*Por Yve-Alain Bois
O curador e historiador da arte francês Yve-Alain Bois, atualmente professor em Princeton, nos Estados Unidos, confessa em Alguns latino-americanos em Paris que Lygia Clark foi uma de suas mentoras, ao lado do mexicano Mathias Goeritz. Neste texto, ele relata seu primeiro intenso encontro com a artista brasileira, quando tinha apenas 16 anos, na fervilhante Paris de 1968.
O ensaio foi elaborado para o livro que está sendo publicado pela Pinakotheke Cultural por ocasião da mostra Lygia Clark (1920-1988) 100 anos, em sua sede carioca até 9 de outubro de 2021 e no espaço paulistano até 15 de janeiro de 2022.
A arte!brasileiros publica aqui uma versão reduzida, mesmo assim bastante ampla, dessas impressões tão afetivas.
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As anotações a seguir são descaradamente impressionistas – subjetivas, até – dado que se baseiam em grande parte nas minhas lembranças dos primeiros encontros com vários artistas latino-americanos em Paris. Em suma, não se trata de uma grande síntese – ainda não é o momento certo para isso, pelo menos de minha parte –, mas sim de algo mais parecido com um fragmento autobiográfico. Foi uma época, no final dos anos 1960, em que o pós-colonialismo ainda era um conceito nascente, embora as questões que ele abarca já tivessem se tornado prementes. O fato de tantos artistas abstratos geométricos da América Latina morarem em Paris não me pareceu peculiar na época, talvez porque eu ainda não soubesse que Nova York havia “roubado a ideia da arte moderna”, para usar o bordão de Serge Guilbaut [1].
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Mas chega de generalidades. Sigamos agora, como prometido, para o modo autobiográfico – não que eu tenha alguma atração particular pelo gênero, mas porque simplesmente não consigo separar meus pensamentos sobre dois artistas e sua “ansiedade de influência” particular da minha interação pessoal com eles. Uma é Lygia Clark; o outro é Mathias Goeritz. Eu os conheci muito antes dos meus gostos intelectuais e artísticos estarem totalmente formados – na verdade, eles desempenharam um papel importante em minha formação e especialmente em minha consciência da arte moderna na América Latina. Encontrei muitos artistas em minha vida, mas apenas esses dois funcionaram para mim como mentores. Conheci os dois por meio de um jornal chamado Robho, publicado em Paris no final dos anos 1960 (o título é uma sigla; ninguém sabe o que significa). Era uma daquelas pequenas revistas de vanguarda que desaparecem rapidamente, e foi editada por Jean Clay, um homem que tinha uma influência considerável na época como crítico de arte. Anos depois, Jean e eu fundaríamos um jornal muito mais sério e aprofundado, chamado Macula (este também não durou muito), mas quando cruzei com Jean pela primeira vez, eu era um adolescente.
Aqui vai o episódio completo, apresentado como novela de época: era o ano de 1967 e eu estava no equivalente francês da décima série. Morava na bela cidade de Toulouse, no sudoeste da França, e ia a Paris sempre que ganhava nos meus vários pequenos empregos o suficiente para cobrir a viagem de trem – os alunos tiram muitas pequenas férias na França. Não sei bem de onde veio essa ideia, mas queria me tornar artista e passava o tempo todo sonhando com minha próxima viagem a Paris, onde visitava o máximo possível de galerias e museus. Eu ficava na casa de meu tio e tia, mas eles só me viam no jantar, depois do qual eu desmaiava, tendo batido perna o dia todo. Aí houve uma quebra nessa rotina: fui convidado a uma festa à noite, em comemoração à inauguração de uma galeria de arte – a nova filial da Galerie Denise René no Rive Gauche, Boulevard Saint Germain, para ser exato, bem ao lado da galeria de Alexandre Lolas (representantes de Magritte e Fontana) – e meu tio concedeu que eu fosse, contanto que Jean Clay, que ele conhecia superficialmente, estivesse lá para me acompanhar. Meu tio me levou até a galeria enquanto eu cruzava os dedos no carro: Jean me cumprimentou e, enquanto figura mais nova no pedaço, fui imediatamente acolhido por toda uma lista ilustre de artistas. Jean tornou-se meu amigo e muito aprendi com ele (ele também me colocou para trabalhar imediatamente: vendi dezenas de edições do Robho em meu colégio de província). Foi Jean quem me falou de Lygia Clark pela primeira vez, me mostrou fotos de seu trabalho. Também me passou alguns de seus textos para ler, que ele havia traduzido, em preparação de um perfil especial sobre ela em sua publicação (algo que só viria a sair no final de 1968). Fiquei tão intrigado com essa obra que fui movido a publicar meu primeiro artigo – um ensaio curto (e, como se pode imaginar, bem rudimentar) sobre Lygia, publicado na edição de março de 1968 de um semanário huguenote chamado Réforme, já que meu pai era pastor protestante. (Peço sua compreensão por usar apenas o primeiro nome de Lygia a partir de agora, já que esse tratamento familiar, para alguém que eu conhecia tão bem, me vem mais naturalmente).
O ano de 1968, lembrem-se, foi tumultuado na França. Os garotos do ensino médio eram tão envolvidos politicamente quanto os universitários, e eu acreditava, como todo mundo da minha geração, que íamos mudar o mundo. Claro que se falava muito sobre a possibilidade de uma “arte revolucionária”, mas graças ao pouco que já conhecia da concepção fenomenológica de arte de Lygia, não conseguia aceitar a ideia de uma arte engajada que deixasse o observador em um estado de consumo passivo. A arte política, para ser eficiente, tinha que permitir um papel diferente; isso eu sabia, mas não via bem para onde seguir a partir daí. Minhas próprias tentativas – algumas publicadas posteriormente por Jean Clay na Robho com o incentivo totalmente imerecido de Lygia – não me contentavam.
Foi depois do dramático verão de 1968, logo após a intervenção da Rússia na Tchecoslováquia, que conheci Lygia – no apartamento que ela acabara de obter na Cité des Arts, em um prédio horrendo às margens do Sena, onde a cidade de Paris hospeda artistas estrangeiros, de acordo com o sonho francês de antes da Segunda Guerra Mundial de uma Paris capital mundial da arte. Acabava de regressar da Bienal de Veneza, onde representou o Brasil com uma grande retrospectiva da sua obra que incluía desde os primeiros trabalhos até suas várias Máscaras sensoriais e Roupa-corpo-roupa, de 1967, bem como a grande instalação/ambiente A casa é o corpo [2]. O ateliê estava lotado de caixas de todos os tamanhos, e Lygia estava visivelmente deprimida (além de ter que processar uma retrospectiva, sempre um tanto traumática para uma artista em meio de carreira, ela havia ficado profundamente enojada com a badalação da Bienal. Para piorar, acabara de saber da morte do ex-marido). Ela concordou em me receber graças às amáveis palavras de Jean Clay e de Camargo, e porque sabia que eu estava em Paris apenas de passagem e não a importunaria por muito tempo.
Quando ela começou a me mostrar suas coisas – deixando-me tocá-las, manipulá-las, habitá-las sob sua orientação – testemunhei uma espécie de transfiguração. Literalmente, vi sua melancolia sombria desaparecer, e sempre pensei, em retrospecto, que nossa amizade se selou durante aquela longa tarde: por puro acaso, ao estar lá na hora certa, a ajudei a se livrar de sua depressão.
Primeiro, havia algumas coisas espalhadas pelas mesas – pedras conectadas com pequenos elásticos amarrados, uma ou duas pedras em cada extremidade. Lygia me mostrou como usar aquelas montagens precárias: você puxa uma pedrinha ou um grupo de pedrinhas em sua direção e, em um determinado momento, sempre imprevisível, vai seguir a massa na outra ponta do elástico, seja com um salto, como movidas por uma mola, ou arrastando-se debilmente como uma lesma. Foi a interação entre diferentes forças que a moveu – sua própria tração, a extensibilidade do elástico e o peso das pedras – e o fato de que o ato imensurável gerado só pode ser percebido como uma metáfora fenomenológica para a relação de seu corpo com outros no mundo.
Então ela começou a desempacotar as caixas e a me entregar coisas mais velhas. Um dos “objetos” de que mais me recordo foi o seu Diálogo de mãos, de 1966, que ela mesma idealizou com sua alma gêmea, Hélio Oiticica. Essa obra, ou melhor, “proposição”, como ela já chamava suas obras, consiste em quase nada, como muitas de suas peças – isto é, realmente nada é se você não a utilizar: materialmente, consiste em uma pequena fita de Moebius feita de gaze médica elástica. Cada uma de nossas mãos direitas passou por uma volta da fita de Moebius em direções opostas e, ao juntar nossas mãos ou soltá-las, experimentamos a resistência da matéria (pois nossos gestos eram restringidos pela elasticidade limitada do tecido). Se o “diálogo” se prolongar por tempo suficiente, as sensações visuais e táteis parecem se separar, chegando um momento em que surge a impressão de que as mãos estão dançando sozinhas, separadas do corpo. Este momento pode ser extremamente perturbador, quase alucinógeno.
Nessa altura da minha visita, Lygia começou a relembrar os primórdios do movimento neoconcreto no Brasil, e o ataque deliberado que ela havia tramado com Oiticica (que eu nunca viria a conhecer) contra a abstração geométrica, tradição em que ambos tinham se formado. Ela me revelou a importância de Max Bill para a arte brasileira do início dos anos 1950, principalmente após sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1950, depois da qual recebeu o prêmio internacional de escultura da primeira Bienal de São Paulo, em 1951: os entusiastas da “Arte Concreta” de Bill (como ele chamava sua produção, em que tudo tinha que ser planejado por cálculos aritméticos) inundaram repentinamente o minúsculo mundo da arte brasileira, até então bastante resistente à arte moderna. Gentilmente, ela me fez entender que seu Diálogo de 1966, esse pequeno pedaço de curativo que não parecia muita coisa, na verdade representava a conclusão de uma longa batalha contra o tipo de arte de Bill. Pois a fita de Moebius tinha sido uma das figuras geométricas favoritas do artista suíço, que plantou sua imagem de granito polido em muitos jardins de esculturas ao redor do mundo. Bill plasmou a fita de Moebius em ícone da autonomia do objeto de arte modernista; Lygia transformou-a em suporte para uma experiência que visa a abolir qualquer ideia de identidade definida e fechada. Em Diálogo, um objeto “escultural” não é mais sagrado enquanto peça autônoma e formalmente perfeita, mas as mãos dialogantes e falsamente simétricas tornam-se, por assim dizer, performers autônomas.
Como se há de imaginar, conversamos muito sobre arte abstrata naquela tarde (principalmente sobre Mondrian, meu primeiro amor na arte – e o que ela me disse então encerrou definitivamente minha leitura adolescente de sua arte, padrão na época, como uma espécie de hino neoplatônico para a forma pura). Aprendi muito sobre o envolvimento anterior de Lygia com a abstração geométrica, o suficiente para entender que foi sua condição de estrangeira à tradição europeia da arte abstrata que lhe permitiu interpretá-la erroneamente de forma criativa.
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Uma das proposições de que mais me lembro daquela tarde inaugural é Pedra e ar (1966). Ela colocou na minha mão um pequeno saco plástico transparente que acabara de explodir e selar com um elástico. Estava quente com seu hálito (o plástico era muito fino). Ela botou uma pedra em um dos cantos, que se equilibrou precariamente e afundou no canto da bolsa. Ficou pendurada ali, quase caiu, mas a menor alteração na pressão de minhas mãos a fazia subir novamente, como uma boia de pesca. Minha sensação era de estar ajudando desajeitadamente a um animal muito delicado a dar à luz (sentimento certamente reforçado por eu ter acabado de fazer em mim mesmo a “cesariana” prescrita por um dos incômodos macacões de látex da sua série Roupa-corpo-roupa, Cesariana [1967]). O contraste entre o nada do suporte e a intensidade da minha percepção ao brincar de ioiô/esconde-esconde (reencenando vagamente a famosa brincadeira do Fort-da descrita por Freud em seu relato sobre a sexualidade infantil), essa lacuna entre a simplicidade do gesto real e do tipo de memória genérica do corpo que a obra despertou em mim é algo que nunca esqueci. É como se um corpo pré-humano tivesse sido resgatado de um banco arcaico de sensações armazenadas em algum lugar da memória da minha espécie, como se o trabalho de Lygia estivesse se opondo à evolução de Darwin. Há o aspecto tátil: a pele da mão, redobrada pela pele plástica que a molda, torna-se uma espécie de órgão autônomo. Depois, há o aspecto visual dissonante: o movimento de protensão/retenção da pedra (que Lygia relacionou especificamente às Constelações Estruturais de Albers), o inflar ou desinflar do saco plástico, o canto pontudo ou curvado – tudo isso remetendo claramente ao ato sexual, mas sem que sejamos capazes de, em nenhum momento, atribuir um papel (ou gênero) específico a qualquer dos elementos.
A seguinte “proposição” que recebi foi Respire comigo, cujo suporte é um tubo de borracha simples usado por mergulhadores subaquáticos para respirar. Cito Lygia aqui: “Ao juntar as duas extremidades do tubo – transformado, assim, em um anel circular – e ao esticá-lo, somos desestabilizados por um ruído de respiração sufocante: deste modo, a primeira vez que ouvi esse suspiro, a consciência da minha respiração deixou-me obcecado em razão de uma asfixia que se manteve durante várias horas” [3]. Como observa Guy Brett, temos “a sensação de tirar nosso próprio pulmão e trabalhá-lo como qualquer outro objeto” – o que pode ser aterrorizante ou inspirador [4].
Não percebi as implicações assustadoras na época. Fui fisgado, por assim dizer. Lygia se tornou a parte mais importante do meu “grupo de apoio” na adolescência, e estive com ela em cada uma das minhas viagens a Paris durante o ano letivo seguinte. Então, após me formar no ensino médio, vim para os Estados Unidos como estudante de intercâmbio por um ano, e iniciamos uma correspondência que durou até eu vir morar em Paris no outono de 1971 – quando parou pelo simples motivo de que eu a via quase todos os dias, até que ela voltasse ao Brasil em 1976 (para começar, seu psicanalista morava a apenas um quarteirão de minha minúscula sala de estudos).
Quando cheguei em Paris, ela havia se mudado para um apartamento/estúdio maior em um prédio igualmente horrendo, perto da Porte de Vanves – um ponto de encontro para todo artista, cantor ou cineasta brasileiro que passasse por Paris (havia muitos, especialmente durante os anos da ditadura militar). O músico e compositor Caetano Veloso, à época exilado em Londres, nunca deixou de aparecer se estivesse em turnê pela capital francesa (comemorou uma de suas visitas com uma canção – If You Hold a Stone – composta em homenagem a Pedra e ar).
(…)