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Sesc-SP: Retomada gradual de atividades presenciais e sucesso da proposta digital

Sesc-SP reabertura

Em entrevista à arte!brasileiros, Juliana Braga de Mattos, Gerente de Artes visuais e Tecnologia do Sesc-SP, fala sobre o trabalho da instituição no período da quarentena, tanto através da plataforma Sesc Digital e das redes sociais quanto das ações na área de saúde. Ela conta também que o Sesc-SP, com suas 40 unidades espalhadas pela capital e pelo interior do estado, inicia uma cuidadosa e gradual reabertura presencial de suas unidades, o que inclui a inauguração de pelo menos dez exposições até o fim do ano. Assista ao vídeo gravado no Sesc Pompeia, unidade que abre em breve a exposição Farsa, com trabalhos de arte contemporânea de artistas do Brasil e de Portugal.   

 

 

Acervo Comentado VB: Liu Wei por Márcio Seligmann-Silva

Cena do filme SARS (2003), de Liu Wei. Foto: Cortesia Videobrasil.
Cena do filme SARS (2003), de Liu Wei. Foto: Cortesia Videobrasil.

No novo episódio do Acervo Comentado Videobrasil, o crítico e teórico Márcio Seligmann-Silva [1] fala sobre a obra SARS (2003), do cineasta chinês Liu Wei.

Liu Wei é um cineasta independente que vive e trabalha em Pequim. Ele nasceu na província de Hei Longjiang, na República Popular da China, em 1965 e se formou na China Central Academy of Drama em 1992, completando seus estudos no Departamento de Filosofia da Universidade de Pequim em 1995. Seus trabalhos estão intimamente relacionados à experiência e memória pessoal, bem como à realidade e à rápida mudança da história da China contemporânea.

Os filmes de Liu Wei já foram exibidos no Festival de Vídeo de Nova York, The European Media Art Festival, Experimenta Media Arts Festival, Berlin International Media Art Festival, e em três edições do Sesc_Videobrasil. Sua filmografia reúne as seguintes obras: The City of Memory (2000), Underneath (2001), Sars (2003) A Day to Remember (2005), Year by Year (2005), Hopeless Land (2008) e Unforgettable Memory (2009).

Talvez dos trabalhos de Liu Wei, um dos mais conhecidos seja A Day to Remember (2005), realizado em parceria com Susie Jakes. A premissa do documentário é simples: Liu passa o aniversário de 2005 do massacre de Tiananmen andando pelos lugares perguntando às pessoas “você sabe que dia é hoje?” e filma as respostas. Por mais famoso que seja o massacre de Tiananmen (4 de junho de 1989) fora da China, o evento é pouco conhecido dentro da nação. Justamente essa vasta amnésia, a autocensura imposta pelo governo Chinês, que Liu explora neste filme, procurando entender como, em um país tão cosmopolita como a China, isso pode ser possível.

“As reações no rosto das pessoas à medida que processam sua pergunta e as maneiras como tentam responder é uma representação poderosa do que significa ter seu governo suprimindo à força a memória de um doloroso evento nacional. Alguns parecem sinceramente inconscientes, alguns encontram uma maneira de sinalizar seu entendimento sem dizê-lo abertamente. Outros simplesmente fogem, tão sensível é a memória de Tiananmen que até mesmo perguntar a data em 4 de junho pode assustar as pessoas e fazê-las fugir”, aponta o jornalista Max Fisher.

Sars (2003)

A obra compara o poder do vírus da Sars, pneumonia que se alastrou a partir do sul da China e infectou milhares de pessoas em 2003, ao da mídia chinesa, que corrói a compreensão da realidade ao martelar imagens propagandísticas de alegria e prosperidade absoluta. No vídeo do Acervo Comentado, comparando a epidemia de Sars à da Covid-19, Seligmann-Silva reflete sobre as relações entre arte e política.

“Também agora os Estados se mostram como gestores da vida e da morte. Os Estados totalitários, como a própria China, se revelam agora como máquinas biopolíticas bem oleadas que conseguem impor lockdown com rigor militar e podem contar com a disciplina de uma população amestrada pelo medo”, aponta Seligmann. E ele complementa: “Já Estados geridos por políticos populistas, neoliberais, como o caso do Brasil e dos Estados Unidos, se mostram como máquinas de necropolítica negacionistas. Esses políticos apostam na maximização, como sabemos, dos lucros, e na máxima exploração do trabalho e das classes trabalhadoras, não importando se isso custa vidas”.

Sobre o Acervo Comentado

Acervo Comentado Videobrasil é uma nova parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória.

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1]Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de, entre outras obras, “Ler o Livro do Mundo” (Iluminuras,1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), “Adorno” (PubliFolha, 2003), “O Local da Diferença” (Editora 34, 2005 vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006), “Para uma crítica da compaixão” (Lumme Editor, 2009) e “A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno” (Editora Civilização Brasileira, 2009). Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra e México.

 

Para Nelson ou os perigos da fúria interpretativa

Nelson Leirner, "Você Faz Parte II", 1964. Madeira, aço cromado, espelho e aglomerado de madeira. 111,3 x 111,3 x 10,2 cm. MAC-USP.

I.

Uma obra do Museu de Arte Contemporânea da USP que sempre me intrigou é, Você faz parte II, produzida por Nelson Leirner em 1964. Penso nela e logo me vem à mente sua estrutura modular em grade e, como contraponto, o humor do artista preenchendo cada um dos módulos com representações de fechaduras e chaves, com exceção de um deles, representando uma fechadura vazia com um espelho em lugar da chave[1]. Sempre pensei sobre o que aquela obra significava ou poderia significar, pois a fúria interpretativa que a quase todos assola nunca me abandonou, apesar das leituras que fazia (e ainda faço) sobre seus perigos[2].

Quando redigia Nelson Leirner. arte e não Arte[3], antes de escrever sobre a obra, preferi indagar Leirner sobre como surgira a ideia da peça (e da série toda), qual o significado dela para ele etc. Ouvir o artista é uma espécie de “obrigação metodológica”, uma crença de que a “verdade” de qualquer trabalho é detida apenas por seu autor; que só ele ou ela pode dar a interpretação “mais correta” sobre ela. Sempre duvidei da veracidade dessa crença. Entretanto, durante a redação do livro, antes de escrever sobre Você faz parte II, achei prudente enviar um e-mail para Nelson perguntando-lhe sobre a obra e a série. Ele me respondeu o seguinte:

“A exposição da Atrium, por incrível que pareça, nasceu em um cemitério judaico, onde as famílias compram quadras, pois na nossa religião não se pode erguer monumentos aos mortos. E foi numa quadra com todos os lotes cobertos por lápides de mármore preto que percebi um somente coberto por terra, como que esperando a chegada do corpo a ser sepultado. E deu para perceber que, nesse cemitério na Vila Mariana, dentro de pouco tempo a ‘ludicidade’ da vida não mais existiria. A equação para a exposição estava formada, o resto foi uma questão de jogo”[4].

Fiquei frustrado com a resposta, repleta de questões pessoais que não me interessavam e que somente anos depois despertariam minha atenção. Lembro que absorvi e instrumentalizei positivamente parte do depoimento – a questão lúdica dos trabalhos – fazendo questão de citar seu depoimento em nota de rodapé, acrescentando no final:

“… Como é possível notar, Leirner percebeu, numa quadra de um cemitério judaico, com um lote vago, a base do jogo entre a vida e a morte, o que confere a todos os trabalhos apresentados na Atrium um outro potente sentido alegórico, até então insuspeito [5]

Feito esse comentário, segui a análise sobre as obras do artista destacando interpretações que levavam em conta algumas de suas potencialidades alegóricas (sobre as quais voltarei a falar).

***

Estar focado em outras possiblidades interpretativas para Você faz parte II me impediu de examinar seu depoimento atento a outro dado importante do percurso de Leirner: além das duas primeiras obras da série Você faz parte dos anos 1960, em 1990 ele produziu outro trabalho que se integraria ao grupo – Você faz parte, hoje no MAM SP. E, a partir de 2000, Leirner continuaria dando continuidade à série.

Quanto à obra do MAM SP, apenas achava curioso o fato dela remeter às obras do início de carreira do artista (pelo título e pelo uso do espelho), e só. Quanto a Leirner voltar à série em 2000, também não dei a atenção devida. Para mim elas não passavam de irônicas respostas de Nelson ao mercado, naquela época ávido por possuir as obras mais radicais do seu começo de carreira ou, pelo menos, novos exemplares que remetessem à sua produção inicial. Afinal, apesar da longa trajetória como artista e professor, Leirner só foi reconhecido a partir da segunda metade dos anos 1990[6]. Quando, a partir daí começam a surgir colecionadores interessados em suas obras, não me espantou que o cinismo e a ironia de Leirner o levassem a retomar a série que praticamente havia marcado seu debut na cena brasileira. Afinal, desafiar a instituição arte – e, dentro dela, o mercado –, sempre foi um dos seus objetivos. Nunca discuti essa questão com ele e, passados tantos anos, ainda não descarto de todo a possibilidade da série Você faz parte ter ressurgido no início dos anos 2000 como uma operação para atiçar o mercado (em todos os sentidos).

Contudo, existe outro aspecto dessa retomada de Você faz parte que somente agora começa a fazer sentido para mim: afinal, Nelson optou por resgatar aquela série em especial, e não qualquer outra produção que desenvolvia no início de carreira. Ele insistiu em repetir uma série que pode ser entendida como fruto de uma experiência perturbadora e, ao que parece, não resolvida. Refiro-me ao que Nelson vivenciou ao visitar o Cemitério Israelita da Vila Mariana, em São Paulo. Afinal, quem aquele lote “coberto de terra” estava esperando, a não ser o próprio Leirner?[7]

Ao que tudo indica, não ter conseguido superar aquela experiência explica as razões que o levavam a, de tempos em tempos – e por meio das mais diversas circunstâncias –, reviver o abalo que vivenciou no cemitério.

Capa do livro: CHIARELLI, T. Nelson Leirner. “arte e não Arte”. São Paulo: Takano, 2002.

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Durante muito tempo acreditei que, por mais curioso que pudesse ser pensar a série Você faz Parte como a repetição ritual de uma perturbação vivida por Leirner, tal fato dizia mais sobre o artista do que sobre a série. O próprio Nelson parecia insatisfeito com apenas essa conexão entre a série e o episódio do cemitério, se apressando em chamar a atenção, no e-mail citado, para a dimensão provocativa e lúdica nos trabalhos exibidos na Atrium[8], retirando o protagonismo do “conteúdo” da série e preferindo pensar no “aqui e agora” de cada uma das peças enquanto signos e proposições.

Hoje, respeitando o posicionamento de Leirner, e tomando cuidado em relação às possíveis investidas daquela “fúria interpretativa” citada no início, creio ser possível usar esse dado de sua biografia para propor algumas interpretações possíveis para Você faz parte II, respeitando sua autonomia enquanto obra, mas levando em conta sua importância no percurso do artista na arte brasileira.

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Você faz parte II é uma provocação. Ao colocar uma série de representações de fechaduras (16 ao todo) em que apenas uma está sem a chave que a “tranca”, Nelson induz a pessoa a se aproximar para mexer naquelas chaves ou, no mínimo, olhar através do buraco da fechadura. Sabendo ser impossível tocar na obra (por mais tentador que seja), ela se aproxima para espiar pelo buraco na única fechadura vazia e aí, então, a surpresa: tendo colocado um espelho no lugar da chave, ao invés de revelar algum mistério oculto do “outro lado” da obra, Leirner desarma a expectativa da pessoa, jogando-a para fora da obra, para o espaço que ela ocupa na sala de exposição.

Essa frustração se dá porque a tradição artística do Ocidente – e aqui me reporto, sobretudo à pintura – comportou-se como uma janela para a contemplação de uma realidade em que a perfeição e a beleza reinariam como antídotos às imperfeições do mundo “real”. A obra de Leirner, ao mimetizar aspectos da pintura, comporta-se como tal: retangular e bidimensional, e presa à parede, confunde-se com as pinturas ao seu redor, para melhor frustrar quem a observa.

Meio pintura, meio objeto, ela evoca a última obra de Marcel Duchamp, Étant donnés, produzida entre 1946 e 1966, hoje no Museu da Filadélfia. Frente a ela a pessoa é levada a se aproximar de uma porta com dois buracos (um para cada olho) e observar um corpo nu de mulher segurando uma lamparina na frente de uma paisagem. Você faz parte II, 1964, poderia ser o “comentário” de Leirner sobre essa obra (Duchamp sempre foi uma referência para ele). Porém, além de Étant donnés ter vindo a público após a produção de Leirner, ela premia o espectador vouyeur que, ao colocar os olhos nos buracos da porta encontra uma cena onírica, erótica e alegórica. O trabalho de Leirner, não. Ele faz o contrário: o espelho colocado na fechadura repele a possibilidade de introduzir a pessoa em uma outra realidade. O espelho o joga continuamente para fora da “Arte” e para dentro do espaço físico em que a obra e a pessoa que observa estão situados.

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Aracy Amaral, em Arte paulistana, atenta para como a peculiar “relação arte/indústria é percebida com transparência em Nelson Leirner a partir de fins desses anos 60”[9]. De fato, uma das características de sua obra é o uso de material industrializado. Porém, essa característica “paulistana” já estava presente em suas produções exibidas em 1965, visível, tanto no acabamento industrial (sem indicações da “mão” do artista), quanto na configuração modular que a elas outorgava, remetendo-as à arte construtiva em sua desinência paulistana, o concretismo. Porém, é problemática essa relação de Você faz parte II com o concretismo. Aquelas formas representando chaves dentro de fechaduras, como num mostruário de loja de fábrica, comprometem o rigor concreto, ao mesmo tempo em que solapam qualquer positividade do industrialismo paulistano, uma vez que “falta” uma chave no mostruário.

Em Nelson Leirner. arte e não Arte, refleti sobre a peculiaridade das obras que integraram a exposição na Atrium, em 1965[10]. Praticamente todas – Que horas são, Dona Candida?, Acontecimento e Responda, se puder[11] – possuíam constituição modular, remetendo-as à lógica industrial e à “herança” concretista. Essa racionalidade, por sua vez, era sempre desmentida por algum elemento: uma fechadura sem chave, uma série de ratoeiras em que apenas uma prende um rato, uma série de relógios que não funcionam[12]. Essa crítica à racionalidade, ao desprestigiar a lógica capitalista ali entranhada, imantava os trabalhos com um caráter humorado e lúdico, levando o público a acreditar que estabelecia uma relação menos cerimoniosa com elas. Porém, essa possibilidade de participação que os trabalhos sugeriam (trocar as chaves de lugar, mexer nos ponteiros dos relógios etc.) era ilusório.

Aparentemente “afáveis”, aquelas obras se comportavam estrategicamente como obras tradicionais, não se sujeitando à dominação do público, à catarse participativa[13].

A partir desse limite entre a aproximação e a recusa à submissão aos desejos do/da visitante, elas como que obrigavam a pessoa a perceber o espaço real de exibição em que se encontrava, tornando-a atenta ao fato de que não vivenciar as experiências lúdicas que aqueles trabalhos sugeriam era conscientizar-se de que estava imersa em outro jogo: aquele do sistema da arte que ela integrava, querendo ou não. Você faz parte II descoloniza da ideologia, a pessoa e a arte, fazendo com que a primeira se conscientize também dos equívocos da arte “participativa”, antecipando em dez anos Espelho com luz, de Waltercio Caldas[14].

II.

Leirner, com Você faz parte II, parecia interessado em provocar a pessoa que a contemplava, impedindo-a tanto de “viajar” através dela, quanto de, com ela, criar qualquer tipo de interação “participativa”. Seu objetivo, parece, era obrigar o/a espectador/a perceber-se como integrante de um sistema que já o/a precedia e sem dúvida o/a sucederia, do qual apenas podia ser refém e cúmplice.

***

Foi o desconforto de Nelson perante a dimensão implacável da morte que o fez povoar seu percurso com diversas configurações dessa espécie de mantra: “você faz parte”. É como se ele sentisse a responsabilidade de sempre lembrar quem contemplasse sua produção de que a vida é constantemente ameaçada pela morte. Daí a continuidade da série após 1964. Porém, como esse sentido original que o motivou a realizar tantas obras com o mesmo título nunca foi revelado ao público – permanecendo não manifesto nas configurações assumidas pelas peças que integram o conjunto –, essa não revelação aparentemente neutralizou aquele o objetivo original, conferindo-lhe outro sentido.

O que persiste em todas as obras da série é a presença do espelho, a jogar aquele/a que observa para fora da obra, para o espaço em que se encontra. E se a pessoa que contempla não alcança o jogo entre vida e morte que deu origem aos trabalhos, é previsível que ela, então, perceba a si mesma como participante de um outro jogo – o jogo da arte, do sistema da arte que a pressupõe, mas que a precede e sucede.

Foi por isso que, ao me referir à suposta neutralização do sentido original dos trabalhos da série, usei o advérbio “aparentemente”. E isto porque, Você faz parte II, de 1964 – e todos os trabalhos que se agregam à série –, metaforiza a similitude entre a situação do/a observador/a, tanto em relação à morte quanto ao próprio sistema da arte: a impossibilidade irrecorrível de escapar a ambos.

*

Você faz parte II, 1964, assim como todos os outros trabalhos do mesmo grupo, refletem aleatoriamente o que se encontra à sua frente, seja a sala de uma residência ou de um museu e, neste sentido, são obras cujo sentido estrito será sempre circunstancial. Em síntese, são trabalhos sempre dependentes de suas relações com o entorno.

Em 1963, portanto um ano antes da peça criada por Nelson Leirner, e na mesma galeria em que o artista a exibiria, Waldemar Cordeiro apresentou uma pintura em “técnica mista” (óleo e espelho sobre tela) à qual conferiu o título Opera aperta. A expressão em italiano remetia em parte às origens do artista[15], mas, sobretudo, ao livro homônimo do ensaísta italiano Umberto Eco, publicado no ano anterior naquele país.

Waldemar Cordeiro, “Opera aperta”, 1963, óleo, espelho, colagens s/ tela, 75 x 150 cm. Col. Família Cordeiro.

Opera aperta, 1963, representa, talvez, o momento mais importante da carreira de Cordeiro, quando ele faz penetrar em sua prática de artista, anteriormente ligado à experiência concretista de São Paulo, elementos hauridos do cotidiano: fotografias, folhas de jornais, rodas de bicicleta, tampas de garrafa, espelhos. Opera aperta enfatiza também sua estrutura em grade, cara ao modernismo em geral e caríssima às vertentes construtivas e concreta: em uma tela convencional, Cordeiro dispôs quatro linhas horizontais, cada uma delas ritmadas por dez superfícies espelhadas quadradas, sendo que na primeira e terceira linhas as séries de dez quadrados têm início a um curto espaço da lateral esquerda da tela, enquanto os espelhos da segunda e da quarta linhas têm início a partir de uma distância maior da mesma lateral.

Se não fosse esse arranjo rítmico dos espelhos proposto por Cordeiro, eles configurariam uma disposição allover ao campo pictórico, semelhante àquela proposta por Nelson Leirner em Você faz parte II. Essa escolha de Cordeiro acaba conferindo a Opera aperta a obediência ao conceito de composição pictórica tradicional (não existe uma real quebra da relação figura/fundo tão cara à grande pintura europeia). Este fato, no entanto, não lhe retira o elemento principal que é a sua dimensão acidental, sua capacidade de mudar de significado a cada ambiente em que é inserido e a cada espectador/a que se colocar à sua frente. De fato, os quadrados espelhados, conferindo-lhe um componente aleatório, neutraliza sua composição de cunho tradicional.

Apresentar essa pintura de Cordeiro nessas considerações sobre a produção de Nelson Leirner não tem como objetivo reivindicar para o primeiro a primazia da introdução de espelhos em obras de arte em São Paulo, uma questão, por si só, inócua. A utilização do espelho em Opera aperta, pelo então ex-líder do concretismo paulista, por outro lado, não significou a continuidade dessa operação por parte do artista, uma vez que Cordeiro encaminharia sua produção para outras questões que o distanciaram de qualquer relação efetiva com a crítica à instituição arte – o contrário da trajetória de Nelson.

O que justifica a lembrança dessa obra de Cordeiro é atentar para o fato de que, em São Paulo, na primeira metade dos anos 1960 havia um processo de aprofundamento da dimensão experimental da arte, sem um rompimento com as normas estabelecidas pela tradição, como ocorria em alguns segmentos artísticos do Rio de Janeiro – os trabalhos de Helio Oiticia, Lygia Clark e mesmo Ligia Pape.

Se nesses últimos era perceptível uma busca de interação entre obra e espectador – com todo o radicalismo e riscos que essa intenção guardava –, nota-se que, em São Paulo, esse contato mais próximo entre obra e espectador continuava mediada, digamos assim, pela própria manutenção de certos esquemas estabelecidos pela tradição artística: a pintura, os limites para a manipulação. Tal atitude (consciente ou não), embora aparentemente mais conservadora trazia, no entanto, aquele dispositivo crítico de enfrentamento dos próprios limites do sistema da arte que somente a partir de alguns poucos anos mais à frente começaria a ser explorado por artistas mais jovens.

***

Cildo Meireles, “Espelho cego”, 1970. Madeira, massa de calafate, letras de metal em relevo, 36 x 49 cm. Coleção Particular.

Espelho cego, 1970, de Cildo Meireles pode abrir uma interessante reflexão sobre o espelho, esse dispositivo tradicionalmente voltado para o olhar, desviado agora para um outro sentido, o tato[16]. A matéria (um tipo de borracha) colocada no lugar do plano refletor na peça de Cildo, e mais o título do trabalho em inglês e o nome do artista invertidos e em relevo, atiçam o/a espectador/a a manipular aquele objeto, com o intuito de percebê-lo em sua dimensão física. Supondo que tal manipulação seja possível – difícil, uma vez que a obra quando em exibição deve ser salvaguardada do contato físico dos visitantes –, pergunto-me, até onde o/a espectador/a seria levado/a por essa experiência? Diferente dos Bichos, de Lygia Clark, Espelho cego não se transforma quando manipulado e, portanto, a experiência de manejar, quando finda, deve levar a uma pouco prazerosa sensação de frustração. O/a espectador/a, após olhar envergonhado/a para os lados, devolveria a peça para o seu lugar. Tal sensação seria a mesma a ocorrer se ele/a, o/a visitante, simplesmente observasse a peça, sem tocá-la.

Para que serve um espelho cego exceto para que, passados alguns segundos de contemplação, os olhos do/a visitante comecem a percorrer o espaço em que ele/a e o “espelho” se encontram? Interessante como, mesmo sem refletir o entorno – como é o caso de Você faz parte II –, Espelho cego igualmente faz ressoar na mente do/a observador/a a consciência do espaço institucionalizado da arte, seus limites e regras.

O mesmo poderia ser dito sobre Você é cego, 1972, de Waltercio Caldas. Uma montagem composta por uma base em forma de pedestal e, sobre ela, um objeto representando um cavalete e uma pintura. Na base, o título: Você é cego.

Waltercio Caldas, “Você é cego”, 1972.

O interesse de Caldas por frustrar toda possibilidade do/a espectador/a “entrar” nas obras, sendo obrigado/a a conscientizar-se do espaço concreto em que ele/a e o objeto de arte que contempla se encontram, ganha sua maior expressão, talvez, na obra aqui já mencionada, Espelho com luz, 1974: um espelho emoldurado em forma de quadro, tendo no canto inferior direito um pequeno botão que acende uma lâmpada vermelha acima dele.

Ronaldo Brito, em um texto sobre a obra do artista, associa, não sem razão, Espelho com luz a uma crítica à arte “participativa” de então, e ao interesse pelas perspectivas supostamente novas levantadas pelo mito da “obra aberta”, que ganhava maior força a partir da já citada publicação de Umberto Eco. Brito se posiciona sobre a obra:

“… Mas não. O Espelho com luz está mais perto de ser uma obra fechada. Nesse fechamento, nessa recusa, estaria sua inteligência crítica. Como vimos, a crueldade é justamente a capacidade de não entregar sentido, em suma não comunicar (oráculo do idealismo tecnicista dominante). A luz vermelha que se acende no espelho proíbe a entrada, barra o acesso ao interior da obra. Mais ainda, torna patente que há apenas um espelho e uma luz: não há uma cena…”[17]

Sim, na verdade há uma “cena” ali: o reflexo do/a visitante eventual, (frustrado/a pelo fato de nada acontecer depois de ter apertado o botão) e o seu entorno, o espaço em que a obra e ele/a estão inseridos.

***

Estabelecida essa relação tão proteica e inesperada entre Você faz parte II, Opera aperta, Espelho cego, Você é cego e Espelho com luz, creio poder terminar este texto levantando uma possível dimensão alegórica[18] para Você faz parte II.

O espelho presente em Você faz parte II, ao jogar o/a espectador/a para fora da obra – e, portanto, para dentro do espaço expositivo – obriga-o/a a buscar no próprio trabalho outro tipo de apoio que forneça alguma sustentação para que ele/a possa dar “sentido” à obra (a maioria dos espectadores/as não se contenta apenas com o “aqui e agora” da obra de arte). E uma primeira pista para a descoberta de significado ele/a encontrará no próprio título e na datação da peça que funcionam como um enunciado peremptório: Você faz parte II, 1964.

Para a maioria dos brasileiros, 1964 significou e significa um ano na história do Brasil em que o processo pelo qual vinha passando o país sofreu importante revés, motivado pelo golpe civil-militar perpetrado naquele ano. Assim, Você faz parte II pode ser interpretada como uma alegoria daquele momento em que todos os brasileiros, apoiadores ou não do golpe, éramos responsáveis pela situação em que o país passou a viver.

Você faz parte II é tão atual que, se fosse trocada a data para 2020, não estranharíamos nada.

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[1] – Dois dados importantes relativos à peça: era a segunda de uma série (a primeira foi extraviada) e fazia parte de um conjunto de obras que, produzidas a partir de suas configurações em grade, todas introduziam elementos de humor nos módulos resultantes. Esse conjunto foi exibido em uma mostra na antiga Galeria Atrium, em São Paulo, em 1965 que Leirner dividiu com o amigo Geraldo de Barros.
[2] – Sobre o assunto ler, entre outros: SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987 (sobretudo o texto que dá título ao livro).
[3] – CHIARELLI, T. Nelson Leirner. arte e não Arte. São Paulo: Takano, 2002.
[4] – Este depoimento faz parte de uma série de e-mails trocados entre o artista e eu entre junho e setembro de 2001 para a coleta de informações para a produção do livro citado na nota 3.
[5] – Nota 23, in – CHIARELLI, T. op. cit. pág. 42.
[6] – Reconhecimento coroado, quando o curador Ivo Mesquita o convidou para, junto com Iran do Espírito Santo, representar o Brasil na Bienal de Veneza, em 1999. Nessa que foi a 48ª. edição da mostra, se evidenciava a potência de Leirner na arte contemporânea brasileira, não apenas pela dimensão crítica de sua produção, mas também por ter sido um dos orientadores de uma significativa geração de artistas surgida nos anos 1980, na qual sobressaía o próprio Iran do Espírito Santo.
[7] – Este fato talvez explique o lado supersticioso que Nelson às vezes exibia. Um dado que chama a atenção sobre essa característica da sua personalidade pode ser notado na foto de capa do livro, aqui mencionado, arte e não Arte. Nelson fez questão de que fosse protagonista da imagem a série de amuletos ligados a diversas matrizes religiosas que ele carregava pendurada no peito. Outro dado: em 2002, quando realizei no Santander Cultural de Porto Alegre a mostra “Apropriações/coleções, optei por apresentar as produções de seis nomes fundamentais para se pensar as questões da apropriação e da coleção na arte brasileira. Eram eles, Alberto da Veiga Guignard, Jorge de Lima, Athos Bulcão, Aloísio Magalhães, Farnese de Andrade e o único artista vivo entre os “homenageados”, Nelson Leirner. Nelson veio reclamar comigo, dizendo que se sentia incomodado por ser o único vivo entre os “clássicos” da exposição. Seria de novo a síndrome do “Você faz parte”?
[8] – Vale a pena rever o texto: “E deu para perceber que, nesse Cemitério na Vila Mariana, dentro de pouco tempo a “ludicidade” da vida não mais existiria. A equação para a exposição esava formada, o resto foi uma questão de jogo”.
[9] – “Arte paulistana”, um AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio. Artigos e ensaios (1980-2005). São Paulo: Editora 34, 2006. Vol.3 pág. 303. Publicado originalmente no jornal Gazeta Mercantil, São Paulo, 10,11,2000.
[10] – CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner. arte e não Arte. Op. cit..
[11] – As três obras são de 1965. As duas primeiras pertencem a coleções particulares e a terceira à Coleção Daros Latin American, Zurique.
[12] – Em tempo: o relógio é o signo por excelência da modernidade industrial, do tempo subordinado à lógica da sociedade capitalista; relógios que não funcionam, entregam a falência de tal lógica, exibindo-a.
[13] – As peças de Leirner agiam em sentido contrário àquele das proposições que Hélio Oiticica e Lygia Clark desenvolviam mais ou menos na época.
[14] – Voltarei a tratar sobre a obra de Waltercio Caldas e a análise feita sobre ela por Ronaldo Brito (BRITO, Ronaldo. Waltercio Caldas Jr. “Aparelhos”. Rio de Janeiro: GBM Editoria de Arte, 1979 – sobretudo pag. 56 e segs.).
[15] – Filho de mãe italiana, viveu durante muitos anos na Itália, chegando ao Brasil aos 21 anos.
[16] – Sobre o assunto, consultar: ALMONFREY, Juliana de Souza S. Cildo Meireles: inserção e desvio no transitar conceitual. Vitória: Dissertação de Mestrado, UFES, 2009.
[17] – BRITO, Ronaldo. Waltercio Caldas Jr. “Aparelhos”. Rio de Janeiro: GBM, 1979; pág. 72.
[18] – A alegoria pode partir do desejo do próprio artista que pode querer conferir a determinada obra de sua autoria uma dimensão alegórica, ou então a alegoria pode estar na ordem do espectador que pode interpretar determinada obra como uma alegoria, independente dos desígnios de seu autor (Sobre o assunto, ler HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Ed. Hedra, 2006).

Festival É Tudo Verdade prepara programação especial junto ao Sesc-SP

Cena do filme "Auto da Resistência" de Natasha Neri e Lula Carvalho. Na cena, Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio em 14 de março de 2018, ao lado de mães de jovens mortos pela polícia. Filme é um dos exibidos pelo Sesc dentro do Festival É Tudo Verdade.
Cena do filme "Auto da Resistência" de Natasha Neri e Lula Carvalho. Na cena, Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio em 14 de março de 2018, ao lado de mães de jovens mortos pela polícia. Filme é um dos exibidos pelo Sesc dentro do Festival É Tudo Verdade.

Começando no dia 23 de setembro, a 25ª edição do festival É Tudo Verdade exibe, até 4 de outubro, um total de 60 longas, médias e curtas-metragens em competição e hors-concours, de forma gratuita, em plataformas de streaming. O festival, que teria acontecido em março, foi parcialmente adiado para setembro na esperança de que pudesse ocorrer presencialmente.

Com a pandemia ainda impondo riscos à sua realização física, a mostra será realizada, quase que em sua totalidade, digitalmente. Ainda assim, as produções premiadas pelos júris do É Tudo Verdade 2020, nas competições brasileiras e internacionais de longas e médias-metragens e de curtas-metragens, estão automaticamente classificadas para apreciação à disputa pelo Oscar do ano que vem.

Uma novidade da edição atual é a programação especial – realizada em conjunto com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP – que inclui seções exclusivas com longas-metragens brasileiros vencedores das edições anteriores do festival, disponíveis na plataforma Sesc Digital, a partir de 8 de outubro, por um período de 30 dias. Confira os filmes a seguir:

Auto de Resistência
Direção: Natasha Neri e Lula Carvalho

Um panorama contemporâneo de homicídios praticados pela polícia contra civis, no Rio de Janeiro, em situações inicialmente classificadas como legítima defesa. As vítimas de assassinato são acusadas de serem traficantes e de terem trocado tiros com os policiais. No entanto, a versão da PM é posta em xeque pelo surgimento de vídeos e pela luta de mães que tentam provar a inocência de seus filhos.

Cidades Fantasmas
Direção: Tyrell Spencer.

Em Humberstone (Chile), resquícios na paisagem e memórias de sobreviventes mal conseguem ilustrar a prosperidade da época em que dali saía boa parte do salitre exportado para todo o mundo. Nas imediações da antiga Fordlândia (PA), casas hoje ocupadas por posseiros são os últimos sinais de uma cidade estadunidense construída por Henry Ford no auge do ciclo da borracha. Armero, na Colômbia, teve sua população praticamente erradicada pela erupção do vulcão Nevado del Ruiz, em 1985. Vinte e cinco anos depois de ter sido inundada, após a quebra de uma barragem, ruínas da Villa Epecuén, na Argentina, emergiram para expor os restos de uma antigamente animada estação de águas medicinais.

O Futebol
Direção: Sergio Oksman.

Sergio e seu pai, Simão, não se viram ao longo de 20 anos. A realização da Copa de 2014 no Brasil fornece ao filho, que mora na Espanha, um pretexto para conviver algum tempo com o pai, retomando seu antigo hábito de assistirem a jogos juntos, mantido quando o filho era garoto. À medida que ambos se reaproximam, suas conversas os levam ao encontro do passado e das questões deixadas em aberto pela distância.

Poster do filme "O Futebol", de Sérgio Oksman, vencedor do É Tudo Verdade de 2016. Foto: Divulgação.
Poster do filme “O Futebol”, de Sérgio Oksman, vencedor do É Tudo Verdade de 2016. Foto: Divulgação.


Homem Comum
Direção: Carlos Nader.

Ao longo de quase 20 anos, o cineasta Carlos Nader conviveu com o caminhoneiro paranaense Nilson de Paula e sua família. Desde o início, havia o projeto de realizar um documentário, cujas intenções se transformam visceralmente, num processo também captado pela câmera. Durante esse período, transformam-se as vidas de Nilson, que adoece, de sua mulher, Jane, e de sua única filha, Liciane, assim como a do diretor, que passa a fazer parte deste círculo também afetivamente.

Mataram Meu Irmão
Direção: Cristiano Burlan.

Reconstituindo os detalhes da morte de seu irmão, Rafael Burlan da Silva, ocorrida há 12 anos, o cineasta Cristiano Burlan se lança em uma jornada pessoal que conduz ao coração de um círculo de violência em torno dos bairros da periferia paulistana – como o Capão Redondo, onde morava a família e o irmão, de 22 anos, que foi morto com sete tiros, em 2001.

Dois Tempos
Direção: Dorrit Harazim e Arthur Fontes.

Apontada pelas estatísticas, a ascensão da classe média brasileira é radiografada neste documentário em que os diretores Dorrit Harazim e Arthur Fontes revisitam uma família da zona leste paulistana que protagonizou um trabalho anterior, “A Família Braz” (2000). Seu Toninho, dona Maria e três dos quatro filhos, Denise, Gisele e Éder – o mais velho, Anderson, se casou e mudou – continuam morando na mesma casa, na Vila Brasilândia. Mas sua renda e perspectivas profissionais e culturais visivelmente se ampliaram.

 

Salão Paranaense abre inscrições para sua 67ª edição

"MAPA", de Carla Vendrami, foi premiado no 51º Salão Paranaense.
"MAPA", de Carla Vendrami, premiado no 51º Salão Paranaense, integra o acervo MAC-PR. Foto: Keaw Penas/Cortesia MAC-PR

Aberto a artistas brasileiros de todo o território nacional, o Salão Paranaense de Arte Contemporânea recebe inscrições até o dia 25 de outubro. Em sua 67ª edição, trinta trabalhos serão premiados no valor de R$ 5 mil cada e passarão a compor o acervo do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR). 

A relação entre o prêmio e o museu, porém, é muito anterior à edição de 2020. “Pode-se dizer que o Salão Paranaense é responsável pelo começo da formação do nosso acervo”, explica Ana Rocha, diretora do MAC-PR. “O museu foi criado a partir das obras que faziam parte da coleção pública do estado ou do departamento de cultura nos anos 1970, que em grande parte eram premiações do Salão”, completa. Posteriormente, a instituição tornou-se responsável pela organização do evento e passou a incorporar os premiados à sua coleção.

Hoje, o acervo é formado por 1810 obras, sendo 366 oriundas de Salões Paranaenses. Vinte e uma das 27 unidades federativas do Brasil estão representadas nessa coleção, o que para a diretora do museu está diretamente relacionado ao fato de o prêmio ser nacional. 

Um novo museu, um novo prêmio

Porém, ao iniciar uma revisão histórica do MAC-PR pelo aniversário de 50 anos da instituição, notou-se uma predominância de artistas homens brancos no acervo – o que não é exclusividade deste museu (leia o texto de Luciara Ribeiro para a revista #51 para entender). Com isso, a direção optou por uma programação que jogasse luz sobre grupos invisibilizados e propôs mudanças no Salão Paranaense.

Pensando em ampliar a diversidade de vozes e a representatividade social, a comissão julgadora fez uma alteração nos critérios de avaliação do prêmio. A partir deste ano, os trabalhos serão avaliados não só em originalidade e qualidade artística, mas também por sua contribuição à diversidade do acervo.  

Além disso, a própria comissão julgadora conta com pluralidade de etnias, culturas, gênero e sexualidade. “Ainda não posso divulgar os nomes que a compõe, mas existiu a preocupação de que essa pluralidade de vozes não fosse só entre os artistas, mas na estrutura interna do MAC e na parte curatorial também”, completa Ana Rocha. 

Novas categorias

A busca por diversidade também gerou mudanças no caráter dos trabalhos enviados ao prêmio. Pela primeira vez na história Salão serão aceitos textos poético-críticos com o tema “poéticas e políticas de reparação”, além das peças de arte. “A proposta é que a gente convoque os pesquisadores para nos ajudar a entender as coleções de arte no Brasil e a pensar nas possibilidades de reparação histórica”, explica Ana Rocha. 

Essa não é a única categoria nova no Salão Paranaense. Devido à pandemia, o evento teve que ser modificado. “No primeiro semestre veio a possibilidade de fazer algo inteiramente virtual, mas com isso excluiríamos todos os artistas que não trabalham com arte digital”, conta Ana Rocha. Optaram, então, por acrescentar categorias ao prêmio, mas não limitá-las a apenas um formato. Com isso, arte digital e linguagem web arte passam a ser abarcadas pelo prêmio, que pela primeira vez também contará com intervenções urbanas. “São formas do MAC experimentar estar fora do espaço museológico e mais em contato diretamente com o público, com a possibilidade de respeitar distanciamento social”, explica Ana Rocha. 

Já a abertura do Salão, com a exposição das obras, foi movida para o início de 2021. Com a reforma do edifício sede do museu, a mostra está prevista para ocorrer dentro do Museu Oscar Niemeyer (MON), onde hoje o MAC-PR ocupa duas salas provisoriamente.

Fachada do MAC-PR
A sede do MAC-PR está em obras desde 2018. A instituição segue funcionando, provisoriamente, dentro do Museu Oscar Niemeyer. Foto: Nego Miranda

Serviço

Para saber mais, acesse o edital do Salão Paranaene clicando aqui.

Latitude Art Fair reúne mais de 50 galerias brasileiras na web

Obra de Jonathas de Andrade apresentada pela galeria Vermelho. Foto: Divulgação

Mais de 50 galerias de arte nacionais se reúnem a partir desta quinta-feira, dia 24, na Latitude Art Fair, evento virtual realizado através da plataforma Artsy. A feira, que vai até domingo, dia 27, é o primeiro evento do tipo organizado pelo Latitude – Platform for Brazilian Art Galleries Abroad, projeto que é uma parceria entre a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (ABACT) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil).

O acesso ao evento – que conta com casas como Kogan Amaro, A Gentil Carioca, Casa Triângulo, Estação, Pinakotheke, Luciana Brito, Janaina Torres, Vermelho, Raquel Arnaud e Karla Osório – será gratuito para os visitantes, que poderão encontrar obras em variadas linguagens e suportes, de artistas jovens até nomes já estabelecidos.

A feira acontece após a realização virtual das nacionais Not Cancelled Brazil, em junho, e SP-Arte Viewing Room, em agosto, e de uma série de outras feiras internacionais que migraram para o ambiente digital ao longo do ano, por conta da pandemia de Covid-19. Apesar de uma paralisia inicial com a quarentena, importantes galeristas brasileiros afirmaram recentemente à arte!brasileiros que o mercado de arte voltou a aquecer ao longo dos meses. Leia aqui reportagens sobre o assunto produzidas em julho e agosto.

Durante a Latitude Art Fair, como é comum em eventos do tipo, diversas galerias promoverão lives com artistas nas redes sociais e visitas guiadas aos ateliês. Veja aqui a programação. “Serão quatro dias dedicados a contemplar a arte contemporânea nacional, um setor que, mesmo em tempos difíceis como os que estamos vivendo, não deixou de se reinventar e trabalha constantemente para levar cada vez mais a arte e cultura brasileira pelo país e mundo a fora”, diz o texto de divulgação do evento.

Acervo Comentado Videobrasil: Seydou Cissé e Tiécoura N’Daou

Fotografias da série "Djingareyber", de Tiécoura N'Daou. Foto: Divulgação.
Fotografias da série "Djingareyber", de Tiécoura N'Daou. Foto: Divulgação.

No novo episódio do Acervo Comentado VB, a embaixadora Irene Vida Gala [1] fala sobre a história e a cultura do Mali, país da África Ocidental com presença marcante no Videobrasil. Retomando feitos e características do Império do Mali, ela comenta o vídeo Faraw ka taama (A viagem das pedras), de Seydou Cissé, e a série de fotografias da série Djingareyber, de Tiécoura N’Daou.

“Na obra desses artistas, nós percebemos a presença das religiões tradicionais. Percebemos que, em um país profundamente islâmico, permanecem as referências às religiões tradicionais e ao animismo. É interessante que quando o Islã chega à África Ocidental, ele é bastante permeável ao diálogo com a religião local. Não havia uma tentativa de imposição da nova religião. Esse Islã se fez um Islã híbrido”, afirma Vida Gala.

Ela destaca que “há também uma discussão muito evidente entre o tradicional e o moderno. Para um artista contemporâneo – de uma África hoje completamente contemporânea -, trazer para o público reminiscências do seu passado e da sua tradição é uma afirmação da sua identidade”.

A embaixadora aponta essa característica na obra de Seydou Cissé: “Quando vemos, por exemplo, no filme A viagem das Pedras, a formação daquela barragem, ela é um elemento do novo, uma referência ao colonizador que trouxe aquilo ao país ainda antes de sua independência. Depois aparecem uma mãe e uma filha, uma vestida com roupas ocidentais, outra com roupas tradicionais; aquilo não é por acaso. A filha indica que a barragem era útil para eles, e a mãe, tradicional, indica que aquilo era um elemento de tristeza”.

Tal dualidade também é referenciada pela crítica de arte e curadora Joëlle Busca ao salientar que “como a animação dá movimento à imagem, a magia dessas lendas funde-se com a do cinema para dar vida às centenas de milhares de trabalhadores sacrificados à construção faraônica da barragem de Markala. As imagens projetam-se, no sentido literal, como o chicote. Empurradas pelo instrumento mágico, as pedras rolam pelas encostas e se amontoam na ordem certa para construir as paredes”.

 

A segunda obra comentada por Vida Gala é Djingareyber, do artista multimídia Tiécoura N’Daou. Uma série fotográfica composta por oito imagens, Djingareyber fala sobre a mesquita de Timbuktu, ocupada por terroristas em 2013 no Mali. As fotos mostram a restauração do local pela população da cidade, numa tentativa de preservação de sua herança. Os registros apresentam uma tradicional cerimônia de emplastro que reúne mulheres, homens, jovens, crianças e idosos. O ritual é um testemunho, para as comunidades de Timbuktu, dos esforços feitos para a retomada do patrimônio e da vida cultural local, tão rica antes dos conflitos.

Finalizando seu comentário, a diplomata enfatiza a importância da oralidade na transmissão das culturas no continente africano: “Ambos os trabalhos que comentamos trazem uma referência ao que foi uma lenda, o registro oral da tradição. Quando o homem branco chega para colonizar a África, ele chega com uma ideologia de que a África não tinha história. Essa falta de história justificaria a presença do branco para colonizar. Mas as sociedades africanas são sociedade de uma história oral”.

Sobre o Acervo Comentado

Acervo Comentado Videobrasil é uma nova parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. 

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Formada em Direito pela USP, concluiu o Instituto Rio Branco em 1986. É Embaixadora e tem 35 anos de carreira diplomática. Serviu nas Embaixadas do Brasil em Lisboa, Luanda e Pretória, além da Missão do Brasil na ONU e no Consulado Geral do Brasil em Roma.
No Itamaraty, em Brasília, foi chefe da Divisão de África Meridional. Foi Embaixadora do Brasil em Acra, Gana, até fevereiro de 2017.Sua carreira está estreitamente associada a postos, missões e visitas no continente africano, tendo cumprido missões temporárias nas Embaixadas do Brasil em Bissau, Dacar, Maputo e Lusaca, entre outras.
Lançou o projeto MONUEM – ERESP, que leva as simulações do modelo ONU a escolas de ensino médio da rede pública do estado e do município de São Paulo.
Está no documentário “EXTERIORES – Mulheres Brasileiras na Diplomacia” (2018), que registra os cem anos de mulheres na carreira diplomática.

Galeria Jaqueline Martins inaugura filial na Bélgica

Nova sede da Galeria Jaqueline Martins em Bruxelas, na Bélgica. Foto: Divulgação.
Nova sede da Galeria Jaqueline Martins em Bruxelas, na Bélgica. Foto: Divulgação.

A Galeria Jaqueline Martins, em parceria com Yuri Oliveira, abrirá seu primeiro espaço físico fora do Brasil. Sua filial terá sede em Bruxelas, na Bélgica, escolhida por sua forte tradição nas práticas conceituais, cujo estímulo é uma das principais diretrizes da galeria. O plano para internacionalização não é novidade, no entanto, tendo em vista que a galeria já participa das principais feiras internacionais do mercado de arte, como as edições de Nova York e Londres da Frieze, a Art Basel e a Arco Madrid.

Desde a sua inauguração, em 2011, a Jaqueline Martins vem desenvolvendo um programa de investigação em torno das produções artísticas realizadas durante o período da ditadura no Brasil, em particular nas décadas de 1970 e 1980. Assim, Bruxelas abre suas portas com exposição de Hudinilson Jr. Reconhecido pela sua técnica da xerografia, o artista brasileiro foi um dos principais de sua geração, não só por sua produção que influenciou a cena artística brasileira entre as décadas de 1970 e 2000, mas pelo seu papel ativo em coletivos e exposições experimentais.

Nos planos futuros para Bruxelas estão também uma individual da artista Ana Mazzei, para o final de janeiro de 2021, e uma exposição de Lydia Okumura, começando em abril do próximo ano. Para a primeira, estão previstas colaborações com artistas de teatro, música e dança, com performances e happenings acontecendo de forma silenciosa e se revelando na documentação fotográfica da exposição. Já a mostra de Okumura começa com pinturas dos anos 1980 e instalações dos anos 1970; a partir de maio, a exposição será reconfigurada para dialogar com fotógrafos modernistas.

Almeida e Dale Galeria lança série de lives para discutir arte fora do eixo Rio-São Paulo

"Atirador de arco" (1925) de Vicente do Rego Monteiro. Foto: Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.
"Atirador de arco" (1925) de Vicente do Rego Monteiro. Foto: Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

Conexão: Ontem, Hoje e Amanhã é a nova série de lives promovida pela Almeida e Dale Galeria de Arte com início nesta terça-feira, 15 de setembro, às 19h. A galeria organiza três encontros, o primeiro com Raúl Córdula, que falará sobre Vicente do Rego Monteiro; partindo para uma conversa com João Câmara; e terminando com a Usina de Arte de Água Preta (Pernambuco) em foco, em um bate-papo com Ricardo Pessoa de Queiroz. O projeto da Almeida e Dale visa refletir sobre a arte que existe fora do eixo Rio-São Paulo. O seu subtítulo é Ontem, Hoje e Amanhã, pois sempre é apresentado um artista moderno, um contemporâneo, com carreira reconhecida, e um artista ou proposta nova, que mira o futuro. Pensada a partir dos estados brasileiros, esta edição da série traz convidados atuantes em Pernambuco.

Raul Córdula reside em Olinda há 45 anos. Artista visual, participa dos movimentos artísticos locais, de instituições como a Oficina Guaianases de Gravura, e do Conselho de Cultura da Cidade do Recife. Em Conexão, ele comenta a obra de Vicente do Rego Monteiro (1899-1970). Monteiro viveu entre Recife e Paris; seu trabalho teve participação na Semana de Arte Moderna de 1922, embora o artista já estivesse na França. Lá integrou-se ao circuito de arte parisiense e fez parte da Galerie L’Effort Moderne. Como poeta, recebeu o prêmio Apollinaire. Sua obra mescla o Art Déco à arte indígena, com um resultado monumental.

"Atirador de arco" (1925) de Vicente do Rego Monteiro. Foto: Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.
“Atirador de arco” (1925) de Vicente do Rego Monteiro. Foto: Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

A arte de João Câmara – também residente de Olinda – alcançou projeção nacional na década de 1980 e está presente em importantes coleções particulares e de instituições nacionais. Através de metáforas e de fina ironia o artista questiona o poder e as relações sociais e, através de diálogos entre a história política brasileira, arte e mitologia, cria obras impactantes, com uma visão crítica da nossa sociedade. Na última retrospectiva de Câmara, no Museu Afro, o crítico e curador Tadeu Chiarelli escreveu para sua coluna: “A obra de João continua incomodando a muitos? É claro que sim. Parece que para alguns, uma produção que insiste na pintura e, ainda por cima, numa pintura com ‘temas’ políticos e existenciais – em pleno século XXI! – deva ser banida do universo da ‘grande’ arte brasileira contemporânea. Ledo engano. Gostemos ou não, esse tipo de pintura parece voltar com força, e com o rancor daqueles que foram recalcados por décadas. É neste sentido que a obra de Câmara pode servir como um forte antídoto aos enganos do recalque, pois mostra que a arte não é apenas aquilo que se vê, é um pouco mais” (leia o texto de Chiarelli neste link).

"A parte da terra", por Lais Myhrra. Foto: Divulgação.
“A parte da terra”, por Lais Myhrra, na Usina de Arte. Foto: Divulgação Usina de Arte.

Por fim, a Usina de Arte finaliza as discussões sendo apresentada pelos diretores Bruna e Ricardo Pessoa de Queiroz. A Usina é um projeto artístico-cultural e sócio-ambiental localizado no município de Água Preta, a 130km do Recife, no terreno da antiga usina de açúcar Santa Therezinha. A iniciativa vem transformando a vida da população vizinha e já rendeu uma rádio comunitária, uma escola de música, uma biblioteca e festivais culturais anuais. A área externa é um jardim botânico com mais de 20 obras de artistas, entre eles: Lais Myhrra, José Spaniol, Paulo Meira, Flávio Cerqueira, Saint Clair Cemin, Frida Baranek e Arthur Lescher.

 

“A arte sempre apontou a fragilidade de discursos totalitários, e uma escola de arte não pode ser diferente” diz diretora da EAV Parque Lage

Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage. Foto: Renan Lima

Em meio à enorme crise que tomou conta da maioria das instituições culturais do país por causa da pandemia de Covid-19 – e do crescente descaso governamental com a área -, ao menos um aspecto positivo parece ter decorrido do contexto de isolamento social dos últimos meses. Com as portas fechadas e uma migração forçada de suas atividades para o meio virtual, instituições que alcançavam apenas um público local tiveram um aumento significativo na procura de visitantes ou alunos das mais variadas regiões do Brasil – e por vezes até estrangeiros.

É o caso da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV Parque Lage), uma das mais importantes escolas livres de arte do país, segundo a nova diretora da instituição, Yole Mendonça. Nos já tradicionais cursos de férias de julho, agora realizados virtualmente, “tivemos uma surpresa, porque entre os 200 alunos nos 12 cursos oferecidos tivemos  gente de 18 estados diferentes”, conta ela. “E nós descobrimos que a EAV tem uma força, uma potência nacional. Para uma aula de artes visuais esse contato com outras culturas é algo muito rico.”

A consequência foi a decisão da escola de expandir definitivamente a atuação da instituição para o online, mesmo quando o presencial voltar, oferencendo cursos e exposições tanto no local quanto na web. Em entrevista à arte!brasileiros, Mendonça, que assumiu a diretoria da escola poucos dias antes da decretação da quarentena, falou também sobre o trabalho nos últimos meses e sobre a polêmica da exoneração de Fabio Szwarcwald no final de 2019. “O Fabio é um grande amigo, uma pessoa que inclusive avalizou a minha ida. Acho que essa polêmica que aconteceu foi mais do ponto de vista do gestor público que administrou isso do que do próprio Fabio. Eu encontrei uma escola bem administrada. O trabalho que foi feito ali é admirável”, diz Mendonça sobre o atual diretor do MAM Rio.

Trabalhando agora com a nova secretária de Cultura do Estado, Danielle Christian Ribeiro Barros, Mendonça afirma que a relação é harmoniosa e de respeito mútuo. Na conversa, ela falou também sobre o papel histórico de resistência da EAV, criada por Rubens Gerchman nos anos 1970, e sobre a necessidade de tratar de questões como meio ambiente, racismo, gênero e desigualdade social.

Sobre a gestão financeira cuidadosa em tempos de crise, o que incluiu a necessidade temporária de cortes salariais dos funcionários, Mendonça afirma que os valores já foram recompostos. Ela comemora também o número de 502 alunos já inscritos para os cursos deste semestre e afirma que o projeto para o ano que vem é oferecer bolsas com remuneração para que alunos em situação de vulnerabilidade social possam frequentar a EAV. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

 

ARTE! – Você assumiu a direção da EAV Parque Lage quase no início da quarentena, em um momento muito complicado no Brasil e no mundo. Queria que contasse um pouco como foi esse processo e como tem sido possível trabalhar de lá pra cá?

Assumi o cargo no dia 11 de março e dois dias depois veio o decreto de que tudo tinha que fechar. Foi um momento absolutamente único. Porque já chefiei outros lugares, trabalhei com outras equipes, estou acostumada a mudar de ambiente de trabalho, mas nunca tinha passado por uma situação em que eu conheci as pessoas presencialmente por no máximo 48 horas. Então é muito estranho, porque quando falamos em gestão existe toda uma necessidade de empatia, de conhecimento do modelo mental das pessoas, e de repente você passa a ter que trabalhar intuindo um pouco. Se fosse em condições normais de temperatura e pressão já seria difícil, mas em um momento como esse, em que estávamos vivendo um fechamento total de todas as atividades, com isolamento social, foi algo realmente impactante. Para todo mundo, claro. Então uma coisa que eu quis fazer – foi difícil, mas contei com a ajuda de uma equipe muito colaborativa – foi estudar a EAV Parque Lage, sua origem, sua história, sua tradição, qual o ponto da caminhada em que a escola está e para onde quer ir. E tudo isso foi feito à distância.

ARTE!  E qual o resultado desse estudo?      

A Escola não recebe verbas públicas, mas ela tem uma gestão que é fruto de um acordo de cooperação técnica com a Secretaria de Estado. Então ela é gerida por uma associação de amigos (AMEAV) e o seu aporte financeiro, inclusive, vem da arrecadação que essa associação consegue patrocinar. Uma coisa que eu tinha certeza era que nós não poderíamos parar, até porque temos um contingente de 50 professores. A EAV estava na sua segunda semana de aula, com quase 50 cursos, com 450 alunos matriculados. E aí você tinha que dar uma solução para aquilo. E não tínhamos uma capacidade de adaptação para o ensino online instalada, não havia isso. Então nós criamos um grupo gestor, com o curador da escola, Ulisses Carrilho, a gerente administrativo-financeira, que é a Celina Martins, o gerente de Patrimônio e Compras, Fabio Augusto Lopes, e o André Marques, da Secretaria de Cultura. E esse virou um grupo de discussões e tomada de decisões compartilhadas, em diálogo também com toda a equipe de ensino e administrativa. E a primeira coisa que estabelecemos foi que precisávamos criar uma possibilidade de continuação dos trabalhos.

E neste sentido, uma coisa incrível de ser uma escola de artes visuais é que os nossos professores são professores artistas, e pudemos contar com a capacidade criativa, inovadora e resiliente deles. Então colocamos para os professore a questão sobre como passar as atividades para o online, e eles trouxeram as suas ementas adaptadas para as plataformas que acharam convenientes e possíveis. Nem todos conseguiram, por uma questão até natural. Porque é difícil você migrar uma oficina de escultura 3D para o online, por exemplo. É difícil migrar uma oficina que exija um contato direto com o objeto e uma interação direta com os alunos. Mas, mesmo assim, em 15 dias a gente conseguiu colocar 26 cursos no ar. E eu digo isso com muita alegria, inclusive porque o meu papel nisso é muito pequeno. É um trabalho de criação e inventividade dos professores.

ARTE! – E o que fizeram com os cursos que não foram para o online?

Para suprir em parte essa ausência nós criamos também um trabalho que era uma proposição para que os professores criassem vídeos curtos, de cerca de 8 minutos, para que a gente pudesse disponibilizar no nosso YouTube e no site da escola. Vídeos exatamente sobre essa temática que estamos vivendo, sobre o tempo, sobre o tempo e a arte, sobre o tempo e o artista. É uma reflexão para um momento em que a gente precisou parar. E foi muito rico, têm vídeos fantásticos. Mas mesmo assim perdemos alunos, claro, e ficamos com cerca de metade deles. Temos uma outra questão, uma singularidade, que é o fato de estarmos em um parque, que ficou fechado até dia 9 de julho. E você não fecha um parque como quem fecha uma casa, porque o parque está vivo, cheio de bichos dentro. E os bichos tomaram conta. Macacos, cachorros do mato, cobras e pássaros começaram a rondar por ali. Nós não estávamos lá, mas tivemos que administrar. E nós começamos também a mostrar isso nas nossas redes sociais, esses animais, porque o Rio tem uma relação muito afetiva com o Parque Lage, é um lugar que as pessoas adoram. Foi um momento em que a gente experimentou muitas coisas. E hoje eu me sinto, como gestora da EAV, muito próxima da equipe, embora algumas pessoas eu não veja há meses. Mas a gente passou a dividir muito as angústias, as aflições, as incertezas, porque esse é o momento atual. E eu tenho sempre uma postura de dizer “olha, eu não tenho todas as respostas, nós vamos achar as respostas juntos”. E acho que tivemos muitos acertos por conta disso.

Foto aérea do Parque Lage. Foto. Felipe Azevedo

ARTE! – E os cursos então seguem online, sem perspectiva de voltarem presencialmente? Como está este planejamento?

Por enquanto sim. E teve uma coisa interessante com essa experiencia online. Em julho, mês em que historicamente a escola faz cursos de férias – e aí já estávamos mais preparados – os professores criaram uma série de cursos online. E a gente teve uma surpresa, porque tivemos 200 alunos em 12 cursos, com gente de 18 estados diferentes, em uma expansão possibilitada pelo virtual. E nós descobrimos que a EAV tem uma força, uma potência nacional. Então passamos a trabalhar nessa realidade. Os professores ficaram encantados, porque passaram a ter alunos com outros sotaques e experiências de vida muito variadas. E para uma aula de artes visuais esse contato com outras culturas é algo muito rico.

ARTE! – E vocês pretendem, a partir dessa experiência, seguir com os cursos online mesmo quando for possível retomar o presencial?

Sim. Agora estamos pensando, no planejamento para 2021, em ter tanto a experiência localizada, presencial, quanto a EAV online. Então existem muitas possibilidades. Por exemplo, podemos criar um projeto em que os alunos do online possam fazer um tipo de residência aqui, porque a experiência da escola, com a floresta, é algo também que a gente hoje percebe como muito potente. Até por conta desse momento que a gente vive, no qual o ataque às florestas que estamos vivendo impacta a todos nós. E esse ativo é algo que eu considero um dos maiores riscos que nós corremos. Porque esse tipo de ataque é irreversível. Todas as outras perdas que estamos tendo, acho que a gente tem capacidade de reconstruir, de lutar, mas o meio ambiente não. Ele é maior do que nós. E então a gente se sente muito responsável por dar uma resposta no sentido de valorizar aquilo que temos, que é esta coexistência com a mata. 

ARTE! – E no espaço físico vocês sempre tiveram também as exposições e outras atividades. Quais são os planos nesse sentido para os próximos tempos?

Na verdade nós estamos planejando exposições tanto online quanto presenciais. Quer dizer, estamos trabalhando o online já como algo incorporado. Então queremos ter quatro exposições no ano que vem, duas online e duas presenciais. E nisso nós trabalhamos sempre com alunos, ou com ex-alunos, ou com temáticas que tratem de questões da EAV. Nas mostras virtuais seguiremos também nessa direção. 

ARTE! – Em uma palestra no ano passado, o Fabio Szwarcwald falou bastante sobre a tentativa de aproximar cada vez mais a EAV das periferias e favelas, da população mais carente da cidade do Rio. Isso segue como um objetivo?

Sim, isso segue. Inclusive nós temos o planejamento de fazer um Programa de Formação e Deformação em que daremos bolsas, com um projeto especialmente voltado para alunos das periferias, alunos que tenham algum tipo de vulnerabilidade em relação à essa questão da formação. Isso foi prejudicado no planejamento de 2020, mas em 2021 volta a acontecer. A nossa ideia é criar na EAV a possibilidade não só de gratuidade, mas de que os alunos inclusive recebam bolsas para que estudem arte, que é normalmente um tipo de formação proibitiva para quem não tem condição de se manter. O Fabio já vinha nessa direção, nós permanecemos com isso e reconhecemos que é um dos pilares hoje da escola, para ser um diferencial da escola. Quer dizer, a gente criar condições de dar a mesma formação para os alunos que podem pagar e para aqueles que não tem essa condição, mas que tem todas as condições de se tornar um maravilhoso artista e um representante da nossa arte.

ARTE! – Pensando na questão ambiental que você citou, há uma série de outros temas extremamente atuais que estão cada vez mais presentes nos debates políticos, culturais e artísticos, como racismo estrutural, causa indígena e questões de gênero. Existe uma preocupação de inserir esses temas de modo mais forte nas atividades e cursos da EAV? E trazer uma diversidade maior de alunos, de diferentes classes sociais e regiões do país, ajuda neste sentido?

Sim, inclusive a exposição Queermuseu deu muito esse tom. Mas é importante dizer que isso está na origem da EAV. A escola, criada pelo Rubens Gerchman, já surgiu com essa linha de existência e resistência. E quando eu cheguei, uma das coisas que fiz foi exatamente ler a história da escola. E me deparei inclusive com um livro que vai ser lançado na EAV, que foi organizada por Clara Gerchman, Isabella Nunes e Sergio Cohn, sobre os primeiros anos do Rubens Gerchman na EAV. E ao ler esse livro eu percebi que essas temáticas já estão desde a origem da escola. Recentemente fizemos também uma reunião com os professores e uma das coisas que estamos trazendo de novidade é uma proposta de formação de grupos de trabalho com professores e pessoas da administração. Um desses grupos é exatamente sobre diversidade, da maneira mais ampla que você possa perceber, de gênero, de raça… Então a gente quer ampliar isso na escola. Um outro grupo que estamos montando é voltado à reocupação do prédio. Ou seja, quando a gente voltar, seja no fim desse ano ou no começo próximo, como é que nós vamos voltar? Além de todas as exigências sanitárias e de saúde, queremos pensar como o prédio é ocupado hoje e como é que nós, professores e funcionários, achamos que ele deve ser daqui para a frente. Inclusive porque temos uma visitação de mais 50 mil pessoas por ano, e precisamos lidar com isso, pensar em como atrair essas pessoas que vão lá por conta do ponto turístico que é o parque. Queremos que essas pessoas enxerguem a escola, enxerguem a arte ali.   

ARTE! – Falamos aqui do Fabio algumas vezes, então acho importante perguntar sobre isso. Você entra após a saída conturbada do último diretor, com uma exoneração bastante polêmica, em que ele recebeu a solidariedade inclusive de grande parte da classe artística. É difícil entrar assumir contexto? Quer dizer, como você se posiciona em relação a isso?

Veja, o Fabio é um grande amigo, uma pessoa que inclusive avalizou a minha ida. Então não tem nenhuma dificuldade com essa questão. Tenho a maior admiração e respeito por ele. Acho que essa polêmica que aconteceu foi mais do ponto de vista do gestor público que administrou isso do que do próprio Fabio. Eu encontrei uma escola bem administrada. Não encontrei nenhum problema ali. Então hoje a situação é muito diferente não porque houve uma mudança, uma ruptura, mas sim porque houve uma pandemia no meio. Mas o trabalho que foi feito ali é um trabalho admirável. E acho que o Fabio está fazendo um ótimo trabalho no MAM, e nós somos parceiros. Então o que houve foi uma questão ali com a gestão pública, que inclusive também mudou (saiu Ruan Lira e entrou Danielle Christian Ribeiro Barros). E hoje o relacionamento é diferente. Eu me considero respeitada, as coisas estão caminhando com muita tranquilidade, até porque são outros agentes na secretaria. E eu sigo com muita tranquilidade e autonomia.

ARTE! – Nas mais de quatro décadas da EAV Parque Lage, a instituição passou por diversas fases, algumas mais prósperas, outras conturbadas, crises financeiras, retomadas. Enfim, queria que você falasse um pouco do momento atual da Escola, de sua sustentabilidade nesse momento difícil.

Olha, houve uma série de ilações a respeito de como estaria a AMEAV e a EAV financeiramente naquele momento de ruptura. Mas o que eu encontrei foi uma situação confortável. É claro que no momento agora, em que todos estão passando por uma situação de quebra de expectativas, de planejamentos que não se realizaram, a gente está fazendo uma gestão muito criteriosa e responsável com as finanças da escola. Então a gente trabalha com um orçamento bastante seguro e controlado, não dá um passo maior do que podemos. Em um primeiro momento reduzimos os salários, inclusive para manter as atividades, mas já voltamos ao normal, porque já percebemos a maneira como isso pode ser feito, como as coisas já estão se organizando. Então estamos numa linha de garantir uma sustentabilidade para a escola durante todo este processo mais delicado que estamos passando, onde os patrocínios são mais difíceis, onde as possibilidades são menores. Mas estamos também imaginando que até por conta dessa visibilidade nacional que estamos conseguindo, em 2021 teremos bom patrocinadores. Porque o nosso patrocinador vai ter uma visibilidade nacional, vai poder trabalhar conosco em todas essas questões de diversidade que estamos propondo. E termos projetos relacionados à questão do meio ambiente, à questão da saúde física e mental. E sempre sendo uma escola resistente, questionadora, como toda escola de arte precisa ser, colocando essas questões de gênero, raça, e questões sociais que a pandemia trouxe mais à tona ainda. Porque o pobre é quem mais perde emprego, é quem não tem acesso a bons hospitais, é quem morre mais. E a gente quer trazer essas questões todas e colocar como ponto de discussão, de reflexão, e entregar para a sociedade artistas e obras de arte que possam traduzir isso.

ARTE! – Por fim, uma última questão sobre o contexto político. A EAV trabalha com meio ambiente, educação e cultura, três das áreas que parecem ser das mais prejudicadas, ou até atacadas, pelo atual governo federal. Como você vê essa situação e como trabalhar neste contexto?

A arte sempre trabalhou nessa linha do questionamento. Historicamente, sempre apontou a fragilidade de discursos mais totalitários, mais fechados. A arte é isso. E uma escola de arte não pode ser diferente. Então o que a gente propõe aos alunos, e os professores fazem isso com maestria, é refletir sobre isso, apontar essas fragilidades. E apontar também a potência que tem um país como o nosso, a potência que tem uma sala de aula com 20 pessoas de dez estados diferentes. O que não sai de uma discussão dessa? Que caminhos de arte você tem ali? Então estamos em uma linha de resistência, deixando claro que vamos trazer os alunos que historicamente, socialmente, não estariam em condições de frequentar as nossas aulas, nós vamos proporcionar isso para eles, criar as bolsas, remunerar os alunos para que eles troquem conosco. E para que nós aprendamos com eles as vivências que eles têm. Porque é uma troca. Nós não estamos fazendo nada porque a gente é bacana, mas porque é uma dívida que existe, social, histórica. Então vamos proporcionar esse diálogo em 2021. Democratizar o acesso. Por fim, outra coisa que acho legal falar é sobre o projeto Memória Lage, que resgata a história da escola desde sua formação. E a gente começou a levantar essa memória e colocar na internet, nas redes sociais. Queremos levar isso mais adiante porque essa é a memória de uma construção democrática. Ela tem a ver com a história da democracia no Brasil. Então isso é importante, potente e super atual.