Sidney Amaral, Incômodo, 2014. Obra do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. FOTO: Isabella Matheus

Falecido em meados de 2017, aos 44 anos, o artista Sidney Amaral tem exposição na Galeria Pilar até 27 de outubro. O MASP realiza, no dia 6 de outubro, palestra sobre o artista com Claudinei Roberto da Silva, intitulada Insurgência, urgência e afirmação na obra de Sidney Amaral.

Leia abaixo artigo de Tadeu Chiarelli sobre o legado do artista.

SIDNEY AMARAL: ENTRE A AFIRMAÇÃO E A IMOLAÇÃO[1]

*Por Tadeu Chiarelli

A arte produzida no Brasil durante o século XIX está repleta de imagens em que o homem negro é representado apenas como força de trabalho, submetido e humilhado em sua condição de escravizado (as obras de Debret (1768-1848), Rugendas (1802-1858) e outros estão aí para referendar esta afirmação). Foram raríssimos os retratos de homens negros captados enquanto indivíduos despidos dessa condição humílima. Tão raros quanto, foram os negros que posaram como personagens mitológicos ou literários.

No primeiro caso destaca-se a obra do pintor José Correia de Lima (1814-1857), autor de Retrato do Intrépido Marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana[2], 1853. Esse retrato homenageia o marinheiro que teria salvo várias pessoas de um naufrágio na costa brasileira. Esse retrato tem sua importância no campo da história da arte e da cultura do país por ser um dos raros a representar uma pessoa negra fora dos estereótipos do escravizado, captado em uma pose e com uma expressão que o individualiza.

O mito fundador oficial da nação brasileira durante o segundo império – entendida como a união utópica do índio e do branco, sem a presença do negro – foi transferida para a literatura por José de Alencar, romancista ativo na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Os principais heróis do seu mais importante romance, O Guarani, eram Peri e Ceci; o primeiro, um indígena que abandona suas raízes para abraçar aquelas portuguesas, com o intuito de desposar Ceci, a segunda personagem, filha de um conquistador branco. Cecy e Pery, s.d., de Horácio Pinto da Hora (1853-1890)[3] é a primeira pintura produzida no Brasil em que se percebe uma inversão consciente desse mito de origem: se Ceci é representada como uma jovem branca, Peri surge na obra como um homem de feições negras embaralhando, assim, o mito construído pelos intelectuais do Império.

Já a partir do século XX, a figura do homem negro vai aos poucos deixando de ser apresentado apenas em situações humilhantes, como escravizado, ganhando forte protagonismo, sobretudo, na obra de Candido Portinari (1903-1963).

Os primeiros autorretratos conhecidos de artistas negros surgem no início do século XX com as pinturas dos irmãos Arthur (1882-1922) e João Timotheo da Costa (1879-1932), de 1908[4]. Durante os anos seguintes, os irmãos da Costa produziram mais autorretratos, assim como outros artistas negros também se dedicaram a esse gênero de pintura.

Nessas obras é notável como os artistas referidos reforçam duas necessidades de caráter identitário: por um lado enfatizam suas relações com a profissão escolhida: são artistas, são pintores, e determinados atributos – a palheta, o pincel, a boina – parecem não querer deixar dúvidas quanto à filiação profissional. Por outro lado, ao mesmo tempo em que investem na representação de suas imagens como uma profissão específica, não deixam de reforçar a subjetividade de cada um deles, por meio da ênfase na expressão sobretudo do olhar.

Entre o tipo e o indivíduo, esses autorretratos parecem buscar a inserção desses profissionais no quadro social brasileiro, não mais como instrumentos de trabalho, mas como seres humanos plenos e integrados. No entanto, é preciso afirmar que em nenhum desses artistas se percebe a produção de autorretratos como uma constante, sendo, como na maioria dos casos, obras eventuais que não configuram um corpus que sustente uma apreciação mais demorada dos mesmos.

Diferente é o caso de Sidney Amaral (1973-2017), cujos autorretratos configuram parte significativa, (se bem que não única), de sua obra que, ainda em constituição, foi brutalmente abreviada por uma doença mortal.

Além do interesse estético e artístico que esses autorretratos de Amaral apresentam (e que serão aqui discutidos), eles, pelo o que se sabe, formam o único conjunto mais alentado de autorretratos produzidos por um artista negro até o presente, no Brasil.

Sidney Amaral, ‘Gargalheira ou quem falará por nós?’, 2014

Tal peculiaridade em princípio guarda um interesse especial porque Amaral, morto aos 44 anos, integrava um grupo especial da população brasileira: justamente aquela que mais sofre com a violência no país: homens negros e pobres[5]. Por meio da análise de sua produção será possível não apenas entender melhor sua contribuição para a arte contemporânea brasileira, como também para uma reflexão sobre a situação da população negra brasileira e sobre como ela explora sua própria subjetividade dentro daquela sociedade, pouco afeita a esse segmento da população.

Para aqueles medianamente comprometidos com a reflexão sobre a arte brasileira da segunda metade do século passado, Incômodo[6] possui alguma familiaridade com uma série de alegorias do Brasil produzidas nos anos 1970, pelo artista Glauco Rodrigues (1929-2004).

São comuns aos trabalhos dos dois artistas a maioria das figuras de cunho naturalista pairando sobre o fundo branco (ou negro, como no caso de alguns trabalhos de Amaral), produzidas a partir da apropriação de imagens de origem fotográfica ou da história da arte do país e que enfatizam a centralidade da composição, reforçando a dimensão crítica de suas alegorias. No políptico de Sidney Amaral, embora também exista essa centralidade, a estratégia mais eficaz para a sua compreensão – como bem sugeriu o estudioso Claudinei Roberto da Silva[7] – é desenvolver uma leitura da esquerda para a direita. Nesse trajeto observamos citações alargadas dos desenhos e aquarelas de artistas viajantes europeus do século XIX (como Debret e Rugendas) que mostram o negro em situação de vulnerabilidade. Porém, a humilhação do homem negro escravizado e acorrentado (na extrema esquerda da cena) é de alguma forma atenuada pela cena em que outros homens negros, mesmo escravizados, parecem travar uma discussão com os homens brancos.

Na parte central do políptico nota-se como que uma apoteose do discurso do artista, em que homens e mulheres negros parecem saudar a cultura afro-brasileira, da qual são herdeiros e protagonistas. No derradeiro painel, uma mulher acariciando sua barriga de grávida, por sua vez, parece jogar para o futuro a crença na redenção total da população negra do Brasil.

Fato interessante é que, se a obra for analisada levando em conta essa linearidade, notaremos que o artista parece ter se inspirado, de forma bastante sintética – como, aliás, costumam ser as alegorias – na linearidade procurada pelos enredos das escolas de samba: na “comissão de frente” da obra (primeiro painel), os negros escravizados apresentam o tema “incômodo” da escravidão, por meio da interação problemática com os homens brancos; na sequência, a apoteose também incômoda: os grandes ícones da identidade negra no Brasil e várias representações da mulher negra entendia como esteio dessa sociedade; no último painel, o futuro antevisto na mulher grávida e nas crianças.

Mas é justamente no painel central de Incômodo que surge, talvez, a figura de maior interesse para este estudo. Refiro-me à figura da garotinha que, no centro da composição, calça um par de tênis.

Conforme observou Claudinei da Silva:

Momento fecundo nesta pintura é também o retrato da criança (filha do artista) representada no centro do múltiplo. Sem camisa, ela compenetra-se no ato de calçar seus tênis e parece alheia a tudo que a cerca, seu gesto corriqueiro é bastante significativo, seus pés já não estão nus, ela não mais corresponde à imagem clássica e recorrente do negro escravizado com pés descalços e erodidos pelo trabalho bruto[8].

 

A filha como duplo do pai. Aqui está o dado mais interessante da obra. Amaral, ao invés de retratar-se no centro da composição, opta por retratar Lisieux, sua filha, desenvolvendo uma ação que, para nós corriqueira, significa a conquista da cidadania possível para as camadas negras da população brasileira. Por outro lado, o fato do artista optar por ser substituído pela imagem de sua filha traz à tona a percepção de que o artista aceita ser colocado em devir por meio da representação do corpo de Lisieux – o que não é pouca coisa, levando-se em conta a sociedade em que foi engendrada a obra: a brasileira, patriarcal e misógina, em que a mulher negra sempre foi vista como objeto de prazer do homem, sendo ele branco ou negro.

Sidney Amaral, ‘Mãe preta (a fúria de Iansã)’. Obra exibida na exposição Histórias Afro-atlânticas, no Instituto Tomie Ohtake.

Dentro dessa perspectiva de substituição da figura do artista por outra que consiga reforçar ações efetivas dentro da composição, assinalaria a pintura Mãe preta (a fúria de Iansã), de 2014. Pautada em uma cena do filme da diretora da República Dominicana, Leticia Tonos Paniagua, Sidney transforma a mulher negra que defende o filho do soldado, em Iansã – deusa das paixões desenfreadas na Umbanda e no Candomblé. De novo, a figura da mulher negra é trabalhada como símbolo da ação afirmativa que busca recolocar as comunidades negras brasileiras em outro patamar[9]. Essa obra, por sua vez, estabelece um intrigante pendant com outra do artista, esta de 2017, Intolerância – as sílabas que formam a palavra “intolerância” gravadas em cinco pedras usadas para ataque em conflitos de rua. Se em Mãe preta, a figura principal da composição é flagrada prestes a completar uma ação de ataque contra a opressão, na segunda, nota-se a violência potencial ali contida, como resposta à repressão a manifestações de protestos. No meu entender, ambas resumem as preocupações do artista quanto à tensão vivida pelos vários segmentos da população negra brasileira, assim como atestam a liberdade com que Sidney Amaral lançava mão tanto de meios tradicionais (como a pintura), quanto outros, de cunho mais experimental, para levar adiante suas inquietações – as pedras que formam Intolerância são apresentadas como armas de ataque passíveis de serem usadas a qualquer momento.

***

Como foi acima mencionado, a coleção de obras de Amaral, hoje pertencentes à Pinacoteca de São Paulo, completa-se com mais cinco obras, todas autorretratos: Imolação e Estudos para Imolação I, II, III e IV, produzidas entre 2009 e 2014. Os quatro Estudos para Imolação, foram realizados em aquarela, grafite e nanquim sobre papel. Como em Mãe preta, o fundo das aquarelas é negro, e a figura do artista – com exceção de Estudo para Imolação II, em que Amaral se representa armando o revólver – é representada com a arma na cabeça, prestes a imolar-se. Pelo resultado final – a obra Imolação, produzida em tinta acrílica sobre uma tela bem maior que os papeis que usou para seus Estudos – ele se auto representa em corpo inteiro, tendo como parâmetro o Estudo III, modificando apenas a boca que, se aparece fechada na aquarela preparatória, na obra final é representada num esgar de desespero mal contido.

Se nos outros trabalhos aqui comentados, nota-se um artista empreendendo a formulação de obras em que propõe um posicionamento de afirmação do negro brasileiro frente à história e a realidade de opressão em que vivem, nesses autorretratos toda a violência social do Brasil parece voltar-se contra si mesmo e seu povo, sendo o ato de imolar-se a única saída em protesto frente a essa situação tirânica de séculos.

Conforme depoimento do artista sobre a obra, concedido ao crítico Nabor Jr., em 2015:

Ao ver no meio da tela um homem com uma arma apontada para a cabeça, a primeira coisa que se pensa é que a pessoa representada no quadro quer se matar. Mas não é verdade. Justamente por isso eu coloco o nome de Imolação. Imolação é aquilo que se faz por uma coisa maior. Você não está se matando por ser um deprimido. Você está se matando porque não quer ser escravo, não quer perder sua identidade, sua liberdade”[10]

Aprofundar as análises sobre esses e outros autorretratos deixados pelo artista, torna-se um objetivo quando se percebe como, por meio deles, é possível se aproximar de determinadas e complexas contradições da sociedade brasileira, marcada pela instituição da escravidão que, abolida em 1888, ainda marca o cotidiano de exclusão de grande parte da população negra do país. Os autorretratos de Sidney Amaral, ao mesmo tempo que podem ser vistos como documentos/monumentos desta situação, também devem ser inquiridos como pistas para a continuidade dos esforços para reverter esse status-quo.

É neste sentido que se torna fundamental o fato dessas obras pertencerem ao acervo público da Pinacoteca de São Paulo, instituição que – diga-se de passagem – apenas acolheu em seu acervo uma obra de um artista negro em 1956[11], sendo que a instituição foi fundada em 1905. Com o acesso aberto a todos os interessados e aberta à inclusão de outros artistas negros contemporâneos brasileiros em seu acervo, a Pinacoteca dá o suporte necessário às iniciativas para as mudanças de paradigmas no campo das instituições museológicas brasileiras.

 

Referências Bibliográficas:

– CHIARELLI, Tadeu. “Sobre a mostra Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca”. In CHIARELLI, Tadeu (org.). Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2016.

– CHIARELLI, Tadeu. “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós” In CHIARELLI, Tadeu (cur.). Metrópole: experiência paulistana. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017.

– NABOR JR. “Meu passado (não) me condena: memória, raça e identidade nas pinturas de Sidney Amaral”. in O Menelik Segundo Ato. São Paulo: ano 5, ed. 017, out/dez., 2015. Págs. 16/21.

– SILVA, Claudinei Roberto. “A sedução do incômodo”. In SILVA, Claudinei Roberto da (cur.). O banzo, o amor e a cozinha de casa. São Paulo: MINC/Funarte ; Museu AfroBrasil Ipsis, 2015, pág. 9 e segs. Catálogo de exposição.

[1] – Este texto serviu de base para a comunicação proferida durante o Encontro “La creación artística de hoy, patromonio de mañana: Museu y Archivo, Memoria e Identidade”Proyecto de Investigación Interuniversitario Unión Iberoamericana De Universidades (UIU), ocorrido em fevereiro de 2018 em Barcelona. Em espanhol, o título do texto era: SIDNEY AMARAL, UN ARTISTA AFROBRASILEÑO: ENTRE LA AFIRMACIÓN Y LA INMOLACIÓN.

[2] – A obra encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.

[3] – A obra encontra-se no Museu Histórico de Sergipe, SE.

[4] – O autorretrato de Arthur Timotheo da Costa pertence à Pinacoteca de São Paulo; o autorretrato de João Timotheo da Costa pertence ao Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.

[5] – Segundo o Atlas da Violência 2017, publicado pelos Instituto De Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no dia 5 de julho de 2017, “homens jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de morte violenta no País. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios”. #carta. Ideias em  tempo real. 4ª feira, 10.1.2018.

[6]Incômodo foi a primeira de uma série de obras do artista adquiridas para o acervo da Pinacoteca do Estado. As pinturas de Sidney Amaral aqui comentadas fazem parte do acervo daquela instituição.

[7] – “A sedução do incômodo”. Claudinei Roberto da Silva. In SILVA, Claudinei Roberto da (cur.). O banzo, o amor e a cozinha de casa. São Paulo: MINC/Funarte ; Museu AfroBrasil Ipsis, 2015, pág. 9 e segs. Catálogo de exposição.

[8] – SILVA, Claudinei Roberto da. Op.cit. pág. 21.

[9] – Chamo a atenção para o seguinte detalhe: com o intuito de levar a cena para a realidade de São Paulo – cidade onde residia –, Sidney Amaral troca a lapela de identificação da manga do uniforme do soldado. Ao invés do emblema dominicano, na tela o soldado usa identificação da Polícia Militar de São Paulo.

[10] – Depoimento de Sidney Amaral concedido a Nabor Jr. Publicado em “Meu passado (não) me condena: memória, raça e identidade na pintura de Sidney Amaral”. In O Menelik Segundo Ato. São Paulo. São Paulo: ano 5 ed.017, out/dez.2015, pág.19.

[11] – A primeira obra de um artista negro a ingressar no acervo do Museu foi o mencionado Autorretrato, de Arthur Timótheo da Costa, de 1906.


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