Durante os anos 1920 Tarsila do Amaral produziu obras que foram consideradas sínteses da arte moderna brasileira: A negra (1923), Abaporu (1928) e Antropofagia (1929) são algumas delas. Mesmo Cartão-postal (1928) – composição tradicional, mas, como será visto, trabalhada a partir de procedimentos pouco ou nada usuais na pintura brasileira da época –, chamou a atenção de Antonio Raposo, pseudônimo de Oswaldo Costa, intelectual ligado ao movimento da Antropofagia. Ele escreveu no Correio Paulistano: “Até há bem pouco, eu julguei que Antropofagia – que é o grito do Ipiranga da nossa pintura – marcasse o termo das suas descobertas prodigiosas. Confesso, entretanto, que me enganei: Cartão-postal modificou minha opinião”[1].
O que teria feito com que Costa mudasse de opinião? Seria possível ele ter percebido a potência daquela pintura, não propriamente pelo seu significado aparente – uma “vista” do Rio de Janeiro –, mas como resultado do trabalho de deglutição dos conceitos tradicionais da pintura por técnicas e procedimentos vindos da modernidade? Afinal, mesmo sendo estruturalmente uma composição convencional, ligada ao gênero “paisagem”, a obra emulava um cartão-postal, não apenas repetindo sua estrutura composicional (que vinha da pintura), mas sobretudo sua superfície “linda, limpa, lustrosa como uma Rolls”[2]. Ou como um cartão-postal.
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Infelizmente Costa não aprofundou sua impressão sobre Cartão-postal. Em outra resenha de novo ele voltaria a comparar a pintura com Antropofagia sem, no entanto, sistematizar seu pensamento[3]. Mas, independente de sua opinião, o fato é que Antropofagia se manteve no pódio das pinturas mais avançadas do Modernismo local, dividindo aquele espaço com A negra e Abaporu.
Essas pinturas tornadas símbolos do movimento, além de pertencerem à fase antropofágica de Tarsila[4] e de representarem humanoides posando em espaços pictóricos convencionais – reiterando a dicotomia figura/fundo (mesmo em A Negra, com sua espacialização chapada) –, são também projeções “oníricas” do(a) brasileiro(a) mítico(a). As formas contidas nessas três pinturas são deformações mais ligadas a uma vontade caricatural – uma vez que mais ilustram temas como “antropofagia”, “antropófago” etc. –, do que propriamente a uma exploração puramente plástica.
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De início, as pinturas de Tarsila “que contam” – ou seja, as das fases pau-brasil e antropofágica –, podem ser divididas em três grupos: aquelas que ilustram o tema da antropofagia (A negra, Abaporu e Antropofagia, citadas acima); as que, antes do Movimento Antropofágico já se realizaram como resultados da deglutição de três tipos de pintura: a tradicional; a vertente “primitiva” – tão apreciada no início do século passado –; e a corrente “legeriana” da pintura modernista[5].
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Para referenciar o terceiro grupo, deve-se voltar à experiência “antropofágica” de Tarsila. Durante essa fase foi formulada uma série de pinturas em que a artista, deixando de lado a necessidade de ilustrar o que seria a antropofagia e o(a) antropófago(a), produz uma das melhores aproximações da arte brasileira com o espírito surrealista e/ou metafísico. Refiro-me a O lago, A lua – ambos de 1928 –, Sol poente (1929) e Composição (1930), entre outros.
No entanto, existe uma série de autorretratos produzidos por Tarsila e, dentre eles, sobressaem duas pinturas, produzidas respectivamente em 1923 e 1924: Autorretrato (Manteau-rouge) (1923) e Autorretrato I (1924). Essa última, ainda no mesmo ano, serviu para que a artista produzisse uma cópia em grafite e tinta ferrogálica sobre papel e, em 1926 uma segunda pintura.
Nos dois últimos artigos aqui publicados[6], julgo ter discutido os autorretratos de Tarsila, mas, ao trazer à tona a questão das obras da artista tidas como símbolos do Modernismo, percebi que ainda se fazia necessário retornar a Autorretrato I.
Em “Os autorretratos de Tarsila, parte II”, comentei a relação direta do Autorretrato I com a fotografia, que não se dava apenas pelo fato de a imagem ter sido produzida a partir de um retrato fotográfico da pintora[7], mas também pelo processo de tradução por ela executado para, do retrato fotográfico, produzir o autorretrato pictórico. Tarsila deve ter “tirado” o contorno do próprio rosto impresso na foto, por meio de um papel de seda ou assemelhado, captando os traços identificadores da imagem e imprimindo-os – por contato – no papel de seda. Num segundo momento, ela deve ter ampliado a imagem e passado – também por contato – seus traços para a tela[8].
Nesse processo em que métodos sensíveis e mecânicos foram mobilizados, estava implícito, igualmente, o desejo de síntese formal que, no final, resultou em uma imagem que, sem dúvida, remetia a obra a retratos de estrelas do cinema e do show biz dos anos 1920, mas, sobretudo, à imagem bastante antiga de Jesus Cristo impressa no véu de Verônica.
A relação possível entre o autorretrato de 1924, de Tarsila, e as várias versões pictóricas do véu de Santa Verônica, dá-se não apenas pela centralidade da face sintética dos retratados sobre o vácuo branco da tela, mas igualmente pelo olhar de ambos, encarando o espectador.
Aracy Amaral, ao se referir ao autorretrato de Tarsila, sublinhou a força de seu olhar, presente na pintura: “[…] os cabelos puxados para trás, os longos brincos ladeando seu rosto e um olhar quase hipnótico fixando o espectador”[9].
A força do olhar “fixando o espectador” também será um ponto que Hans Belting irá considerar, ao chamar a atenção para a mudança da imagem de Jesus Cristo no véu da Verônica, que de uma mancha, transforma-se em um rosto:
As novas imagens miraculosas, de que se falava, mostravam em geral apenas o rosto, tal como sempre acontecera com as máscaras. Depois que a simples mancha do corpo foi, graças à pintura, transformada em rosto, os olhos tornaram-se tão vivos como se o próprio Cristo olhasse através da máscara. Nisso residia o efeito decisivo desses originais-imagens. Segundo a lenda, eram moldagens do seu rosto, que ele [Jesus] deixara na terra. Mas isto ainda não era suficiente para o seu efeito. Só havia efeito, quando ele tomasse posse, por assim dizer, do seu rosto na imagem. Isto aconteceu por meio do olhar que, de certo modo, animou a impressão mecânica[10].
Autorretrato I atua como a imagem de Cristo pintado numa tela, porque comporta-se como tal: a pintura que recobre as linhas que demarcam o rosto e preenche seus espaços internos transforma aquele esquema visual – alcançado, como vimos por meio do decalque – numa aparição repleta de mistério que, ao fixar o observador, faz com que esse tenha dificuldade em desviar seu olhar do rosto enigmático.
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Acima escrevi que Tarsila produziu Autorretrato I em 1924, “pintura essa da qual, no mesmo ano, a artista fez uma cópia em grafite e tinta ferrogálica sobre papel”. Na verdade, a sequência de autorretratos pode não ter sido essa. Uma hipótese plausível é que esse desenho seja uma etapa intermediária entre o processo de “tirar” a imagem do retrato fotográfico e o objetivo final da operação, o Autorretrato I[11].
Se observarmos o Autorretrato sobre o papel, é notável como sua aparência está mais próxima de uma representação produzida a partir do contato com o rosto da artista (na verdade, seu retrato fotográfico) do que a pintura. Se nessa última, as cores e a expressão do olhar, “humanizam” a imagem, o desenho parece mais próximo de uma máscara – não uma máscara do teatro grego, mas a máscara mortuária romana. Segundo Belting: “A máscara mortuária representava o rosto do defunto sem a sua expressão mímica, distinguindo-se quer da face viva, da qual propunha um duplo, quer da máscara teatral, que se baseava inteiramente na ficção. Era uma imagem da recordação […]”.[12]
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Ainda nos anos 1920, esses autorretratos iriam se transformar em ícones da produção de Tarsila e, no limite, do próprio modernismo paulista. Em 1926, a capa do catálogo da primeira mostra da artista em Paris exibirá Autorretrato II, assim como sua primeira individual no Brasil, no Rio de Janeiro, em 1929.
Antes dessa mostra – e, em várias ocasiões – as matérias de jornais e/ou revistas usariam imagens do autorretrato da pintora, como estratégia para cativar os olhos do leitor, a partir daquele retrato enigmático. A exploração das duas versões pictóricas do autorretrato continuará a ocorrer durante as décadas seguintes e, se nos anos 1930 e 40 há um declínio de sua divulgação[13], a partir da década seguinte – quando Tarsila e os demais modernistas voltam a interessar ao circuito de arte do país[14] – a imagem do autorretrato (de 1924 ou 1926) voltará a ilustrar livros e catálogos sobre a artista e sobre o próprio modernismo.
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Por fim, e em paralelo à disseminação de Autorretrato I e II, creio ser interessante atentar para um fenômeno surgido na esteira de toda a divulgação da imagem da artista, ainda nos anos 1920. Refiro-me a imagens que retratavam Tarsila a partir, ou de forma muito semelhante, à extrema síntese do seu autorretrato produzido sobre papel.
Já em 1924, na revista América Brasileira, um artigo sobre a pintora, escrito pelo intelectual Ricardo Almeida, apresenta outra versão gráfica do autorretrato de Tarsila. Almeida não se furta em explicitar suas impressões relativas à imagem: O seu autorretrato, apenas a cabeça, de “que reproduzimos um desenho de estudo, é uma maravilha de justeza, de harmonia, de equilíbrio, mas por igual de intimidade psicológica […]”[15]
Por ocasião de sua primeira individual no Brasil, no Rio de Janeiro, em 1929, a imagem de Tarsila será divulgada ao público do país pelos principais jornais da antiga Capital Federal por meio de estilizações produzidas a partir de seu autorretrato (provavelmente a versão de 1926).
O esquematismo que caracteriza aquela imagem, sua força como um quase diagrama ou hieroglifo, seduziu artistas que, ao ilustrarem matérias jornalísticas sobre a pintora, sublinharam a potência da síntese de seu autorretrato, a aptidão efetiva daquele signo para transcender qualquer limite de ressignificação.
Aqui, remeto o leitor à caricatura de Tarsila, feita por Di Cavalcanti, em Para todos, 1929, sob a foto e a notícia sobre a inauguração da mostra de Tarsila no Rio de Janeiro; a “chamada” para a mesma mostra, no cabeçalho do jornal carioca A Manhã (20.07.29); a caricatura que ilustrava texto de Bezerra de Freitas, em Crítica, (Rio, 01.18.29) e a caricatura feita por Pagu, também em 1929. Nessa última, aquela imagem fotográfica de Tarsila está completamente transformada em uma espécie de hieróglifo ou uma logomarca; um ícone e símbolo não apenas de um movimento de arte ou da obra de uma determinada artista, mas também – ou sobretudo – de uma mulher que, apesar de tudo e de todos, marcou um lugar para si na arte brasileira do século passado.
LEIA TAMBÉM a primeira e a segunda parte dessa reflexão.
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