Performance do artista sul-africano Neo Muyanga
Performance do artista sul-africano Neo Muyanga, apresentada no Pavilhão da Bienal em parceria com o coletivo Legítima Defesa. Fotos: Levi Fanan/ Divulgação

(Confira aqui as novidades da Bienal de São Paulo, adiada por conta da pandemia do coronavírus, e acesse o novo site da 34a edição, que apresenta as “correspondências” escritos pelos curadores).

 

Sob o título Faz escuro mas eu canto, a 34ª Bienal de São Paulo teve seu pontapé inicial em 8 de fevereiro, com a abertura da exposição de Ximena Garrido-Lecca e a performance realizada por Neo Muyanga e assistida por um público de quase 1,8 mil pessoas. Essa antecipação da agenda não apenas coloca em prática o desejo – muitas vezes enunciado nas edições passadas, mas raras vezes conquistado – de alargar o alcance temporal de um dos principais eventos culturais da cidade, como serve para dar a tônica do que se pode esperar da grande exposição coletiva deste ano.

Usando como fio condutor a ideia de ensaio, de algo que vai se construindo ao longo do tempo a partir de um intenso diálogo entre os membros da equipe curatorial, a atual edição da Bienal tem por meta a descentralização, o espraiamento de suas ações pela cidade – por meio de uma parceria ampla com 25 diferentes instituições culturais –, abrindo múltiplas possibilidades de leituras das obras e artistas selecionados. Outros aspectos importantes da presente edição são uma maior abertura para a inserção de trabalhos de caráter histórico, um equilíbrio claro entre os gêneros e um interesse em promover encontros, diálogos entre diferentes poéticas e obras. Em entrevista recente Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra, e Paulo Miyada, curador-adjunto, explicaram os principais contornos de seu projeto. Também fazem parte da equipe a artista brasileira Carla Zaccagnini e os curadores Francesco Stocchi (Holanda) e Ruth Estévez (México).

arte!✱ – Vamos começar pela questão do “Faz Escuro mas eu canto”. Como foi chegar nesse tema?

Jacopo Crivelli Visconti – Não há um tema e sim uma metodologia que tem muito a ver com essa ideia de expandir a bienal no tempo e no espaço, com o exercício de propor que a pessoa possa ver as obras mais vezes. Nas três exposições que acontecem ao longo do ano, dedicadas ao trabalho da Ximena Garrido-Lecca, da Clara Ianni e da Deana Lawson você vê com clareza os interesses, as preocupações dessas artistas. Depois de relativamente pouco tempo você reencontrará de novo aquelas obras justapostas a trabalhos de outros artistas.

Além disso, a mostra se espalha pela cidade com 25 parcerias com diferentes instituições. Vocês farão essas curadorias?

Paulo Miyada – Cada instituição acaba sendo parte de uma espécie de comitê curatorial expandido. Não só porque cada exposição tem seu curador, mas porque cada exposição tem seu público e seu contexto. Não decorrem apenas do interesse para a Bienal, mas também da possibilidade de reverberarem de forma potente naquele lugar, fazer sentido com aquele público.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Foto: Pedro Ivo Transferetti/ Divulgação

Essa ideia de expansão está muito presente na história das bienais, mas é raro vê-la efetivada na prática.

Visconti – Pode parecer que a ideia é fazer um projeto muito grande, como se a Bienal precisasse de mais espaço. Mas acho que na verdade estamos propondo um exercício muito íntimo, um caminho diferente, de criar uma relação com as obras, algo que normalmente esses eventos muito grandes não permitem. Essas exposições individuais vão coabitar por algum tempo. E haverá também as performances nos dias de abertura (Palabras Ajenas, de Leon Ferrari, e A Ronda da Morte” peça inédita de Hélio Oiticica).

Vocês estão fazendo praticamente uma curadoria de obras?

Miyada – Exatamente, se comparado a outras bienais será muito mais uma curadoria de obras do que uma curadoria de artistas. Talvez nisso a gente também se distinga da maioria, que tem muita ênfase na produção de obras novas. Até porque com elas você não consegue ter uma afinação tão precisa e o que nos interessa aqui é essa escala mais íntima, é essa obra aqui junto com essa e essa, que você consegue entender.

Comecemos pela história do poema.

Miyada – Foi escrito pelo Thiago de Mello, poeta amazonense, entre 1963 e 1964, entre o estado do Amazonas e Santiago do Chile, onde ele era adido cultural. Era um poema de esperança, num momento de desejo progressista. Mas só foi publicado em 1965 quando, como a gente sabe, a realidade do Brasil já era muito diferente. Em 1968, o Thiago de Mello foi preso. Ele conta que entrou na cela, com muito medo, sem saber o que podia acontecer e quando olha para a parede vê que o preso anterior tinha deixado escritos seus versos: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar”, o que fez com que ele retomasse a crença. Em poucos anos, esse verso foi esperança, persistência, chamado, suspiro. E a gente fica pensando: como é que ele chega hoje?

Vamos resistir por cima, né?

Visconti – E não cantar apenas sobre essa escuridão. É preciso muita coragem para falar de outras coisas num momento como o que a gente está vivendo. É essa coragem que a gente está defendendo aqui, como ponto de partida.

Miyada – Dentro da exposição a própria ideia de repetição seria sim um desses enunciados, desses subtemas ou diários de convergência. Está muito claro no projeto que uma exposição se faz como um ensaio, mantendo relação com a leitura de Francis Alys de como os projetos progressistas, especialmente nas Américas, parecem sempre um ensaio, no sentido de uma repetição, de algo que parece que agora vai e depois é abandonado. Tudo vira ruina muito rápido.

É possível dar um exemplo concreto sobre esse núcleo da repetição?

Visconti – Não vai ser um bloco porque não haverá separação, porque esses vários assuntos (uns seis ou oito) se entrelaçam. Por exemplo, estamos tentando trazer um sino da capela do Padre Faria, em Ouro Preto. É um sino bastante típico, mas que tem a particularidade de ter sido tocado em momentos muito importantes da história do Brasil. Reza a lenda que foi tocado na noite da execução de Tiradentes, quando obviamente havia a proibição de tocar os sinos porque estava sendo executado um inimigo do império. A história mudou, Tiradentes virou um herói nacional e o sino foi levado para Brasília e tocado no dia da inauguração da nova capital. A gente vai falar de como sua história vai se repetindo das maneiras mais imprevisíveis ao longo dos séculos. As noções de resistência, de como as coisas aparecem e desaparecem, são outras abordagens contempladas.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Jaider Esbell, “Malditas e Desejadas”, 2013 acrílica sobre lona encerada. Acervo da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea. Foto: Marcio Lavor 

Quem mais trataria dessa questão da repetição?

Visconti – Morandi é um bom exemplo. Pintou um repertório relativamente reduzido do ponto de vista iconográfico ao longo de décadas. Mas também reverbera particularmente a ideia do Faz escuro mas eu canto. É daqueles artistas que, da mesma maneira como Monet pintando Ninfeias na I Guerra Mundial, podem ser vistos como como alienados ou como – e é assim que eu acho que é preciso vê-los – alguém que considera que perseverar enquanto o mundo está pegando fogo não é um escapismo.

São diferentes as abordagens em reação ao escuro?

Miyada – É preciso lembrar que para algumas pessoas faz escuro faz um ano; para outros 10 anos, 500 anos, mil anos. Enquanto você ouve as vozes que estão incluídas nessa experiência, a ideia do que significa cantar diante do escuro se transforma. Se à primeira leitura o escuro é visto como ameaça, risco, e é isso mesmo, de perto ele pode ser um aliado para muitos artistas. E, pelo contrário, a transparência pode ser um recurso altamente ideológico, de controle, de repressão, de vigilância.

 


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