Ismael Nery, Figura Decomposta, 1927
Ismael Nery, Figura Decomposta, 1927

por Maykson Cardoso
Pesquisador de arte baseado em Berlim
Doutorando em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da UFRJ

Fabio Cypriano é um dos últimos bastiões da crítica de arte corajosa no Brasil. Li sua crítica à atual edição da Bienal de Veneza, “Stranieri Ovunque”, curada por Adriano Pedrosa, e me sinto contemplado por ver, ali, como foram abordados alguns dos problemas curatoriais. Escrevo este texto em diálogo com esta crítica de Cypriano, abrindo outras questões a partir de um dos pontos que ele sublinha: um certo esforço curatorial para enquadrar acriticamente a produção de artistas do sul-global em uma categoria que parte de e converge com uma visão da história da arte ocidental/colonial.

Desde o anúncio do time de artistas brasileires que integrariam a mostra, já se podia antecipar algumas incongruências curatoriais. Não pela qualidade individual desses artistas, mas porque, pelo conjunto, já se podia ver que a ala [“ítalo-”]brasileira não colocaria em questão, desde perguntas atuais e urgentes, os clichês e problemas da nossa complexa “identidade nacional”, tal como parecia sugerir o título da mostra “Estrangeiros em todo lugar”. O que, de antemão, já nos colocava diante de dois furos curatoriais: primeiro, porque uma curadoria coletiva se faz valer pelo conjunto de suas obras; segundo, pelo quanto este conjunto de algum modo ressoa o conceito-geral a partir da singularidade destas.

Neste sentido, Cypriano aponta, por exemplo, que

“Os selecionados em todas essas seções não estariam criando alternativas à chamada história oficial, mas suas inserções em gêneros e movimentos definidos pelos padrões ocidentais, acabam se tornando apenas uma lista de pinturas com vontade de participar do clube oficial. É caso dos brasileiros Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Candido Portinari e Di Cavalcanti, para citar apenas quatro. As obras escolhidas, respectivamente Estudo (1923), Figura Decomposta (1927), Cabeça de Mulato (1934) e Três Mulatas (1922) trazem pouca fricção à narrativa corrente”.

É a partir desta incongruência que Cypriano conclui — e nisto reside o grande mérito de seu texto — que o discurso curatorial quer encaixar a produção de artistas do sul-global “na narrativa modernista, como se a inserção nesta história fosse de fato uma conquista significativa”. Quanto a isto, vale acompanhar as discussões de Rafael Cardoso, que em sua pesquisa mais recente mostra as origens populares do modernismo brasileiro, colocando em xeque a narrativa oficial vigente que atribui o modernismo apenas aos figurões da elite paulistana.

Sem dúvida, esta premissa curatorial é o primeiro ponto [propositadamente?] cego da proposta de Pedrosa… Ao olhar para os modernismos periféricos, especialmente no caso brasileiro, sua simpatia, para falar com Walter Benjamin, é imediatamente com os vencedores! Na contramão da exigência [est]ética de nosso tempo, de ler a história COLONIAL da arte a contrapelo, o que Pedrosa faz é assentar os pelos eriçados pelo que há de melhor na nossa produção artística contemporânea, finalizando o penteado com um bocado de emplastro para garantir que não voltem a se eriçar outra vez.

Mas a ineficácia de seu discurso curatorial não para neste primeiro ponto… Já no título generalista da mostra, “Estrangeiros em todo lugar”, parece haver certa “disposição” para um debate político. No entanto, examinado criticamente, o que se vê e o que aí se expressa é justamente o contrário: se somos todos estrangeiros, NINGUÉM é estrangeiro. E assim caímos, mais uma vez, no inferno do sempre-igual: se todos somos estrangeiros, são tão estrangeiros, como nós, que temos o privilégio de portar um passaporte, os refugiados de guerra ou do clima? Se todos somos estrangeiros, são tão estrangeiros, como nós, os que fogem da miséria? Os que buscam asilo devido à perseguição política em seus próprios países?

Uma afirmação desta ordem faz lembrar a reflexão de Susan Buck-Morss em “Hegel e o Haiti”, sobretudo quando a autora se refere ao lema da revolução francesa “liberdade, igualdade, fraternidade”. Ao fazer uso do mesmo lema que servira aos propósitos da revolução na França, os haitianos receberam as tropas de Napoleão para dar termo à sua revolta. Para o revolucionário Napoleão, o lema que se pretendia “universal”, só servia à França, não se estendia aos haitianos que lutavam contra a sua própria escravidão. Isto é: um título que diz “somos todos estrangeiros” se arroga um princípio semelhante de universalidade, quando nós, os periféricos do sul-global, sabemos bem quem são os vencedores de sempre.

Adriano Pedrosa não falha, portanto, pela qualidade de artistas que apresenta ao público, mas pelo discurso curatorial sem qualquer profundidade e, portanto, sem eficácia, sem força para levar o público a se interrogar sobre a injustiça embutida na própria ideia de fronteira. Seu título é um slogan, ou seja — para apontar, como Cypriano o faz —: não passa de uma estratégia de marketing. Um modus operandi cujo resultado não é outro senão o de arrefecer as contradições, os conflitos. Não nos tira, minimamente, da comodidade e do inferno do sempre-igual. Há ali, para lembrar um termo cunhado, certa vez, por Miwon Kwon, apenas a “performance de uma criticalidade”.

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E, para não dizerem que não falei das flores, em termos de montagem, tomada em comparação com a edição anterior, “O Leite dos Sonhos”, curada por Cecilia Almani, Pedrosa traz a Veneza um bom traço da nossa arquitetura modernista brasileira: consegue criar espaços de respiração diante de um excesso barroco, sem, contudo, aplacar o que, esteticamente, deve se apresentar como esse “excesso”.

E por falar em barroco, La Chola, para mim, é o maior destaque da mostra. Como poucas, a artista consegue criar um diálogo que atualiza — ela sim, criticamente! — o discurso da história da arte Latino-Americana. La Chola se apropria da estética do barroco andino, criando alegorias complexas (e extremamente bem executadas!) que denunciam a violência da norma colonial fundante de nossa ideia de  nação, ao mesmo tempo em que a subverte, tomando para si os elementos da estética colonial para celebrar a força e a resistência daqueles que se insurgem contra a sua vigência em nossos dias — como, aliás, se pode ver no discurso curatorial de Pedrosa.

Bienal de Veneza - Estrangeiros em Todo Lugar. Obra de La Chola Poblete
La Chola Poblete

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Tudo isto nos mostra que é chegado o tempo de diferenciar curadores comprometidos não só com a causa, mas com o próprio campo da arte, da história da arte, do pensamento, em detrimento daqueles que atuam como meros produtores de conteúdo raso para redes sociais ou CEOs de grandes instituições. Precisamos, merecemos mais, muito mais do que isso!


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