Na penúltima semana de setembro, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, abrigou o seminário Ensaios para o Museu das Origens: políticas da memória, iniciativa que dialogou com a Proposta para a Fundação do Museu das Origens, documento redigido pelo crítico de arte e professor Mario Pedrosa (1900-1981), por sua vez ponto de partida para a exposição Ensaios para o Museu das Origens, que a instituição realizou entre setembro de 2023 e janeiro de 2024, em parceria com o Itaú Cultural.
Na conferência Museo del Barro e Museu das Origens: crítica instituinte e políticas da memória na América Latina, a crítica de arte e curadora Lia Colombino ressaltou que a criação da instituição foi um gesto de resistência política. O museu foi criado em 1979 pela artista visual Olga Blinder e por Carlos Colombino, pai de Lia, no Paraguai, que à época ainda vivia sob o regime da ditadura militar imposta em 1954, pelo general Alfredo Stroessner, que só viria a ser deposto em 1989.

Hoje diretora da instituição, – de caráter privado, e que abriga uma vasta coleção de cerâmica indígena, como indica seu nome –, Lia iniciou sua fala citando três frases. A primeira, de Carlos Colombino: “O Paraguai não é o sonho de ninguém”. A segunda, do crítico, curador e professor Ticio Escobar, ex-ministro da Cultura do país: “O Paraguai é um país difícil de se viver, mas tem como contrapartida, como compensação às vezes, a força de suas diversas culturas”. A última, do antropólogo espanhol Bartomeu Melià: “Não há como viver no Paraguai se você não o inventar todos os dias”.
Após as citações, Lia descreveu o cenário das instituições artísticas durante o regime miltar: “Algumas delas eram um reflexo fiel da situação política: a ditadura stroessnerista; outras, eram ultraconservadoras ou não assumiam uma posição. Assunção carecia de espaços alternativos; e os grupos, movimentos ou tendências eram geralmente representados por uma única pessoa ou por algumas dela”.
O Museo del Barro, contou Lia, é composto de três coleções que nasceram separadamente, tornando sua história fragmentada: coleções de arte popular e a arte dos grupos indígenas, e diferentes expressões de arte na tradição ocidental. A proposta da instituição, disse, é que o tratamento das obras seja feito de forma que a arte popular e indígena seja colocada em pé de igualdade com a arte de tradição ocidental.
“O projeto tem como objetivo também refutar o mito oficial que reduz a produção simbólica popular e indígena ao ‘folclórico’, ‘autóctone’ e ‘vernacular’; ao ‘nosso’, como se esse ‘nós’ fosse a mesma coisa”, ressaltou.
Em entrevista à arte!brasileiros, Lia também salientou que o Museo del Barro não é um museu de arte ou etnográfico. A perspectiva é a perspectiva da arte, afirmou, mas o seu objetivo é extra-artístico, tem a ver com o direito à diferença.
“Este museu, que também contém todas essas questões vai além da própria ideia do que é um museu, porque inicia um relacionamento com essas comunidades [rurais e indígenas], e busca, mesmo que em pequena parte, melhorar suas condições de vida”.
Lia Colombino também ponderou que, embora o museu seja uma entidade privada, que não tem impacto direto nas políticas públicas, ainda assim a instituição sempre discutiu a questão decolonial, mesmo quando a palavra não existia.
“Os estudos que o museu começou a desenvolver já na década de 1980, com livros de Ticio Escobar, como O mito da arte, o mito do povo, (0:31) ou, um pouco mais tarde, com A beleza dos outros, já eram visões decoloniais daquela ideia de arte, que tentavam romper um pouco com um certo cânone ocidental, eurocêntrico”, argumentou. “Embora o museu não influencie diretamente, ele o faz de forma tangencial e talvez, mais lentamente, essas questões estejam se normalizando um pouco mais.”
Em seguida à preleção de Lia Colombino, os organizadores do seminário – Ana Roman, Izabela Pucu, Lia Colombino e Paulo Miyada – fizeram considerações acerca da instituição do Museo del Barro à luz das proposiçõses para a criação do Museu das Origens, feitas em 1978 por Mario Pedrosa, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro havia sido sofrido um incêndio.
Isabela Pucu iniciou sua participação lembrando que as propostas de Pedrosa estavam amplamente enraizadas “nos processo de luta pela redemocratização” do Brasil, que à época estava também sob o regime ditatorial militar. Ou seja, num cenário sociopolítico similar àquele em que surgiu o Museo del Barro. Segundo Isabela, por um lado, a iniciativa também engendrava “uma crítica às narrativas instituídas sobre as matrizes constitutivas das origens do Brasil”, e, por outro, cogitou “uma alternativa concreta instituinte ao sistem cultural vigente, às formas de fazer museu e memória, com uma proposta pautada pela colaboração e o sentido de comunidade”.
Na sequência, Paulo Miyada propôs refletir sobre a estrutura e política do projeto de Pedrosa, e ponderou que ambas iniciativas – Museo del Barro e Museu das Origens, nunca concretizado – nasceram em contextos em que não há nenhuma garantia de vida democrática, de uma ideia de nação que não seja uma ideia de sistema totalitário de poder”.
Curador do Instituto Tomie Ohtake, Miyada também fez uma reflexão acerca da instituição: “A gente não está propriamente num museu, a nossa obrigação de memória é de honrar o nome de uma grande artista brasileira, nascida no Japão. Não temos um acervo, mas somos um espaço de cruzamento e troca de experiências e repertórios”, afirmou.
O curador também observou que o instituto passou a se questionar como ele se insere “neste mundo, de maneira renovada, conforme o espaço ao redor, o tecido social, os pactos sociais que sustentam nosso cotidiano foram se mostrando cada vez mais frágeis”, nos últimos dez anos.
Miyada lembrou da mostra Osso: Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga, realizada em 2017 no ITO, e em referência a Rafael Braga, um catador de latas jovem e negro, detido nas manifestações de junho de 2013 por portar frascos contendo desinfetante e água sanitária. Em seguida, o Instituto realizou a exposição AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de acabar, na virada de 2017 para 2018, um momento em que diversas mostras pelo país estavam sendo censuradas ou sofrendo tentativas de fechamento.
“A gente achou que um monte de museus e espaços culturais de São Paulo poderiam se unir para falar como, nos 50 anos de acirramento da ditadura militar, as coisas não estavam bem resolvidas”, disse. “Ninguém quis, mas os artistas e pesquisadores somaram forças, e esse projeto aconteceu”.
Com a eleição de Bolsonaro, argumentou Miyada, a ideia de “ainda não terminou de acabar” que estava no racismo estrutural e nas atualizações dos esquadrões da morte e das milícias “ganhou um avatar mais literal” na figura do então presidente. Reflexões assim, sugeriu Miyada, também devem ter estado em jogo quando Pedrosa pensou no Museu das Origens.

Em sua apresentação, Ana Roman destacou o aspecto coletivo do processo de construção da exposição Ensaios para o Museu das Origens, realizada de setembro de 2023 a janeiro de 2024 no ITO. Segundo Ana, foi uma grande oportunidade de aprender a fazer museus, algo que se dá maneira muito distinta Brasil afora. No seminário, em participações como a de Lia Colombino, foi possível entender como a proposta de Mario Pedrosa ecoa outras iniciativas ocorridas na América Latina.
“Nos interessa olhar esses outros projetos latino-americanos que estão pensando cultura, política e comunidade. Entender de que maneira eles têm intersecções ou se distanciam”, explicou Ana à arte!brasileiros. ✱