Na ocasião da visita à Bienal das Amazônias, no mês de novembro de 2023, em Belém, no Pará, tivemos a oportunidade de adentrar-nos num mundo quase mágico, construído pelo trabalho de equipes dedicadas à pesquisa e conservação de uma parte substancial da história do Brasil, não apenas sustentada em documentação, como por centenas de vestígios coletados por especialistas arqueólogos – escavadores, que revelaram uma riqueza milenar.
O Museu Paraense Emílio Goeldi é uma instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações do Brasil. Está localizado na cidade de Belém, Estado do Pará, região amazônica. Desde sua fundação, em 1866, suas atividades concentram-se no estudo científico dos sistemas naturais e socioculturais da Amazônia, bem como na divulgação de conhecimentos e acervos relacionados à região.
A instituição guarda uma das maiores e mais antigas coleções de arqueologia amazônica do Brasil e do mundo e já emprestou várias peças fundamentais para museus internacionais, como o Museu Britânico de Arqueologia ou o Museu Etnográfico de Berlim.
Ao nos receber, a Dra. Helena Pinto Lima – arqueóloga, pesquisadora titular do museu, onde atua também como curadora da coleção arqueológica e professora do programa de pós-graduação em Diversidade Sociocultural – contextualiza para nós os desafios e objetivos do Emílio Goeldi:
“Em meados dos anos 1950, 1960, construiu-se a ideia de que a Amazônia é vazia, uma floresta pronta para ser ocupada, um lugar para ser colonizado. Sob o argumento de que aqui a floresta não daria conta de sustentar, do ponto de vista de proteína de alimentação, grandes civilizações como as dos incas, ou as da América Central, por exemplo. Do ponto de vista da antropologia e da arqueologia, as comunidades, os povos indígenas dos anos 1940, 1950 e 1960, quando começaram a ser melhor documentados, estavam num dos momentos mais críticos da história, com muitas epidemias, violência colonial e pós-colonial. Nesse momento as comunidades estavam minguando.
Com um ethos em que predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânticas de transformação corporal”
O certo é que a floresta, tal como a conhecemos, a biodiversidade é fruto das ocupações humanas, fruto da sociobiodiversidade, das interações entre essas comunidades, esses povos e a floresta. As terras pretas, a Terra Preta de Índio é um solo extremamente fértil, procurado até hoje em dia para agricultura, para roça.
São resultados de produção intencional. E isso foi um processo de gerações e gerações. São 13 mil anos de história de povos e floresta e rio. A gente tem na Amazônia as cerâmicas mais antigas das Américas, que estão na região de Santarém, que são cerâmicas de capelinha, no Sambaqui, inclusive. Estudamos hoje uma história de inovação cultural, de tecnologias, criação de tecnologia, de manejo de floresta, manejo de engenharia de terra, construção de textos etc. As evidências de diferentes partes da Amazônia revelam tecnologias sofisticadas de transformação da natureza. Com nossas pesquisas hoje, temos o trabalho, a tarefa de desmontar, de recriar e recontar essa história.”
Na publicação conjunta do Iphan e o MPEG, de 2016, Cerâmicas arqueológicas da Amazônia – Rumo a uma nova síntese, as organizadoras – Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt – descrevem a história das cerâmicas da Amazônia, a classe mais abundante de vestígios arqueológicos, subindo o rio Amazonas, trazendo estudos e reflexões de diversos sítios cerâmicos de cada região e tentando entender as suas diferentes tecnologias para posteriormente trabalhar na reconstrução destas tradições ancestrais. No museu existem oficinas de restauro e reprodução de peças, altamente capacitadas.
“Toda arte impõe uma forma a uma matéria. Mas entre as artes ditas da civilização, a cerâmica é provavelmente aquela na qual a passagem entre a matéria prima e o produto, se dá de forma mais direta, com menos etapas intermediárias entre a matéria-prima e o produto, saído das mãos do artesão já formado, antes mesmo de submetido a queima.” (Claude Lévi-Strauss, 1985:235) (pág. 20)
As vasilhas tiveram diferentes papéis: consumo de bebidas e alimentos, mídia para compartilhar e transmitir ideias através de imagens pintadas, gravadas ou modeladas em suas paredes, urnas funerárias capazes de preservar os restos humanos ou representações de um lugar simbólico, como a demarcação de territórios sagrados. Todas trazem diferenças nas pastas e argilas utilizadas, na queima, torração ou oxidação, já que pertencem a territórios e grupos sociais diferentes.
Hoje se sabe, por meio destas e de outras pesquisas, que vestígios encontrados por escavadores datam de até 13mil anos atrás. No caso das cerâmicas da Amazônia, elas estão entre as mais antigas das Américas. “Se considerarmos as datações de Taperinha, no Baixo Amazonas (remontando a ca. de 8000 AP), e da Tradição Mina, no litoral do Pará, (remontando a ca. de 6000 AP).” (pág.23)
Dentre os diferentes grupos, as cerâmicas Marajoaras foram das mais estudadas da Amazônia. À diferença das cerâmicas andinas ou mesoamericanas, em que as representações de cultivos são comuns, na iconografia das cerâmicas Marajoaras enfatizam-se corpos animais e humanos. “Com um ethos em que predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânticas de transformação corporal (Viveiros de Castro, 2002).”
Estas cerâmicas pertencentes à Tradição Polícroma – que se expande ao longo de 6.600 km em distintos pontos da bacia amazônica e, cronologicamente, por mais de 1000 anos – possuem técnicas decorativas, enorme repertório de símbolos, a determinação de certas partes de animais como cobras e escorpiões no lugar de olhos e braços, constituindo exemplos claros da vivência cosmogônica, homem-natureza, da Amazônia.
Há uma infinidade de grupos estilísticos, com diferentes particularidades: as das guianas; as do complexo do Amapá; a cerâmica Mina do Pará, as do Maranhão; as do Tupi Guarani no Baixo Amazonas; do Baixo Xingu Guarani, Médio-Baixo Xingu, Volta Grande do Xingu, Foz do Xingu, Alto Xingu, as de Açatuba e Manacapuru, da Amazônia Central, do Caiambé no Lago Amanã, no meio Solimões.
Dentre tantas, as da cultura de Santarém e Baixo Tapajós pertencem a sociedades indígenas que habitaram a região entre os séculos VIII ou IX até XIX, no período pós-colonial, marcando, a partir daí, culturas híbridas. Mais recentemente estudadas, possuem uma diferença substancial das outras, apresentando, por exemplo, nos denominados vasos de cariátides, iconografias e esculturas de elementos zoomorfos (cabeças de urubus) e antropomorfos (figuras femininas sentadas) desenhadas e aderidas às suas bordas.
Souza Lima (2020), construiu a história de vida de uma urna marajoara que foi historicamente individualizada e descontextualizada
O desafio e as estratégias para dialogar com a memória
Em Devires para a diversidade no campo museal, artigo que faz parte do projeto Arqueologias, materialidades e paisagens entre os povos da floresta, Helena Pinto Lima coloca uma das maiores preocupações dos acadêmicos e curadores na contemporaneidade:
“Qual é o papel do museu nos atuais tempos de crise, tempos de transformação? Essa é uma discussão não somente pertinente, mas latente no campo dos museus, mundialmente. Produtos da lógica eurocêntrica e da empresa colonial, os museus operaram historicamente nas rememorações coletivas e no esquecimento seletivo a serviço de tal empreita nacional. Apesar dos importantes avanços sociais liderados pela nova museologia da década de 1970, só mais recentemente a problemática da descolonização ganha mais espaço nas práticas, alinhada com reivindicações identitárias hoje em voga. Junto com o Conselho Internacional de Museus (ICOM), estamos enquanto sociedade na busca de uma nova definição de museu que se enquadre melhor a este contexto. A consulta pública à comunidade museal mundial expressa um vislumbre deste novo lugar dos museus, agora e para o futuro. A nova de definição de Museu, aprovada em Praga em 2022, expressa bem essa ideia:
“Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos e ao serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos. (ICOM, 2022)
(…) “A curadoria arqueológica é, por definição, um campo investigativo interdisciplinar. Ela integra arqueologia, museologia, conservação, educação e outras áreas, para nós, de salvaguarda, pesquisa, ensino e divulgação de acervos. Saliento que a curadoria é também potencialmente um campo fértil para a pesquisa intercultural. E é esta a ideia, a de fertilização interdisciplinar e intercultural da curadoria arqueológica, que pretendo abordar neste texto. O foco de reflexão se situa nas inter-relações entre comunidades, materialidades, e as coleções arqueológicas musealizadas.”
(…)“Com vistas a “acordar” os objetos na reserva técnica à novas possibilidades de geração de conhecimento, os estudos para reconexão de acervos (tridimensionais e documentais) e sujeitos têm guiado nossas iniciativas enquanto diretriz para pesquisa e gestão. Para as urnas funerárias Maracá, Lucas Silva, aluno de museologia da UFPA (Universidade Federal do Pará) desenvolveu uma pesquisa de forma a reconectar urnas funerárias com os remanescentes humanos, e aos contextos em que foram originalmente encontradas (SILVA et al., 2021). Aqui (no MPEG), os corpos cerâmicos estão sendo reunidos aos seus corpos biológicos (osteológicos), devolvendo a individualidade de cada um destes sujeitos Maracá que hoje habita a reserva técnica”. (PR: Aqui a dra. Helena se refere a uma das salas especiais construídas no museu, fechada ao público, devidamente climatizada, proibida de ser fotografada, onde mais de 200 urnas funerárias, estão expostas sobre uma plataforma e, embaixo, em gaveteiros catalogados, jazem os restos osteológicos referentes a cada uma”
(…) “Com as cerâmicas marajoaras, a abordagem rendeu importantes reflexões sobre a dispersão, ou êxodos, de enormes coleções do Marajó distribuídas por vários museus, bem como sobre o ato de exibir estes itens funerários para o grande público.” (…) Neste mesmo contexto, Simas nos provoca a refletir sobre questões complexas relacionadas com a conservação e gestão dessas coleções, doações e descontextualização de acervos, políticas de empréstimo e partilha de coleções de objetos formados por fragmentos ao cuidado de diferentes instituições.” (IDEM).
Souza Lima (2020), construiu a história de vida de uma urna marajoara que foi historicamente individualizada e descontextualizada (SOUZA LIMA, et al., 2020), bem como analisou o processo de reprodução de sua imagem em diversos suportes no Marajó e a feitura de uma réplica artesanal dela na reserva técnica (SOUZA LIMA, 2023). De fato, a proposta de construir histórias de vida (de pessoas e de objetos, ambos entendidos como sujeitos) a partir do acervo tem mostrado um enorme potencial.
Aqui, por exemplo, as fotografias da Performance de Anita Ekman (pintura corporal com carimbos marajoara e ocre) com Urna Marajoara (estilo Joanes) no Museu Paraense Emílio Goeldi, 2022.
“Para além dos muros da reserva técnica vejo igualmente importante explorar, in loco, a experiência sensível do mundo material dos objetos e das paisagens construídas, enquanto lugares significados, para nos aproximarmos mais das complexas teias de relações entre essas materialidades e as sociedades humanas, no presente e no passado. Para isso, os métodos convencionais da arqueologia e ciências sozinhos, são insuficientes para revelar elementos latentes do universo material que são, em alguns casos, essenciais para entender os conhecimentos, conceitos e práticas indígenas e de outros povos da floresta amazônica.”
É preciso dizer que as cerâmicas, e outros vestígios arqueológicos, falam e têm muito a nos dizer. Cabe a nós saber escutá-los.