Até 08 de janeiro, a ESTE ARTE estará com a 6ª edição em Punta del Este, Uruguai. A feira de arte internacional apresenta uma seleção única de galerias regionais e internacionais e artistas modernos e contemporâneos.
Nessa lista, artistas brasileiros figuram em estandes de galerias tanto nacionais quanto estrangeiras. O artista Oskar Metsavaht, por exemplo, tem duas obras expostas na galeria Reginart Collection – especializada em artistas do século XX, como Dalí, Miró, a Escola de Paris, Léger, Matisse, Modigliani, Picasso e os mestres italianos dos anos 60. No estande, a galeria traz ainda Maria Carmen Perlingeiro, Armando Marrocco, Romain Sarrot e Claude Viallat.
Elle de Barnardini, Sem título, da série “Formas contrassexuals”, 2019.
No espaço da Galería Zielinsky (Espanha), há a presença de trabalhos do brasileiro João Farkas junto a obras de artistas argentinos e uruguaios, como Yamandú Canosa e Diego Pujal. Na Piero Atchugarry, de Miami, Tulio Pinto é o brasileiro com obras em destaque.
Três casas brasileiras participam da ESTE ARTE. A Galeria Karla Osório, de Brasília, apresenta obras de Elle de Bernardini, Catalina León, Lucia Tallová, Daisy Xavier e Luca Benites. Na Galeria Aura (São Paulo), podem ser vistas obras de Renato Custodio, Camilla D’Anunziata e Marcelo Macedo. Por sua vez, a Galeria Mario Cohen (São Paulo), leva grandes nomes de seu acervo, como Ellen Von Unwerth, Pierre Verger, Sebastião Salgado, Otto Stupakoff e Elaine Pessoa, dentre outros.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
“Orun” é uma instalação da artista Paula Scamparini originalmente montada para um edital do Oi Futuro, no Rio de Janeiro. A mostra está em cartaz, agora, no Sesc Carmo, em São Paulo, até o dia 10 de janeiro de 2020.
São 63 monitores suspensos, espalhados pela galeria de exposição da unidade, que mostram depoimentos de pessoas de diversas etnias sobre o entendimento do “céu”. De acordo com a produtora executiva de Orun, Raquel Valadares, Paula se preocupou em reunir uma grande diversidade de pessoas na obra, indo para quilombos, aldeias indígenas, interiores: “Com isso, a gente consegue fazer um céu do Brasil bastante diverso”.
Assista à entrevista completa com Raquel no vídeo acima.
Orun
Até 10 de janeiro
Sesc Carmo: Rua do Carmo, 147 – Sé, São Paulo – SP
Mais informações: (11) 3111-7000
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
Performance São Paulo Companhia de Dança na mostra de Detanico Lain. FOTO: Fábio Furtado
Quatro grandes exposições ocuparam as salas do Espaço Cultural Porto Seguro em 2019. Foram três individuais e uma coletiva que foram apresentadas pela instituição ao longo do ano.
De janeiro a abril, a dupla brasileira radicada na França Detanico Lain, levou um “jardim de códigos” para o espaço expositivo do ECPS. Sob curadoria de Rodrigo Villela, diretor da instituição, a mostra reuniu 14 obras dos artistas, que possuíam alguma relação com a ideia da luz. Afinal, é a luz que indica a passagem do tempo, que permeia todas as obras em algum ponto. E é a luz que mantém um jardim vivo e forte. Relembre matéria publicada na ARTE!Brasileiros 46 clicando aqui. Confira abaixo a performance “A quadratura do círculo”, feita em parceria com a SP Companhia de Dança para a mostra.
Na sequência, a mostra coletiva ligada ao edital Novas Efervescências, lançado no ano passado, levou obras de artistas como Arnaldo Pappalardo, Tiago Mestre e Angella Conte ao espaço. O edital convidava “os artistas a explorar a permeabilidade da instituição para os atuais diálogos de criação”. A comissão julgadora era formada por Isabella Lenzi, Jacopo Crivelli Visconti e Ricardo Ribenboim.
Em agosto, foi a vez da retrospectiva Wrong so Well, que explorou a trajetória do fotógrafo Carlos Moreira. Saiba mais em texto de Helio Campos Mello, publicado em nossa edição 48. Nesta retrospectiva, foram apresentadas cerca de 400 fotos, escolhidas pelos curadores Fábio Furtado, Regina Martins e Rodrigo Villela, em um trabalho de curadoria que começou em janeiro e mergulhou nos arquivos de mais de 50 anos do trabalho do fotógrafo.
Por último, e em cartaz até 2 de fevereiro de 2020, aberta à visitação gratuita, uma individual com obras importantes do artista venezuelano Carlos Cruz-Diez está montada no ECPS. O artista, que faleceu em julho deste ano, auxiliou em todo o processo de concepção da mostra, sendo a última de suas exposições que teve seu olhar. Além das obras cromáticas de Cruz-Diez, A liberdade da cor expõe fotografias em preto e branco que ele tirou no começo de sua carreira. Leia sobre em texto publicado na ARTE!Brasileiros 49.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
Um espaço dedicado à land art foi inaugurado pela Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) no dia 30 de novembro na cidade de Mairinque, no interior de São Paulo. Próximo à sede da instituição em Itu, o local é construído para abrigar obras de arte ao ar livre, fazendo com que elas conversem com a paisagem local.
Confira no vídeo entrevistas com Marcos Amaro, Ksenia Kogan Amaro, Raquel Fayad, Ricardo Resende e a artista Marcia Pastore.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
"Cena de família de Adolfo Augusto Pinto", 1891, de Almeida Jr. Foto: Divulgação
Quem já visitou a Pinacoteca de São Paulo contemplou uma das pinturas de Almeida Jr. pertencentes ao acervo: Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, óleo sobre tela de 1891. Nela estão representados um casal e cinco crianças em uma sala: dois pequenos cuidam de um bebê[1]; um garotinho examina um álbum de fotografias; a mulher ensina algum segredo de costura para uma menina enquanto o homem lê a primeira página de um jornal de engenharia com um cão deitado ao seu lado.
O ambiente que envolve aquela reunião não podia ser mais indicativo das pretensões do casal: os instrumentos musicais, os quadros na parede, o tapete, a manta, as fotografias e o álbum revelam um interior onde os proprietários aspiram gravitar em um bem viver “civilizado”, europeu. A natureza tropical, único sinal de “brasilidade” da composição, está representada pela forte luz do sol lá fora (atenuada quando entra no ambiente), e pelos índices de sua domesticação: o canteiro ladeando o muro que limita a propriedade, a pintura de paisagem sobre o piano, os vasos que decoram a sala.
O doutor Adolfo Augusto Pinto – ali retratado –, então reconhecido como um importante engenheiro na cidade de São Paulo, não pode ter sua biografia resumida apenas a essa atividade. Nascido em Itu, ex-estudante de medicina em Salvador, formado engenheiro no Rio de Janeiro e posteriormente trabalhando em alguns dos principais empreendimentos de infraestrutura que sustentavam o rápido crescimento da cidade e do Estado de São Paulo, Adolfo A. Pinto era mais do que um engenheiro bem-sucedido. Ele agia também como uma espécie de ideólogo, um “intelectual orgânico” da burguesia ilustrada do Estado, tendo como uma de suas missões colocar São Paulo como o centro inconteste do país, não apenas no plano econômico, mas também cultural e simbólico.
Católico e certo de suas convicções sobre o passado, o presente e o devir, tanto do Estado, quanto da capital de São Paulo, o engenheiro, em 1929, publicou um libreto para sensibilizar paulistanos a contribuírem para o término da construção da nova Catedral da Sé, iniciada em 1913. Nele, o engenheiro assumia-se como porta-voz daqueles que acreditavam ser a cidade a sede de uma verdadeira civilização cristã na América do Sul e a futura Catedral, o seu monumento máximo:
[…] a cidade de São Paulo, em suma, que está assim a se cobrir de todas as galas de que o progresso e a opulência são capazes de esmaltar uma grande metrópole moderna, não pode permanecer indefinidamente descoroada de seu monumento máximo, testemunho inconfundível da nobreza espiritual de sua civilização, da obra que mais pode dignificar a velha alma paulista, valendo por um perene Te Deum de ação de graças à suprema onipotência divina pelos extraordinários dons de que cumulou este abençoado recanto do Brasil […][2]
Monumento da civilização paulista, na cripta da futura Catedral, e junto aos restos mortais dos bispos locais, seriam colocados aqueles de Tibiriçá e do Regente Feijó:
[…] Se amanhã ali se erguerem os mausoléus de Tibiriçá e Feijó, bem se poderia dizer que a alma histórica de São Paulo viverá em sua Catedral. É que Tibiriçá representa não só o fator decisivo da fundação da cidade, mas também o primeiro grande ascendente dos Piratininganos, a tropa heroica das famosas bandeiras descobridoras. E ao encerrar-se o período colonial e raiar a era da Independência […], não foi porventura a nobre figura de Feijó, uma das que mais brilharam no cenário político do Brasil?[3]
A burguesia paulistana de então não brincava em serviço: impensável “apenas” criar infraestrutura para que a cidade e o Estado se firmassem como pontos máximos do capitalismo nacional. Era necessário criar uma narrativa que justificasse a hegemonia paulista de então, enfatizando a suposta precessão de seus habitantes de antigamente na construção do Brasil – sempre sob a égide do catolicismo.
Se Feijó, um paulistano, devia ser venerado por ter lutado pela integridade do Brasil entre o primeiro e o segundo reinados, Tibiriçá – um indígena “paulista” – era o iniciador, o “grande ascendente” dos bandeirantes de São Paulo, aqueles que ampliaram o território brasileiro que Feijó manteve centralizado dentro da crise do século XIX.
***
A luta de Adolfo A. Pinto por monumentos que expressassem a visão de seu grupo sobre a história de São Paulo, constituída a partir da convergência entre a religião católica e a “tropa heroica das famosas bandeiras descobridoras”, não se restringiu à batalha pela conclusão da Nova Catedral. Antes, em 1910, membro da Comissão que escolheria o projeto de Amadeu Zani para o Monumento à Fundação de São Paulo (inaugurado em 1925, no Pátio do Colégio), é nítido seu interesse em juntar ali as figuras de Anchieta, Tibiriçá e Nóbrega, ou seja: representantes da Igreja Católica e, de novo, o “grande ascendente” dos bandeirantes[4].
O engenheiro também teria papel vital no concurso para o Monumento à Independência, situado em frente ao Museu Paulista. Em suas memórias ele informa que, como relator da Comissão encarregada dos projetos, emitiu parecer sobre eles, votando favoravelmente ao projeto vencedor, do escultor italiano Ettore Ximenez. Pinto enfatiza que propôs modificações ao projeto de Ximenez, aceitas pelo escultor:
Essa modificação consistiu em substituir dois grupos de figuras alegóricas, que decoravam os lados direito e esquerdo do corpo central do monumento […], por dois grupos de figuras históricas precursoras da Independência, representando um deles os revolucionários de Pernambuco, e outro os inconfidentes mineiros.[5]
Cioso para que os monumentos paulistas estivessem submetidos aos fatos que celebravam, Adolfo Pinto, nesse episódio, entendeu ser fundamental gravar em pedra e bronze o “processo” da independência do país, preterindo alegorias decorativas em favor dos episódios pernambucano e mineiro que culminariam, é claro, na independência ocorrida em São Paulo (e não em qualquer outro lugar do país).
Essa observância aos fatos históricos também parece ter motivado a Comissão responsável pelo já citado concurso para o Monumento à Fundação de São Paulo, a rejeitar o projeto apresentado pelo escultor brasileiro Correa Lima, rebaixando-o para o segundo:
Correa Lima […] concorreu ao certame com excelente projeto. A composição é feliz e todas as figuras são modeladas com aprimorada fatura […]. Para ser completo este projeto, só faltou que o ilustre artista lhe tivesse acentuado a individuação histórica. É que, posta de parte a figura do Bandeirante, que aliás não pertence à época em causa, não há ali nenhum traço característico, não é evocado nenhum episódio do acontecimento histórico que o monumento é destinado a comemorar – a fundação de São Paulo.[6]
A noção de que o monumento à fundação da cidade devia ser um “documento” daquele fato (uma missão impossível, como sabemos) levaria Adolfo Pinto a rebaixar o posicionamento de Correa Lima no concurso, reprovando-o, inclusive por ter colocado em seu projeto a figura do bandeirante, que não pertenceria “à época em causa”.
Tal censura ao projeto de Correa Lima absolutamente não significava que Pinto não reconhecesse a importância do bandeirante para a narrativa heroica que ajudava a construir sobre a cidade de São Paulo. Em seu discurso na abertura da Primeira Exposição Brasileira de Belas-Artes em São Paulo, em 1911, o engenheiro, após lamentar a falta de monumentos públicos no tecido urbano da cidade, salientando apenas o projeto do Monumento à Fundação de São Paulo – “condigna obra de arte em homenagem à benemérita e inolvidável memória de Anchieta, de Nóbrega, de Tibiriçá…”[7] – ele assim se manifesta sobre a necessidade de um monumento que homenageasse a figura do bandeirante:
Depois da fundação de S. Paulo, pode-se dizer que encheu a maior parte do período colonial a incomparável epopeia bandeirante. São troféus da extraordinária campanha o efetivo descobrimento do Brasil, a exploração do território em toda a sua vastidão continental, desde a costa marítima até as vertentes andinas do Amazonas, e, por fim, a formação dos primeiros núcleos interiores de vida e trabalho – tudo à custa dos mais arrojados lances de estoica bravura, empreendidos e levados a cabo por um pugilo de heróis, os mamelucos de Piratininga! Todos nós vivemos a exalçar as lendárias arrancadas desses intrépidos “caçadores de esmeralda”, argonautas do novo mundo; o povo paulista ufana-se da mais profunda e valorosa de suas raízes étnicas; no entanto, onde se levanta o monumento público, onde a obra de arte destinada, como o selo da História, a autenticar solenemente, perpetuando na memória dos séculos, a veneranda tradição daqueles feitos sublimados?[8]
***
Como sabemos, agora em 2020 será comemorado o centenário da primeira maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, encomendada ao artista pelos então jovens intelectuais de São Paulo Oswald de Andrade, Monteiro Lobato e Menotti Del Picchia, projeto que somente seria executado a partir de 1936, sendo inaugurado em 1953[9].
“Monumento às Bandeiras”, de Victor Brecheret. Foto: Divulgação
Relata a tradição historiográfica modernista que a encomenda teria surgido como a reação desses intelectuais à ousadia da colônia portuguesa de São Paulo, que se propunha oferecer à cidade um monumento em homenagem aos bandeirantes, ligando irremediavelmente a história daqueles supostos heróis a Portugal[10]. Portanto, da maneira como foi e é narrada, a necessidade de ereção de um monumento que louvasse o “passado bandeirante” paulista teria surgido como uma reação modernista à empáfia dos portugueses então residentes na cidade.
Ao construir tal versão, no entanto, essa historiografia deixou de lado outro projeto de monumento às bandeiras comissionado pelo Estado ao escultor italiano residente em São Paulo, Nicola Rollo, ainda em 1920, que deveria ficar situado em frente ao Museu Paulista, entre o edifício da instituição e o Monumento à Independência.
Por sua vez, em frente a esse, era ideia de Afonso de E. Taunay, diretor do Museu Paulista, mandar erigir um monumento em homenagem à proclamação da República, conferindo àquela avenida o papel de simbolizar o “fato” de que, de São Paulo, teriam partido os paulistas para conquistar o território brasileiro, sua independência e posterior República.[11] Como se percebe, tal projeto possuía o mesmo substrato ideológico das demandas de Adolfo Augusto Pinto.
Somando essas questões, conclui-se que a demanda por um monumento que louvasse a história das bandeiras paulistas, não se iniciou propriamente com o embate entre a colônia portuguesa de São Paulo e os modernistas, repletos de gás nacionalista, às vésperas das comemorações do centenário da independência do país, em 1922. Ela vem de antes: passa pelo projeto de Rollo e volta pelo menos a 1911, quando Adolfo A. Pinto, como porta-voz dos paulistas bem-postos e bem situados economicamente, clama pela necessidade de se erigir na cidade um monumento que louvasse os bandeirantes.
Quais as razões que teriam levado a historiografia modernista a apagar ou, pelo menos, colocar em segundo plano tanto o projeto de Rollo quanto as demandas anteriores, aqui comentadas? De início eu diria que, frente à realidade do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, no Parque Ibirapuera, Marta Rossetti e outros pesquisadores tiveram o cuidado de buscarem apenas a história da obra desse escultor, sem se preocuparem com outras possíveis evidências de demandas e projetos anteriores ou contemporâneos àquele do escultor[12].
Por outro lado, não se deve esquecer também que, se existe o mito do bandeirante paulista, os pesquisadores “históricos”, aqueles comprometidos com os primeiros relatos sobre o modernismo de São Paulo, foram responsáveis pela criação de outro mito: justamente aquele dos intelectuais e artistas comprometidos com aquele movimento, vistos como jovens intrépidos que começaram uma revolução do nada, numa São Paulo despossuída de um debate cultural e artístico preexistente. Uma narrativa que deixa de lado um ponto fundamental, ou seja, aquele que demonstra terem sido os modernistas, por origem ou por adesão, partidários da elite econômica e cultural que dava as cartas na cidade no início do século XX.
***
As tentativas de homenagear os bandeirantes formaram, de fato, uma demanda que uniu modernistas e passadistas de São Paulo, levando à ereção do Monumento às Bandeiras, a partir de 1936, num outro momento da história de São Paulo e do país. Sua inauguração, em 1953 – iniciando as comemorações do IV Centenário da Fundação de São Paulo, que ocorreria no ano seguinte –, por sua vez, levou-o a transformar-se em um dos grandes símbolos da cidade e do Estado, festejado, tanto pelas elites modernas e passadistas, como por vários artistas, e por grande parte da população.
Em 2016, no entanto, o artista Jaime Lauriano apresentou a obra Monumento às Bandeiras, uma miniatura do monumento de Brecheret colocada sobre um tijolo. A miniatura, fundida em latão e cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas (dados que constam explícitos em sua ficha de identificação), conferem e reforçam um aspecto evidente à obra: aquele tijolo encimado pela réplica do Monumento, depositado no chão da sala de exposição, atua como uma arma de ataque, a resposta possível de membros de comunidades marginalizadas à truculência policial.
Monumento às Bandeiras, 2016, Jaime Lauriano. Foto: Filipe Berndt/ Divulgação
Sem querer circunscrever a potência alusiva da obra de Lauriano a um único significado, me parece claro que, se para muitos, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, significou a homenagem máxima dos paulistas a seus ancestrais, Monumento às Bandeiras, de Jaime, surge como índice de uma mudança de percepção sobre o que pode ter sido a experiência bandeirista entre nós, a partir da visão de segmentos até então marginalizados da população local, que percebem o Monumento ali no Parque Ibirapuera como o símbolo do genocídio cometido há séculos por setores da elite contra as populações indígenas e pretas.
Se, para Adolfo A. Pinto, um monumento aos bandeirantes seria uma homenagem àquele “pugilo de heróis”, para Jaime Lauriano, o seu Monumento às Bandeiras é:
[…] uma arma para se atirar contra os policiais que, junto com os grandes agropecuaristas são os novos bandeirantes, a meu ver, é claro […]. Para mim o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, é um totem à barbárie. Um monumento à violência que estripa a terra brasilis, desde sua invenção. Para mim é um ídolo fálico que a todo momento nos lembra, ou relembra, que a construção do Brasil é uma construção de machos brancos, que chegavam violentando quem se opusesse à sua pulsão de desejo […].[13]
***
Com sua maquete primeira completando cem anos, agora em 2020, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, continua sendo o resultado em granito de uma demanda antiga de parte da população de São Paulo para homenagear seus ancestrais tornados míticos. Ao mesmo tempo, e para muitos, ele é o símbolo da barbárie que fundou o Estado brasileiro.
Como reagiria o dr. Augusto A. Pinto frente a essa divergência? Continuaria tranquilamente lendo seu jornal especializado, satisfeito com suas certezas, enquanto, com sua esposa e filhos, repisava os estereótipos de uma família burguesa, branca e feliz? E como ficamos nós, seus pósteros, neste futuro da cidade de Augusto A. Pinto? Continuaremos absortos em nós mesmos e alheios às demandas que chegam das ruas?
[1] – Especula-se sobre a representação desse bebê, o quinto filho do casal Generosa e Adolfo Augusto Pinto, e batizado com o mesmo nome do pai. Na tela, sua pele escura levantou algumas hipóteses: seria ele filho ilegítimo de Adolfo Augusto, seria uma criança adotada? A jovem pesquisadora Natália Cristina de A. Gomes, em seu trabalho Cena de família de Adolfo Augusto Pinto: um estudo sobre o retrato coletivo de Almeida Jr. (TCC, Unifesp, 2016) chama a atenção para o fato de que a pele escura do bebê pode ter sido causada por algum processo de deterioração da própria pintura (observado em outros segmentos da mesma), hipótese mais plausível, uma vez que, em nenhum outro documento consultado ficou estabelecido a origem afro-brasileira de Adolfo Augusto Pinto Filho.
[2] – PINTO, Adolfo A. A Cathedral de São Paulo. 1929. São Paulo: Melhoramentos de São Paulo. S.d. s. pag.
[4] – Sobre o assunto, consultar o relatório da Comissão constituída para o Monumento, da qual Adolfo A. Pinto foi o relator (também faziam parte da Comissão: Claudio Rossi e Ricardo Severo): “Monumento comemorativo da fundação de São Paulo”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 294.
[5] – PINTO, Adolfo Augusto. Minha vida (memórias de um engenheiro paulista). Prefácio e Notas: Hélio Damante. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1970, pág. 129.
[6] – “Monumento comemorativo da fundação de São Paulo”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 303.
[7] – “A Cultura Artística”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 318.
[9] – Sobre o assunto ler, entre outros: BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret. História de um Monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985.
[11] – Sobre Nicola Rollo, consultar: KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo. Dissertação de Mestrado. ECA USP, 2001. Sobre o Monumento à Independência: MONTEIRO, Michelli Cristine S. São Paulo na disputa pelo passado: o Monumento à Independência de Ettore Ximenes. São Paulo. Tese de Doutorado. FAU USP, 2017.
[12] – Vale ressaltar que a pesquisadora Aracy Amaral, em seu livro Artes Plásticas na Semana de 22 (2ª. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1972, pág. 65 e segs.), cita o projeto do Monumento às Bandeiras, de Nicola Rollo.
[13] – Depoimento do artista ao autor, em 28 de março de 2017. Publicado em: “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós” in CHIARELLI, Tadeu (cur.). Metrópole: experiência Paulistana. Catálogo da exposição homônima. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017, pág.26.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
"Studo para uma Cosmogonia Supercomplexa Metropolitana Expandida", 2017, Painel de backlight animado, 200 X 105cm
As Superficções concebidas por Guerreiro do Divino Amor poderiam também ser chamadas, segundo ele mesmo, de hiper-realistas, neorrealistas ou documentários. Pois através delas, na série de trabalhos intitulada Atlas Superficcional Mundial, o artista de 36 anos, nascido na Suíça e radicado no Rio, trás à tona algumas das temáticas mais profundas e complexas de nossa sociedade, tanto geopolíticas quanto referentes ao imaginário coletivo. Assuntos atuais – e nada ficcionais – como a atuação dos poderes políticos, religiosos, midiáticos e do marketing, as desigualdades sociais, a violência do Estado e as estratégias de embranquecimento da população.
Em vídeos que se desdobram em painéis, revistas e outros suportes, Guerreiro apresenta os universos superficcionais de cada cidade ou região em que trabalha, sob uma perspectiva apocalíptica e a constatação de que vivemos em guerra. De 2005 para cá já foram imersões em Bruxelas, Rio, São Paulo, MG e Brasília. O artista não teme “dar nome aos bois” quando estampa nos vídeos, “como totens”, rostos de figuras poderosas como Silvio Santos, Doria, Bonner, Eduardo Cunha, Malafaia e o pastor Davi Miranda. Chegou a ser processado pela filha deste último, mas absolvido “em uma sentença inclusive muito bonita. Um alívio, porque hoje em dia não se sabe o que esperar da justiça”.
Com uma estética bastante peculiar, de cores fortes e referências ao universo da internet, o artista questiona as ideias de bom gosto e os padrões visuais hegemônicos, por vezes de modo debochado e irônico. Formado em arquitetura em Bruxelas, ele conta que achava a forma de apresentação usual dos projetos, tudo meio cinza e neutro, “uma cafonice”. Preferiu retomar suas referências de infância e adolescência, de novelas e videoclipes a programas da Xuxa – “acho que o pop mexe mais com o coração, tem esse impacto direto e mais abrangente” –, e aprofundar “a pesquisa da estética como ficção, ao observar como cada segmento social cria uma estética ficcional que carrega consigo códigos bem definidos”.
Seu Atlas deve ganhar agora episódios na Suíça, “que tem essa narrativa superficcional de perfeição”, na Itália, “à procura das raízes do cristianismo e do fascismo, muito importantes para entender São Paulo e o Sul do Brasil”, e no México. Guerreiro foi o vencedor, este ano, do Prêmio Pipa, um dos mais importantes das artes visuais no país, e concedeu entrevista à ARTE!Brasileiros.
ARTE!Brasileiros – Para começar, queria te perguntar de onde vem esse nome, Guerreiro do Divino Amor, e o que ele significa para você.
Guerreiro do Divino Amor — Guerreiro é meu sobrenome mesmo. Já Divino Amor foi uma brincadeira que surgiu quando eu era adolescente e meu pai namorava uma pastora. Ela queria me colocar para dentro da igreja, e foi um pouco uma provocação, eu queria montar uma banda de heavy metal para atuar na igreja. Nunca aconteceu, mas gostei muito do nome, Guerreiro do Divino Amor. Depois foi ganhando muitos significados ligados ao meu trabalho e à vida, até que hoje ele representa como que minha missão de vida.
Nunca conseguiram te cooptar para a igreja?
Não. Na verdade eu fiquei muito curioso com aquele universo, neopentecostal, que eu não conhecia bem. Foi um dos motores do meu trabalho, tentar entender aquela fé arrebatadora e ao mesmo tempo com uma estética muito forte, colorida. Era envolvente.
Me parece que várias dessas suas vivências e experiências de vida estão muito presentes no seu trabalho. Você já falou de outra parte da família que vem de uma aristocracia decadente, além de sua formação na Europa…
Sim, acho que foi um motor. Morava na Europa, num contexto onde todos eram relativamente misturados, e volta e meia frequentava a família no Brasil, uma gente profundamente racista, muito fúteis, mas com certo verniz culto, uma obsessão por poder, hierarquia e status e a certeza de saber que tudo e todos estão em seu devido lugar. Queria entender quais eram os mecanismos de perpetuação dessa casta que continuava vivendo na época do Brasil colônia sem ser perturbada. E também desse mundo evangélico. São mundos fechados em si, com respostas para tudo. Comecei a analisar, a cavar, e foi aparecendo como um buraco sem fundo com raízes muito antigas e profundas, lógicas de dominação complexas e perversas. O trabalho é todo de desemaranhar essas estruturas, que por serem tão antigas e familiares formam como um ecossistema, uma coisa dada, atemporal. E ver o papel das mídias, da família, das genealogias, da herança, do capital simbólico nessa manutenção.O SuperRio, segundo capítulo do Atlas, é um retrato mais direto dessa tentativa de entender o que se encontrava ao meu redor e a relação com fenômenos mais globais de marketing, lógicas corporativas, e como isso influi na mente, na forma de agir das pessoas, quais são suas estratégias e como isso se traduz em todas as escalas, da individual à geopolítica. Depois fui explorando outros fenômenos adjacentes. Assim começou, ao tentar entender esses universos e os cruzamentos entre eles, e até hoje trabalho essas questões.
E como é que essas Superficções, esses capítulos, se relacionam entre si, neste grande Atlas Mundial?
No começo cada projeto tinha sua independência, explorava temáticas próprias. Só depois é que eu fui entender isso como um Atlas. São capítulos que vão se relacionando, com questões que atravessam o trabalho todo, como as ideias de império e galáxia, a guerra entre civilizações em suas diferentes facetas sociais, religiosas, econômicas, simbólicas, estéticas, as diferentes estratégias de embranquecimento da população. No primeiro capítulo, em Bruxelas, era uma coisa mais estritamente analítica. É uma cidade bastante pobre e suja para os padrões da Europa, mas com uma tentativa de se construir como cenário de cidade mundial, capital da Europa. E eu, quando estudava arquitetura, comecei a perceber muito um discurso bélico, de conquista das mentes e do espaço. Essa ideia atravessa todo o trabalho, de modos diferentes. E a ideia de superficção mesmo veio no trabalho seguinte, no Rio, que eu escrevi em 2005 e retomei em 2013, no período pré-Copa e Olimpíadas, o ápice de superficção carioca. Muitas vezes, nos meus vídeos, eu parto de filmes turísticos, propagandas, que é como a cidade quer se vender, qual ficção ela vai criar para se exportar, essa criação da imagem.
Mas você parte do que a cidade quer mostrar para expor o que a cidade não quer mostrar…
É, como são construções muito bem elaboradas e antigas procuro identificar as raízes simbólicas e históricas e as suas diferentes manifestações, de como essas ficções acabam sendo incorporadas no imaginário coletivo da cidade, e como elas agem e são instrumentalizadas nas diferentes guerras pelo poder. No caso de Minas isso também é muito forte. Minas é um pouco a “fofura encarnada”. Ninguém vai falar mal de MG, que tem aquela comida, um ideal de hospitalidade. Mas fora isso é um lugar de poder, de dinheiro, é um dos poucos estados que não tem Dia da Consciência Negra, apesar de seu passado, é tudo muito velado.
Nas superficções você trabalha com vários planos e camadas de poder que caracterizam as sociedades como política, religião, mídia, polícia, mercado. Como escolhe estes temas trabalhados?
É bem natural, chegando nos lugares e observando, sentindo, conversando. Claro que todas estas camadas estão presentes em todos os lugares, mas em cada um elas agem de uma forma diferente, com outras narrativas. Por exemplo, a religião funciona de modos distintos em cada lugar, até com construções físicas muito distintas e com estilos de pregação diferentes. Mas, no fundo, com a mesma vontade de conquista. No caso da mídia também. No Rio, por exemplo, tem uma construção midiática muito forte através tanto das novelas quanto dos noticiários policiais, criando essa narrativa esquizofrênica, representada pela rosa dos ventos no SuperRio. Em MG você vê sempre uma narrativa de uma “volta para a terra”, uma imagem mais rural, uma ideia mais de pureza, e isso é exaltado na mídia.
E seu trabalho está sempre questionando essas narrativas oficiais, trazendo coisas ocultas.
Sim, a ficção da democracia racial, por exemplo, que em cada lugar é narrada de um jeito. E é uma das ficções centrais da construção do Brasil, que serve ao apaziguamento, à exploração. Essa negação do passado escravagista. Falando de Minas de novo, que é o que está mais fresco para mim, tem toda essa instrumentalização do mito de Chica da Silva. Em todo lugar que você vai tem essa narrativa que diz “olha, tem a Chica da Silva, escrava rica, linda”. E aí parece que está tudo certo. A coisa fica mais sútil, mas talvez por isso mesmo mais perversa. Com essa camada de mel, de glacê doce.
Para além de tratar de cidades reais, surgem também muitas figuras reais. Como é que escolhe esses personagens e como eles se inserem nos trabalhos?
São ícones né? São como totens. Por exemplo, Silvio Santos, a vida dele, a trajetória dele, é como um totem de São Paulo. É a encarnação do mito da meritocracia. E trabalhando no photoshop vi que ele e João Doria tem traços muito parecidos. Então no trabalho eles se juntam, como se fossem um só. Se complementam. Porque Doria também é como uma caricatura, um arquétipo do herdeiro, do capitalismo selvagem. Você vê essas figuras e já sabe do que se trata, elas já trazem todo um universo junto. E não são fenômenos abstratos. São pessoas que estão lá agindo, um exército. Claro que têm muitas outras, é muito mais complexo que isso.
Você disse certa vez que seu trabalho procura lidar com a complexidade do apocalipse. Também disse que o trabalho todo trata de guerra, em diferentes planos. Enfim, estamos no apocalipse? Estamos em guerra?
Existe essa percepção de que há um apocalipse, em todos os níveis, na questão dos recursos naturais por exemplo. E o trabalho tenta ver esses detalhes, como isso é uma construção, é uma guerra que vem de muito longe. No trabalho de Brasília, por exemplo, fui vendo esses ciclos, como na inauguração de Brasília reencenaram a primeira missa do Brasil, da época da conquista. É um apocalipse que vem se preparando há muitos séculos, mas agora é como se fosse o momento apoteótico, que veio para valer. E trabalhar com isso, mexer nessas coisas às vezes é assustador. Foi ficando mais nítido no decorrer dos capítulos, tendo seu ápice em Brasília, onde a pesquisa foi feita na época das eleições de 2018. Parece que os senhores escravocratas conseguiram a fórmula perfeita. A junção da força da fé com o marketing emocional e as tecnologias da informação é arrebatadora.
Ao mesmo tempo em que temos esse quadro apocalíptico, o meio artístico tem dado reconhecimento para trabalhos que lidam com questões raciais, indígenas, de gênero etc. Você acaba de ganhar o Pipa, por exemplo. É uma resistência ao apocalipse?
Acho que talvez o mundo das artes tenha despertado mais agora também porque as coisas começaram a atingir uma “branquitude” que estava tranquila, protegida, presa num romantismo. Mas tem gente que já estava acostumada com a perseguição, que tem sabedoria do que é estar em guerra. E acho que as artes agora talvez se voltem mais para estes, os que já sabem do que se trata. Quando há necessidade, tudo se aprende mais rápido.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
O MAR, na Praça Mauá, Rio de Janeiro. Foto: Divulgação
Em meio a uma grave crise financeira e política que envolve o Museu de Arte do Rio (MAR) – junto a tantas outras instituições culturais da cidade e do país –, a Prefeitura do Rio repassou a quantia de R$ 451 mil para o museu carioca, garantindo seu funcionamento pelo menos até o fim deste ano.
O dinheiro depositado para o MAR garante também o fim do aviso prévio dado aos funcionários em novembro. Segundo as informações divulgadas, a pauta agora é o pagamento do R$ 1,5 milhão que ainda está atrasado e a renovação do contrato de concessão do Instituto Odeon por mais um ano.
Para 2020, o órgão já tem uma série de atividades programadas, como explicou o crítico e curador Paulo Herkenhoff em depoimento à ARTE!Brasileiros (leia aqui). Os patrocínios privados e apoios para o próximo ano – o instituto Itaú Cultural, por exemplo, além de emprestar a obra “Spider”, de Louise Bourgeois, vai aportar R$ 500 mil para a inauguração da exposição – não suprem ainda as despesas de custeio, que têm que ser garantidas pela Prefeitura.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
Color in Space and Time. Foto Rafael Guil/Articruz S.A. Panama.
“Foi a perda de um amigo” é a frase com a qual concordam os galeristas Raquel Arnaud e Luiz Sève, que representam o artista venezuelano Carlos Cruz-Diez. Falecido em julho deste ano aos 95 anos de idade, a ideia que deixa na memória daqueles que o conheceram é de um homem que transbordou sua fé na arte, trabalhando com vigor nas decisões que envolveram o seu trabalho até o fim.
Na Galeria de Arte Ipanema, da qual Sève é proprietário, foi realizada a até então última exposição do artista no Brasil, em 2014, intitulada Um Olhar Sobre a Cor. Agora, o Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, abriu a mostra Cruz-Diez: a liberdade da cor, em 9 de novembro. A exposição é a última a ser apresentada em todo o mundo que teve a chancela do artista, que participou de todo o processo de concepção ao lado do curador Rodrigo Villela, diretor executivo e artístico da instituição paulistana.
É da coleção de Raquel Arnaud que vêm duas das quatro obras que integram a primeira sala da exposição. Em uma delas, uma pequena fisiocromia de 1965, o trabalho de Cruz-Diez ainda passava por um período pré-industrial, conta Villela. “Depois o trabalho dele vai se tornando muito industrial. Ele tinha essa procura de fazer com que o trabalho saísse da escala de artesão. Ele falou que não se dedicou à pintura porque a pintura tinha muito artesanato e ele queria algo que pudesse ter maior escala”, comenta o curador. Na parte externa do edifício, uma obra efêmera de grandes proporções, escolhida pelo próprio artista, também faz parte da individual.
Ambiente Cromointerferente, 1974–2019, no Museu de Arte Contemporânea-MAC cidade do Panamá. Foto: Rafael Guil/Articruz S.A. Panama
O artista foi muito assertivo naquilo que acreditava. Em texto de 1967, ao qual deu o título de Minhas Ideias Sobre a Cor, propõe o conceito de “cor autônoma”, na qual a cor não depende de forma, especificidade ou de suporte. E, desta forma, extrapola suportes e técnicas, utilizando vídeos, pinturas, instalações, fotografias e se apropriando de paredes, de ruas e até mesmo de jardins.
No mezanino da instituição, o público encontra a obra Labirinto Transcromia (1965/2017), pela primeira vez exibida no Brasil. “Ele traz para a experiência todo o aspecto de trabalho com a cor, que ele propõe, mais voltado para o corpo”, destaca o curador. A proposta é que o público caminhe entre esse labirinto de peças retangulares presas por fios de nylon e o efeito de sobreposição das cores aconteça aleatoriamente, refletida nas paredes brancas e no concreto do espaço. Essa transferência para as paredes se dá em espécies de figuras dançantes, às quais se misturam as sombras das pessoas que por ali passam, presas entre a instalação labiríntica que irradia cores. A cinética, a cromática e o geométrico do artista são completamente vivenciados na obra.
A primeira obra no subsolo é Ambiente Cromointerferente, 1974/2019. As projeções em quatro paredes caminham de forma reta, enquanto no chão caminham para encontrar uma a outra, como se somassem, formando figuras randômicas nessas junções. O público se torna parte da obra quando as projeções recaem sobre os corpos que adentram a sala. Na sequência, vê-se duas obras efêmeras adesivadas na parede: “As obras são estáticas, mas o movimento está sempre presente na percepção do olhar”, diz Villela.
Cromossaturação criada em 1965. O ambiente é formado a partir de três espaços iluminados artificialmente, vermelho, verde e azul.
Uma das obras mais icônicas, Cromossaturação é instalada em um espaço composto de três salas onde são montadas, respectivamente, luzes vermelha, azul e verde. À medida que se anda entre elas e dependendo de onde o olhar parte, a percepção da cor sofre modificações. “É realmente uma pintura no espaço”, comenta o curador. Objetos em forma de cubos são espalhados pelo espaço também, dando uma dimensão de como as cores afetam cada uma de suas partes.
Um núcleo mais documental traz duas televisões que exibem vídeos: um com fotografias de obras em espaços público, trazendo a questão da arte envolvida com a arquitetura, e outra com depoimentos de Cruz-Diez sobre os trabalhos.
Um outro artista
A última sala da exposição abarca vinte fotografias em preto e branco tiradas por Cruz-Diez desde o início de sua carreira. Rodrigo conta que foi um desafio convencer o artista a mostrá-las junto aos outros formatos que a exposição abraça: “Conseguimos compor de uma maneira que ele ficou contente, que é ter uma separação das instalações e criar um cantinho mais íntimo para essas fotografias, não conectando com o resto da produção”. As fotografias trazem elementos tradicionais, como retratos e paisagens, evidenciando um artista jovem. “Quase que temos que fazer um exercício de abstração para pensar que é o mesmo artista”, brinca.
Represa del Guri, 1986
Alguns dos cliques de Cruz-Diez lembram Pierre Verger e até Cartier Bresson, na opinião do curador, e têm uma procura certa abstração. São imagens desde a Venezuela dos anos 50 a fotos de viagens à Espanha, que “tem uma coisa muito do calor da hora”, de acordo com Rodrigo, mas também um caráter documental evidente: “Quando eu vi essas fotos, fiquei muito impactado justamente porque não dá para imaginar que é o mesmo artista”. O curador procurou fazer uma seleção que fosse representativa de um contexto que conectasse suas diferentes abordagens da fotografia.
Rodrigo revela que o contato para a exposição foi o primeiro que teve com Cruz-Diez, apesar de já conhecer muito de sua obra. O curador ficou impressionado com a infraestrutura da equipe do artista, muito afinada entre si, com o trabalho e com o artista: “Tinha uma coisa de uma presença muito forte dele e uma clareza total”, conta ao se referir também a um “cotidiano de trabalho” vivido pelo artista mesmo com 95 anos de idade.
As fotografias ainda mostram um Cruz-Diez em relação muito afetiva com a Venezuela, para onde voltava com certa frequência, residindo na França desde a década de 60. Rodrigo comenta que ele falava muito de seu país de origem. Uma de suas maiores obras está no aeroporto Simon Bolívar, em Caracas, que se tornou ponto de partida de muitos venezuelanos devido à crise vivida no país.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
instalação da obra de Dana Awartani, "I went away and forgot you. A while ago I remembered. I remembered I’d forgotten you. I was dreaming", 2017
The diversity of themes, poetics and approaches of the 21st edition of Sesc_Videobrasil is one of its highlights. There are no redundancies or overlaps between the more than 60 works selected for the show, which for the first time in history has a definite lead even before the call. Imagined Communities a motto inspired by Benedict Anderson’s work, becomes a potent but nonimposing guide that has brought together a wide range of research whose main common feature may be the delicate manner in which they deal with often dramatic issues.
Destruction, threat of extermination, distorted view of the world due to racial, economic or social prejudice are largely dealt with by the 50 artists selected by the judging committee and the 5 invited by the curator. And yet, a certain subtlety predominates in the show, a bet on the transformative power of art, which does not have to scream to be heard. Some examples clearly demonstrate this defense of utopia in the face of contemporary tragedy. Working prominently in the exhibition, the series of urban landscape photos taken by England-based Syrian Hrair Sarkissian subtly and surprisingly deals with totalitarian repressions by showing places where public executions are often made in various countries where punishment of death is state policy.
Hrair Sarkissian, fotos da série “Execution Squares”, 2008
Peruvian Claudia Martínez Garay explores with a mix of subtlety and sharp aim the annihilation of indigenous ancestral culture and the effects of colonization on indigenous people. She appears in the exhibition with two works: the installation titled Somos aún! , made from the sum of a series of anthropomorphic sculptures, which mix traces of ancient cultures with a persistent defense of popular imagination, and a touching video, I Survived to you, in which close-up images are seen of the shapes of an ancient 7th-century vase of Moche civilization, famous for its pottery work, kept at the Ethnological Museum in Berlin. While getting lost in the twisting and mysterious forms of this archaeological object, the viewer hears a strange, somewhat surreal narrative, made in the first person by the vase, narrating from its making to its closure in a distant museum.
Claudia Martínez Garay, I Will Outlive You, 2017
The ancient culture of its people is also the theme of Dana Awartani’s work. In a specular relationship between video and installation, the Arabian artist makes a critical comment about the abandonment of the millenary Hejazi architecture, typical of her region until the beginning of an overwhelming modernization process that began in the 1950s. Dana covers the floor of her installation with a beautifully patterned, typically Islamic tile carpet patiently made with colored sands. The ephemerality of the composition is even more evident in the video, which shows the artist sweeping the same formation in one of the few houses with such architecture still in Saudi Arabia.
Of course the presence of the video is striking in the show, but it is by no means hegemonic. Many works combine language with other forms of expression such as painting, photography and drawing, or simply incorporate typical video procedures into works that do without moving image, as can be seen in works such as those by Brazilian André Griffo, from the Malinese. Tiécoura N’Daou and Tunisian Nidal Chamekh, who travel freely through different media to develop a work of high political resistance. In other words, the event puts us in front of a series of works that speak, in the words of artistic director Solange Farkas, “different languages for very similar situations”.
Alto Amazonas Audiovisual, Detalhe de “About Cameras, Spirits and Occupations: A Montage-essay Triptych”, 2018
In terms of denunciation, the highlight of the show is the work related to the indigenous population, taking from the invisibility the drama of those populations increasingly threatened by violence and that have long been relegated to a position of invisibility. Collective groups such as the Alto Amazonas Audiovisual, which brings together indigenous anthropologists and filmmakers, sew and dialogue images captured in the region. There are also historical records such as interviews made by filmmaker Andrea Tonacci with indigenous leaders in the late 1970s that only now, in 2014, were recovered and restored. But there are still in the show, and in chorus, strong warning voices about the situation of communities and groups in search of survival and affective spaces of conviviality and struggle. This effort is epitomized by the incisive action led by Mexican Teresa Margolles, one of five artists specially invited to participate in the Biennale, which denounces the brutal violence against transsexuals. The work, entitled Priscilla Present honors the stabbed transvestite a year ago in downtown São Paulo and unfolds into three different elements: performance action, embroidery and video. Or in the paintings by No Martins, who associates powerful portraits of black figures to the phrase “It is enough!”
The internationalization of Sesc_Videobrasil
With 21 editions and 36 years of existence, Sesc_Videobrasil is one of the most powerful and long-lived cultural events in the country. In the current edition, which can be seen until February 2020, at Sesc 24 de Maio, the show has made some important changes in its structure. Among them are the incorporation of a theme not only for the selection of works, but already announced before the artists registered their projects (Imagined Communities was the guiding thread adopted for the current edition); the expansion of the curatorial team; and – perhaps the most impactful of changes – the transformation of the event into a Biennial.
The term Biennial, incorporated into the title of the event that is now called the Sesc_Videobrasil Contemporary Art Biennial, is not just periodic information or a brand hit. Taking on itself as an event of its kind inserts the now biennial into a broad international agenda of contemporary art. It is a way of reaffirming itself as part of a broad and active circuit of cultural action. Brazil already has two other important Biennials, São Paulo and Mercosur, but the field of Videobrasil is well defined: it acts clearly against the hegemonic nuclei, bringing together artists and thinkers from Africa, America, the Middle East and Brazil. Caribbean “This is the place we have to research, we have to investigate,” says Solange Farkas, founder and current artistic director of the project.
Solange Farkas. Foto: Divulgação
She makes a point of stressing the importance of keeping the event always ready for adaptations. Sesc_Videobrasil has already resembled a movie show, has taken on the identity of a major festival and is now completing an important step in this slow process of moving from the black box of the movie theater to the “white cube” of the exhibition space. “The first decade was to understand video production in Brazil”, explains Solange. In the 1990s, there is a certain disappointment, a frustration of the hope that video would occupy a more significant place in the cultural scene. “We went from romanticism to pragmatism, and in the face of the realization that we were not going to occupy TV, people began to investigate and experiment more intensely with the specifics of language”.
In the wake of this process, there was an important process of internationalization, first gathering and showing in Brazil the best of the international scene and the historical basis of video art and, subsequently, making room for a young, intense, hard-to-reach production from the south. geopolitical “There was a lack of knowledge, a great ignorance about the history of the video here”, says. The result of this mapping can be measured in the archive of almost three thousand works gathered in the Videobrasil Association’s collection, available for consultation. “It is a broad material that allows us to understand this place of critical invisibility”, she adds.
According to her, the strategy of assuming itself as a specialized biennial has been drawing for three editions, when it brought Olafur Eliasson’s work to Brazil. Among the challenges facing the new model of the event, Solange cites the increase of international and local dialogues, adding groups and issues traditionally relegated to the margins. “It’s no use getting self-conscious”, she concludes.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
"Sobre o Desenho no Brasil" Claudio Mubarac (Org.) Editora Escola da Cidade, 260 Páginas - Preço R$70,00
Sobre o Desenho no Brasil, livro organizado por Claudio Mubarac e recentemente publicado pela Editora da Escola da Cidade, vem suprir uma lacuna, trazendo a reflexão sobre o desenho — que costuma ser relegada a uma posição secundária no ensino das artes no Brasil — ao lugar de protagonista. Reunindo textos esparsos, representativos de diferentes momentos históricos e um conjunto potente de imagens, a obra traz uma seleção de sete estudos sobre o tema. Esse mergulho se enriquece muito pela opção de acompanhar cada um dos ensaios com trabalhos de artistas próximos, no tempo e no estilo, dos autores das análises escritas.
A opção por mesclar imagem e texto, nesta ordem, é uma espécie de posicionamento, uma maneira de colocar em pé de igualdade o discurso teórico e o trabalho artístico. Assim, estabelecem-se diálogos instigantes entre Joachim Lebreton e Jean-Baptiste Debret; Rui Barbosa e Henrique Bernardelli; Mario de Andrade e Lasar Segall. Nos casos de Lucio Costa, Vilanova Artigas e Flavio Motta, eles são autores tanto da reflexão escrita como dos desenhos que acompanham, aprofundando ainda mais a relação inteligente entre as duas formas de expressão proposta pela obra.
A reflexão de abertura, essencial para todos que estudam a história da arte no Brasil, é o projeto detalhado apresentado por Joaquim Lebreton, chefe da Missão Francesa, em 1816 e inédito até 1958. Endereçado ao Conde da Barca, o escrito apresenta uma proposta detalhada para a fundação de um sistema de ensino no País. Trata-se na verdade de um projeto com duas bases: defende a criação de uma Escola Imperial de Belas Artes e também de um Liceu das Artes — que só viria a existir décadas depois. Ele defende a necessidade de estimular, ao mesmo tempo, a ciência do desenho como base da arte e como técnica vital para a formação de uma mão de obra capacitada.
Questões semelhantes perpassam os textos subsequentes. Os escritos de Ruy Barbosa e Lucio Costa, relacionados com projetos de reforma educacional iniciados nos anos 1880 e 1930, respectivamente, também enfatizam a necessidade de incorporar a arte e a ferramenta da ilustração, do esboço, do projeto no ensino dos jovens, habilitando-os não apenas à técnica, mas a uma sensibilidade formal, desenvolvendo uma qualidade estética cuja germinação é necessária para o progresso não só econômico, mas também cultural do país, que ansiava por uma acelerada atualização e modernização nacional.Mario de Andrade, Vilanova Artigas e Flávio Motta, os autores dos ensaios subsequentes, adotam pontos de vista diferenciados e complementares. O que fascina Mubarac no ensaio de Andrade sobre Lasar Segall é seu tom poético, sua ousadia na tentativa de esmiuçar a relação entre obra visual e escritura. “Se para Lucio Costa, rabisco não é desenho, para Mario de Andrade é”, exemplifica o artista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que há muito tempo garimpa textos e reflexões sobre o tema. “Não sou um teórico, sou um desenhista que gosta de estudar”, brinca.
O apreço à diversidade, à importância de se considerar as diferentes formas de pensar/fazer/traçar imagens dá a tônica ao ensaio de conclusão, de sua autoria, que tem como ponto de partida o esforço de síntese para uma aula sobre o desenho, proferida em 2017 na Escola da Cidade. No caso deste texto de encerramento, a seleção de trabalhos gráficos com os quais se relaciona é ainda mais ampla. Contempla ensaios visuais de oito artistas contemporâneos, com os quais o artista e professor vem mantendo há décadas uma troca intensa sobre o fazer gráfico. São eles Alberto Martins, Elisa Bracher, Ester Grinspum, José Spaniol, Madalena Hashimoto, Marco Buti, Paulo Monteiro e Paulo Pasta. A diversidade e complementariedade entre eles só faz reforçar a ideia expressa pelo autor, relativa à complexidade, centralidade e diversidade do tema, que não pode nem deve ser reduzido a um único ponto de vista, nem tampouco considerada como algo em decadência, vítima inexorável das profundas transformações na nossa cultura visual.
Apesar de diagnosticar que na segunda metade do século 20 houve um descenso da produção teórica sobre o desenho (a tarefa de reunir reflexões sobre a questão não revelou-se fácil), o século 21 aparece, segundo ele, com uma visão renovada. “Quando olho para os cursos e discursos da arte, arquitetura e design, vejo que o desenho continua firme e forte, como práxis e como reflexão”, conclui.
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas