Coletivo de curadores da 35ª Bienal. Da esq. para a dir.: Manuel Borja-Villel, Diane Lima, Grada Kilomba e Hélio Menezes. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo
Coletivo de curadores da 35ª Bienal. Da esq. para a dir.: Manuel Borja-Villel, Diane Lima, Grada Kilomba e Hélio Menezes. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

A 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível, cuja abertura acontece em 6/9, divulgou em setembro do ano passado seu projeto curatorial, concebido pelos curadores Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Desde que começaram a trabalhar juntos, na virada de 2021 para 2022, eles decidiram que não haveria um curador-chefe. O coletivo propunha o que chamam de “contradança” entre seus membros, numa prática “que tem como princípio a tentativa de romper hierarquias, procedimentos éticos e normativos que encenam estruturas verticais de poder, valor e violência dos dispositivos institucionais – as quais, todas sabemos, o mundo já não sustenta”, de acordo com o projeto.

Uma lista parcial de 43 artistas, duplas e coletivos selecionados foi anunciada oficialmente nesta quinta-feira (27/4). Ainda neste primeiro semestre, sairá a relação completa, com mais de 100 nomes. Em entrevista à arte!brasileiros, os curadores falam de seu processo de trabalho e tentam jogar luz sobre os conceitos desta edição, a partir de alguns dos artistas convidados e suas respectivas práticas. Leia a seguir:

ARTE!✱ – Quatro cabeças pensantes juntas: quando isso facilita e quando  dificulta?

Manuel Borja-Villel – O fato de nos unirmos, que foi algo voluntário, parte em primeiro lugar de um ato de humildade e de anti-heroísmo, de saber que uma vanguarda que siga em só um caminho não faça sentido, portanto, que os quatro juntos criem uma troca epistemológica e de governança. Epistemológico significa que talvez, digamos, as coisas tradicionais de visitar estúdios, mesmo que cada um de nós tenhamos visitado, não seja tão importante. O importante é o que cada um de nós descobriu, que não conhecíamos, e ver coisas, que pensávamos que conhecíamos, de pontos de vista diferentes. Sobre a facilidade ou não facilidade de trabalhar, se você parte de um ponto em que acha que sabe tudo e tem que convencer aos demais, a dificuldade é enorme, quase impossível. Porém, como nós não partíamos do que sabíamos, mas sim do que desconhecemos e do que queríamos aprender, a facilidade foi grande.

ARTE!✱ – Vocês partem de uma ideia de humildade, mas hierarquizar faz parte da natureza humana. Nós hierarquizamos nossa rotina, nosso pensamento etc. E, quando a gente pensa em um coletivo, em que medida essa horizontalidade também não engessa os processos e intimida a expertise individual de cada um?

Manuel – As crianças não se esquecem de praticamente nada do que aprendem em determinada idade. Por quê? Porque aprendem a se relacionar com elementos afetivos. No nosso caso, essa hierarquia não teve qualquer sentido ou papel, não houve esse desejo. Todos partíamos desse elemento afetivo, desse elemento de querer aprender uns com os outros, de saber que, digamos, tínhamos que descolonizar nossa forma de pensar e, por consequência, não há que hierarquizar. Há um elemento afetivo que vai ligado a todo o elemento de conhecimento.

Grada Kilomba – Acho muito interessante a sua definição de que faz parte da natureza humana hierarquizar. E eu acho que esse é o grande cerne do nosso discurso, que não faz parte da natureza humana. É um fruto de uma história colonial e patriarcal que se repete, e é exatamente essa a urgência: desmantelar essas hierarquizações. Então, como nós nos formamos, com essa horizontalidade, os artistas que nós escolhemos, que obras de artes nós escolhemos, vão exatamente nessa manifestação de desmantelar aquilo que nos parece quase normativo e natural que é a hierarquização que está sempre associada com um exercício de poder e violência, mas que não é natural. Tornou-se politicamente exercido, mas não é natural. Isso são as coreografias do impossível.

Diane Lima – A gente olha para a lista de artistas e entende que suas obras não tematizam essas relações, elas tentam trazer, a partir das suas perspectivas, outros modos de ver que não remontam a hierarquia. Isso é apenas um exemplo. A gente tem alguns outros exemplos de obras que frustram uma ideia de arte política, que coloca ou reduz a capacidade de expressão do artista a uma outra posição representativa, ou literal, ou extremamente figurativa, e são obras que trazem perspectivas abstratas, ou que conversam com elementos não humanos, ou que mobilizam materialidades orgânicas, ou que conversam com determinados níveis espirituais e que não necessariamente voltam para tematizar a decolonialidade.

A gente entende que decolonialidade é parte de um conhecimento incorporado. Quando a gente fala sobre humildade, sobre desejo de conversar e de negociar e trocar, é também parte de um entendimento de que a gente precisa fazer um gesto, e que esse gesto ele está na prática desses artistas. Esse é um fator importante pelo qual a gente não traz determinadas questões enquanto tema, mas, sim, enquanto uma performance e uma prática cotidiana que, obviamente, a gente jamais as colocaria em lugar um romântico. Acho que a gente compreende as dificuldades, os ruídos, os atritos, os conflitos [da horizontalidade proposta]. Talvez, a diferença seja o desejo de estar em um conflito, permanecer em um conflito e desfazê-lo a partir dessas perspectivas e de um processo de compreensão que a gente não sabe tudo e que, portanto, o mundo traz uma multiplicidade de conhecimentos, de epistemologias, de cosmologias, e o nosso exercício com as Coreografias do impossível é justamente trazê-los ao espaço e apresentá-los ao público.

ARTE!✱ – O texto curatorial, divulgado em setembro, foi considerado vago por muitas pessoas. Pensando que vocês já haviam começado a trabalhar de 2021 para 2022, ele era exatamente um instantâneo do processo naquele momento? Ou ele revela o quanto todo o trabalho, até o fim, será um processo? Esse caráter movediço vai permanecer até a abertura e mesmo durante o período em que a Bienal estiver em cartaz? 

Hélio Menezes – Essa dimensão processual existe em toda e qualquer criação de Bienal, algumas confessas. Em nosso caso, absolutamente confesso. Nós recebemos diferentes retornos, críticas, comentários, e acreditamos que um evento como a Bienal de São Paulo mobiliza paixões, mobiliza discussões, mobiliza debates, e seria estranho se não houvesse comentários e retornos, inclusive de discordância. De todo modo, acho que a boa crítica é aquela que se baseia em algo acontecido, em algo que se realiza e que se manifesta. Acho que críticas, comentários que, de alguma maneira, tentam especular o que virá, em cima de imaginações do que virá, tem um valor, talvez, menos importante do que uma crítica baseada na realização efetiva. Recebemos também uma série de elogios e comentários, e acho que esse debate faz parte e nos interessa. Não diria que há um instantâneo de absolutamente nada. São veiculação de ideais em uma dimensão absolutamente processual e que se vai acumulando, e que se vai desfazendo, que vai se colapsando e que, para dar dois passos para trás, a velocidade ainda é de uma coreografia, ainda é movimento.

ARTE!✱ – Umas das avaliações acerca da proposta curatorial do coletivo partiu da crítica de arte Sheila Leirner, curadora-geral das 18ª e 19ª Bienais de São Paulo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo. Entre outras observações, ela colocava que a política se sobrepunha à estética no projeto. 

Hélio Menezes – A 35ª Bienal traz e trará novas imaginações possíveis entre arte e política, expandindo portanto um certo campo, sobretudo nos últimos anos, nas últimas décadas talvez, que atrelou, às vezes de maneira muito rígida, arte e política ao campo da representação, da representatividade ou da figuração. Esta Bienal apresenta e apresentará outros modos de relação mais expansivos.

ARTE!✱ – Como isso vai ser materializar nas obras vistas pelo público? Pode dar exemplos?

Hélio – Práticas que vão em linguagens abstratas, práticas que vão em linguagens performativas, que vão buscar em referência a espiritualidade ou da história, seja história de curto prazo ou de longuíssima duração. Referências que não são necessariamente a de eterna confrontação, que não são necessariamente de eterna frontalidade, mas que há um espaço para imaginar outros mundos, que abra espaço para o sensível, pro poético, pro onírico, ou quem sabe acelerar a destruição desse próprio mundo em que estamos a partir de outros modos de engajamento, não necessariamente reduzidos a militância expressiva, não necessariamente reduzidos a uma frontalidade combativa ou mesmo à figuração excessiva como únicos campos possíveis da criação artística. Estamos mais de fato a trazer essas inovações que não vem apenas de uma perspectiva curatorial, mas que vem da prática artística. Esse conjunto de 43 projetos e artistas que divulgamos, que se estenderá nos meses subsequentes, traz em suas próprias práticas outras imaginações da relação entre arte e política, que às vezes perpassa, por exemplo, pela plantação de milhos de semente crioula, como é parte do projeto do Denílson Baniwa, ou que podemos passar pela escultora, pintora, pensadora Torkwase Dyson, que propõe, a partir de um certo pensamento negro, outro modo de pensar aquilo que ela vem chamando de pensamento negro, e esses exemplos aqui podem se multiplicar em absolutamente todos os projetos. São essas novas, inesperadas e mesmo incontáveis maneiras de se pensar arte e política, de se pensar contexto, impactos de contextos impossíveis sobre criação estética e artística, que interessam à 35ª Bienal.

ARTE!✱ – Em alguns desses projetos, vocês se depararam com a surpresa de algo que absoluta e imediatamente traduziu o que vocês tinham em mente? Em caso afirmativo, quais, por exemplo?

Manuel – Seguindo o que dizia sobre a separação entre arte e política, parece que as coisas têm que seguir uma disciplina, e quando você sai dessa disciplina, vira política. Por exemplo, a separação entre uma relação com o lago, com a natureza e a prática artística em certas comunidades maia não existe. Portanto, quer dizer que, quando estão defendendo o lago, estão fazendo política. Quando estão fazendo uma ação poética no lago, estão fazendo arte. Portanto, há uma separação que não existe. A Bienal está aqui, e a decisão da Bienal ser gratuita é política. No primeiro texto, falamos da palavra enigma, que é o contrário dessa visão do político como um elemento literal, como um elemento que não está dado. E, durante o processo, encontramos surpresas, encontramos elementos de autores que, conforme vamos falando e vamos descobrindo, em que traduzir não é a palavra, mas que iam se relacionando e acrescendo ao que estávamos falando nos múltiplos textos que circulavam no começo. Philip Rizk, um artista egípcio que vai trazer uma peça para a Bienal que se chama Awful Sounds, e que tem relação com a ideia que tinham os ingleses quando estavam no Egito, da música popular. Eram literalmente sons horríveis para eles, era algo era horroroso para eles. Curiosamente, nos próprios anos 1930, os egípcios fizeram um grande seminário para estruturar um tipo música que vinha de todos os lugares e que parecia que era totalmente independente, mas que criaram um sistema de anotação, que era britânico, onde há um elemento de auto-colonização, um elemento bastante complexo. Curiosamente, essa era uma ideia que nos estava circulando e Philip, que faz de um modo em que o artista é muito mais completo, muito mais sutil, sente não com as palavras, mas percebe com o corpo, e digamos que essa relação há existido continuamente onde pensávamos que era de uma forma e, conversando com os outros, percebemos que era de outro modo.

ARTE!✱ – À medida que se voltaram para os artistas, para fazer a seleção, sentiram que havia um grande espírito do tempo reunindo as suas ideias e as práticas deles? Havia uma confluência? Ou vocês estavam trazendo um elemento mais surpreendente, uma provocação para eles?

Diane – O resultado nesse momento parcial da lista de artistas vem de um longo processo de pesquisas que a gente reúne para a Bienal, e é difícil precisar em que momento a gente conhece esses artistas, que começamos a acompanhá-los, a conversar, a ter intimidade com a obra e com as práticas, inclusive porque muitos deles já não estão mais entre nós. Há um exercício muito grande de compreensão das urgências do nosso tempo, quais são as necessidades de determinados debates, quais são as possibilidades de imaginação as possibilidades de reorganizar determinados tipos de pensamentos, determinadas práticas de conhecimento e olhar para as coreografias do impossível, qualificando de onde a gente parte sobre o que é o impossível, que determinados contextos se tornam impossíveis por questões econômicas, por questões sociais. Pensando que trabalhamos com um espaço que é internacional, que coloca o Brasil em relação a outros territórios e espaços, então, nesse sentido, é interessante notar essa comunicação e essa expansão temporal, como a gente olha para essa dinâmica do tempo e do espaço, e como isso se reflete massivamente na lista de artistas.

ARTE!✱ – Em trechos do projeto curatorial, vocês falam de “gestos de aprofundar, compactuar, colapsar e aproximar os arcabouços teóricos, as referências simbólicas e repertórios estéticos que conformam a própria coletividade que somos. Esses elementos que sinteticamente chamamos de inter ou multidisciplinaridade”. Também que “buscam coreografias que colapsam as categorias estéticas do pensamento moderno, criando uma imagem fractal onde o político, histórico, orgânico, físico, emocional, espiritual se une”. Isso tudo já não está dado nas práticas da arte contemporânea há alguns anos? Não são pontos pacíficos?

Manuel – De fato, há artistas de outros momentos que, obviamente, coisas que estão em outras épocas, mas que [agora] se interpretam de outra forma, [pois] estavam em outro contexto. [Um exemplo é] Stanley Brouwn, um artista do Suriname que vivia na Holanda. Existe uma série de elementos [em sua obra] em que ele não queria aparecer, não se deixava fotografar, era como uma variante. As urgências do presente, o trabalho que estamos fazendo, os contrastes com artistas mais jovens, mostram que não era assim,  mostram que a sua invisibilidade tem relação com alguém do Suriname que estava na Holanda. Tem relação com a dança, com o corpo, com o performativo, com as medidas dos braços, com a relação com o mundo. E, portanto, sei que estava ali, mas uma coreografia que estava limitada, estava como em uma camisa de força, onde existia, mas somente em uma direção, se via só de um modo, mas não de outro. O que nós queremos é um tipo de coreografia que se relaciona, onde uma coisa te dirige a outra e vemos que esse movimento é importante.

ARTE!✱ – De todos os temas emergentes e urgentes sobre os quais as práticas artísticas vem tentando se debruçar, surgiu algo novo no horizonte à medida que vocês estavam concebendo o projeto e trabalhando com esses artistas?

Hélio – Evidentemente. Todo processo artístico é um processo que traz uma dimensão enigmática, um processo que traz uma dimensão de surpresa, de conhecimento que inclusive se dá através de várias faculdades para além daquela dimensão popularcêntrica e que portanto existem, ou pedem, dos visitantes, uma relação afetiva, emocional, sensível, sônica, olfativa, por vezes. E, portanto, esses elementos e processos artísticos, talvez aí sim, para usar um pouco da sua última pergunta, sempre estiveram em qualquer processo de formação artística. Um elemento que não se encerra em uma dada explicação, que não se reduz ao modo como eu leio, porque certamente o modo como você ou outras pessoas se relacionaram com esses mesmos trabalhos abrem outros campos inimagináveis. Então, evidentemente, e isso é um ponto bem importante, não temos qualquer ambição enciclopédica nas Coreografias do impossível. Não temos qualquer ambição de fazer um mini mapa-mundi ou de uma cobertura generalizada e extensiva do globo. Trata-se de  entender como alguns processos e alguns contextos impossíveis impactam diretamente na produção artística e estética e política de determinados artistas, trata-se de entender como esses artistas vivem em contextos impossíveis, mas também em possibilidades que eles encontram de confrontar, escapar, negar, sonhar esses contextos impossíveis. Se não houvesse um processo de surpresa no meio do caminho, se não houvesse uma ampliação de nossas expectativas, isso seria tudo menos uma Bienal de Arte.

ARTE!✱ – Nesses encontros com os artistas, algum deles levou vocês para outros caminhos que vocês não tinham trilhado ainda?

Manuel – Inclusive, com o que pensávamos que conhecíamos. Mencionei o caso do Stanley Brouwn, e há muitos outros que fizeram com seus estilos distintos. Às vezes com nomes, com ideias, com opiniões, com muitas coisas. Obviamente, isso nos impulsiona a repensar aquilo que nós acreditávamos que conhecíamos e que vimos que, talvez, pudéssemos conhecer de outro modo, e esse espaço em comum que é importante. Os maias e os guatemaltecos têm uma palavra, uma expressão muito boa, que explica o que é estar em comunidade. É o andar parejo, é o andar sempre um com o outro. Não se aprende sozinho. Você pode memorizar sozinho, mas se aprende com os demais e se aprende com os demais à partir da abertura, a partir de entender que, no fundo, todos sabemos pouco e que a ideia de um conhecimento enciclopédico não existe, é um conhecimento que se impõe para que outros acreditem que seja universal, mas esse experimento de humildade, que eu acredito ser fundamental, te faz crescer de forma contínua, por isso dizíamos que esse processo vai seguir depois da Bienal.

ARTE!✱ – Um dos objetivos da Bienal é formar público. Esse público não iniciado vai se surpreender com que tipo de manifestação?

Diante – A gente tem uma infinidade de linguagens artísticas na Bienal. A gente tem desde pinturas, desenhos, gravuras, como também processos coreográficos, obras cênicas, paisagens sonoras. Acho que existe uma multiplicidade de linguagens que pode abrir um espaço interessante no sentido da mediação. A própria mediação em si com o público, falando de um público que talvez não seja tão íntimo das artes visuais, essa é uma preocupação nossa central na Bienal. Não é a toa que nós lançaremos no sábado [29/4] nosso material educativo, é um material que tem essa tentativa. A Bienal é conhecida por sua equipe [do programa educativo] permanente, e, pensando em uma Bienal que é pública e gratuita, nós entendemos que há uma tentativa e um desejo muito forte da Bienal que o educativo tenha um determinado protagonismo durante esses processos de construção, de mediação, de fruição, de recepção e de hospitalidade do público dentro do espaço expositivo. Nesse sentido, é muito interessante que alguns artistas que estão na lista também já apresentam algumas proposições filosóficas, poéticas, a exemplo da Inaicyra Falcão, que é uma pensadora, uma cantora lírica, uma coreógrafa, e traz reflexões sobre o que ela chama dessa coreografia e desse corpo espiralar, sobre essa possibilidade de ter as matrizes africanas como um lugar epistemológico de produção de conhecimento. Do mesmo modo o Hélio comentou brevemente sobre a Torkwase Dyson, que é uma artista que tem pensado através da abstração, tanto esculturas quanto desenhos, o modo como determinadas migrações forçadas ou deslocamentos forçados podem ser traduzidos ou refletidos em composições abstratas através do que a artista chama de um pensamento composicional negro. Há uma série de elementos nessa publicação que nos ajudam a nos aproximar e aproximar o público e retirar essa ideia elitista de que as artes visuais criam esse distanciamento. Estamos apresentando uma série de linguagens e de artistas que estão muito, de fato, felizes ao encontrar com esse público.

Manuel – Antes falamos que a Bienal parte da vontade de dirigir-se e entender as urgências do presente e, como as impossibilidades são muitas – ecológicas, há uma guerra, pandemia, desigualdades, linguagens – não há um único público, são muitos os públicos, e cada um pode encontrar suas próprias coreografias, suas próprias respostas, perguntas. Não há uma única resposta e todos podem vir e, como dizia a Diane, outra coisa é a estrutura de mediação, que pode haver entre determinadas seções e obras.

ARTE!✱ – Ocorre a vocês algum exemplo de uma obra que, aparentemente, seria algo que se debruça sobre uma questão individual ou íntima, mas que justamente ela se vasculariza para o coletivo, para os temas urgentes em pauta?

Hélio – São muitos os exemplos possíveis. Te faço uma pergunta em forma de resposta. Quando uma artista como a Aline Motta, por exemplo, estabelece um processo de pesquisa de sua própria genealogia, entendendo, por exemplo, a sua dimensão do lado paterno, masculino e branco, [isso] a levou a encontrar uma documentação capaz de retraçar a linha genealógica de sua família que remete, com muita rapidez, ao século XVI. Enquanto que, o lado feminino, e de origem negra africana de sua família, não remonta para além da sua avó. Isso exige da artista um processo genealógico, criativo, especulativo e de uma fabulação crítica de reconstrução de uma história absolutamente pessoal, absolutamente familiar, mas que é indissociável de uma história transatlântica de escravização, de deslocamentos forçados, de criação de territórios dentro da diáspora, de perseguição, mas também de afago, de violência, mas também de resiliência. Como separar essa dimensão absolutamente familiar e subjetiva que se origina a partir do trauma da mãe da artista, como dissociar de uma dimensão não só história brasileira, mas de todo o Atlântico? Esse é um exemplo, nós poderíamos levar outros tantos aqui. A Dayanita Singh é uma artista que tem uma longa relação de intimidade com uma amiga, com uma pessoa que lhe era do seu ciclo de amizades, e que gera com essa pessoa uma série de produções de momentos de enorme intimidade, de trocas afetivas entre elas, ou momento de absoluta cotidianidade, e sendo essa pessoa alguém que faz parte de uma dissidência sexual de gênero, como separar a dimensão da relação íntima entre a artista e a amiga de uma dimensão política muito mais ampla que questiona e colapsa categorias de sexualidade, gênero, do que é íntimo, do que é privado, do que é público?

ARTE!✱ Em 2021 e 2022, quando vocês começaram a trabalhar, nós estávamos no Brasil sob um clima político muito tenso. As mudanças que ocorreram, a volta de uma centralidade na cultura para o novo governo, quais eventuais elementos esse câmbio sociopolítico, ainda frágil, trouxe para a curadoria de vocês?

Grada – É interessante, porque, voltando um pouco atrás, essa questão de separar a biografia do político, voltamos um pouco ao início da conversa. À ideia de que nós podemos fragmentar o corpo do coração, da mente, da sexualidade, do espiritual, do ancestral, do político. Eu acho que desmantelar esse mito é grande parte do que nós fazemos nas Coreografias do impossível. Foi nos dado e nós trabalhamos ao longo do tempo e do espaço com a sabedoria que já não nos serve para explicar quem nós somos, assim como não serve para a produção artística, que é muito mais complexa, então todas esses artistas e o que nós temos conversado aqui em conjunto [refletem] a urgência de olhar para nós próprios como humanos, nessa complexidade, e que é impossível separar a biografia da política e do espaço do político. Que é tudo tão mais complexo, exatamente essa fragmentação e essa segmentação dos passos e de tempos em nós próprios é o que serve como uma série de identidades, raciais, de gênero, sexuais, de políticas de clima, de crise, humanas etc. O que serve são essas opções, então como resposta é impossível separar uma coisa da outra. O grande exercício das Coreografias do impossível é exatamente trabalhar com esse conceito de complexidade e sofisticação que é o que esses artistas trazem, e que depois conseguem atravessar uma série de materiais, uma série de narrativas, trazem temas que vão do LGBTQA+ a crise climática, pobreza, migração, e todos eles habitam o mesmo espaço e o mesmo tempo. E é isso que nós achamos tão interessante e tão importante, porque essa pergunta ‘ah mas isso já não foi tratado?’, e muitas dessas coisas são tratadas segmentadas, fragmentadas, separadas, com um núcleo que aparece dentro de uma exposição e que vamos abordar e vamos olhar segmentado e separado, e depois olhar de uma outra forma. Porque é urgente e importante ver essa complexidade que trazemos dentro de nós. Durante muitos anos, eu dei aulas na universidade, eu fazia sempre uma brincadeira com meus estudantes e nós fazíamos, em Berlim, um passeio pela universidade, que era um palácio, com muitas figuras e esculturas históricas. E nós passeávamos para olhar que figuras eram e como eram apresentadas, e as figuras eram apresentadas com uma cabeça com pescoço e o busto. Ou seja, a sua existência era reduzida à intelectualidade a ao cognitivo. Eram intelectuais sem corpo, em que o corpo, a emoção, os gestos, o gênero, a ancestralidade, a história, o político e o contexto não é mencionado. Por isso são bustos, apenas a cabeça conta. E eu acho que tudo o que nós falamos aqui e o que as artistas trazem e o que as Coreografias do impossível trazem é exatamente questionar todos os saberes que nos foram dados e a urgência de criar questões na íntegra, na nossa complexidade.

SERVIÇO
35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível
De 6/9 a 10/12
Curadoria: Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel
Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera – Portão 3
Entrada gratuita

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