sua atuação envolve apresentar uma arte contemporânea pelo viés indígena, como possibilidade também de educar o olhar do público não indígena. Ela acredita que “o processo de formação e de diálogo com gestores, curadores e programadores, ajuda a combater estereótipos, preconceitos e estimula a construção de relações respeitosas”. A curadora destaca também que sua ação não é individual, mas coletiva, e que “é necessário pensar a partir da coletividade e da escuta para a construção de um cenário nacional consistente”.
Mover-se em coletivo também é uma das premissas do Movimento de artistas indígenas Mahku, da etnia Huni Kuin, moradores da cidade de Rio Branco, Acre. A região, pouco representada nas narrativas da história das artes brasileiras, vem conquistando mais espaço através do grupo. O artista Ibã Huni Kuin é a principal liderança do movimento e se destaca pela atuação como artista e agente cultural. O propósito do grupo é o de valorizar a produção artística através das estéticas locais, além de criar um sistema de circulação e conceitualização de suas produções. Para o artista, curador e ativista Denilson Baniwa, outro artista indígena em destaque, esse movimento de artistas indígenas já existe há muito tempo, mas apenas nos últimos anos foi acessado com mais atenção pelas redes não indígenas. Segundo ele, “foi através da coragem desafiadora de alguns artistas que lugares foram abertos, gerando uma rede crescente de outros artistas que já produziam ou que começaram a produzir com mais liberdade”. De acordo com ele, “esse movimento contribui não apenas para os artistas indígenas, mas, sobretudo, para demonstrar que há um outro tipo de visão possível de arte, e que pode servir de base para a construção de um meio decolonial e crítico”.
Os artistas indígenas, assim como os demais que são racializados pelo sistema, possuem dificuldade de inserção nas coleções museológicas, nas galerias de arte e nos acervos privados de arte contemporânea. É comum encontramos galerias brasileiras que não possuem nenhum artista negro, indígena ou de origem asiática em suas listas. Como crítica a esse mercado excludente, o arquiteto e urbanista Alex Tso, brasileiro filho de imigrantes chineses, abriu a primeira galeria dedicada a artistas cujas vidas são marcadas pela racialização. Segundo o site da instituição, por compreender a necessidade de lançar um olhar atento para as “questão de gênero, raça, classe e territórios geopolíticos”, a Diáspora Galeria se propõe a defender a “articulação de uma rede de colecionadores que reconheçam o valor de mercado como indissociado do valor histórico da produção artística dos artistas”, que não entenda a arte apenas pela “circulação única como objeto e valor monetário”, mas que a expanda “enquanto legado de ancestralidade e identidade, tornando-se simultaneamente proponente de uma nova contemporaneidade”. Para Tso, o reconhecimento da população brasileira de ascendência asiática deve extrapolar o já conhecido termo “nipo-brasileiro” e a migração japonesa como referência. “É preciso começar a entender a participação de outros grupos asiáticos na conformação da sociedade brasileira, como as comunidades chinesa, sul-coreana e indiana, dentre outras múltiplas migrações advindas da região”. Além disso, “o reconhecimento dessa população como racializada também é parte fundamental para o engajamento na luta antirracista”.
O galerista também aponta que é importante a adoção de políticas que visem a ampliação de pessoas racializadas nos quadros de funcionários das instituições de arte, reforçando a sua presença em todas as instâncias e lhes garantindo maior autonomia profissional, inclusive nos postos de decisão e cargos de gestão. Ele complementa dizendo que a Diáspora Galeria é uma “possibilidade de criar isso enquanto uma rede produtiva integralmente racializada, que possa suprir e se distanciar das práticas do circuito até então hegemônico e apresentar outras possibilidades de organização dentro desse sistema”. E que, para além desse compromisso, “o espaço apresenta uma possibilidade de transformação para o sistema das artes, acreditando em sua capacidade de ser menos excludente, menos branco, menos elitizado; e mais crítico, mais posicionado e envolvido com a sociedade”.
Empenhar-se na construção de um novo futuro para as artes brasileiras é entender-se enquanto agente de mudança. É compreender que são ações diárias que as tornarão permanentes. Para isso, é fundamental a mudança de postura, a autocrítica, a crença no trabalho coletivo, a cobrança de políticas públicas para o setor, a realização dos revisionismos históricos, dos critérios estéticos, das nomenclaturas, das linguagens, dos termos, entre tantas outras ações. Combater a hegemonia branca nas artes é um desafio que deve ser enfrentado por todos e todas. Rejeitá-la é acreditar em um novo projeto de futuro para as artes brasileiras.