Rosana Paulino, Série Tecelã 4. Foto: Cortesia artista.
No dia 16 de abril foi aberta a 12ª edição da Bienal do Mercosul. Em pleno isolamento por causa da pandemia, a mostra não pôde abrir literalmente as portas para o público, mas resolveu respeitar o calendário previsto e adaptar a exposição para o mundo virtual. Essa iniciativa, ao mesmo tempo corajosa e arriscada, de certa forma virou a exposição ao avesso. O que deveria ser um grande encontro, marcado pela presença física, palpável, de um conjunto amplo de obras – muitas delas construídas in loco, em Porto Alegre –, acabou tornando-se uma conversa mais sutil, conceitual. A noção de coro, que muitas vezes é vital para uma exposição, acabou cedendo lugar para uma série de cantos solo, o que exige mais tempo de escuta, mas não chegou a afetar as linhas gerais que vinham conduzindo a pesquisa.
Rosana Paulino, Série Tecelã 4. Foto: Cortesia artista.
Intitulada Feminino(s): visualidades, ações e afetos, a Bienal 12 – como tem sido chamada – se propõe a mostrar uma visão plural, incorporando investigações poéticas, sensíveis, combativas e com forte componente autobiográfico, sobre o lugar social da mulher no mundo contemporâneo. Com 69 participações provenientes de 24 países diferentes, a seleção é bastante diversa. Pode ser considerada como um desdobramento da mostra Mulheres Radicais, antológica pesquisa sobre a produção artística das mulheres latino-americanas entre as décadas de 1960 e 1980 e que teve como co-curadora a argentina Andrea Giunta, que agora responde pela curadoria da Bienal 12. Além de incluir artistas consagradas já presentes na mostra histórica – que passou pela Pinacoteca do Estado em 2018 – como Carmela Gross, Vera Chaves Barcellos e Liliana Porter, Feminino(s) lança um olhar atento para a produção mais recente, incorporando questões como a necessidade de superar o conceito binário de sexualidade, acolhendo uma série de trabalhos que questionam estereótipos, denunciam qualquer forma de violência e abrem espaço para resgates identitários e de gênero. E, como núcleo de força, traz um conjunto amplo de artistas negras contemporâneas de origens diversas, como África e Caribe, mas sobretudo do Brasil.
Fabiana Lopes, pesquisadora que há mais de seis anos acompanha essa produção e foi convidada para ser uma das curadoras assistentes da 12ª Bienal do Mercosul, realizou uma ampla seleção com mais de 20 artistas afrodescendentes, com idades, questões e poéticas bastante distintas, muitas delas ainda pouco conhecidas no circuito nacional e latino-americano. Mesmo diante da impossibilidade de constatar o que resultaria da articulação desses trabalhos num mesmo espaço (questão que, segundo Fabiana, foi central ao longo do processo de seleção), o exame atento das propostas e das obras descortina uma produção potente e promissora. Há uma força de conjunto, um forte peso de aspectos como memória, ancestralidade, descolonização e crítica ao racismo, bem como poéticas e questões próprias e particulares, como a trama criada por Aline Motta combinando suas experiências na Nigéria e no Vale do Paraíba; o uso da cor como expansão de sentido, proposta por Juliana dos Santos; ou o “Jardim da Abolição”, projeto de Musa Mattiuzzi que reuniria 111 vasos com plantas de poder da cultura afro-brasileira, como forma de reativação de conhecimentos.
Janaína Barros, “Psicanálise do cafuné catinga de mulata”. Foto: Divulgação.
São muitos os trabalhos que partem da ideia de trama, bordado, novelo, aspectos vinculados à feminilidade e também à necessidade de resgate e construção de uma identidade. Helô Sanvoy, um dos poucos homens presentes na seleção, registra sua mãe contando histórias enquanto lhe faz tranças. Em “Bombril”, Priscila Resende usa os próprios cabelos para dar brilho em utensílios de cozinha, numa ironia ácida contra o preconceito racial. E a sul-africana Lungiswa Gqunta recobre de tecidos metros e metros de arame farpado, encapando-os e neutralizando seu poder de ferir, num processo que tem muito de proteção e cura.
Em suma, mesclam-se na Bienal – que exige tempo e paciência paraser visitada virtualmente – um manancial de questões, que têm servido como fios condutores para o trabalho do setor educativo, sob a coordenação de Igor Simões. Se já tinha uma importância central na Bienal 12, o educativo acabou adquirindo um protagonismo ainda maior pelas circunstâncias de isolamento. Igor faz questão de ressaltar que o trabalho educativo é para o público em geral e não apenas para os professores, numa ação que se irradia pelos mais diferentes públicos e assumindo formas distintas, como propostas de intervenção e reflexão compartilhadas pelo site; organização de lives; o jornal virtual que reúne textos dos artistas e está disponível online. “Apostamos ainda na ideia de encontro”, diz ele.
Carmela Gross, “Rouge”. Foto: Divulgação
“Fizemos um esforço muito grande de criar ferramentas novas”, afirma Andrea Giunta. Segundo ela, essa decisão decorre do fato de que não temos nenhuma certeza do que irá acontecer. Há evidentemente um desejo de viabilizar alguma experiência concreta de exposição, seja com uma abertura tardia, seja por meio de encontros mais pontuais ou de itinerâncias. “Mas acho que o mundo da arte agora tem que ter uma responsabilidade com o presente. A normalidade não vai voltar tão cedo”, conclui. ✱
Søren Behncke, "Sorry No Image Available", 2012. Imagem que ilustra texto do curador Francesco Stocchi na série de correspondências do site da Bienal de São Paulo.
A 34ª edição da Bienal de São Paulo foi oficialmente adiada e deverá ocorrer entre os dias 4 de setembro e 5 de dezembro de 2021. A decisão, aprovada por unanimidade pelo conselho da instituição, é consequência direta da pandemia do novo coronavírus. Em março, a mostra já havia sido postergada por um mês, mas as incertezas em torno do retorno à rotina regular acabaram levando a um reescalonamento mais seguro. Segundo o presidente da Fundação, José Olympio da Veiga Pereira, seria necessário começar em breve os trabalhos de montagem da mostra, o que colocaria muitas pessoas em risco. Além disso, a enorme paralisia no turismo nacional e internacional desestimula a realização de um evento de tamanha dimensão.
Esse adiamento exigiu também a tomada de outras medidas de adaptação, como a alteração do calendário geral da mostra, que volta a ocorrer oficialmente em anos ímpares, como aconteceu desde sua inauguração até 1991, e o prolongamento do mandato da atual diretoria, que foi estendido até dezembro de 2021. Iniciativa semelhante já havia sido tomada em maio pela Bienal de Veneza.
O conceito norteador da Bienal, intitulada “Faz escuro, mas eu canto” permanece o mesmo. A mostra se estruturará em torno de algumas linhas temáticas que se entrelaçam, como as noções de resistência, circulação, opacidade e enclausuramento. Questões que, quando vistas a partir da nossa situação atual, adquirem novos e complementares significados que, segundo o curador Jacopo Crivelli Visconti, devem ser incorporados ao projeto da 34ª Bienal. “Existem aspectos que já estavam presentes nas obras, que apontavam nessas direções, mas que se tornaram mais evidentes agora”, explica ele. “Insistir no planejado seria um erro, temos que estar abertos”, acrescentou. Apesar de a lista definitiva de artistas estar praticamente pronta, ela só deverá ser divulgada em sua versão definitiva em março ou abril de 2021, dando aos curadores um tempo extra de reflexão e para possíveis alterações.
Infelizmente, não será possível realizar os eventos programados para acontecer ao longo do ano. De acordo com o calendário original seriam organizadas três exposições e três performances ao longo do ano, mas só foi possível concretizar a mostra de Ximena Garrido-Lecca, inaugurada em fevereiro, e a performance de Neo Muyanga. Para manter ativa a discussão em torno da mostra e o intercâmbio com um circuito amplo, a Bienal planeja fazer uso das ferramentas virtuais, continuar as publicações de correspondências curatoriais (que vem sendo divulgadas no site) e promover uma série de encontros online envolvendo artistas, estudiosos e curadores. “Nosso objetivo é trabalhar a exposição como se fosse um ensaio aberto, compartilhado com o público”, explica Visconti.
Também está programado o lançamento de uma publicação digital, uma espécie de livro de artista que congregará uma série de trabalhos comissionados. Outra proposta, a ser avaliada conforme a evolução do quadro epidêmico, é realizar ainda este ano uma pequena mostra coletiva, reabrindo o Pavilhão ao público, substituindo assim os eventos cancelados e fortalecendo uma das ambições do projeto: criar uma Bienal que se estenda no tempo e no espaço, permitindo ao público vivenciar uma mesma produção artística em diferentes contextos e momentos. Em relação à ampla rede de parcerias que a Bienal havia criado para a realização de cerca de 25 exposições paralelas ao evento principal, Visconti explica que os casos serão trabalhados individualmente, avaliando as circunstâncias de cada projeto individual.
Do ponto de vista orçamentário, José Olympio afirma que a pandemia afetou as contas da Bienal, mas não de maneira insuperável, pois a instituição conta com mais de 20 parceiros estáveis e vem ampliando sua rede de apoio. Segundo ele, o principal obstáculo, até agora, foi a impossibilidade de alugar o espaço do Pavilhão, que responde por parcela importante das receitas.
Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. Mestra em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo e pela Universidade de Salamanca. Tem graduação em história da arte também pela Universidade Federal de São Paulo.Interessa-se por questões relacionadas à decolonização da educação e das artes e pelo estudo das artes não ocidentais, em especial as africanas, afro-brasileiras e ameríndias.
Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e das mostras Cães sem Plumas (2014), A Queda do Céu (2015), Emergência (2017) e Quem não luta tá morto. Arte democracia utopia (2018). É autor dos livros Local/Global. Arte em Trânsito (2005), ArteBra Crítica (2010) e Contraditório. Arte, Globalização e Pertencimento (2017).
Naiara Tukano pertence ao povo Yepá Mahsã da região do Alto Rio Negro, Amazonas, Brasil. Mãe, advogada e ativista, desenvolve projetos que podem contribuir para o fortalecimento cultural e espiritual dos povos nativos. Trabalha como curadora do projeto Sawé junto com o Sesc. Nesta edição, contribui com a discussão sobre os monumentos e a memória.
Maria Hirszmané jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e no Caderno 2 d’O Estado de São Paulo.É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Para este número, escreveu sobre as bienais de São Paulo e do Mercosul e sobre as variadas iniciativas virtuais em tempos de pandemia.
Fabio Cypriano, crítico de arte e jornalista, é o atual coordenador do curso de Jornalismo da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da ARTE!BRASILEIROS. Para esta edição escreveu sobre a Bienal de Berlim, a Manifesta 13 e o debate sobre o que fazer com os monumentos em homenagem aos bandeirantes no Brasil.
Aline Motta, "Escravos de Jó", trabalho que ilustra a capa desta edição.
Esta edição é um documento dos 100 dias que atravessamos, até aqui, acompanhando as notícias da morte de mais de 60 mil brasileiros e mais de meio milhão de cidadãos vítimas de Covid-19 ao redor do mundo.
Como a sociedade e a arte, perplexas, conseguiram enfrentar esta enorme provação? Como a arte se pronunciou? Como sofreu e sofre junto?
No caso do Brasil, o negacionismo do governo e sua falta de uma política clara, homogênea e enérgica de saúde pública, transformou nosso dia a dia num duplo pandemônio. Não basta lutar contra o vírus, é preciso lutar também contra o autoritarismo e a ignorância.
Frente ao vírus, sua invisibilidade teve a capacidade de fazer visíveis a falta de cuidado de anos com as populações mais carentes. Onde não há saneamento o vírus se propaga com mais facilidade. Ficaram visíveis, escancaradas, mazelas seculares.
A violência do racismo; o ataque ao meio ambiente e aos povos indígenas, tão importantes na sua manutenção; a falta de auxílio na saúde; o lugar da mulher que, além de trabalhar, cuida da família. Politicamente, trouxe à tona grandes setores da sociedade totalmente descompromissados com o outro, com a empatia, com a solidariedade.
Nesse sentido, abriram-se novos caminhos de reflexão e denuncia. Nesta edição, artistas indígenas, negras, curadores e especialistas refletem sobre diversos movimentos que nestes meses irromperam contra a iconoclastia colonial que esteve aí desde sempre. Monumentos e esculturas e sua função histórica, são questionados.
Ao mesmo tempo, apareceram novas articulações de grupos independentes, buscando dar conta da falta de Estado. A organização de sistemas de doações. A ressignificação de tarefas, a organização de reuniões virtuais. A comunicação de cancelamentos e adiamentos, procurando privilegiar a saúde contra as aglomerações. Tudo isto exigiu esforços das instituições, empresas e profissionais que não estavam preparados tecnologicamente.
Da esq. para a dir., acima, a diretora editorial Patricia Rousseaux e o programador e editor web Coil Lopes; abaixo, o designer gráfico Enelito Cruz e os repórteres Miguel Groisman e Marcos Grinspum Ferraz
A maioria dos artigos, ensaios e reportagens desta edição conseguem fazer um balanço de como, nos diferentes setores da comunidade artística e cultural e, em vários setores da sociedade como um todo, há uma busca de redefinições de comportamentos. Gestores dos mais importantes museus falam aqui das suas preocupações, galeristas comentam o quanto o mercado da arte foi atingido e revelam novos caminhos para se reerguer.
Nas palavras do líder indígena Ailton Krenak, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, no seu último livro O amanhã não está à venda, “tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porquenão valeu de nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro”.
Maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret
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"Entradas e Bandeiras", de Luiz Gê. Foto: Reprodução
"Entradas e Bandeiras", de Luiz Gê. Foto: Reprodução
"Entradas e Bandeiras", de Luiz Gê. Foto: Reprodução
Em 1985, no primeiro número de Chiclete com Banana, Luiz Gê publicou a historieta “Entradas e Bandeiras”. Nela, um casal de paulistanos – Arnaldo e a esposa –, parado dentro de um carro no cruzamento da Brigadeiro Luiz Antonio com a Avenida Brasil, foi impedido de seguir porque um indígena se postou na frente dele. O índio, monstruosamente grande, bloqueava o cruzamento para que um estranho cortejo passasse: eram os demais integrantes do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (situado ali ao lado, no Parque Ibirapuera), caminhando pela avenida, em direção ao Morro do Jaraguá.
Instalados naquele local desde 1953, os integrantes do Monumento, por ordem e graça de Luiz Gê – e depois de vinte e dois anos –, se colocavam em movimento por uma cidade muito diferente daquela que viu o monumento ser erguido no Parque, num tempo e num espaço completamente distintos da São Paulo onde, supostamente, viveram aqueles que teriam servido de matriz para o grupo escultórico de Brecheret[1].
O que aconteceria com os integrantes do Monumento às Bandeiras durante aquela caminhada? Contarei no final deste texto. Antes, seria interessante chamar a atenção para um fato que poucos conhecem: até serem instalados na entrada do Parque Ibirapuera, os bandeirantes – ou os projetos de monumentos que deviam homenageá-los – mantiveram-se em movimento constante pela cidade.
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Desde o início do século passado, segmentos importantes da sociedade paulistana pensavam em homenagear os bandeirantes, entendidos como os pais da “pátria paulista”; por décadas tais projetos foram idealmente situados em locais os mais diversos da cidade, forçando os bandeirantes a migrarem de região a região, sempre a serviço dos projetos e projeções que os paulistanos da época faziam do seu próprio futuro e do seu próprio passado.
Ao que se sabe, a primeira ideia de um monumento que homenageasse os bandeirantes surgiu em 1912, em um artigo publicado em vários segmentos pelo engenheiro Adolfo Augusto Pinto, em O Estado de São Paulo[2]. Sua ideia era contribuir para as transformações pelas quais a cidade deveria passar para, dali a dez anos, sediar as comemorações do Centenário da Independência. No seu pensamento, aquela data não deveria ficar marcada em São Paulo apenas pelo Monumento à Independência que já povoava a mente de muitos paulistanos. Era preciso transformar a cidade como um todo, tendo em mente seu crescimento intenso e pensar em novas avenidas, novos parques, novos monumentos que dessem a ela a distinção de ser, ao lado de Buenos Aires e da Capital Federal, uma primorosa metrópole europeia em plena América do Sul. Das transformações que Pinto propunha para a melhoria de São Paulo, destaca-se a de um parque público, às margens do Tietê:
Enfim, um grande parque destinado a ser frequentado pela massa popular de uma grande cidade e em termos de ser ao mesmo tempo o “rendez-vous” da sociedade elegante, não pode deixar de ser situado nas proximidades do centro urbano, de recomendar-se pela beleza da avenida de acesso, assim como pela facilidade e barateza dos meios de transporte ao seu serviço.
Para o acesso ao Parque, a Avenida Tiradentes deveria ir até o rio, e seria justamente na grande avenida que surgiria o monumento em homenagem aos bandeirantes:
A Avenida Tiradentes, estendendo-se então desde a estrada inglesa até as barrancas do Tietê, já seria por si um belo boulevard e elegante via pública, muito teria a ganhar sob o ponto de vista decorativo se, no ponto de deflexão de sua primeira grande reta, fosse interrompida a dupla arborização para aí abrir-se um claro circular, a semelhança do around point da Avenida dos Campos Elíseos, em Paris, destinado a ser embelezado por uma suntuosa obra de arte, a qual não poderia ser senão o monumento aos Bandeirantes.
Para Adolfo Pinto, São Paulo devia essa homenagem aos “legendários mamelucos” porque teria sido dali – “palmilhando o chão dessa mesma avenida Tiradentes” – que eles haviam conquistado o interior do país. E continuava:
Em sua grande espiritualidade histórica, o monumento aos Bandeirantes, representará o traço de união da velha alma paulista, em seus primeiros lances de arrojada iniciativa e rude intrepidez, com o culto espírito de energia, ação e progresso das gerações sobrevindas (…)[3]
Como se sabe, durante os anos 1910 e 1920, Adolfo Pinto se notabilizará por suas contribuições para transformar São Paulo em uma metrópole repleta de símbolos que a colocassem como portadora de um passado enobrecido pelo heroísmo de seus pioneiros, uma metrópole por eles plasmada na América do Sul sob a égide do catolicismo, e repleta de símbolos dessas suas singularidades[4].
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Em 1920, causa alvoroço no pequeno universo de intelectuais e artistas modernistas que então se formava em São Paulo, a maquete para o Monumento às Bandeiras que o então jovem escultor Victor Brecheret apresentava ao público e aos governantes. Onde seria instalado esse monumento? Em qual lugar de São Paulo? Até hoje não se sabe ao certo[5]. Mais do que uma “mera” conclusão estética de alguma equação urbanística, o Monumento às Bandeiras era uma tomada de posição “nacionalista”, contrária à ideia de que a comunidade portuguesa local presenteasse São Paulo com um monumento em homenagem aos bandeirantes, produzido pelo escultor lusitano Teixeira Lopes.
Maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret. Foto: Reprodução
Para os modernistas soava como uma afronta os portugueses pensarem que a “epopeia” bandeirante pudesse ser pensada como sendo lusitana, e não paulista. Menotti Del Picchia, se opondo à doação portuguesa, mostra a guerra entre narrativas então existente entre os grupos (ou povos, ou “raças”) que deviam merecer o reconhecimento como protagonistas na construção do país:
Os filhos do Brasil eram tão brasileiros na colônia lusitana, como o são hoje na República. Não há, pois, ilusões: O Brasil foi feito pelos brasileiros. A admitir-se a tese portuguesa […] “As Bandeiras” eram proezas dos lusitanos, o que S. Paulo conseguiu com o fruto do esforço dos filhos da Itália é italiano… Isso é monstruosamente absurdo. O nosso nativismo repele esse enxerto de nacionalidades estranhas dentro da nossa pátria. Posta a tese neste pé, estabelecidos os marcos do que pertence, no nosso passado, a cada povo, evitando que os últimos caciques vivos na selva reivindiquem ao Brasil dos brasileiros os trabalhos dos índios de João de Barros, Duarte Coelho Pereira, Pereira Coutinho, Jorge Correa, Pedro Tourinho, Pero Góes, Mem de Sá e outros donatários e governadores; que os negros da Costa da África nos peçam conta do esforço do braço escravo – direitos nesse caso. Iguais aos dos lusitanos – não me resta mais que ver nas “Bandeiras” a epopeia máxima dos paulistas, únicos fixadores do arcabouço da nossa pátria[6]
Nessa visão, como se percebe, somente os paulistas (brancos, é de se supor) entrariam na composição das bandeiras. Tal posição, por sua vez, esclarece algumas das características encontradas na maquete do Monumento de 1920. Tendo sido del Picchia quem instruíra o escultor sobre a história dos bandeirantes[7], entende-se perfeitamente a razão para que, no núcleo principal da composição, só tivessem sido representados os paulistas (brancos). Na maquete não existia a representação de negros e, os indígenas, bem, os indígenas estavam relegados a duas figuras laterais, símbolos das insídias que espreitavam os bandeirantes nos sertões.[8]
Nos textos de época publicados, não foi encontrada nenhuma notícia sobre o local em que esse monumento deveria ser localizado. Naquele momento, acredito, não se fazia premente justificativas de cunho urbanístico. Mais do que qualquer racionalidade, cabia apenas reivindicar a precessão dos paulistas na narrativa sobre o bandeirismo. Para comprovar que o debate era mais ideológico do que prático é importante lembrar que também não se noticiava onde os membros da colônia portuguesa visavam situar o monumento que gostariam de doar para a cidade.
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Teixeira Lopes chegou a produzir uma maquete do seu monumento? Não se tem notícia a respeito [9]. Já a maquete de Brecheret foi doada para a Pinacoteca de São Paulo, após sua exposição, uma vez que as autoridades paulistas não se interessaram em levar adiante a produção do Monumento[10]. E por que isso teria ocorrido?
Os modernistas pouco esclareceram sobre essa falta de interesse, sendo que del Picchia lamentou a “falta de bandeirantes modernos” que pudessem bancar a edificação do grupo escultórico[11].
A historiografia modernista, por sua vez, será discreta ao se referir ao fato de que as autoridades paulistas não se interessaram pelo monumento proposto por Brecheret porque já haviam se comprometido com o projeto de outro artista italiano residente em São Paulo – Nicola Rollo. O monumento concebido por Rollo – Heroísmo dos Bandeirantes –, possuía um local determinado para ser instalado: o primeiro lance das escadarias sobre a bacia d’água afrontando os jardins do Museu Paulista[12].
Segundo a estudiosa Maria Cecilia M. Kunigk, o monumento era dividido em três partes distintas, mas complementares, formando uma unidade indivisa:
Representando os “Heróis” na parte central do monumento, estaria uma figura feminina austera e mítica, sobressaindo-se da proa de uma barca sobre um pedestal elevado […] os “Conquistadores”, do lado esquerdo do monumento, representando os primeiros homens a descravar novas terras, englobariam símbolos dos colonizadores impetuosos; e, por fim, do lado direito, os “Fecundadores”, simbolizando a tomada da terra, o trabalho do solo, a agricultura, representando a etapa final da conquista […][13]
Esse projeto de Rollo faria parte de um complexo viário monumental, ligando o Museu Paulista ao centro da cidade por meio de uma grande avenida, decorada com parques em “estilo inglês” e monumentos que louvassem a importância de São Paulo dentro da história do Brasil. O Heroísmo dos Bandeirantes deveria ficar no sopé do Museu, entre esse e o Monumento à Independência, de autoria de Ettore Ximenez – cuja construção seria iniciada no ano seguinte[14]. Mais para frente, na intersecção entre essa avenida monumental e a Avenida do Estado, deveria ser levantado ainda um “obelisco alegórico” à República[15]. A mensagem dos paulistas não poderia ser mais clara: São Paulo, tendo por base a herança bandeirista, tornara possível não apenas a independência do país, como também a própria República.
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Segundo Konigk, Rollo teria iniciado seu trabalho, levantando o monumento em argila, em tamanho definitivo, em seu estúdio no Palácio das Indústrias. Porém:
Para sua edificação, seria necessário, contudo, a conclusão da reurbanização do parque que formaria os jardins do Museu, fazendo com que o artista dependesse de terceiros para dar prosseguimento a seu trabalho[…] o artista precisou aguardar a finalização das obras do jardim para ter a aprovação definitiva de sua obra, o que ocorreria somente por volta de abril de 1924 […].[16]
Mas 1924 também foi o ano da Revolução comandada pelo General Isidoro Dias Lopes, visando depor o presidente Artur Bernardes. O Palácio das Indústrias foi tomado pelos rebeldes e Rollo, impedido de continuar o trabalho com a maquete definitiva. Ressecada, em breve a maquete se deteriorou por completo.
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Projeto: Ponte Grande, 1930, de Prestes Maia. Foto: Reprodução.
Especula-se que o projeto de Rollo, Heroísmo dos Bandeirantes, teria ainda uma sobrevida: em um estudo de 1930, ao menos parte dele seria usada no projeto que Francisco Prestes Maia propunha para sua monumental Ponte Grande (atual Ponte das Bandeiras), uma memorial bridge que deveria ligar a cidade ao outro lado do rio Tietê.
Prestes Maia pensava construí-la em dois grandes arcos, que se encontrariam no centro do Tietê, (alargado naquela região), numa pequena ilha artificial. Por sua vez, essa ilha abrigaria um monumento em homenagem aos bandeirantes. É preciso que se diga que, em nenhuma parte do texto, como será visto, Prestes Maia cita o monumento de Rollo como sendo a matriz de onde ele retiraria a decoração principal para a sua Ponte Grande.
Seria importante sublinhar a razão para o arquiteto desejar homenagear os bandeirantes com aquela ponte/monumento:
Os acontecimentos memorados pela Ponte Grande são as “bandeiras”. Já um monumento aos bandeirantes fora iniciado pelo Governo no Parque Ipiranga e outro projetado pela Prefeitura à margem do Tietê. Agora imaginamo-lo não à margem, em situação secundária, mas no centro mesmo do rio, como uma grande proa a emergir das águas, voltada para a jusante, justamente na direção do sertão, que o paulista devassou e que é ainda, dentro do Estado, a “terra prometida”.[17]
Note-se que, no texto, Prestes Maia não cita explicitamente o projeto de Nicola Rollo, mas alude, tanto ao monumento que se pensou fazer no “Parque Ipiranga”, quanto o outro, “à margem do Tietê”[18]. Embora ele faça referência a “uma grande proa a emergir das águas” – um elemento que igualmente constava no estudo de Rollo – também na sequência da descrição sobre a ponte projetada, ele não citará o monumento concebido por escultor italiano:
O projeto acha-se concebido em estilo moderno. Os pilones e o monumento principal reduzem-se a uma casca de pedra ou granilito […] sobre esqueleto de cimento armado. Tudo liso e simples, o que fará valer as esculturas. Mas não a nudez ou a estéril abstenção decorativa do pseudo racionalismo. Como diz o professor de Viena, “nem todo o necessário é bonito, nem todo o supérfluo é feio”. O grupo central inferior compõe-se de grandes figuras simples, ligeiramente rígidas e geométricas, – ao gosto da época e da arquitetura circundante. Ainda mais que os outros grupos o seu valor será sobretudo de massas e de silhueta. Esta explicação responde de antemão a diversas objeções. Trata-se dum monumento destinado a produzir essencialmente efeitos de massa e não a exibir estatuária delicada. O grupo inferior representa uma “bandeira”; os que encimam os pilones figuram episódios e lendas referentes à época; o grupo de coroamento é puramente simbólico. A representação realística, aliás perigosa na arte monumental é no caso secundária, dado o caráter da obra. A decoração reduz-se quase exclusivamente a dois motivos: aos escudos das cidades ribeirinhas (São Paulo, Mogi, Tietê etc.) e a anhuma estilizada. Sabe-se realmente que este curso d’água era o Tieté-Anhembi, o “rio grande das anhumas”.[19]
Comparando essa concepção com a descrição que Maria Cecilia M. Kunigk fez do Heroísmo dos Bandeirantes (citada acima), parece evidente existir pontos de contato evidentes entre a ideia de Maia e o projeto de Rollo.
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Da Avenida Tiradentes ao Parque do Museu; da Praça da Sé ao meio do Rio Tietê, como sabemos, os bandeirantes acabaram parando no início do Parque do Ibirapuera, por meio do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, não gratuitamente nas bases da Avenida Brasil, voltados para o Jaraguá.
Embora o projeto original de Brecheret seja de 1920, até o início da implantação do Monumento, em 1936, ele passou por uma série de transformações, sublinhando as mudanças que ocorriam na poética do artista, e que se manifestavam em desenhos, projetos para outros monumentos etc.[20]. Mas não apenas.
Mesmo que se leve em conta o rigor formal desse que, sem dúvida, é o monumento escultórico esteticamente melhor concebido da cidade, o Monumento às Bandeiras aponta para uma proposta de conciliação das elites paulistas para com o restante da população. Quem domina o Monumento são os dois homens a cavalo – o branco “superior” e o mameluco, seu descendente “direto” –, mas, se no projeto original os negros estavam fora da proposta e os indígenas simbolizados como as mazelas da selva, nessa nova versão eles configuram o “povo”, a nação e suas distintas etnias comandadas pelos brancos e seus apaniguados. É que os paulistas haviam perdido a Revolução de 1932 e, assim, deviam ir com calma em sua reinserção no plano simbólico e real do Brasil.
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"Entradas e Bandeiras", de Luiz Gê. Foto: Reprodução
"Entradas e Bandeiras", de Luiz Gê. Foto: Reprodução
"Entradas e Bandeiras", de Luiz Gê. Foto: Reprodução
Retomo agora “Entradas e Bandeiras”, de Luiz Gê, de 1985, ano de início da abertura política, quando o país começa a sair das agruras do regime civil-militar, instituído em 1964.
Assim que passa o cortejo pelos olhos atônitos do casal, Arnaldo resolve finalmente seguir viagem. Mas, surpresa: eis que Borba Gato aparece correndo, vindo de Santo Amaro, em busca dos amigos do Monumento. Atrasado, o bandeirante deselegante, concebido por Júlio Guerra, destrói o carro, Arnaldo e sua esposa.
“Entradas e Bandeiras” pode ser lida apenas como uma divertida história em quadrinhos ou, então, como uma forte alegoria do Brasil e dos brasileiros, que ressurgiam após aquele período obscuro. Corriam os bandeirantes para a luz no fim do túnel ou ali haveria um alçapão?[21]
[1] – “Entradas e bandeiras”, de Luiz Gê. Chiclete com banana. N.1, 1985.
[2] – O artigo de Adolfo A. Pinto, “A transformação e o embelezamento de São Paulo”, foi publicado em O Estado de São Paulo, entre 12 e 24 de novembro de 1912.
[3] – “A transformação e o embelezamento de São Paulo III”. O Estado de São Paulo. 14 de novembro de 1923, p. 3.
[4] – Para um apanhado geral sobre as intervenções de Adolfo A. Pinto, consultar, do autor: “O engenheiro e o monumento”. ARTE!brasileiros, 18 de dezembro de 2019 e “O pantheon do imortais de São Paulo: Delírio Tropical no Pátio do Colégio”. ARTE!brasileiros, 24 de junho de 2020.
[5] – Marta Rossetti Batista, citando um manuscrito de Mário de Andrade, afirmou que o poeta “aventara a hipótese de vê-lo erguido na Praça da Sé”. (In BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 pag. 53). Ao que se sabe, esta é a única referência à possível localização do Monumento, em 1920.
[6] – “Dois Monumentos. Os paulistas e os portugueses renderão uma homenagem a S. Paulo”, Menotti del Picchia. A Gazeta. São Paulo, 28 de junho 1920. In BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 pag. 25.
[7] – Em texto de 1969, Menotti del Picchia reafirma seu papel como mentor de Brecheret para questões relativas à história dos bandeirantes, em 1920: “Formado artisticamente na Europa, para onde seguira muito moço, ignorava muito da nossa terra e quase tudo da nossa história. Foi com surpresa e entusiasmo que conheceu por mim, a grandiosidade da epopeia bandeirante”. E vai mais longe: “Foi talvez a impressão plástica desse relato que lhe sugeriu então a linha ascensional e processional do grupo mateiro. É ela a espinha dorsal do majestoso monumento”. “História de um Monumento (1)” Menotti del Picchia. Diário de São Paulo, 26 de junho de 1969. Republicado em: PELLEGRINI, Sandra B. Brecheret 60 anos de notícia. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, s.d.
[8] – Ver “Memorial descritivo da maquete do Monumento das Bandeiras”. Papel e tinta. SP e RJ, jul. 1920. (In Marta R. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985 pag.29). Conforme será visto, essa característica não permanecerá no projeto definitivo do Monumento posteriormente erigido na entrada do Parque Ibirapuera.
[9] – Até o momento não se possui nenhum dado sobre o projeto para o monumento, de autoria de Teixeira Lopes. Teme-se, inclusive, que tal projeto – ou esboço – nem mesmo exista. Em todo caso, estamos entrando em contato com colegas portugueses para ver se encontramos algo, ou algum documento, em Portugal.
[10] – A maquete do Monumento, concebida em 1920 e doada à Pinacoteca foi destruída acidentalmente em queda ocorrida nas dependências do Museu nos anos 1940.
[11] – “Crônica Social – Eva”. Correio paulistano. 15 de abril de 1021. Republicado em: PELLEGRINI, Sandra B. Brecheret 60 anos de notícia. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, s.d. p.31.
[12] – KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado; Departamentos de Artes Plásticas ECA USP, 2001. P. 114.
[14] – MONTEIRO, Michelli Cristine Scapol. São Paulo na disputa pelo passado: o Monumento à Independência de Ettore Ximenes. São Paulo. Tese de Doutoramento. FAU-USP, 2017, pág. 327.
[15] – “Avenida da Independência – A inauguração dos trabalhos de construção da grande via urbana”. Correio Paulistano. 6 de julho de 1919. Pág. 1.
[16] – KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado; Departamentos de Artes Plásticas ECA USP, 2001. P. 116.
[17] – MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930, p. 351.
[18] – Essa segunda alusão se refere à ideia de Adolfo, A Pinto de construir um monumento em homenagem aos bandeirantes nas imediações do Tietê? Algo a ser pesquisado.
[19] – MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930, p. pág, 355 e 356.
[20] – Sobre o assunto, ler, entre outros: “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós”. Tadeu Chiarelli. In CHIARELLI, Tadeu. (cur.). Metrópole: experiência paulistana. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017. Pág. 11 e segs.
[21] – Para uma outra interpretação de “Entradas e Bandeiras”, de Luiz Gê, consultar “O Monumento às Bandeiras como Processo: do presente ao passado”, de Thiago Gil de Oliveira Virava e Domingos Tadeu Chiarelli ,in https://revistaquiroga.andaluciayamerica.com/index.php/quiroga/article/view/340/244
Virgínia de Medeiros, still de "Trem em transe", 2019. A obra será mostrada na Bienal de Berlim. Cortesia da artista.
A13ª Manifesta e a 11ª Bienal de Berlim serão abertas em agosto e setembro, respectivamente, apenas alguns meses após a Europa atravessar períodos de quarentena de forma radical, bem diferente do relativismo tropical-suicida brasileiro. Se há algo que caracteriza bienais é servir como um termômetro do presente. Então, a pergunta inevitável é como se torna possível seguir com as mostras concebidas antes desse momento tão dramático, marcado pelo colapso da saúde por um lado, e demanifestações antirracistas decorrentes do assassinato de George Floyd por outro.
O que parece claro em ambas é que as duas bienais já partiam de questões que, se não previam um vírus como o que se alastrou pelo planeta, já apontavam para um quadro um tanto catastrófico. “Para nós, a pandemia deixa claro que os temas da 11ª Bienal de Berlim, como o combate ao fanatismo e ao extrativismo, a vulnerabilidade de indivíduos que vivem em campos ou situação de confinamento, a existência de corpos sexodissidentes, adquirem uma urgência maior”, afirmam as curadoras – o coletivo se autodefine na voz feminina – da mostra, María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio, em uma mensagem coletiva, por e-mail.
Carlos Pertuis, Sem Título, 1950. Óleo sobre papel, 36 x 54 cm. Foto: Cortesia Museu de Imagens do Inconsciente.
Segundo elas, “contra essa distopia, evidenciamos práticas artísticas que valorizam a reivindicação territorial, iniciativas de solidariedade como o eco e o hidrofeminismo, ou mesmo forças que se afirmam como autocurativas. Com a Covid-19, os países fecharam suas fronteiras, e todo o problema da mobilidade política ficou invisibilizado”.
Berlim, programada agora para ser aberta em 5 de setembro, foi concebida por um grupo de curadoras com pulsação latino-americana – Pérez Rubio, único europeu, encerrou em 2018 período de quatro anos à frente do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). A bienal já se apoiava no pensamento dissidente de pensadoras como Nise da Silveira (1905-1999). Com seu trabalho precursor no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em proporcionar aos pacientes vivências em ateliês de pintura, ela foi também criadora do Museu de Imagens do Inconsciente. Obras criadas por dois pacientes foram selecionadas para irem a Berlim.
“O termômetro para entender o presente não difere tanto do diagnóstico da doutora Nise da Silveira, isto é, de que a humanidade carece de calor humano e de que ‘somos todos responsáveis’”, lembram as curadoras de Berlim.
Adelina Gomes, Sem Título. Óleo sobre tela, 1962, 64 x 53 cm, Museu de Imagens do Inconsciente. Cortesia do Museu.
O interesse pela produção artística de pacientes de institutos psiquiátricos encontra ressonância na figura do artista Flávio de Carvalho (1899-1973). Ele foi o criador do Clube dos Artistas Modernos (CAM), onde organizou, em 1933, o evento “Mês das Crianças e dos Loucos”, com o psiquiatra Osório Cesar, que também trabalhava arte com os internos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri.
Por sua vez, o CAM é outra inspiração para a própria escala desta edição da Bienal de Berlim, sem anseios espetaculares, mas de forte enraizamento na periferia da capital alemã, já que a sede das primeiras atividades da mostra é no local onde eram fabricadas impressoras Rotaprint, no bairro operário de Wedding. Foi lá que a artista brasileira Virginia de Medeiros participou da exp. 2 com o coletivo Feministische Gesundheitsrecherchegruppe, um grupo feminista de pesquisa em saúde, entre novembro do ano passado e fevereiro deste ano.
Segundo as curadoras, a 11ª Bienal de Berlim foi “concebida de forma porosa e processual; o espaço experimental que abrimos ao público no ano passado em ExRotaprint nos permitiu apresentar as ideias que estavam esboçadas no projeto e ensaiar publicamente uma relação com a audiência local”. E resumem: “Não trabalhamos com uma moldura que veio pronta para ser simplesmente aplicada aqui; é sempre difícil trazer um contexto sem cair no exotismo e foi preciso calibrar muita coisa em termos discursivos.”
Além do ExRotaprint, a última “experiência da Bienal de Berlim, chamada de epílogo, vai ocorrer em outros três espaços: o Kunst-Werke (KW), sede original da mostra, o segundo andar do Gropius Bau, imenso espaço expositivo construído no século 19, perto da totalmente renovada Potsdamerplatz, e a galeria daad, no bairro de Kreuzberg, uma região de imigração turca.
“Paradise”, da artista francesa Martine Derain, que participa da Manifesta 13. Foto: Divulgação.
Grand Puzzle
A atenção à cultura local, à cidade onde a mostra se realiza tem sido uma marca e uma qualidade muito particulares da Manifesta, a bienal nômade que a cada edição acontece em uma cidade europeia.Em 2020, a escolhida foi a cidade de Marselha – já está definido em que 2022 a Manifesta será em Pristina, no Kosovo – e a abertura agendada para o próximo 28 de agosto.
“Nosso público é composto por 75% dos visitantes regionais e agora, ainda mais do que antes, precisaremos transformar a bienal em uma plataforma de mudança social e cultural focada localmente, que possa ajudar a fortalecer as infraestruturas já existentes e tornar-se mais proeminente ajustada em direção ao que as comunidades precisam”, explica a holandesa Hedwig Fijen, diretora da Manifesta.
De fato, nas últimas edições, e especialmente a mais recente, em Palermo, a mostra focou bastante na cidade e agora, em Marselha, a diretora aponta que a tendência já tinha esse sentido: “A Manifesta 13 já estava bastante alinhada com algumas das demandas que agora enfrentamos, de avançar deliberadamente em direção ao local e em direção ao verdadeiro engajamento com a comunidade”.
Com um time de curadores internacionais, composto por Alya Sebti (galeria ifa, de Berlim), Katerina Chuchalina (Fundação V-A-C, de Moscou) e Stefan Kalmár (ICA, de Londres), uma das ferramentas para uma reflexão sobre a cidade é o Grand Puzzle, uma pesquisa urbana da MVRDV (de Winy Maas). “Trata-se de um estudo interdisciplinar que analisou Marselha e reuniu uma quantidade incrível de dados que serviu como uma ferramenta para contextualização, análise e inspiração a partir da qual os participantes da Manifesta 13 foram incentivados a se engajar no desenvolvimento de intervenções criativas que se envolvem com a cidade”, explica Fijen.
O Musée Grobet-Labadié, palácio do século 19 e um dos espaços que vai sediar a Manifesta 13 em Marselha. Foto: Divulgação.
Em Palermo, na edição passada, esse estudo foi realizado pelo escritório de arquitetura de Rem Koolhas, um excelente guia sobre a cidade italiana.
Tendo em vista as novas condições impostas pela pandemia, os locais que sediarão a exposição principal não abrirão mais todos juntos, com horários alternados para evitar multidões e sem a semana de abertura para convidados. “Em vez disso, o programa de lançamento será espalhado em um período de três meses, dividido em eventos ainda menores, como um festival”, conta.
A mostra, intitulada Traits d’union.s (tratados de uniões), irá ocorrer em seis espaços da cidade, nenhum deles com histórico em arte contemporânea, exceção do Museu de Belas Artes. Assim, a Manifesta segue produzindo intervenções que favorecem diálogos com a história local, ao colocar a produção atual em espaços inusitados como o Musée Grobet-Labadié, um palácio do século 19.
Com 47 participantes, entre eles muitos ligados à literatura, como Georges Bataille e Roland Barthes, a presença brasileira nesta edição vem com Benjamin de Burca & Bárbara Wagner.
Voltada ao local e com engajamento da comunidade, a Manifesta se revela uma referência importante quando o mundo da arte dá uma parada e precisa se reinventar para além do incansável circuito vip, dos eventos caros e desnecessários. ✱
Obras de arte traduzidas nos mais diversos suportes e técnicas, evidenciando artistas que se destacaram na cena paulistana e brasileira em diferentes períodos. Preservar e difundir esse acervo corresponde a um dos múltiplos compromissos da instituição com a democratização do acesso à cultura e se concretiza pelo estímulo à sensibilidade e à aprendizagem através do olhar.
No vídeo abaixo faça um passeio conosco pelas unidades e conheça algumas das importantes obras que estão dispostas por elas. Essas obras compõem esse conjunto notável que faz parte desse valioso trabalho de conservação e difusão da arte realizado pelo SESC São Paulo.
Com o circuito de arte fechado ao público por conta da Covid-19, o espaço expositivo deu lugar a lives e outras propostas que fervilham na internet. Mostrar agora é pensar o presente e o futuro, trocar ideias, conhecimento, conteúdo. Esse caminho trilhado por Lost In Translation, a primeira exposição virtual da galeria A Gentil Carioca, é fluído, utópico, com liberdade de indagação total.
Rodrigo Torres, "Colar das Horas". Foto: Divulgação.
Jarbas Lopes, "Cicloviaérea". Foto: Divulgação.
João Modé, "Extensores". Foto: Divulgação.
Marcio Botner, artista e um dos proprietários da galeria, quer entender o momento e aliar-se, conceitualmente, aos artistas, intelectuais, galeristas para encarar essa travessia. A mostra pode ser entendida como algo que ainda deve acontecer, como o projeto Desejo, de Laura Lima, que está em sua cabeça, meio em suspensão, como ela diz. “Se conseguir fazer, será um trabalho com pessoas. Quando penso neste projeto, lembro de Dennis Oppenheim desenhando sobre a parede e seu filho fazendo simultaneamente o mesmo desenho nas suas costas.”A era espacial marcou profundamente o imaginário artístico, não só no cinema. Desejo inclui um astronauta flutuando sem gravidade, com o corpo enviesado quando visto da terra, como nas imagens da Nasa, com o tripulante fora da espaçonave. Laura quer se conectar com o espaço sideral e promover a observação de seus desenhos, feitos na web, a partir da terra.
Sopro e meditação se entrelaçam na obra de Maria Laet, uma artista que trabalha o silêncio como medida de seu tempo. A coletiva destaca uma instalação sonora imersiva, além do filme/obra A Medida da voz, que pensa o espaço e o tempo da voz. Com personalidade tranquila, ela constrói uma dinâmica físico psíquica de movimento e imobilidade, próxima aos modelos da cultura oriental. Oito vozes reverberam de dentro para fora de oito vasos de barro – dispostos em círculo e enterrados até a superfície -, criando sons contínuos e monitorando a respiração. Maria Laet faz poesia sem texto.
A questão relevante do videoclipe rap Ladainha do Morto, de Cabelo, são os fragmentos de ideias que formam um arquivo sociológico vivo de um Brasil desigual, racista e indiferente. Este é um dos melhores trabalhos de Cabelo que musica, grava e interpreta um poema de Gerardo Mello Mourão, pai do artista Tunga, criado para o projeto Luz com Treva, com disco, show e exposição.
Numa perspectiva poética, a performance Caminhada Silenciosa em Veneza, de Vivian Caccuri, explora várias formas de percepção de uma cidade. Vinte pessoas que não se conhecem, caminham juntas em silêncio, por oito horas. Tal operação, sem conversas, provoca mudanças na percepção dos participantes sobre o território onde circulam. O silêncio deles filtra o som do entorno, mesclado por um arranjo de vozes e ruídos diversos. O projeto já foi apresentado no Rio de Janeiro e essa troca de topografia agregou a ele novos territórios simbólicos e imagéticos.
Proximidade e afeto circundam o universo de Maxwell Alexandre, que tambémé levado às outras margens pelo cotidiano desafiante do lugar onde vive e trabalha. Ele tem ateliê na comunidade da Rocinha, frequentado por amigos, críticos e diretores de museus. Conhecido por suas pinturas de grandes formatos, coloridas e matéricas, em Lost in Translation ele propõe uma instalação limpa, com poucos objetos, contaminada por elementos constantes na paisagem familiar. Uma piscina de lona plástica azul Capri, muito vista nas lajes das casas da comunidade, e vários espelhos modelo Romeo. A instalação é interativa, com a participação do público que é convidado a ficar descalço e a caminhar pelas águas desse projeto de tom mítico, com narrativa construída a partir da experimentação do artista.
Ideias possíveis giram em torno do projeto de Rodrigo Torres que sutura o tempo, estendido pelo isolamento, com uma produção manufaturada e terapêutica que mescla reflexão, religião e arte. Colar das Horas é uma espécie de terço ou cordão de meditação que se reporta também ao passado do artista, quando era religioso e via na oração um momento de introspecção. Cada conta é feita com argila e papel para enrolar maconha, com tamanho natural de um colar comum. ”Setransformado em instalação terá cerca de 30 metros de altura, adaptáveis ao espaço da galeria.”
Urbanismo, território e transformação espacial seguem na pauta de Jarbas Lopes. Seu projetoOTrecho Inaugural MAM, Rio Janeiro é uma versão evolutiva da proposta original de 2001, Cicloviaérea, “ciclovias elevadas do chão” e confirma a arte como agente para repensar cidades. Proposta diferente das ciclovias que cortam as cidades por todo o mundo, Cicloviaérea propõe o uso lúdico da bicicleta, em pista suspensa, tornando-se mais que um transporte, um prazeroso momento de lazer.
O conceito de inclusão da arte na cidade é bem mais amplo do que se imagina. João Modé escolheu o centrão do Rio de Janeiro para intervir com o projeto Extensores, que envolve cincolongas cordas que se conectam sobre a claraboia d’A Gentil Carioca e são amarradas a alguns prédios vizinhos, próximos ao mercado a céu aberto Saara. O trabalho do artista é constituído por materiais que possam se infiltrar pela cidade e provocar a percepção das pessoas para situações que não se revelam no tecido urbano.
A opção de mostra virtual veio para ficar e Márcio Botner comenta que a iniciativa teve resposta positiva não só dos artistas, mas também de críticos e intelectuais. Com início o site da galeria em manutenção, as viewing rooms estão disponíveis neste link.
Foto: Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo
A 34ª edição da Bienal de São Paulo foi oficialmente adiada e deverá ocorrer entre os dias 4 de setembro e 5 de dezembro de 2021. A decisão, aprovada por unanimidade pelo conselho da instituição, é consequência direta da pandemia de coronavírus. Em março, a mostra já havia sido postergada por um mês, mas as incertezas em torno do retorno à rotina regular acabaram levando a um reescalonamento mais seguro. Segundo o presidente da Fundação, José Olympio da Veiga Pereira, seria necessário começar em breve os trabalhos de montagem da mostra, o que colocaria muitas pessoas em risco. Além disso, a enorme paralisia no turismo nacional e internacional desestimula a realização de um evento de tamanha dimensão.
Esse adiamento exigiu também a tomada de outras medidas de adaptação, como a alteração do calendário geral da mostra, que volta a ocorrer oficialmente em anos impares, como aconteceu entre sua inauguração até 1991, e o prolongamento do mandato da atual diretoria, que foi estendido até dezembro de 2021. Iniciativa semelhante já havia sido tomada em maio pela Bienal de Veneza.
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Cartazes da 34ª edição da Bienal de São Paulo. Divulgação.
Cartazes da 34ª edição da Bienal de São Paulo. Divulgação.
O conceito norteador da Bienal, intitulada “Faz Escuro, Mas Eu Canto” permanece o mesmo. A mostra se estruturará em torno de algumas linhas temáticas que se entrelaçam, como as noções de resistência, circulação, opacidade e enclausuramento. Questões que, quando vistas a partir da nossa situação atual, adquirem novos e complementares significados que, segundo o curador Jacopo Crivelli Visconti, devem ser incorporados ao projeto da 34ª Bienal. “Existem aspectos que já estavam presentes nas obras, que apontavam nessas direções, mas que se tornaram mais evidentes agora”, explica ele. “Insistir no planejado seria um erro, temos que estar abertos”, acrescentou. Apesar de a lista definitiva de artistas estar praticamente pronta, ela só deverá ser divulgada em sua versão definitiva em março ou abril de 2021, dando aos curadores um tempo extra de reflexão e para possíveis alterações.
Infelizmente, não será possível realizar os eventos programados para acontecer ao longo do ano. De acordo com o calendário original seriam organizadas três mostras e três performances ao longo do ano, mas só foi possível concretizar a mostra de Ximena Garrido-Lecca, inaugurada em fevereiro, e a performance de Neo Muyanga. Para manter ativa a discussão em torno da mostra e o intercâmbio com um circuito amplo, a Bienal planeja fazer uso das ferramentas virtuais, continuar as publicações de correspondências curatoriais (divulgadas no site) e promover uma série de encontros online envolvendo artistas, estudiosos e curadores. “Nosso objetivo é trabalhar a exposição como se fosse um ensaio aberto, compartilhado com o público”, explica Visconti.
Também está programado o lançamento de uma publicação digital, que funcionará como uma espécie de livro de artista, que congregará uma série de trabalhos comissionados. Outra proposta, a ser avaliada conforme a evolução do quadro epidêmico, é realizar ainda este ano uma pequena mostra coletiva, reabrindo o Pavilhão ao público, substituindo assim os eventos cancelados e fortalecendo uma das ambições do projeto: criar uma Bienal que se estenda no tempo e no espaço, permitindo ao público vivenciar uma mesma produção artística em diferentes contextos e momentos. Em relação à ampla rede de parcerias que a Bienal havia criado para a realização de cerca de 25 exposições paralelas ao evento principal, Visconti explica que os casos serão trabalhados individualmente, avaliando as circunstâncias de cada projeto individual.
Do ponto de vista orçamentário, José Olympio afirma que a pandemia afetou as contas da Bienal, mas não de maneira insuperável, pois a instituição conta com mais de 20 parceiros estáveis e vem ampliando sua rede de apoio. Segundo ele, o principal obstáculo, até agora, foi a impossibilidade de alugar o espaço do Pavilhão, que responde por parcela importante das receitas.
Apreendido pela Receita Federal em 2009, a obra Claudius, 1986, do artista alemão Gerard Richter, foi passada para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que, em abril do ano seguinte, concedeu a guarda provisória da peça pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), justamente quando eu assumia a direção do Museu.
Durante algum tempo o museu solicitou que a obra lhe fosse doada ou então recolhida pelo IPHAN. Uma obra valiosa como Claudius, sob a guarda provisória de um museu público como o MAC USP é sempre uma grande responsabilidade. O IPHAN, no entanto, ignorou nossas demandas, levando-nos a manter a pintura na Reserva, conservando-a com o cuidado devido, porém sem exibi-la (como exibir a obra sobre a qual o museu não tinha nenhum direito, apenas obrigações?) Passados alguns anos, porém, chegamos à conclusão de que a melhor maneira de continuar preservando Claudius era exibi-la, torna-la visível para o público do museu dentro de um espaço com segurança e condições ideais de iluminação, temperatura etc.; e dentro de uma exposição que deixasse claro para todos o quanto seria importante que aquela obra passasse a pertencer ao acervo da instituição – sobretudo naquele momento em que saíamos da Cidade Universitária para nosso novo espaço, o antigo edifício do Detran, no Parque Ibirapuera.
Para a inauguração, o MAC USP organizou uma série potente de exposições em que o acervo da instituição seria o grande protagonista. Nossa ideia (minha e da equipe que coordenava) era mostrar a todos a robustez das coleções que o museu abrigava (e abriga), cujas peças vinham do final do século XIX, início do século XX, até aquelas produzidas nos primeiros anos da segunda década do século XXI. Dentro desse universo estavam inclusas, igualmente, as obras sob a guarda provisória do museu. Foi assim que Claudius pôde ser integrada a uma das mostras que inaugurariam os novos espaços do MAC USP no Ibirapuera e que estava sob minha responsabilidade: O Artista como Autor/ O Artista como Produtor.
Essa exposição – em cartaz entre 15 de junho de 2013 e 13 de setembro de 2015 – colocava em debate duas formulações artísticas típicas dos séculos XX e XXI e, dentro dela, causava muito prazer rever Claudius, de Gerard Richter, ao lado de peças de Cesar Baldaccini, Mônica Nador, Waltercio Caldas e Carmela Gross, entre outros.
Como meu mandato acabou em meados de 2014, deixei o MAC USP com a exposição em cartaz. Terminada a mostra, Claudius voltou para a reserva técnica do museu. Somente no final de 2019 foram iniciadas novas tratativas entre o IPHAN e o MAC, visando a possível doação da obra, o que se tornou real agora, em 2020.
Como é perceptível, dez anos se passaram, entre o início da guarda provisória da obra de Richter pelo MAC USP e sua doação definitiva. Sempre nos surpreende a morosidade das nossas instituições públicas, a capacidade que elas possuem de postergar aquilo que poderia ser resolvido de forma mais ágil. No entanto, estou certo de que, neste caso, valeu a pena a espera. Ao invés de, quem sabe, estar decorando a casa de alguém que só a veria como um investimento financeiro, Claudius agora faz parte de um acervo público que irá continuar conservando-a, estudando-a em suas relações com as outras obras do acervo do museu e, principalmente, exibindo-a para o público de São Paulo e do Brasil.