David Magna, T3c36, 2019. acrílico colorido.
David Magna, T3c36, 2019. acrílico colorido

“Os peixes não sobrevivem em águas limpas”. A máxima de Mao Tsé Tung lembra o navegar turbulento da Bienal de Havana ao longo de 30 anos, com dificuldades financeiras e burocráticas, mas não suficientes para naufragá-la. O tema da 13ª edição, O Desafio do possível sintetiza a luta que toca no imaginário e tenta dar rosto ao impossível. O evento segue na busca de maiores correspondências entre a criação e as práticas de vida, ou a pontos convergentes. Com um ano de atraso, por conta do furacão Irma, a mostra coincide com as comemorações dos 500 anos da fundação de Havana e os quase 30 da Bienal.

Qual é a transcendência do maior evento cultural da Ilha? Há muitas mediações sobrepostas na Bienal de Havana desde a sua fundação em 1984:  arquitetura do lugar, carga histórica, crise financeira local e a dos países participantes, fricções ideológicas variadas, críticas dentro e fora de Cuba, achaque de galeristas e colecionadores vorazes que chegam à Ilha a procura de arte de qualidade a preços muito abaixo do mercado internacional.

Se comparada às edições anteriores a 13ª Bienal não está entre as melhores. O mesmo sucede às últimas bienais de São Paulo, Veneza e à Documenta de Kassel. Em Havana, a curadoria é assinada por sete curadores cubanos capitaneados pelo crítico e intelectual Nelson Herrera Ysla, além dos 21 estrangeiros convidados.

O momento é de reflexão, transição, desconforto e mudanças, com alguns curadores assumindo cargos em outras instituições culturais ou simplesmente partindo para uma carreira solo. As bienais fazem história desfazendo as realizações e significações anteriores. Mas, que singularidades ainda podem provocar surpresas em meio ao acúmulo excessivo de bienais, feiras, festivais, residências? As obras distribuídas por toda Havana, além de Matanzas, Sancti Spiritus, Cienfuegos e Camagüey estão aplainadas pelo momento internacional.

Manaf Halbouni, Uprooted
Manaf Halbouni, Uprooted, 2014. Carroceria de automóvel, livros e outros objetos

Na sede da Bienal, a performance Tejido Colectivo de Alexia Miranda polariza as atenções e ocupa o átrio do Centro Wifredo Lam. Com a ideia de responder ao presente, com possíveis noções de futuro, alerta para a urgência de transformações sociais. Os círculos trançados coletivamente, em vários padrões e ritmos, são ferramentas na tentativa de restaurar momentos de paz no violento El Salvador. A gentrificação das grandes metrópoles chegou a Dresden, cidade alemã onde mora Manaf Halbouni, artista sírio, de 34 anos. Como seu sonho de morar em uma casa nunca se concretizou, ele transforma o carro em residência-ateliê, “onde resolvo tudo”, exposto na Bienal de Havana como arte.

O país também está na pauta de Lais Myrrha com Cronografia dos Desmanches, obra in progress que  desenvolve desde 2012. “O trabalho surge quando percebo o boom da especulação imobiliária ao andar pelas ruas e me deparar com cinco casas destruídas de uma única vez ”. São imagens de demolições, locais abandonados, bustos, portos, algumas não identificadas”.

A Bienal de Havana aposta nos jovens artistas. Nesse contexto se encontra Ruy Cézar Campos, cearense que trabalha diferentes temporalidades em três vídeos: Circunvizinhas, A Chegada de Monet e Pontos Terminais Emaranhados. Todos integrantes da série A Rede Vem do Mar, pesquisa de um ano entre Brasil, Angola e Colômbia.  “Tento estabelecer vínculo fenomenológico entre a infraestrutura dos cabos submarinos e as plataformas de desembarque dos mesmos. Fortaleza é a cidade mais importante na rede do Atlântico Sul com as quais está conectada, Sangano, em Angola e Barranquila, na Colômbia”. Operando entre tecnologia e estética, o artista se expressa entre performance, documentário e ficção, com viés político social.

Em Matanzas, novo território da Bienal, Marilá Dardot faz valer a utopia de diluição da arte na vida cotidiana. “Meu trabalho é um segmento da residência que fiz no México, em 2015, no momento do episódio dos estudantes desaparecidos. Escolhia manchetes de jornais e diariamente intervinha com escritos executados com água sobre um muro de concreto. À medida em que os escrevia iam se apagando”. Em Matanzas, optou pela performance Volver, em que escreve repetidamente com água a frase A la esperanza vuelvo em uma parede na rua. O trabalho de Marilá mudou nos últimos anos, “passando de uma visão otimista ligada à literatura, poesia, ficção e natureza, para uma visão mais pessimista diante de fatos políticos do Brasil. “Houve um despertar político em minha geração, assim como em mim mesma”.

Haver, Sem Horizonte
Haver, Sem Horizonte, 2019. Chapas de alumínio

Por último, três artistas cubanos com carreiras estabelecidas e poéticas identificáveis, reunidos na mostra Museus Interiores, no Museu Nacional de Bellas Artes.  Kcho (Alexys Leyva Machado), Carlos Garaicoa e Los Carpinteros. O vôo internacional de Kcho começa com Regata, instalação de 1993, feita aos 23 anos, um ano antes de entrar para o acervo do Museu Reina Sofia, em Madri, do MoMa e do elenco da galeria Barbara Gladstone, de Nova York. Barco, símbolo do imaginário coletivo dos cubanos, aparece em desenhos gestuais, esculturas ou instalações com objetos que se nutrem de várias poéticas.

Como afirmou o geógrafo Milton Santos, a arte de rua, naturalmente urbana e pública, traz forte carga política por ocupar espaços fora dos campos institucionalizados da arte e por tocar as realidades sociais de perto. Partitura, instalação de Carlos Garaicoa, desenvolvida por dez anos, sintetiza esse pensamento. A obra tem a participação de 70 músicos de rua, de Madri e Bilbao. Trata-se de uma orquestra com 35 vídeos de músicos de rua executando peças diferentes. A partitura final, do músico cubano Esteban Puela, enfeixa as variadas sonoridades e é transmitida para a grande tela digital que assume a direção da orquestra. Los Carpinteros, em uma de suas últimas atuações como dupla, coloca em Alacenas, de 2016, crítica sobre a devastação das tormentas que invadem o Caribe. Os sons emitidos pelos furacões são gravados, reproduzidos e colocados em velhos armários de cozinha que emitem o barulho aterrador do fenômeno.

Esses artistas formam um núcleo lógico e de consenso, mas vale lembrar que há pelo menos duas dezenas de outros, igualmente respeitados profissionalmente, que gravitam em mostras internacionais.

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