Home Blog Page 8

Nadando de braçada

Lançado discretamente no primeiro semestre deste ano (embora impresso ainda em 2023), o livro Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação (Ed. Fósforo) chegou nadando de braçadas para conquistar o pódio das melhores publicações saídas em 2024 sobre arte e cultura na cena contemporânea brasileira. Organizado pela jovem intelectual – com presença já expressiva no campo da curadoria e dos estudos curatoriais – Diane Lima, o livro traz textos, depoimentos e entrevistas produzidas por um conjunto formado por intelectuais e artistas afrodescendentes, afro-indígenas e indígenas.

Em todo o material ali reunido são apresentados aspectos que, por maneiras diversas, trazem possibilidades para que se entenda e se reflita sobre as transformações ocorridas no campo da arte contemporânea do Brasil nos últimos anos, a partir da emersão de novas gerações de artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as, representantes das camadas populacionais até então com rara representatividade nos ambientes privilegiados dos museus de arte, das muito exclusivas galerias paulistanas e cariocas e das afamadas coleções particulares dessas localidades.

Capa de 'Negros na piscina' (Ed. Fósforo), de Diane Lima. Cortesia da editora
Capa de ‘Negros na piscina’ (Ed. Fósforo), de Diane Lima. Cortesia da editora

Um dos pontos positivos de Negros na piscina é ter sido composto por textos ligados a diversas correntes metodológicas normalmente usadas para as reflexões sobre o fenômeno acima mencionado, o que demonstra uma saudável pluralidade no tratos das questões. Apesar dessa qualidade dos textos ali publicados – todos merecedores de comentários específicos – tratarei aqui de apenas dois desses ensaios, não somente pelo espaço exíguo desta resenha, mas sobretudo pelo impacto que ambos me causaram durante a leitura do livro. Refiro-me a Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação, de Diane Lima e Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, escrito por Amanda Carneiro, curadora.

Creio que, ao comentá-los, delineando seus principais pontos e a qualidade de muitas de suas observações e análises, estarei também chamando a atenção para a qualidade geral da publicação.

***

O texto de Diane Lima, que também atua como introdução ao livro, não interessa apenas pelas reflexões fundamentadas, a respeito das mudanças ocorridas na cena artístico-cultural brasileira nas últimas décadas, no plano da absorção, no âmbito do circuito de arte, de agentes não-brancos[1]. Além da pertinência das considerações elaboradas por Diane sobre esse tema, seu ensaio igualmente interessa pela dimensão estética do seu texto que soube conjugar o conteúdo tão significativo a uma forma sofisticada de escrita. É interessante como a autora tece seu texto a partir da interpretação de duas fotografias que, ao impactarem a autora pela contundência imagética de ambas, funcionam como fios com os quais Diane engendrará sua escrita. A primeira é uma fotografia do artista afro-indígena Paulo Nazareth, sem título, de 2014, pertencente a uma série de trabalhos chamada Cadernos de África (iniciada em 2013 e ainda em processo); a segunda, uma foto produzida pelo intelectual e fotógrafo afrodescendente Jônatas Conceição, Por uma educação que interessa aos negros, produzida nos anos 1980, durante protesto ocorrido no Dia Nacional da Consciência Negra, em Salvador.

Diane usará a foto sem título de Paulo Nazareth – em que o artista posa com uma criança no colo e segurando um cartaz manuscrito, onde se lê Negros na piscina, não apenas como título para o livro por ela organizado, mas igualmente como metáfora para suas indagações sobre quais seriam as atuais condições dos artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as que, a partir sobretudo da segunda metade da década passada, começam a ter uma presença mais significativa no campo das artes visuais, após séculos em que raramente foram percebidos/as para além de sua condição de objeto de interesse estético e/ou etnológico. Em um dos momentos mais argutos do ensaio, Lima explicita o quanto o uso metafórico da obra de Nazareth lhe trouxe condições para pensar sobre a situação recentemente alcançada por esses jovens intelectuais e artistas. Assim ela escreve:

Mais uma vez a ironia e o duplo sentido despertam nossa dúvida, interesse e curiosidade de entrar na piscina. Momento em que nos abrimos à possibilidade de imaginar aquilo a que a palavra “piscina”, usada como figura de linguagem, nos convida: a piscina-foto, , a piscina-museu, a piscina-galeria, a piscina-instituição, a piscina-mercado de trabalho, a piscina-festa, a piscina-livro, a piscina-escola, a piscina-faculdade, a piscina-piscina e todas as infinitas possibilidades ou impossibilidades de ser e estar na piscina. Ou seja, todos os contextos, espaços ou situações – algumas vezes possíveis, antes impossíveis, inimagináveis, de algum modo desejáveis, proibitivos ou mesmo ilegais a corpos como o seu e os nossos – que a piscina, como campo da disputa, possibilita[2].

Caracterizada essa nova situação alcançada pelas jovens gerações e artistas e intelectuais não-brancas no Brasil, a autora se posiciona criticamente sobre o que de fato pode significar, ou pode vir a significar, essa entrada nas várias “piscinas”, antes ocupadas apenas por brancos e brancas. Será a partir das possíveis consequências que essa “ultravisibilidade” pode ou poderá trazer para o devir desse contingente de novos/as intelectuais e artistas não-brancos, que a autora encaminhará suas considerações, até alcançar a outra foto mencionada, de Jônatas Conceição. Assim Diane descreve o que a impactou naquela imagem: “Na cena, registrada durante um protesto ocorrido nos anos 1980, em Salvador, duas mulheres negras, cercadas por muitas outras, empunham cartazes que, em meio às muitas palavras de ordem ilegíveis, dizem: ‘Por uma educação que interesse aos negros'”[3].

Para Lima, a imagem de Conceição serve como uma espécie de alerta para, em primeiro lugar, lembrar que a luta de muitas e muitos, no passado, foi crucial para a conquista de certas posições que podem ser usufruídas hoje; em segundo, lembra da necessidade de não se conformar e de desconfiar dos efeitos aparentemente bons que a recente conquista dos espaços institucionalizados trouxe para artistas e intelectuais não-brancas/os. Afinal, mesmo com a vitória, os espaços aparentemente conquistados – as piscinas – continuam pertencentes àqueles a que sempre pertenceram.

É a partir dessa espécie de encruzilhada que as duas imagens fotográficas lhe sugeriram que Diane, então, chamará a atenção para a necessidade de que o debate crítico continue, para que seja possível, efetivamente, realizar no concreto o que propunha a palavra de ordem lida na fotografia de Conceição: “Por uma educação que interesse aos negros” – ampliando, em muito os sentidos da palavra “educação”. E será, portanto, a partir da consciência de todos estarem naquela encruzilhada que a autora, então, esclarecerá os meandros conceituais que guiaram a escolha daqueles e daquelas que foram convidados/as a colaborarem com a publicação.

Nesse momento de reorganização necessária das táticas e das lutas a serem ainda travadas para que a hipervisibilidade alcançada pelos/as não-brancos/as não desague na mera submissão desses/as agentes ao mundo já instituído pelos antigos donos de todas as “piscinas”, é que Diane opta pela pluralidade de pontos de vista para convidar seus colaboradores. O que amplia ainda mais o interesse e importância de O negro na piscina, mostrando que a organizadora agiu bem ao tomar o partido da diversidade.

***

Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, ensaio de Amanda Carneiro[4], além da qualidade das considerações e argumentações que apresenta, enquadra-se bem nos propósitos de Diane Lima em trazer para o interior do livro textos que, plurais, confiram novo gás para todas as questões que perpassam os sentidos da metáfora “os negros na piscina” e da palavra de ordem, “Por uma educação que interesse aos negros”.

Em Violentamente pacífica: …, a autora tem como propósito trazer para o setor dos museus de arte a discussão sobre a descolonização desse tipo de instituição, tradicionalmente mais atrelada aos museus de extração etnográfica. Ainda introduzindo seu temário, Amanda ajuda a definir de forma ainda mais explícita aquela encruzilhada percebida por Diane Lima, no texto anterior. Ela afirma:

Há quem associe a descolonização com a inclusão e diversidade, ou seja, com a entrada de grupos historicamente subalternizados nas hierarquias institucionais. Alguns indicam que é necessário ser radicalmente anticolonial e antirracista e se posicionam em favor de um rompimento radical com fundamentos estruturais do mundo da arte, não raro alicerçados na extração colonial de recursos e conhecimentos. Há quem denuncie também a cooptação do termo[5].

Depois dessa sintética caracterização da complexidade geral do debate, a autora traz a questão para o Brasil, afirmando que, apesar de uma tênue melhoria na frequência mais democrática aos museus, esta ainda é uma prática alheia ao interesse da maioria da população brasileira (periférica e trabalhadora). Mas o problema, para a autora, não termina aí. Se como público, as populações não-brancas ainda são raras nas instituições museológicas, essas, por sua vez, continuam sendo geridas por pessoal majoritariamente branco: “Ao olhar para o corpo diretivo e gestor – artístico e executivo, incluindo conselheiros e patronos –, amplia-se o fosso e a disparidade de representação dos diferentes grupos que compõem a sociedade”.[6]

A autora fará alusão ainda à série de saques que potências coloniais fizeram da produção de várias culturas não-brancas, atentando para um dado de muito interesse: o fato de que nos espaços museológicos europeus, essas coleções etnográficas pilhadas são tratadas dentro de uma prática que as tornam equivalentes a obras de arte. Ela declara, fazendo referência ao Humboldt Forum, de Berlim, que, ao receber uma coleção de mais de 70.000 objetos vindos da África, transformou aquela: “a coleção etnográfica com ares de equivalência a obra de arte. É claro que não se deve diminuir o valor artístico de tais objetos, no entanto, não soa coerente camuflar com isso as inúmeras coerções impressas no fluxo que os levaram até a instituição que hoje o abriga[7].

De volta ao cenário brasileiro, Amanda lembrará de algumas iniciativas no campo museológico que se prestaram a atender às demandas dos grupos sociais marginalizados, como negros, (o Museu de Arte Negra, de Abdias Nascimento), os indígenas (o Museu do Índio, de Darcy Ribeiro) e o dedicado a pessoas com distúrbios mentais (o Museu do Inconsciente de Nise da Silveira). Amanda lembra que tais instituições, no entanto:

Enquanto atendiam demandas de movimentos contestatórios, também reproduziam padrões excludentes, seja de maneira benevolente ou autoritária, sobretudo em torno das discriminações e da opressão de gênero e raça, mais em suas estruturas hierárquicas e ocupação de posições de poder do que em sus coleções, embora a primeira esteja contida na segunda.[8]

Face a essa situação complexa em que ações e comportamentos estruturalmente preconceituosos quanto à raça e a gênero imperam mesmo em iniciativas que se propõem atender à quebra dos privilégios nos museus, Carneiro se pergunta como, mesmo assim, descolonizar os museus? Não sendo uma indagação apenas retórica, a autora então começa a encaminhar seu texto para o final, afirmando que não se pode confundir os termos diversidade, pluralidade, multiculturalidade, decolonialidade e descolonização. Para Amanda, eles não são sinônimos e usá-los dessa maneira pode fazer com que, inadvertidamente, se acabe indo ao encontro dos interesses dos donos das piscinas (para reutilizar a metáfora cunhada por Lima).

Segundo Amanda, um museu diverso não será necessariamente decolonial. Para ela, o fato de uma instituição exibir e possuir em seu acervo obras de artistas negros, mulheres, pessoas transgênero e indígenas, não a transformam em uma instituição decolonial. E isto porque, mesmo em museus com esse novo perfil, a autora não percebe nenhuma mudança estrutural nos cânones que regem a hierarquização por trás das escolhas nas compras e nas exibições. Toda a diversidade das obras é submetida a valores apenas eurocêntricos que ainda direcionam as políticas da maioria dos museus.

Para agravar ainda mais a situação, todas essas instituições, mesmo as que buscam uma maior diversidade, estão mergulhadas naquilo que o intelectual peruano Aníbal Quijano, no final do século passado, definiu como “colonialidade”. Será, então, apenas nesse momento que Amanda explicitará o que entende pelos termos “colonialidade’, “descolonizar’, antes apenas sugeridos. Para tanto, afirma que, do ponto de vista de Quijano:

[…] se o conhecimento estiver sob influência da colonialidade, é fundamental a empreitada de descolonizá-lo. Mesmo após o término dos períodos coloniais em territórios anteriormente subjugados, a colonialidade perdura de diversas maneiras ao longo do tempo e no espaço. Seguindo essa linha de raciocínio, é necessário reconhecer que a colonialidade continua a se manifestar, inclusive na esfera cultural, onde sua detecção e superação podem ser mais complexas.

E finaliza sua definição do conceito de Quijano, afirmando: “Com frequência, essa noção de colonialidade conflui com outras tradições críticas que têm genealogias e interesses distintos, como os estudos subalternos e os estudos pós-coloniais”.[9]

Como fazer para romper com essa condição perene, de certa forma, também estrutural do processo da colonialidade? Esta é, no fundo, a maior e mais interessante questão que Amanda Carneiro enfrenta em seu ensaio, mas é claro que não vou relatar aqui o que a autora propõe para superar esse impasse, ou mesmo se ela proporá qualquer possibilidade de superação. Que o leitor/a tenha o interesse de saber como a intelectual conclui seu ensaio, como me referi antes, um dos mais interessantes presentes em O negro na piscina.

***

Com outras contribuições assinadas por Jaider Esbell, Daniel Lima, Rosana Paulino e Claudinei Roberto da Silva, entre outros e outras, O negro na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação chega na frente e logo se institui como uma contribuição fundamental para a crítica e para a história da arte no país – o primeiro trabalho coletivo de fôlego, ao que me consta, que, em forma de livro, chega para peitar de frente a emersão desses intelectuais e críticos não-brancos e todos os desafios que eles trazem e instauram em pleno centro do poder da arte contemporânea no Brasil.

Que os grandes temas levantados e discutidos nas páginas do livro alcancem outros cantos e façam proliferar novos debates que ajudem a desanuviar as sombras e meios-tons que pairam sobre a prática da arte e da crítica no país. Impossível ler O negro na piscina e não reparar que é mais do que necessário explicitar a contradição em continuar pensando a produção artística brasileira apenas como continuidade dos valores artísticos e estéticos importados (ou “herdados”, como querem alguns e algumas) da Europa e/ou dos Estados Unidos.

Em que pese que grande parte das questões levantadas em O negro na piscina também surgiu da importação de temas originariamente levantados nos Estados Unidos, parece não restar dúvida de que eles, devidamente deglutidos por nossa circunstância, podem vir a fornecer subsídios importantes para que o debate aqui ganhe outros e mais interessantes contornos.

[1] – Essas mudanças, é preciso não se esquecer, têm suas origens mais remotas no início deste século, período da aprovação de leis que – consequências concretas da luta dos movimentos negros organizados –, criaram condições para as mudanças ocorridas na vida das comunidades não-brancas do país.

[2][2] – LIMA, Diane. “Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação” In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 16.

[3] – LIMA, Diane. Op. cit. p.22.

[4] – CARNEIRO, Amanda. “Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional”. In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 51.

[5]Op. cit. p. 52.

[6]Op. cit.

[7][7] – Op. cit. p.53

[8]Op. cit. p. 54.

[9]Op.

Catástrofe, tragédia e desastre como categorias clínicas e estéticas

0

 

O radical grego katá refere-se ao movimento do alto para baixo, oposto, portanto, do movimento de ascese ou elevação. Assimilação, ou metabolismo, opõe-se a catabolismo, como processo de desassimilação; cataclismo é um grande dilúvio, ou queda de água; catáfora é descenso da consciência; catatonia, a paralisia por perda da tensão dos músculos. Vem do radical kata a palavra katharsis, que inspirou o método psicanalítico de Freud e a interpretação das tragédias gregas por Aristóteles[1]. Se há uma estética da catástrofe, ela é uma variante do que chamamos anteriormente de estética do abismo.

A catástrofe, como voltar para baixo, difere do desastre, que em grego quer dizer “má estrela”, pois esta última se aplica aos humanos e ao seu destino. Se o desastre depende dos planos e intenções humanas, sendo portanto uma contingência social e se a  tragédia é psicológica, no sentido da transformação dos afetos, a catástrofe é ontológica. Ela indica uma mutação ou uma perturbação do mundo.

Em psicanálise se fala na catástrofe, como a catástrofe narcísica, que acontece quando a criança se apercebe como “caída” do centro fálico de desejo de seus pais. Há também a catástrofe imaginária, que corresponde à corrosão do mundo, a descrença tal como nos revela a experiência do desencadeamento psicótico. Winnicott observou que muitos pacientes, que sofrem com a iminência persistente de uma catástrofe vindoura, na verdade expressam uma catásttofe passada, infantil, não realizada inteiramente do ponto de vista psíquico. Todas estas versões da catástrofe caracterizam-se por um acontecimento que ultrapassa as condições de subjetivação e simbolização presentes no sujeito.

A catástrofe, em sua dimensão traumática, possui uma grande afinidade com o conceito clínico de trauma, pois ele excede o que se pode simbolizar em uma data situação subjetiva e objetiva de mundo, induzindo uma série de efeitos de repetição, dissociação e negação.  Uma catástrofe cria uma “coisa” inominada referida a um coletivo, cuja tarefa é sancionar o nível de realidade deste acontecimento. Daí a importância clínica de um outro que confirme, ateste ou valide que a catástrofe aconteceu. Isso torna a catástrofe um dispositivo de criação e destruição de nós e de mundos.

Artistas têm se dedicado à estética da catástrofe, seja pela via dos monumentos de memória, seja na deformação necessária para “respeitar” a catástrofe enquanto catástrofe, ou seja, traduzir na forma estética o silêncio e o que excede sua própria representação.  Por exemplo, a Guernica de Picasso distorce animais e personagens, assimilando sua representação natural ao cubismo, mas também a estética da ruína e do escombro. Como nos tanques de giz e lousa, de Alfredo Jaar, representando as aulas que jamais serão dadas às crianças que morreram no desastre atômico de Fukushima, é o negativo que se faz presente, pela ausência. Nestas figurações aprendemos a lembrar não apenas dos fatos e monumentos positivos, mas de tudo aquilo que poderia ter sido e também do que não se pode dizer ou representar. As pesquisas de Ilana Feldman[2] têm enfatizado como o irrepresentável pode ser figurado sem ser representado, graças a certas propriedades da imagem.

 

Estéticas da desaparição olham para baixo, até o abismo da dissolução, assim como estéticas da ascese olham para o céu, em busca de elevação. A estética da desaparição pode nos ajudar a entender o fenômeno clínico da devastação, como uma espécie de experiência convergente entre o desastre imaginário, a catástrofe real e a tragédia simbólica. Uma renovação da ideia de catharsis poderia nos ajudar a entender tanto os destinos da devastação como seu tratamento conjugado pelas formas clínicas e estéticas.

Desastre

Balsa da Medusa (1818) de Theodore Géricault é uma tela gigantesca, exposta no Louvre, onde se observa vinte sobreviventes da fragata Medusa naufragada no Mediterrâneo, levando seus sobreviventes ao desespero e à antropofagia no afã de sobrevivência. Percebe-se que cinco estão definitivamente vivos; outros doze, provavelmente mortos, e oito estão em estado indeterminado. Uma borboleta paira na testa daquele que avista o horizonte. Um verdadeiro desastre ocasionado por um capitão que desconhecia os mares por onde navegaria até o Senegal, mas acreditava firmemente em Deus, certo de que isso bastaria.

No Seminário sobre a Ética Lacan afirma que o que ele pretende demonstrar “situa-se entre a ética freudiana e a estética freudiana”[3]. Esta esthethica, contração de esthétique e ethique, conforme a feliz formulação de Lacoue-Labarthe[4], estaria na base das estratégias de formalização da clínica psicanalítica desde o conceito seminal de catharsis. Freud teria herdado de Jakob Bernays, crítico literário e tio de sua esposa, Martha Bernays, um entendimento demasiadamente médico do conceito de catharsis, pelo qual este se ligaria com as noções de purificação e purgação de afetos. Mais recentemente Martha Nussbaum[5] tem reforçado o uso da catharsis no contexto de novas formas de pensar a educação, envolvendo a experiência da corporeidade no contexto das discussões feministas. Para ela seria importante pensar a catharsis como forma de clareamento, iluminação ou método intuitivo para organização e apropriação do prazer cognitivo inerente ao processo de aprendizagem. Mas não há nenhuma aprendizagem no desastre do Medusa, apenas tolice e desespero. Não há nenhuma tragédia no desastre, porque o canibalismo não denota nem covardia nem coragem, apenas falta de recursos.

Catástrofe

No dia 15 de setembro de 1961 o Gran Circo Americano estreava suas atrações em Niterói (RJ). Uma dívida trivial com o dono do empreendimento fez com que três funcionários organizassem um incêndio por vingança. No dia do desastre o circo contava com mais de três mil pessoas, mais de trezentas morreram na hora. Tudo porque a nova lona adquirida não era de nylon, como tinha sido anunciada, mas de algodão coberto com parafina, material altamente tóxico e inflamável, resultando em grande morticínio. Faltaram médicos e padres para fazer frente à catástrofe. O desastre já estava marcado pelo plano vingativo de um dos funcionários que montavam o circo e fora demitido. Seu plano, porém, era infligir danos materiais ao dono do circo, mas nem tudo saiu como ele planejara. A cena aterradora foi testemunhada por José Datrino, motorista de caminhão, que, diante da tragédia teve um chamado à vida espiritual. Deste dia em diante passou a residir no local do incêndio, iniciando assim uma missão não terrena como Profeta Gentileza, nome pelo qual ficou conhecido o poeta. Ao assumir a dimensão pofética do evento Gentileza, transforma o desastre em catástrofe e esta em tragédia, com o seu tratamento continuado pela palavra, doravante escrita como mensagens pelas ruas do Rio de Janeiro.

Nakba, palavra que significa catástrofe ou desastre em árabe, passou a designar, para os palestinos, a Resolução 181 da Assembleia Geral, que recomendava a criação de dois Estados e a administração internacional de Jerusalém. Algo análogo, mas diferente, ocorre com a shoah, enquanto, catástrofe referida ao morticínio nazista:

“Não é nossa compreensão do evento e a compreensão do que veio depois que foram afetadas: a compreensão de tudo o que veio antes, também, foi afetada pela Shoah. Já Paul Valery tem uma frase que é quase o contrário da de LaCapra. Ele dizia: “O futuro não e mais o que era.” Então o passado não é mais o que era e o futuro também não. A Shoah é um evento de tal natureza que transforma a nossa compreensão de tudo o que veio antes e tudo o que veio depois.”[6]

Se na estética da catástrofe inclui-se tanto o belo, quanto o feio e ainda o sublime e grotesco, isso não pode ser atribuído as propriedades imanentes da imagem ou da obra, mas à sua recepção, capaz de reunir estética, ética e política. A shoah e a nakba são eventos catastróficos, porque eles apresentam um certo impossível de ser dito. Disso se depreende que eventos catastróficos, comportam negatividade, expressa no impossível de dizer, mas sem que exista identidade entre eles. Afinal seria o nada idêntico ou não é idêntico a si mesmo?

Isso aparece nas recentes dificuldades de figurações em torno do fim do mundo, mas também nas lutas contra-hegemônicas para aumentar a representação de grupos, perfis e condições sub-representadas. Tudo se passa como se o problema da origem comum, da gênese histórica, teológica ou evolutiva, típico das escatologias, por exemplo, persa ou mesoamericana, tivesse agora se invertido na luta pela precedência na ocupação do espaço terminal da humanidade. Os conceitos de catástrofe e desastre se reúnem, neste caso, para fundar as bases da noção de antropoceno. No antropoceno iniciamos uma virada para baixo, fruto de nossas imprevidência e superestimação, que na verdade são uma ausência de estrela, ou seja, uma ausência de orientação.

Catástrofe da sobrenatureza[7] é o modo como os indígenas brasileiros da etnia marico designam a dinâmica ontológica dos mundos diante da potência destrutiva do Ocidente. Para eles a “paz policial” é cada vez mais difícil se ser dissimulada. A “maldição da tolerância”, quando ela é uma tática de adiamento do conflito, são  versões da catástrofe como “experiência da própria divergência e potencial de transformação entre os mundos”, cuja experiência política está baseada num “equívoco ontológico”[8]. A catástrofe aqui não aparece como um marco histórico ou como uma ameaça a unidade política, formada pela ética e pela estética, mas como um choque entre mundos. Choque de mundos que frequentemente apela para o sonho e para o estranhamento (Unheimlich) como paradigma.

Sem um caráter ostensivo, uma representação indireta e onírica aparece no relato do pajé Neiri como a retirada dos deuses (Tohõ):

“Ele havia visitado Tohõ, o Sol, que o recebeu em sua casa. Sentado em seu banco e portando seu chapéu, Tohõ lhe contou que estava muito envergonhado e pensava inclusive em ir embora. Com sua luz, Tohõ vê tudo o que acontece aqui na terra, e tem observado a recorrência das brigas, violências e mortes entre as pessoas. Aliado a este fato, Tohõ estava realmente aborrecido com “as fábricas, as químicas e as queimadas” dos eré (não indígenas). Toda a poluição estava prejudicando sua visão e o seu “suspiro”, sua respiração. Tohõ, que lá de cima consegue ver tudo aqui embaixo, não estava mais respirando bem. O pajé sonhador tentou argumentar, dizendo-lhe que ele não poderia abandonar os filhos que ele mesmo havia criado. Seu comentário não surtiu muito efeito, pois Tohõ retrucou: “Antes vocês me davam colar e chapéu, me agradavam. Agora, estou ficando doente e envergonhado! Vou embora”. [9]

A retirada dos deuses é uma das figurações recorrentes da catástrofe da sobrenatureza. Entre os ameríndios ela regula a relação mítica da distância entre mundos, como na queda do céu, seja na distribuição do espaço, pela nomadismo ou segmentação de aldeamentos, seja pela  dinâmica da guerra, aliança e parentela. Catástrofes da sobrenatureza remetem ao exílio, ao deslocamento forçado e a diáspora, e com isso ao  trabalho de acomodação em uma nova terra e a reorganização do trato dos viventes entre mortos, vivos e ainda não nascidos. Neste processo a distância ao Outrem, dada pela separação entre nós e eles, deve ser distinguida da distância ao Outro, no sentido psicanalítico da distância entre Ideal de eu e objeto. Terra, rios, lagos, animais e plantas, assim como o lugar dos mortos, envolvem o esforço de composição de geografias múltiplas e co-presentes, como as casas flutuantes de Guinard.

O adoecimento residual, gerado pela catástrofe, não é apenas uma violação do tabu e um desacato ao totem, como reza a regra totemista. Ele pode ser efeito da hibridização de mundos, efeitos do rapto e cativeiro animista do Outrem, como vemos no programa de Arthur Bispo do Rosário. Ao reunir os dois aspectos a estética da catástrofe torna-se uma interpretação genérica da colonização.

“As catástrofes produzem uma estética cuja característica é a elevação dos sentimentos, do respeito, da seriedade e do silêncio, enfim uma estética do sublime. No entanto, quase sempre, paralelamente aparece também uma estética do grotesco, marcada pelo desrespeito, pelos sentimentos baixos e pelo riso. (…) Portanto as catástrofes não são inomináveis e irrepresentáveis” [10]

Tragédia

No dia 13 de setembro de 1987, na rua 57, em Goiânia, os amigos Wagner e Roberto entraram no prédio abandonado onde funcionava o Instituto Goiano de Radiologia retirando um pesado equipamento, pensando em vendê-lo como sucata de chumbo. No seu interior havia um composto de césio-137, elemento radioativo, encontrado na forma de um pó branco, semelhante ao sal de cozinha. Quando o Devair desmontou a máquina, ele percebeu que durante a noite o estranho pó emitia uma luminosidade de coloração azul. Deslumbrado, ele passou adiante pequenas quantidades de cloreto de césio para os vizinhos. Depois de duas semanas os habitantes da rua 57 começaram a apresentar sintomas como vômito, diarreia, cefaleia, sangramento e febre. Tratava-se de um grande acidente radioativo que deixou mais de 1600 vítimas, entre elas Leide das Neves, filha de Devair com apenas cinco anos de idade, hoje símbolo do acidente. Assim que soube do acontecido o pintor Siron Franco, que havia morado na rua 57 iniciou uma série de telas que cobrem vários aspectos do ocorrido: a corrupção e morosidade do governo, a censura sobre os jornais, a pele descamada das vítimas, a transformação das pessoas em animais. O hibridismo das figuras animistas, geradas pelas alteração da carne, combinava-se assim com a denúncia da violação das regras de cuidado com aparelhos hospitalares.

Aqui temos uma catástrofe na qual a catharsis não é expressiva de um acontecimento brutal, muito maior do que a capacidade de representação, como o incêndio do Gran Circo Americano, nem uma imprevidência como o naufrágio da Medusa, mas uma inversão desintegrativa da experiência ético-estética. A linda luminosidade brilhante do Césio, nos leva a morte e à transformação silenciosa e invisível do corpo. Inversão irônica do conceito médico e religioso de purgação, limpeza e purificação, que historicamente carrega as metáforas educativas e intelectivas ligadas ao radical de “luz”.  Assim como a dimensão universalista iluminada das formas mais prósperas e coloniais de  vida são invertidas para baixo na catástrofe da tragédia decompositiva decolonial.

Desastre, catástrofe e tragédia estão presentes no comentário de Lacan a Antígona. A experiência universal da morte e da finitude (entre-duas-mortes), o erro de julgamento de Creonte (hamartia) e a desmedida da ação humana (hubris). O caráter criador do desejo de Antígona ao cruzar seu próprio limite (até), a denúncia de uma lei-não-toda escrita encontram seu momento decisivo no brilho em excesso, a luz que cega (imerosekphanestaton)[11]. Vemos assim que a noção de catharsis, pode ser aplicada tanto à tragédia quanto ao desastre e à catástrofe.

  1. O conceito médico e religioso de purgação, limpeza e purificação, envolve uma transformação restaurativa, que traz de volta um momento anterior.
  2. O conceito estético educativo, preso ao radical de brilho (iluminação) e ligado à prática da criação metafórica, que cria novos mundos a partir do desastre.
  3. O conceito ético político ligado à dimensão universalista de produção de formas de vida e de leis que ainda não são reconhecidas na pólis, mas que uma catástrofe pode justificar sua introdução.

Jonathan Lear[12]  argumenta que esta ambiguidade não deve ser hierarquizada em torno da noção mais genérica de brilho, da qual a limpeza e a unidade seriam traços subordinados, como defende Martha Nussabum. Ele advoga que o poder de iluminação pedagógica da catharsis, não pode ser entendido como uma educação das emoções, tanto porque é dirigida exclusivamente aos gregos adultos, portanto já educados, quanto porque o prazer experimentado na tragédia não é o mesmo que se obtém na vida cotidiana. Assim também o desprazer da tragédia não é o mesmo da catástrofe. Lear observa que a mera expressão ou liberação das emoções não seria em si prazerosa, segundo Aristóteles. Desta forma ele resguarda e recusa a acepção clínica de catharsis. Ou seja, não é a intensidade dos afetos convertidos em sentimento social, de identificação, indignação ou piedade que define a catharsis, conferindo-lhe potência estética contemporânea, mas na conexão que o conceito possui de unir uma experiência entre política, ética e estética.  É o desejo de  transformação, efetivado esteticamente na própria solução apresentada pela obra, que converte um desastre em tragédia, bem como uma tragédia em catástrofe. Mas nem toda catharsis anuncia uma catástrofe em seu horizonte, pois esta demanda tanto a contingência do desastre, envolvida nos atos humanos, quanto a impossibilidade, que destrói a consistência ontológica do mundo que a tornou possível.

Catharsis

Lembremos que a noção de catharsis pertence ao universo da produção e da apropriação, pública ou privada, da metáfora ou da realidade. A tríade freudiana da cura, composta pelo trabalho de recordar (erinern), repetir (Wiederholung) e elaborar (ducharbeiten), ressoa com a tríade grega da catástrofe: mímesesaesthesis e catharsis. Também na cura produz-se uma unidade ético-política-estética envolvida. A cura psicanalítica, assim como a curadoria estética, realizam-se sob a condição da transferência.

(…) nesta ocasião eu lhes mostro que, nos textos de Freud, repetição não é reprodução. Jamais qualquer oscilação sobre este ponto – Wiederholung não é Reproduzieren. Reproduzir, é o que se acreditava poder fazer no tempo das grandes esperanças da catharse. Tinha-se a cena primitiva em reprodução como se tem hoje os quadros dos grandes mestres por nove francos e cinquenta. Só que, o que Freud nos indica quando dá os passos seguintes, e ele não demora muito para dá-los, é que nada pode ser pego, nem destruído, nem queimado, senão de maneira, como se diz simbólica, in effigiein absentia. A repetição aparece primeiro em uma forma que não é clara, que não é espontânea como uma reprodução, ou uma presentificação em ato.[13]

Repetir (apreender negativamente), reproduzir (mimesis) e presentificar em ato (iluminar, criar) são modalidade de entendimento da metáfora e parâmetros para sua teoria da mediação. Há pelo menos três tipos de negação envolvidos em uma metáfora que fusionam função ontológica, a função representativa e função pragmática da linguagem. Tal entendimento criativo e ontológico da metáfora teria sido absorvido por Lacan a partir de Hegel determinando a acepção lacaniana de metáfora.

Conclusão

Seria o filme Shoah de Claude Lanzmann[14], assim como a obra de Anselm Kiefer, um tratamento possível para a experiência histórica do holocausto, promovido pelos nazistas? Estaria o poeta Gentileza espalhando, pelas ruas do Rio de Janeiro, a poesia que faltou sobre o grande desastre do Circo Americano? Seria o sonho de Neiri uma figuração do impronunciável da catástrofe? Seriam documentários como Al Nakba[15]Farha[16] e Born in Gaza[17], maneiras de representar o irrepresentável da situação ético-estético-política da Palestina?

Por trás destas questões remanesce a ideia de que uma boa representação do ocorrido nos previne contra sua repetição. Mas uma boa mimesis não é um retrato realístico do que ocorreu, assim como a tragédia da rua 57 não será captada pelas imagens radiológicas do afetados. Do ponto de vista psicanalítico pode ser exatamente o contrário. Uma boa representação nos fixa a uma imagem da qual podemos fugir impedindo-nos de perceber que as catástrofes se modificam em suas reatualizações. Uma má representação não é uma representação mal-feita, mas uma representação que esconde que ela mesma é uma representação. Uma boa representação pode ser feita pelo seu contrário, pela sua ironia, pela precariedade, pela forma como guarda o invisível e silencioso, dentro do visível mostrado. Uma boa representação porta sua própria regra de desaparição.

Aprofundar o problema da catharsis no interior da tradição de comentário do gênero e trágico, adotá-la como caso paradigmático de reflexão sobre formalização e conceitualização da prática psicanalítica, pode nos ajudar a entender melhor a afinidade estrutural entre a cura psicanalítica e a curadoria estética no contexto da catástrofe. Para isso temos que levar em conta que a concepção lacaniana de estética é profundamente disruptiva e não conciliatória, levando a catharsis a ser pensada como um processo desintegrativo:

A estética lacaniana do real é o resultado de um tempo que não vê mais a arte como uma promessa de felicidade, como dizia Stendhal, ou seja, uma determinação concreta e adequada da Coisa. Ao contrário, o tempo da estética lacaniana é o momento histórico no qual a arte aparece como maneira sensível de sustentar o que não pode encontrar determinação para se afirmar positivamente em uma realidade totalmente fetichizada. A arte como rasura do poder reconciliador da simbolização e da linguagem.[18]

catharsis é uma resposta social e historicamente datada para a catástrofe, tragédia ou desastre. Reações catárticas sem mediação tendem a se tornar uma mistura de pedagogia estética, política expressiva disciplinar e moralidade expressiva. Essa é a retórica do cinema catástrofe, que assim como a banalidade do sofrimento neurótico torna a tragédia drama, o desastre uma aventura de entretenimento e a catástrofe um fetiche. A catharsis precisa se associar com os processos de desintegração para poder ser efetivamente uma força de transformação.  Nesta medida ela aponta para uma forma de vida por vir e para uma forma de vida em desaparecer, não obstante, histórica e real. Assim como o sonho Marubi fala do futuro como passado e do passado como futuro a catharsis desintegrativa nos permite criar diante do abismo. ✱


[1] Aristotle. Poetics. Trans. Gerald F. Else. Ann Arbor: U of Michigan P, 1967.

[2] Feldman, Ilana. “De ‘Holocausto’ (1978) a ‘Chernobyl’ (2019): o que pode o audiovisual face a um passado traumático e a um futuro ameaçado?”. In: Alceu – revista de comunicação, cultura e política, dossiê “Distopia e narrativas contemporâneas: a difícil arte de imaginar o futuro”. PUC Rio, edição 43, v.21, n.43, 2021, p.24-49.

[3] Lacan, Jacques (1959-1960) O Seminário Livro IThe Seminar Book VII On Ethics of Psychoanalysis. Trans Dennis Porter (New York:Routledge, 2007).

[4] Lacoute-Labarthe, Philippe (2007) On Ethics: a propôs de Antigone. Journal of European Psychoanalysis, n24, 2007

[5] Nussabaum, Martha (1992) “Tragedy and Self-Sufficiency: Plato and Aristotle on Fear and Pity.” Oxford Studies in Ancient Philosophy (1992), 10:107-159.

[6] Arthur Nestrovski (2004) Shoah: catástrofe e representação. In Gragoata, Niteroi, n. 16, p. 51-68, 1. sem. 2004.

[7] Soares-Pinto, N.. (2023). A catástrofe da sobrenatureza: a relação entre morte e terra no Complexo do Marico. Mana, 29(1).

[8] Valentim, Marco Antônio (2018) Extramundanidade e Sobrenatureza Ensaios de ontologia infundamental. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie, p. 28.

[9] Soares-Pinto, N.. (2023). A catástrofe da sobrenatureza: a relação entre morte e terra no Complexo do Marico. Mana, 29(1), p. 32.

[10] Idem Oliveira, 2008, p.39.

[11]Lacoue-Labarthe, Philippe (2007) On Ethics: a propôs de Antigone. Journal of European Psychoanalysis, n24, 2007

[12] Lear, Jonathan (1992) ‘Katharsis’, in Amélie Oksenberg Rorty (ed.), Essays on Aristotle’s Poetics, Princeton University Press, Princeton, 1992, 315–40.

[13] Lacan, J. (1964) O Seminário Livro XI Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 1988, pág. 52.

[14] Claude Landsmann (1985)  A Shoah. http://cinema.encyclopedie.films.bifi.fr/index.php?pk=56125&_ga=2.129406284.1136031695.1564686845-262964486.1557257221

[15] Benny Bruder (1966) Al-Nakba: The Palestinian Catastrophe of 1948. https://web.archive.org/web/20110914133108/http://www.sfjff.org/film/detail?id=797

[16] ELIA, Nada. Farha and the story of the Palestinian collaborator. Aljazeera, 7 de janeiro de 2023, disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2023/1/7/farha-and-the-story-of-the-palestinian-collaborator.

[17] Ernan Zanin (2019) Born In Gaza.  https://palestinefilms.org/en/Film/2014/Born-in-Gaza

[18] Safatle, Vladimir (2010) A Paixão do Negativo: Hegel com Lacan. São Paulo:Unesp, pág. 289

Preservação e salvaguarda

0
Por Carlos Lemos*

Inicialmente, gostaríamos de agradecer vivamente ao amigo Orandi Momesso, que nos permitiu ter acesso à sua preciosa coleção de arte sacra brasileira e a oportunidade de escrever algumas reflexões sobre o tema registradas nesse belíssimo livro, que ora contemplamos.

Não poderíamos deixar de mencionar aqui o saudoso Luciano Momesso, sempre atencioso e prestativo, que muito nos auxiliou na organização do vasto material de estudo e que ao longo do processo de elaboração desse livro se tornou também nosso querido amigo.
Hoje, na nossa fala, abordaremos a questão da importância do colecionismo como forma de preservação do acervo artístico e cultural brasileiro e, sobretudo, na ação de salvaguarda da nossa memória social. Sob esse aspecto, consideramos fundamental a disposição dos colecionadores de aquisição seletiva de obras, que podem incluir desde grandes artistas a artesãos, de arte erudita a popular, de objetos diversos, de modo a construir um mosaico de toda a diversidade da arte e cultura nacional.

Essa significativa coleção de Orandi Momesso, composta de 420 peças de arte sacra brasileira, que se estendem do século 16 até ao 20, abriga imagens de barro e de madeira, pertinentes tanto às atividades litúrgicas quanto às devoções católicas, e se configura como exemplar para demonstrar esse pressuposto.

Acredito ter sido convidado por Orandi para essa empreitada desafiadora de me debruçar sobre a sua rica e variada coleção de obras sacras pela experiência que adquirimos quando da montagem e organização do Museu de Arte Sacra de São Paulo, no início dos anos 1980, e, também, pelos meus textos constantes nas obras Escultura Colonial Brasileira, de 1979, organizada por Ladi Biezus, e A Imaginária Paulista, publicada em 1999, por ocasião da exposição de mesmo nome ocorrida aqui na Pinacoteca, da qual fomos curadores.

No entanto, o nosso interesse sobre o tema vem de muito mais longe, quando, de certa forma, nos tornamos também um colecionador ocasional e curioso, em busca de imagens para os nossos estudos percorrendo e vasculhando o interior paulista e de outros rincões do Brasil, como Minas Gerais e Goiás.

Assim, no nosso entendimento, a palavra colecionismo constitui uma atividade ampla ligada à constituição de uma coleção, que é uma reunião ordenada de objetos de determinado tipo, por razões diversas: gosto particular, interesse histórico, artístico, científico, entre outros. Já dentro do vasto campo da imaginária sacra e religiosa, cada colecionador estabelece critérios orientadores que definirão o caráter da sua própria coleção, como por exemplo: colecionar imagens só de Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo; ou esculturas de um mesmo santo ou de outras entidades constantes na hagiologia devocional católica; ou do santo de devoção pessoal; ou apenas modelagens de barro queimado de pequeno porte para presépios etc. Outros critérios também podem ser adotados para a seleção, como o cronológico, que escolhe somente imagens produzidas em um determinado período ou século; ou então se concentrar apenas nas obras de um artista ou santeiro preferido. Enfim, o número de opções é infindável.

As coleções de arte sacra, em princípio, são abertas porque não sabemos quantos santos habitam o Paraíso e, ainda, quantas canonizações virão; mas nada impede que alguém queira colecionar apenas imagens de Nossa Senhora. Nesse caso, o tema é fechado, mas a quantidade, não. Cabe-nos imaginar sobre o comportamento do colecionador quanto ao tamanho de sua coleção: colecionar apenas raridades, isto é, imagens antiquíssimas, aquelas antigas ou velhas, de autores eruditos, cujas assinaturas valem muito. Outros selecionam peças pelos seus estilos ou pela sua representatividade no quadro social de São Paulo daqueles tempos iniciais.

No caso, o interesse dessa coleção está focado na diversidade da arte sacra brasileira, com ênfase na paulista, e incorpora desde exemplares de altar até pequenos bentinhos de devoção para uso pessoal e ex-votos. Essa notável coleção de arte sacra, constituída ao longo de muitos anos por Orandi, coletou originais vindos desde ateliês eruditos de ordens religiosas até às mais humildes tendas de santeiros populares, como a dos paulistas caipiras. É importante mencionar também aqui que a mesma inclui peças fundamentais de acervos pertencentes outrora aos colecionadores Francisco Roberto e João Marino.

Como pudemos enxergar nesta coleção de Orandi, ele só teve uma preocupação: guardar a memória devocional de nossa população, reunindo peças, desde as eruditas, saídas das mãos de artistas de ordens religiosas, como também, de seus seguidores, feitas ininterruptamente até as imagens nascidas nas oficinas de santeiros autodidatas alheios, inclusive, às questões estilísticas. Nesse caso, estaria resguardando as mãos do povo expressas, sobretudo, na madeira entalhada conservada à vista sem decorações.

Conseguiu reunir mais de uma centena de imagens de Nossa Senhora, desde aquelas valiosíssimas dos freis beneditinos do século 17 até as mais modestas de madeira do século 19, passando por aquelas estereotipadas “paulistinhas” de barro.

Mas, o principal de tudo é a isenção do colecionador. Alcançou uma coleção, talvez a maior de todas, sem o temor de afrontar o comportamento e o pensamento vigente do comércio de antiguidades, que iguala todos os santos de madeira aos fetiches de “nó de pinho”. Neste livro, ele traz ao público sua coleção inigualável de obras de madeira e terracota de fonte eminentemente popular, que está tratando de ampliá-la com peças contemporâneas.


*Carlos Alberto Cerqueira Lemos (São Paulo, 1925) é um arquiteto, historiador de arquitetura, pintor e professor brasileiro.

Cicatrizes à mostra

0

O colapso ambiental e suas cicatrizes – geográficas, sociais e políticas – são, há muito tempo, o grande fio condutor de Renata Padovan. A própria artista não se lembra do início desse processo. “Sempre trabalhei com coisas naturais, matéria orgânica, e não dá para separar a natureza dessa questão ambiental”, diz ela, que também ancora esse interesse numa memória infantil. Renata testemunhou, bem menina, a construção da represa de Barra Bonita, viu as águas subindo, deixando de fora apenas as copas das árvores, nas quais macacos se refugiavam gritando e sendo salvos por um homem que ia e vinha nadando.

Outros projetos, baseados numa ideia irracional de progresso, tornaram-se, décadas depois, elementos centrais da produção de Renata. É o caso das represas de Balbina e Belo Monte que, além de destruírem brutalmente o meio ambiente, não geram a energia prometida, por terem sido implantadas em terrenos onde não há quedas d’água, e que renderam trabalhos como A Escala do Desastre, de 2013. O processo de Renata é uma mistura fluida de pesquisa teórica e imersão nos terrenos físico e humano, coletando imagens e narrativas que ela reconfigura em vídeos, fotos, objetos e instalações. A parceria com instituições voltadas para a conexão entre arte e ecologia, como o Labverde, são fundamentais para a construção de sua poética.

Atualmente, a artista vem investigando o que parece ser uma nova e terrível frente de expansão exploratória: os oceanos. Um de seus trabalhos mais recentes é a série Para você saber onde está pisando, um conjunto de tapetes que reconfiguram mapas que representam graficamente os alvos de projetos de mineração e extração de petróleo, como o do terreno alvo de pesquisas petrolíferas perto da foz do Amazonas ou aquele que explicita a partilha do fundo do Oceano Atlântico entre diversos países e anuncia novas catástrofes ambientais, distante dos olhos de todos.

A invisibilidade de questões aterradoras ao redor do mundo é algo que surpreende e move a artista, que conta seu espanto ao perceber que ninguém sabia que um mar tinha secado em decorrência da ação nefasta do homem. No início de 2015, Renata Padovan decide investigar esse desastre e parte para a Ásia Central levando apenas estudos preliminares e algumas ideias na bagagem, para ver de perto o trágico desaparecimento do Mar do Aral, consumido ao longo de anos pela política irresponsável de seu uso para irrigação, implementada a partir dos anos 1960 pelo governo soviético. O que já foi considerado o quarto maior lago do mundo (o título de mar vem do fato de ele ser salgado), hoje se reduz a uma pequena mancha de água salinizada e contaminada por resíduos tóxicos, cercada por uma cena árida, pontuada aqui e ali por vestígios carcomidos de barcos e restos da cidade pesqueira que antigamente tirava dali o seu sustento.

Ao cotejar, no filme Sereia do Aral, a descrição do que ocorreu com o Aral com imagens históricas da indústria pesqueira ainda em operação várias décadas atrás, a artista expõe o caráter trágico do desastre e a estratégia velada por parte das autoridades de ignorar o assunto. De forma complementar, a performance Retornando a água ao Mar mostra a artista no esforço impossível de regar a areia seca, expressando mais um impotente e desesperançoso gesto do que a possibilidade de reverter o desastre, detonando visualmente um processo de crítica e reflexão sobre o mundo. ✱

Múltiplos sujeitos

0

Entre as múltiplas vozes que tentam dar conta do mundo contemporâneo, algumas se encontram na 60ª Bienal de Veneza. Movimentos sociais antirracistas, obras de artistas LGBTQIA+ e saberes ancestrais transformam gritos de alerta em obras de arte. Em um momento de crise financeira na Europa, nos Estados Unidos e em vários outros países, há poucas obras de grandes dimensões e de boas ideias. Com ataques e defesas, o conjunto é diferente de tudo o que os críticos já propuseram em anos anteriores para a bienal mais icônica do gênero.

O título Straniere Ovunque – Estrangeiros por toda parte é um ponto de vista que sintetiza o pensamento do curador brasileiro Adriano Pedrosa, o primeiro latino-americano e queer confesso a ocupar tal posto. A exposição reúne 331 artistas vindos de 81 países e acontece no momento crucial em que o número de migrantes forçados chegou a mais de 100 milhões, em 2022, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, portanto esse número atualizado é bem maior.

Aqui está caliente, 2004.
Aqui está caliente, 2004.

Estamos vivenciando um momento histórico para a produção artística dos povos originários, que, aos poucos, retomam seu lugar no planeta depois de genocídios e racismos estruturais seculares. A iniciativa desvenda as circunstâncias que levaram os povos aborígenes dos cinco continentes a seu precário estado atual. A mostra também fala da memória, aquela que elegemos para nossa legitimação no mundo. “A memória que serve para que outros recuperem a sua e que, unida a outra e a outra, chegue a formar as memórias de todos os homens”, como ensina o crítico Nelson Herrera Ysla.

O Pavilhão Central localizado na entrada principal do Giardini di Castello é o epicentro da mostra, onde Pedrosa defende parte de seus conceitos. Em contraste com algumas edições anteriores, este local privilegiado exibia obras impactantes de nomes consagrados do mercado internacional, com trabalhos inovadores, muitos feitos para a ocasião. Hoje, o pavilhão exibe, além de uma extensa coleção de pinturas ligadas ao modernismo brasileiro e de outros países, obras feitas por indígenas e uma coleção de trabalhos abstratos assinados por artistas queers, provenientes de China, Itália e Filipinas. Na fachada do edifício, o coletivo brasileiro Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin) foi especialmente convidado para intervir no frontão, executando um painel monumental de 700 metros quadrados. A mostra se desenvolve sobre a produção de outros sujeitos, que se movem no interior de diversas sensualidades, como o artista outsider que se encontra às margens do mundo da arte, assim como o artista popular e o artista indígena, tratado como estrangeiro em sua própria terra.

Em Veneza os espaços expositivos são superdimensionados. Ao caminhar pela Corderie do Arsenale, um antigo e imenso entreposto de mercadorias, tem-se a sensação de que o piso se expande. Neste local icônico, os artistas aborígenes Selwuin Wilson e Sandy Adset da nação maori, originários de Aotearoa/Nova Zelândia, mostram uma impactante instalação, misturando ancestralidade e contemporaneidade, em dois ambientes expositivos de impacto simbólico. Por este trabalho receberam o Leão de Ouro de melhor obra. Ao adentrar no espaço, o público tem contacto direto com os saberes nativos maori. A enorme tenda denominada takapau chama a atenção pela beleza técnica e elegância formal e se constitui em uma espécie de esteira tecida para ser usada em cerimônias festivas e nos partos. Ainda no Arsenale se destaca o trabalho do coletivo Claire Fontaine, nascido em Paris com sede em Palermo (Itália) e que inspirou o título dessa edição da Bienal, Stranieri Ovunque. Com forte apelo visual, a obra constitui-se de neons coloridos que trazem as duas palavras stranieri ovunque escritas em cinquenta línguas diferentes, entre as quais se destacam idiomas indígenas, alguns já extintos.

Dentro do universo agigantado da Bienal cabe ao curador geral fazer a curadoria do Pavilhão Central, do Arsenale e das 30 exposições colaterais espalhadas por Veneza. Já os 37 pavilhões nacionais, espalhados no Giardini di Castello, são de responsabilidade de cada país proprietário, desde a seleção dos artistas ao curador da mostra e à montagem da exposição. O Brasil mantém seu pavilhão desde 1952, e ele está localizado em um local estratégico, no final de uma ponte, passagem obrigatória a outros pavilhões. A coletiva Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam, curada por Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana, merecia um projeto expositivo à altura da importância das peças expostas, que marcam a resistência dos povos originários do Brasil. A exposição destaca Glicélia Tupinambá com os mantos de seu povo, e chama a atenção a videoinstalação Dobra do tempo Infinito, de Ziel Karapotó, com projéteis e maracas, uma alusão ao período violento de colonização. Já era tempo de se estabelecer o rompimento com as formas coloniais que minimizam as contribuições indígenas impondo a categorização do que é considerado indígena ou não. O trabalho de Olinda Tupinambá coloca luz na voz Kaapora, a unidade espiritual que observa as atitudes do homem com a Terra.

A expansão do discurso curatorial é grande e, com o título Italiani Ovunque, o núcleo histórico apresenta a diáspora artística italiana no mundo no século 20, com artistas que foram para o exterior e lá construíram suas carreiras na América Latina, África, Ásia e nos Estados Unidos. Esta seção apresentada no Arsenale mostra cerca de 40 obras expostas nos emblemáticos cavaletes do Masp, projetados por Lina Bo Bardi, com obras de artistas de origem italiana que viveram no Brasil e em vários países da América Latina. Lina, autora do projeto arquitetônico do Masp, recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de Arquitetura, em 2021. A montagem exibe obras colocadas lado a lado provocando diálogos impossíveis como a Pedra Robat (1974), xilogravura de Maria Bonomi, e o Círculo Negro (1963), pintura de Clorindo Testa, expoente da arte argentina. Este segmento reúne obras ligadas ao modernismo da primeira hora como A mulher dos cabelos verdes (1915), tela de Anita Malfati, e obras posteriores como a pintura Fachada Marrom, (1950-60) de Alfredo Volpi e a pintura S/T (1963) de Waldemar Cordeiro.

A abordagem estratégica, centrada no global, multicultural e pós-colonial, deu ênfase às migrações, diásporas, desterritorialização e aos exílios. Essas bases foram moldadas por várias plataformas que promovem a diversidade e o diálogo intercultural desta edição. O pavilhão vencedor foi o da Austrália, apresentando a obra de Archie Moore, artista e cineasta de origem aborígene. A instalação Kith and Kin é um manifesto centrado na ideia de escuta como ativismo. A obra de Moore é complexa, destacada pelo imenso mural preto totalmente desenhado à mão, meticulosamente pesquisado ao longo de mais de quatro anos, inclui 3.484 pessoas e se inscreve nos 65 mil anos de história da Austrália, oferecendo monumental árvore genealógica dos primeiros aborígenes habitantes da Austrália. Os textos desenhados na parede nomeiam seu parentesco kamilaroi e bigambul.

A menção honrosa foi conferida à La Chola Poblete, artista argentina queer de ascendência indígena. A premiação foi euforicamente recebida por jornalistas, galeristas e colegas argentinos presentes em Veneza. Nascida em 1989 em Guaymallén, pequena cidade de Mendoza, na adolescência La Chola era conhecida como Maurício Poblete. O repertório da artista abrange trabalhos que refletem os dilemas e desafios de sua herança mestiça e da sua opção de gênero. Em 2017, La Chola recebe o prêmio de Artista do Ano, pelo Deutsche Bank. As pinturas expostas na Bienal, realizadas em aquarela se desenvolvem com temas abstratos, pop, em pequenas figuras que demonstram o sincretismo entre a cultura ocidental e a cosmologia aborígene.

Com enfoque nos conflitos ecológicos raciais do momento, o artista e cineasta John Akomfrah transforma o Pavilhão da Grã-Bretanha em uma poética instalação com narrativa cinematográfica. Listening All Night to the Rain foi construída com temas sobre a memória, injustiça racial, diáspora e mudanças climáticas. A obra é composta de oito multicanais que desempenham várias funções simultaneamente, com narrações visíveis e sonoras. Para ele, a água e seus significados formam um tecido cognitivo composto de numerosas estratificações narrativas visuais e sonoras. Em todo pavilhão ele trabalha um campo cromático específico influenciado pelo quadro do artista norte-americano Mark Rothko (1903-1970), com o objetivo de indicar, segundo o curador Tarini Malik, em qual abstração pode-se representar a natureza fundamental do drama humano.

A Alemanha mais uma vez dividiu opiniões com seu pavilhão no Giardini, ao ambientar uma catástrofe pós apocalítica de uma usina industrial. Com um grupo de atores encenou uma tragédia vivenciada por operários de uma fábrica de cimento. Dois artistas dividem a cena: Ersan Mondtag, cria uma cenografia densa que mostra os efeitos do cimento da fábrica Eternit, em Berlim, onde depois da guerra seu pai trabalhou e morreu contaminado por amianto. O cenário se completa com o vídeo futurista de Yael Bartana que se reporta às novas migrações humanas a bordo de uma nave espacial que se dirige a galáxias desconhecidas.

Neste ano, dilatando seus domínios para além do Giardini, a Alemanha ocupa também uma área na Ilha La Certosa, nos arredores de Veneza. A obra Thresholds instalada no Giardini e ao ar livre deu contemporaneidade à edição e deixou o visitante comum desorientado. Em La Certosa são vários autores de arte hightech atuando numa paisagem de árvores esparsas e vento constante. O artista Jan St. Werner ao criar a instalação Volumes Invertidos, dentro das ruínas de um mosteiro, dá ênfase aos sons repetidos de alta frequência emitidos por um microfone giratório. Já o musicista Michael Akstaller trabalha simultaneamente sons de gotejamentos e ruídos dissonantes vindos de duas árvores e que supostamente constituem um diálogo entre elas. Quem chega à Ilha La Certosa pouco fica por lá pela complexidade dos trabalhos e quem mantém a frequência do local durante a bienal, são artistas e diletantes experimentais.

Esta edição, que fica em cartaz até novembro, mexeu com a percepção da arte sem os desafios invocados pelo evento. Burocratizou a circulação dos jornalistas e estampou a diversidade das cosmovisões nitidamente expostas pelo atordoado homem de hoje. ✱

Colaboradores da edição #67

0
MARCOS GRINSPUM FERRAZ é jornalista, formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros. Nesta edição, divide com Patricia Rousseaux a autoria da matéria sobre a artista-cientista Leticia Ramos

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Nesta edição, Maria entrevista o curador e historiador de arte Luiz Marques

JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê conversa com Raphael Fonseca, curador da Bienal do Mercosul

CHRISTIAN DUNKER é professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Nesta edição, Dunker reflete sobre catástrofe, tragédia e desastre como categorias clínicas e estéticas

CARLOS LEMOS é arquiteto, pintor, historiador e professor. Entre 1969 e 1979, esteve à frente da direção do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Nesta edição, compartilha o texto de sua autoria lido no lançamento do livro Imaginária Brasileira na Coleção Orandi Momesso, na Pinacoteca de São Paulo

Fotos: arquivo pessoal

Entre o vivenciado e o imaginado

0

Nos anos 1950, o indígena Ogwa (1937-2008) colaborou com etnólogos e antropólogos, a exemplo da húngara Branislava Susnik, atuando como uma espécie de “informante” sobre os costumes dos ishir, povos originários do Paraguai, habitantes da comunidade de Puerto Diana, às margens do rio Paraguai e ao norte do Gran Chaco. Ogwa fazia relatos dos mitos e de rituais por meio de desenhos, expressando-se melhor assim do que oralmente, pois não falava espanhol ou guarani, somente a língua de seu povo.

Posteriormente, estes desenhos passaram a adquirir o que o crítico e curador Ticio Escobar, fundador do Museu de Arte Indígena do Paraguai, chama de “uma força criativa” que os tornava algo mais do que meras crônicas etnográficas ou antropológicas. “Eles se converteram em um meio de expressão progressivamente autônomo, o que significava dar mais importância à fantasia ou ficção do que à realidade”, diz Escobar, também ex-ministro da Cultura de seu país.

Até julho, a Galeria Estação, em São Paulo, apresenta a exposição A Dança dos Mitos, que reúne não apenas as experiências artísticas de Ogwa – seis desenhos-pinturas, que fazem parte do acervo da Fundação Cartier, em Paris –, mas também a produção de sua neta, Salmi (ou Zalmi, em grafia alternativa) López Balbuena, um conjunto de 35 pinturas. A curadoria é de Fernando Allen e Fredi Casco.

No caso de Ogwa, Escobar lembra que suas criações não fazem parte de costumes dos ishir, diferentemente dos desenhos feitos nos corpos dos indígenas ou em objetos. “Sua obra foi crescendo à margem de uma tradição coletiva, embora estivesse profundamente enraizada nela”, pondera. E, ainda que representem um mesmo tema, a saber, os rituais iniciáticos dos ishir, os trabalhos de avô e neta guardam diferenças. Ogwa participou das cerimônias, sagradas por assim dizer, e a experiência ficou “marcada a fogo em sua memória, sensibilidade e visão de mundo”. Escobar prossegue:

“No caso da neta, ela se alimenta das lembranças de Ogwa. É possível que Salmi nunca tenha visto um ritual, que é a principal fonte criativa de seu avô. Mas isso não desqualifica a sua obra, e sim a coloca em outro nível de criação na qual a fantasia tem maior peso do que a fidelidade, digamos, etnográfica. É uma ligação derivada, que também dá maior amplitude aos seus próprios sonhos, à sua própria imaginação”.
Na abertura de A Dança dos Mitos, Ticio Escobar participou de um bate-papo com o sociólogo, professor e ensaísta brasileiro Laymert Garcia dos Santos. Em entrevista à arte!brasileiros, Laymert ressalta a maneira como Ogwa respeita as tradições dos ishir e as traduz com um meio de expressão que não faz parte dos costumes de seu povo, que não têm a prática do desenho “tal como a gente entende na História de Arte do mundo ocidental”.

O sociólogo aponta que, na cultura de Ogwa, o desenho é sobretudo pintura corporal. “Traços, bolinhas, movimentos, que, num certo sentido, seria como uma pintura abstrata para nós”, diz. Em seu exercício de tradução para um interlocutor não indígena, Ogwa consegue manter a potência que é própria de sua cultura, de sua cosmogonia.
“Nestas cenas mitólogicas, míticas, a gente vê, de um modo muito claro, a passagem de um universo natural para um universo sobrenatural através de uma vibração que existe no desenho, tanto na terra, na água, no mar, quanto nesta espécie de redemoinho, de vórtice, que eleva os xamãs, transforma-os em espírotos e faz a comunicação entre o mundo humano e o divino”, avalia.

Questionado por Laymert acerca de uma eventual contaminação cultural do imaginário de Ogwa pela presença do cristinianismo junto ao povo ishir, Escobar fala que há processos de aculturação que partem da sociedade hegemônica, tanto de evangélicos quanto de católicos, uma catequisação compulsiva que apaga a religiões originárias que consideram pagãs. .

“Mas há uma resistência muito forte e um movimento de transculturação a partir do qual os indígenas se apropriam de determinados elementos e os incorporam a seus processos míticos para adaptar-se a uma realidade diferente”, afirma.
Escobar afirma ainda que, em vez de uma contaminação, ele acredita que, na maioria dos casos, os indígenas vão selecionando inclusive as pautas impostas e as reorganizam de acordo com seus imaginários e seus sistemas de representação. E prossegue:
“No caso de Ogwa, os idiomas que aprendeu, para trabalhar como tradutor, o ajudaram a mover-se no mundo dos brancos, num oportunismo saudável. Mas não houve qualquer influência em seus desenhos. Não se vê de forma alguma a iconografia cristã, que é uma coreografia muito dura, muito fascista. Quando ele fala de deuses, fala de forças de energias da natureza, do significado do mundo e do significado da vida, incluindo seus princípios éticos”, conclui. ✱

Uma artista cientista

0

Por Marcos Grinspum Ferraz e Patricia Rousseaux

Ao se observar a vasta produção contemporânea, é evidente o enfoque dado pela maioria dos artistas às grandes questões que estão em debate no mundo e que afligem seu entorno. Há aqueles que se debruçam sobre as desigualdades e questões sociais, raciais ou de gênero; há os que tratam da crise climática ou das questões migratórias; existem os que dialogam mais diretamente com a psicanálise, tratando dos impactos da realidade nas profundezas da mente humana; alguns focam mais diretamente em questões formais, preocupados com as linguagens e suportes utilizados, com os avanços tecnológicos e das mídias digitais ou, por vezes, com pesquisas sobre universos geométricos e cromáticos; e assim por diante. Esta lista certamente poderia seguir longamente, sempre tendo em mente que os campos de investigação não são estanques e fechados e que, cada vez mais, o hibridismo é uma marca forte na arte de nosso tempo.

Mas ainda assim é raro encontrar uma artista que afirma de modo bastante direto, que seu campo principal de pesquisa é a ciência. E é este o caso da gaúcha radicada em São Paulo Leticia Ramos: “Eu sou uma artista, cientista”, diz ela, que realiza há quase duas décadas obras em formatos como fotografia, fotograma, filme, instalação, desenho e publicações impressas. “A ciência para mim faz parte do trabalho em sua forma analítica, nos temas tratados e métodos usados, mas sempre o ponto de partida são os fenômenos naturais, a natureza. E tendo em conta, também, o homem como parte disso, mesmo que raramente surjam figuras humanas representadas nas obras.”

Não à toa seu ateliê, no centro da capital paulista, possui não apenas uma sala de projeto, uma marcenaria e um espaço de projeções audiovisuais, mas também um laboratório com equipamentos e materiais associados aos métodos de pesquisa científicos. “É como se ali dentro, meio perdida, estivesse sendo feita uma pesquisa sobre um lugar que não existe ainda”, conta. Na mesma direção, suas viagens e residências artísticas costumam acontecer em lugares pouco usuais para o meio artístico: “Já fui para o Ártico para fotografar os ventos; já fui com um submarino para um lago sub-glacial da Antártica; já simulei quimicamente um vulcão; já fiz aparecer uma esfera misteriosa”, conta em depoimento.

Vários dos temas contemporâneos que surgem na obra de Leticia – como os impactos da ação humana no globo, a crise climática, o aquecimento global e o conceito de Antropoceno – não são tão incomuns ao mundo artístico. Mas, se normalmente são tratados sob um ponto de vista realista, de registro, representação ou denúncia, aparecem em sua produção a partir de experimentações e métodos focados nos aspectos naturais, geológicos, químicos e físicos, nem sempre ligados a casos específicos de nossa realidade, mas em ficções e mundos imaginados e atemporais. Assim, a artista trata de temas que nos são atuais sem focar neles diretamente, mas a partir do que ela chama de uma “ciência da ficção”.

Paleolítico III
Paleolítico III, impressão sobre papel de algodão a partir de polaroid, parte do projeto Bitácora. Foto: Leticia Ramos Studio.

“É uma espécie de mistura entre esses dois termos para criar uma outra paisagem, um outro lugar possível. Um lugar, inclusive, de crítica, de análise, através de um deslocamento poético do tempo natural presente”. A ficção de Leticia, é preciso ressaltar, não parte do nada, ou de uma espécie de “criação livre” de sua mente, mas de histórias e, especialmente, lugares e fenômenos do universo em que vivemos e de seus tempos passados, presentes, e, possivelmente, futuros. Mais do que focar diretamente em qualquer narrativa histórica – seja política, social ou econômica, por exemplo –, portanto, os trabalhos “partem, como argumento, de uma história da ciência”, explica ela.

A mesma ciência que vem sendo negada por grupos reacionários mundo afora – basta lembrar dos movimentos antivacina ou daqueles que afirmam que a terra é plana – é, para Leticia, um caminho não só para a compreensão de fenômenos naturais e para o desenvolvimento de soluções em diferentes campos da vida, mas é também matéria e método para a produção artística, poética, de sonhos e imaginação.

Da Lisboa antiga ao imaginário sobre Marte

Um bom exemplo para compreender a peculiaridade de seus métodos é o projeto História universal dos terremotos (2017), concebido a partir da história do terremoto que devastou a capital portuguesa, Lisboa, em 1755. Após pesquisar por meses as profundas e complexas questões socioeconômicas e políticas decorrentes da tragédia, Leticia se colocou uma questão básica, a partir do fato de que a fotografia ainda não existia à época do ocorrido: “Como falar de um evento histórico do qual não existem fotografias?”.

A partir de uma vasta pesquisa sobre ilustrações, textos e materiais de época, a artista começou a criar experimentações com diferentes procedimentos e materiais. De início, com uma lâmpada estroboscópica em diferentes velocidades, ela iluminou uma maquete da cidade portuguesa, registrando o ato com uma microfilmadora planetária, em um ato semelhante ao usado em laboratórios científicos. O projeto se desenvolveu e outras simulações de terremotos se seguiram, não mais referentes apenas ao caso português (uma delas, explica, “seria o terremoto simbólico para o Brasil, em outubro de 2018”, com a eleição de Bolsonaro”). Entre eles, chegou a realizar um experimento no Instituto de Química da USP – por questões de segurança –, gerando como resultados artísticos filmes, fotos e sons.

“As imagens de Ramos partilham do mesmo tipo de rigor metodológico empregado nos centros de pesquisa científica, mas sem a pretensão de explicar qualquer coisa”, escreve a curadora Fernanda Brenner, diretora do PIVÔ. E ela segue: “Suas simulações visuais fascinam por reiterarem o mistério e o grau de especulação que ainda residem na mais avançada das descobertas científicas”. A análise de Brenner se completa nas palavras da própria artista, que explicita ainda mais os caminhos peculiares da fusão entre ciência e arte e da dimensão misteriosa e mágica que a mobiliza: “Vejo o terremoto como uma forma abstrata, lindos freixos de luz perdidos no espaço profundo e negro, então decido uma espécie de condição ideal para um estudo, uma estrutura isolada, ainda sem história e sem contexto”.

Enquanto História universal dos terremotos foi concebida a partir de fatos passados reais, ligados a fenômenos da natureza e à vida humana, trabalhos como Grão (2016) e Microfilme (2013-2014) se projetam em tempos ficcionais futuros. O primeiro deles, um filme em 16mm realizado a partir de maquetes montadas no espaço PIVÔ, “conta a história de uma colônia humana em um planeta incógnito, onde um antigo silo de cereais foi construído”, como resume a sinopse. Ali, fenômenos naturais e mudanças climáticas fazem o silo explodir, o que resulta no crescimento “de uma estranha plantação”. Para Leticia, esta ficção não deixa de ser algo que “nós podemos imaginar acontecendo, dentro de alguns anos, após a colonização de Marte”.

Se uma história semelhante à contada em Grão pode acontecer no futuro, o caso mais marcante da ligação entre ficção e realidade dentre as obras de Leticia é Microfilme, realizada há dez anos (com apoio da Bolsa ZUM/IMS) e que parece tratar diretamente de algo que, está, tragicamente, acontecendo na atualidade. A partir da história geológica das áreas que hoje abarcam o litoral Sul do Brasil e a costa uruguaia, moldados pelo subir e descer das águas ao longo das eras, Leticia concebeu um trabalho que chamou também de O dia em que o Rio Grande do Sul vai virar mar. Utilizando microfilme e polaroids, tendo como bases Tavares (RS) e San Antonio (Uruguai), a artista imaginou uma paisagem perdida no tempo, sem humanos, resultado da instabilidade geológica que permeia a Lagoa do Peixe, a Lagoa dos Patos e o mar. As imagens fotográficas resultantes, com paisagens imprecisas, sem limites bem delimitados, resultado do ir e vir das marés e das chuvas, nos remetem diretamente aos alagamentos vividos recentemente no Sul do país.

Assim, a partir de histórias naturais, de narrativas sobre o movimento da natureza, explica a artista, “o que acontece é que vários trabalhos acabam se conectando com fatos atuais, que estão sendo causados pela crise climática”. “Mas não é a ideia de que os filmes preveem o futuro, como às vezes parece, mas é que eles são atemporais. Justamente por tratarem dessa condensação entre futuro e passado, isso faz com que consigam se relacionar de alguma forma com o presente e o contemporâneo”. Ao simular fenômenos não datados – com a utilização de pesquisas e métodos científicos ancorados em fenômenos naturais reais –, sem propor um registro exato de um acontecimento histórico, Leticia mistura tempos, confunde o público entre o que já foi, o que pode ser e, inesperadamente, o que pode estar sendo.

“Então a ficção nos permite tirar de um contexto muito específico e ancorado no presente para levar para uma coisa um pouco mais fluida. E essas ficções se ressignificam no tempo histórico. É como se com o passar do tempo o trabalho se atualizasse”, explica ela. “Eu nuca faço um trabalho pensando no tema do momento, faço trabalhos que tentam compreender os fenômenos naturais, mas também pensar como isso está representado no imaginário.”

Em síntese, conclui ela sobre a sobreposição dos tempos passados e futuros, “é essa acumulação que coloca as coisas numa perspectiva histórica extremamente contemporânea”.

Do gelo do norte ao Polo Sul

Outra obra marcante na trajetória de Leticia é Vostok (2013), que exemplifica também a multidisciplinaridade de sua obra. A artista, que já havia viajado para um período de residência no frio do Norte, no Ártico, onde realizou o projeto Bitácora (2011-2012), criou na sequência um trabalho inspirado no outro polo do globo. Em mais uma mescla de histórias reais e ficcionais, ela teve como inspiração a descoberta de um lago pré-histórico submerso, na Antártida, para o qual cientistas russos da base VOSTOK enviaram em 2012 um submarino em miniatura para recolher amostras de água. Estas amostras seriam como “cápsulas do tempo” que foram usadas para pesquisas sobre um passado longínquo, quando a Antártida começou a congelar.

Com essa história real em mente, Leticia concebeu um vasto projeto que envolve um filme – no qual é simulada, com maquetes, a exploração do lago pelo submarino –; música – que resultou em um disco (LP) –; uma cineperformance realizada com orquestra; e um livro. Para além das questões científicas e geológicas que percorrem o trabalho, Vostok levanta questões geopolíticas sobre um território que não é posse de um país, mas que gera tensões e debates entre nações. Se hoje é propriedade de toda a terra, a região corre riscos em 2040, quando haverá uma revisão do Tratado Antártico, que trata, entre outras coisas, da propriedade do conhecimento que lá é produzido.

O interesse de Leticia nos polos – seus aspectos naturais, paisagens inóspitas, o derretimento causado pelo aquecimento global e as questões geopolíticas – surge também em seu mais novo trabalho, uma série de cinco filmes intitulada (até o momento) Dropspike, mas que pode ganhar também o título de Histórias do fim do mundo. Nela, uma esfera misteriosa aparece em vários lugares da terra onde, de algum modo, a crise climática afetou ou irá afetar a paisagem. Esta bola, filmada em laboratório com miniaturas, representa uma espécie de objeto arqueológico que carrega em si algumas mensagens, como uma espécie de aviso para os humanos.

Dos cinco filmes, Leticia já concluiu três: um que apresenta duas estações na Antártida entre as quais um robô e um cientista se comunicam sobre ter visto essa esfera no horizonte; outro em que o objeto aparece no Lago Léman (Suíça), próximo a uma usina de energia que foi responsável por um alagamento no local; e um terceiro sobre uma escavação na qual esta mesma esfera é encontrada e, depois, também surge no horizonte. Todas estas histórias, segundo a artista, estão conectadas pela questão da crise climática e, mais especificamente, do derretimento das calotas polares que dela resultam. Surge aí, mais uma vez, a questão geopolítica sobre a Antártida, “este último repositório de microrganismos, fungos, relíquias arqueológicas e, consequentemente, de uma série de novidades científicas”.

Uma obra múltipla

Caberia ainda citar aqui, sobre estas e outras obras da artista, várias de suas fontes de inspiração, que para além de notícias, pesquisas e revistas científicas passa pelas obras de escritores como o chileno Benjamín Labatut, o argentino Rodrigo Fresán e a norte-americana Ursula Le Guin, que mesclam romance e teoria científica. Caberia também adentrar com mais ênfase no trabalho em laboratório, no uso especifico de materiais, nas técnicas – que incluem objetos criados pela artista, escolhas de métodos de revelação e assim por diante – e nos suportes artísticos em que as obras são apresentadas.

Sobre este tema, a artista explica: “Minha relação com esse processo de investigação é muito intensa porque há apenas um indício como ponto de partida. Preciso estar imersa nos assuntos de meu interesse para encontrar um mapa que me leve à síntese formal. Nos trabalhos, a isso se soma a reinterpretação da técnica. O meio também é investigado e irá apresentar, posteriormente, as ferramentas estéticas que serão usadas para a construção da imagem”.

Esta peculiaridade, no entanto, não faz de Leticia um “peixe fora d’água” ou um ser solitário no meio das artes, muito pelo contrário. Ramos circulou e expôs em algumas das mais reconhecidas instituições e eventos nacionais e internacionais – como as bienais do Mercosul e Sesc_Videobrasil, o Novo Museu Nacional de Mônaco, o CAPC de Bordeaux, o Instituto Moreira Salles e as sedes de sua galeria, a Mendes Wood, no Brasil, Bélgica e EUA, entre outros. De fato, trata-se de uma artista – cientista, mas, fundamentalmente, de uma artista que lida poeticamente com as possibilidades e questões relevantes de nosso tempo. ✱

‘Não vai virar a Bienal da Enchente’

0

Adiada por conta da tragédia climática que se abateu sobre Porto Alegre e o Rio Grande do Sul, a 14ª Bienal do Mercosul, que tinha 12 de setembro como sua data inaugural, agora examina uma nova expectativa, possivelmente ainda para este ano, em dezembro (mas isso ainda não está confirmado). A Bienal do Mercosul tinha, inicialmente, a estimativa de reunir um público de 800 mil pessoas e mais de 100 artistas convidados, e sua realização, no momento seguinte a um acontecimento tão trágico quanto a inundação que deixou quase meio milhão de desabrigados e 175 mortos, se reveste de grande expectativa agora.

A estratégia tradicional do evento, que está estimado em R$ 18 milhões, consiste em ocupar a maioria dos espaços expositivos de Porto Alegre, mas boa parte desses espaços – galpões e museus – fica em alguns dos lugares mais atingidos pela enchente, o que vai exigir uma nova conformação da mostra.

O curador da 14ª Bienal do Mercosul, o carioca Raphael Fonseca, demonstra cuidado em não trazer a questão da enchente para a mostra como uma contingência, algo que possa direcionar ou tolher o trabalho dos artistas convidados. O tema das mudanças climáticas já era uma preocupação constante de artistas em todo o mundo, pondera Fonseca, e ele não tem a intenção de impor isso como uma obrigatoriedade. Também não há artistas comissionados produzindo exclusivamente in loco, nas circunstâncias da enchente, ao menos até o momento.

“Eu não tenho como te dizer, nesse momento, se teremos ou não um trabalho comissionado a partir da enchente, porque tudo ainda é muito recente. Não sei. Não estou dizendo nem que não vai ter nem que vai ter. Não sei, porque tem muita coisa ainda por acontecer nos bastidores de Bienal”, afirma Fonseca. “Eu, curatorialmente, realmente nunca tenho a intenção, em nenhum dos meus projetos, de literalizar nada. Então, mesmo lidando com uma tragédia dessas proporções, eu não gostaria que a Bienal do Mercosul se transformasse, digamos assim, na ‘Bienal da Enchente’, que a gente literalizasse a tragédia da enchente em obras artísticas. Até porque, por mais que a arte possa dar conta de questões que perpassam a existência humana, fazendo um trabalho que monumentaliza, um trabalho que usa imagens documentais, enfim, essas obras seguem sendo trabalhos que se referem à tragédia, mas não conseguem, nunca vão conseguir dar conta da dor, do luto, da perda que as pessoas sentiram e sentem”, pondera Fonseca, de 36 anos, que vive em Denver, nos Estados Unidos, onde é o curador responsável pela coleção de arte moderna e contemporânea latino-americana do Denver Art Museum.

Graduado e licenciado em História da Arte pela UERJ, com mestrado também em História da Arte pela Unicamp, Fonseca é doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ e já atuou como professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, além de curador do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC Niterói). Na Bienal do Mercosul, atuarão como curadores adjuntos de Fonseca o baiano Tiago Sant’Ana e a dominicana Yina Jiménez Suriel, e a gaúcha Fernanda Medeiros será a curadora-assistente. O time ainda reúne colaboradoras como a artista carioca Andréa Hygino e a educadora gaúcha Michele Ziegt.
Os temas da contemporaneidade perpassam todo o conceito da bienal, que tem como tema geral o título Estalo. Esse mote, pela abrangência, não sofrerá mudança, informa Raphael Fonseca, que não considera necessário mudar o conceito por causa dos eventos recentes.

Estalo é adequado para denotar diversos pontos de vista artísticos, pondera, uma palavra que se acomoda também nos atos de despertar subitamente para algo, conscientizar-se, tomar conhecimento. Segundo definiu Tiago Sant’Ana, curador adjunto:
“Pensamos no estalo como uma metáfora do ponto de partida”, disse. O ‘estalar de dedos’ pode se constituir numa referência a sons, movimento, mas também a reações. “Teremos vídeo, fotografia, pintura, intervenções, uma polifonia de linguagens”, disse o curador adjunto, em entrevista recente.

Obras de artistas originários, asiáticos, latino-americanos e LGBTQIAPN+ estarão certamente na bienal. “Acho que todo curador se preocupa, e não só curador de minha geração, mais jovem, mas pessoas mais velhas também. Todo mundo tem se preocupado com essa presença de artistas de diferentes lugares: raciais, etários, geográficos, e também as diferentes linguagens”, considera Fonseca. “Todo mundo tem ampliado o seu escopo de pesquisa, na última década, no Brasil, que é um país que ainda faz muita vista grossa para indígenas. Ou seja: você olha o Canadá, olha os Estados Unidos, olha a Austrália, a Nova Zelândia. Você tem ali décadas de artistas dos povos originários constando das mostras. São também curadores, diretores de museus, e essa discussão, infelizmente, ainda é muito recente aqui na América. A gente, obviamente, está atento, tem pesquisado, e a nossa bienal vai refletir essa preocupação também”.

O adiamento da mostra foi informado há um mês por meio de uma nota da direção. “Devido aos desafios enfrentados após a tragédia climática em nosso estado, a 14ª edição da Bienal do Mercosul será adiada”, informou a nota. “Esse é um momento importante de solidariedade, união e reconstrução – e a arte tem um papel decisivo nesse processo. A Bienal vai acontecer na hora certa para reanimar o setor artístico e atrair visitantes de volta à Capital. Em breve anunciaremos a nova data, buscando sempre celebrar a arte, a cultura, a união e a superação”. ✱

‘Nordeste Expandido’ aporta em Natal

0

Lançado em novembro do ano passado, em Recife (PE), o projeto Nordeste Expandido: estratégias de (re)existir já passou por Fortaleza e tem novas datas para a sua itinerância: entre os dias 4 e 6 de julho, a Pinacoteca Potiguar, de Natal (RN), recebe o seminário que acontece em paralelo à exposição.

A mostra é resultado de um processo cultural levado a cabo nos nove estados do Nordeste, e ainda em parte de Minas Gerais e Espírito Santo. Em exibição, obras que vêm sendo adquiridas para a Coleção BNB, em sua maioria pinturas, ainda que não houvesse uma preferência de suporte a priori. O projeto vai circular pelas demais capitais do Nordeste e ser apresentado também em Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES). A parada final deve ser em Salvador (BA).

O seminário Nordeste Expandido tem por objetivo “articular o fazer artístico com as diversidades raciais, étnicas, de gênero e de território das artes visuais”. E também jogar luz sobre o processo de construção da exposição e, consequentemente, da coleção, que une popular e contemporâneo, sem hierarquizações.

Nicolas Soares (ES), diretor do MAES – Museu de Arte do Espírito Santo, é um dos curadores das Novas Aquisições do Banco do Nordeste no Nordeste Expandido, e esteve presente nos seminários de Recife e Fortaleza. Ele ressalta a importância de que estas obras, em boa parte de artistas nordestinos, estão sendo vistas por um público no próprio Nordeste.

“Boa parte da produção artística desse Nordeste expandido não tem tanta circulação e visibilidade no sistema da arte hegemônico, que está muito centralizado em São Paulo, principalmente”, pondera. “E a produção discursiva desses lugares também é geralmente vista de modo um tanto exótico e distanciado, etnográfico e antropológico. Algo que não faz parte de uma construção epistemológica, estética e imagética do que é, no fim das contas, o Brasil”.

Soares salienta que o projeto tem relevância não somente “pelo tamanho da proposta”, mas por se concentrar nesta produção de imagens, conceitos, pensamentos, que, fora do Nordeste, não se acessa. “Pela minha participação nos seminários, vejo que há também correspondências entre as produções de cada lugar, que poderiam permitir mais aproximações, diálogos e parcerias, num contexto que, de certa maneira, fazem mais sentido”.

Em Natal, as chamadas rodas de conversa do seminário terão a participação dos seguintes artistas e pesquisadores:

Programação

DIA 4/7

17h
NA LUA CLARA VEM DANÇAR: Força, existência e devir. A pintura e o desenho através das experimentações do corpo. Com Heitor Dutra (PE), Consuelo Véa Coroca (RN), Alcino Fernandes (RN), Iyá Boaventura (BA), e mediação de Max Pereira (RN);

19h (Abertura da exposição)
BRINQUEDO: DE ONDE SURGEM OS SONHOS? Performance de Tieta Macau (MA).

DIA 5/7

8h-19h
PROJETO “TRABALHO ABSTRATO”. Performance de Ton Bezerra (MA);
16h
PALAVRAS GERADORAS – Arte e educação atreladas aos movimentos da cidade. Com Civone Medeiros (RN), Fabíola Alves/ Acervo Rossine Perez (RN) e mediação de Sanzia Pinheiro (RN);

17h30
VIR VER OU VIR – Pensar social e antropológico sobre a arte. Com Manoel Ricardo (PI), Maria do Mares (PB) e Claudia Nên (SE). Mediação de Soa Bauchwitz (RN).

DIA 6/7

9h
VENTO A VIDA ESPALHOU – O fazer fotográfico e os experimentos da imagem. Com Gabi Coêlho (AL), Osani (RN), Barbara Carnielli (ES). Mediação de Paula Lima/ Margem HUB (RN);

11h
CANTO E DANÇO QUE DARA – Contornos políticos e sociais das estruturas corporais. A pensar nos movimentos transitantes. Com Ton Bezerra (MA), André Bezerra (RN), Tieta Macau (MA). Mediação de Max Pereira (RN). ✱