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Um registro historiográfico por Ana Maria Gonçalves

Detalhe da Capa do livro Um defeito de cor
Detalhe da Capa do livro "Um defeito de cor", 2006, Editora Record. Foto: Divulgação.

“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. Este é um dos dez provérbios africanos que introduzem cada capítulo do livro Um Defeito de Cor (Editora Record, 2006), um livro contemporâneo que já é considerado um clássico da literatura brasileira mesmo em seus primeiros anos em circulação. O volume ficcional, com quase mil páginas, é sempre lembrado em discussões sobre a literatura negra, antirracista, que trata da diáspora afroatlântica e da formação social escravista do Brasil.

No livro, a autora Ana Maria Gonçalves, mineira da cidade de Ubiá, desdobra o enredo em torno da narrativa de Kehinde, uma mulher negra africana do Reino do Daomé (hoje Benim) que tem na história de sua família uma trajetória cheia de traumas deixados pelo processo de escravidão brasileiro. A violência, a morte, as separações, a violação sexual.

É uma história individual que se confunde com a memória coletiva do período colonial brasileiro, que estende suas marcas e cicatrizes aos dias de hoje por meio das estruturas sociais construídas, que têm a desigualdade como um de seus produtos. É considerada a obra prima da autora, que ganhou o Prêmio Casa de las Américas com o livro em 2007. Na última lista de livros de autores nacionais mais vendidos em livrarias brasileiras, que apurou o mês de junho de 2020 a partir de parceria entre a empresa de pesquisa Nielsen com a plataforma editorial PublishNews, Um Defeito de Cor segue presente, agora em sua 20ª edição.

A personagem Kehinde tem raízes na biografia da mítica Luísa Mahin, heroína negra que teria ajudado a insuflar um levante contra o regime escravista na Bahia e mãe do abolicionista Luis Gama, que a definiu: “Uma negra, africana livre, da Costa da Mina”. A autora conta que o que a levou a escrever o livro foi ter encontrado casualmente, quando morou na Ilha de Itaparica (BA), um manuscrito de Mahin. O livro, portanto, traz uma narrativa que estende o que fora registrado por Luísa, escrava de ganho que sabia ler e escrever, nesse manuscrito.

Assim, a trama ficcionalizada de Ana Maria Gonçalves se confunde por várias vezes com a História. Kehinde passa a vida em deslocamento pelo continente africano e pelo Brasil, onde é levada à condição de escrava. Separada de seu filho, vendido como escravo pelo próprio pai (um branco escravagista), ela narra sua busca por ele ao longo dos anos. O tom memorialístico usado na narração do texto, contado por Kehinde em primeira pessoa, dá ao livro um caráter autobiográfico dessa mulher que é levada a uma situação epopeica ao insistir em ter o filho de volta. É também um pedido de desculpas de uma mãe que teve o menino levado sem nada poder fazer para impedir.

Kehinde passa a vida em deslocamento pelo continente africano e pelo Brasil, onde é  evada à condição de escrava. Separada de seu filho, vendido como escravo pelo próprio pai  um branco escravagista), ela narra sua busca por ele ao longo dos anos

É preciso pontuar a importância de Um Defeito de Cor nos estudos afrofeministas, pois evoca a vivência de mulheres que foram escravas/escravizadas, se tornando obra indispensável para os estudos de gênero. Isso porque é muito latente a condição da mulher e as particularidades das violências vividas por Kehinde não só por ser escravizada, mas por ser do sexo feminino. Como, por exemplo, a violência sexual que tem o corpo da mulher negra como objeto – e que é um ponto crucial do livro -, já que o estupro é um tema que acompanha a personagem no Brasil, quando ela é violada, e também no continente africano, quando viu a mãe sofrer a mesma violência.

A identidade da mãe negra da personagem “conecta-se a outras narrativas de mães negras no Brasil, as quais também são apartadas de seus filhos, mas que, diferentemente da narradora do romance, não raro deparam-se com os corpos inertes desses filhos assassinados cotidianamente por uma política genocida do Estado que tem como alvo a população negra desse país”, atesta a pesquisadora Fabiana Carneiro no livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor (Editora Edufba, 2019).

Ao falar do livro, a autora sempre aponta a necessidade de se recorrer ao passado para compreender com afinco a história de nosso país. Ler Um Defeito de Cor é, sem dúvidas, conhecer para questionar criticamente um período condenável da construção do Brasil, que é a origem da característica estruturalmente racista que acompanha a nossa sociedade em todas as relações. ✱

Leia também: Desconstruir a hegemonia branca nas artes brasileiras é uma ação efetiva de mudança, leia artigo da pesquisadora e curadora Luciara Ribeiro sobre. Neste link.

Um país esgotado

Ato em Recife pedindo justiça pela morte do menino Miguel Otávio. Foto: Foto: Levante Popular da Juventude
Por Moacir dos Anjos

 

1. Em um de seus últimos textos, Gilles Deleuze produziu uma breve e densa análise das peças teatrais que, na década de 1960, Samuel Beckett escreveu para serem filmadas e exibidas na televisão. Para compreendê-las – e delas extrair novos conceitos –, o filósofo francês propunha, em seu ensaio, a distinção entre o cansado e o esgotado, entre o cansaço e o esgotamento. Desde logo haveria, entre os dois estados, uma diferença de intensidade: “O esgotado é muito mais que o cansado”. Mas o esgotado não seria, contudo, apenas o extremamente cansado, havendo entre as duas condições uma diferença outra, irredutível a quantificações. O cansado seria aquele que, ancorado em suas preferências e objetivos, exerce, até o limite de suas possibilidades (subjetivas), o poder de fazer escolhas para realizar algo. Escolhas – banais ou complexas, de efeito passageiro ou duradouro – feitas dentro do que, a cada tempo e lugar, é considerado como o âmbito do possível. O cansado seria aquele, portanto, que estanca quando não mais consegue realizar algo que existe como parte daquele campo de possibilidades (objetivas), adiando suas realizações para quando sentir-se de novo capaz. O esgotado, por sua vez, seria aquele que, renunciando a preferências e objetivos precisos, experimenta e combina todas as possibilidades de escolhas e de suas consequências, ao ponto de exauri-las. O esgotado seria, nesse sentido, aquele que esgota o possível, embora nem por isso se torne inerte.

2. No exame próximo que faz de cada uma das peças televisivas de Beckett, Deleuze aponta quatro modos – não mutuamente excludentes – de promover o esgotamento do possível: Exaurir as coisas que podem ser nomeadas, estancar o fluxo de vozes que as falam, extenuar as potencialidades do espaço onde elas existem e dissipar a potência contida em suas imagens. Extrapolando o objeto original de seu texto e fazendo uso abertamente arbitrário dos conceitos nele tratados, essas condições de esgotamento parecem ser apropriadas para capturar, mesmo que de maneira imprecisa (e talvez por isso adequada), a situação vivida no Brasil de agora. Lugar e momento em que se entrelaçam uma crise sanitária, uma crise política e uma crise econômica com consequências ainda não de todo conhecidas em sua extensão, embora já sabidamente muito graves. Situação em que as palavras já não bastam para descrever os fatos e evocar os afetos que eles geram, em que o silenciamento de quem diverge do poder já é abertamente demandado, em que se desregulam e enfraquecem os territórios institucionais consagrados ao desentendimento e à disputa e, por fim, em que se contestam as equivalências sensíveis que descrevem o que acontece nas ruas. Para aqueles que reconhecem e sentem em seus corpos a gravidade da crise vivida no país (em suas várias dimensões), é cada vez mais frequente sentir-se esgotado. Ou sentir que o Brasil está esgotado. Que as possibilidades de realização de uma outra vida comum se gastaram antes de serem exploradas, bloqueando um projeto de sociedade minimamente mais inclusiva e justa gestado, com lentidão e dificuldades, a partir do fim da ditadura militar no país. Que a morte (de cada vítima da pandemia e também do espaço público de embates) encolheu o que era ainda tido como possível, apressando um processo de esgotamento que, embora há muito já em curso, parecia ainda poder demorar mais a se manifestar no Brasil. Em particular, com a fúria essiva com que se apresenta agora.

3. É certo que esse esgotamento foi gradual, alcançando primeiro as vidas mais vulneráveis, aquelas mais suscetíveis a terem o poder de optar por uma decisão ou outra acerca de sua existência bloqueado. Os corpos viventes, afinal, se distribuem desigualmente não somente no espaço físico, mas também em termos do reconhecimento de seus direitos e de suas capacidades. Ocupam lugares de lazer, de moradia, de trabalho e de representação política que são também marcadores do quão diversas são as possibilidades a que cada um tem acesso. Se a alguns corpos é facultada uma existência com conforto material e segurança afetiva, a outros se destina uma vida atravessada pelo medo e pela falta. Se uns possuem poder de movimento e de mando, outros são submetidos a um regime de circulação regrada e de obediência – ainda que também de resistência – às ordens dadas. Para alguns, como os povos indígenas nativos das terras que viriam a ser o Brasil, o possível foi diminuído abruptamente – quase encerrado, de fato – na chegada do colonizador europeu. A violência colonial esgotou esse possível, esgotando aqueles povos, suprimindo-lhes a humanidade. Retirou-lhes a possibilidade do cansaço, condição somente alcançada pelo exercício de uma vida autônoma. E continua a querer negar-lhes um lugar, ainda que subalterno, na desigual distribuição de corpos que define o país. Violência colonial que, ao escravizar mulheres e homens negros vindos de cantos diversos da África, bem como seus descendentes, os cansou e os esgotou ao mesmo tempo. Que submeteu seus corpos ao limite de sua capacidade e, em simultâneo, cerceou o que guardavam como potência para um tempo futuro. Violência que, transformada e atualizada em formas diversas de racismo, continua a ser exercida no Brasil contemporâneo. Para esses corpos, o esgotamento do país também já era sentido há tempo. Assim como o sentiam os corpos dissidentes de uma norma social que é não somente branca, mas também heterossexual e cisgênera. Bem como o sentiam os corpos pobres, que por vezes são também corpos indígenas. Que por vezes são também negros. Que por vezes são também gays, lésbicas, travestis. Vidas que vêm se sentindo gradualmente esgotadas, para quem o esgotamento do Brasil é fato previsível. Para quem o esgotamento chegou antes: há séculos, para alguns; há décadas, para outros tantos. Esgotamento que foi, aqui e ali, freado, à medida em que porvires distintos pareciam ter ampliado o possível como resultado de longas disputas. Mas que foi de novo acelerado nos últimos anos, com uma sequência de fatos – emergência do fascismo e, mais recentemente, da doença – que, pelo poder destrutivo que embutem, parece ter esgotado mesmo muitos daqueles corpos até aqui poupados. Corpos que tinham o privilégio de estar apenas cansados.

4. O cansaço exige descanso para que o cansado possa de novo escolher entre as alternativas que o possível acolhe, retomando projetos parados ou refazendo os desmanchados. Para que possa atuar como sujeito que afirma posições e disputa possibilidades. Possível que, no Brasil de 2020, parece ter se exaurido ou ter sido bloqueado. Ao esgotamento, por sua vez, o descanso não basta, pois o repouso não restaura o esgotado. O esgotamento exige imaginar outros possíveis para que o esgotado deixe de sê-lo. Para que aquilo que não era considerado uma possibilidade entre outras, passe a ser assim contado. Para que novos sujeitos políticos emerjam e criem aquilo que não podia ser antes pensado. O fim do esgotamento exige a subversão da distribuição hegemônica das probabilidades, forçando a inclusão, nelas, de hipóteses inéditas de futuro. Para Deleuze, afinal, o esgotado continua ativo, ainda que não tenha, em sua atividade, objetivo certo. Dar direção e significado a essa potência guardada é a tarefa política dos esgotados.


Texto originalmente publicado na n-1 edições

Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e das mostras Cães sem Plumas (2014), A Queda do Céu (2015), Emergência (2017) e Quem não luta tá morto. Arte democracia utopia (2018). É autor dos livros Local/Global. Arte em Trânsito (2005), ArteBra Crítica (2010) e Contraditório. Arte, Globalização e Pertencimento (2017).

Retratando o invisível

“O fotojornalista é um contador de histórias e ele está na linha de frente, nos mostrando o que está acontecendo no mundo”, afirmou uma vez a crítica de fotografia Simonetta Persichetti. A fotografia, através de uma linguagem não textual, pode evocar memória, pode ser uma personificação da natureza das ideias questionadoras, a replicação de uma espécie de estado vago que se encontra fora até da linguagem. Neste momento, através da promoção de sentimentos diretos de identificação, empatia ou desaprovação, ela pode driblar as barreiras nacionais que constroem, por cada país, uma resposta muito particular de prevenção e combate à pandemia de Covid-19.

Pelo entrelace de camadas de significado, as imagens transmitem temas universais como morte, vida, amor e medo, mesmo que, pelo momento, sempre acompanhados de um tema suspenso que é o vírus. Esse, como o filósofo Jacques Derrida ensina, é por definição, o estranho, o outro, o estrangeiro. Cria-se uma barreira entre um “nós” – incontamináveis – e um “eles” – os que estão propensos a contrair o vírus. Nesse cenário, o bom fotojornalismo tenta eliminar tal barreira simbólica e discursiva por meio de registros que criem uma conexão com quem observa e contempla as imagens. E mesmo que não tenham função de documento – como o documentarista francês Claude Lanzmann diria: se você sente necessidade de uma prova, por exemplo, fotográfica, é porque já está na vertente negacionista – esses registros ajudam a retirar a questão de uma dimensão particular e levá-la a uma dimensão pública, colaborando para a informação e até mesmo atenuando um sentimento de pânico.

Tendo essas considerações em mente – como também a impossibilidade de apresentar uma “face do vírus” – a arte!brasileiros realizou uma seleção de trabalhos fotojornalísticos notáveis. São registros vindos do Peru – com Rodrigo Abd -, do Irã – com Newsha Tavakolian e Arash Khamooshi, da França – com Jean Gaumy – e do nosso país – com Victor Moriyama, Hélio Campos Mello e Cristina de Middel.

Presença humana e a barreira fantasma

“Nós, fotógrafos, devemos ter uma proximidade emocional com a história que estamos retratando nesses momentos dramáticos. E nossa câmera deve ser a ferramenta para reduzir essas distâncias que surgem da pandemia. As fotos nos unem como profissionais com as pessoas, e os produtos dessa união, que são fotografias, unem os leitores à vida de milhares de fotografados”, afirma Rodrigo Abd.

Mas como ter proximidade quando não é possível chegar fisicamente perto dos respectivos retratados? Cristina de Middel conta que qualquer forma de interação se tornou muito mais difícil por conta de uma “ideia pairante” de desconfiança. No seu caso, a barreira linguística duplicou o esforço – Middel é espanhola mas vive em Itacaré, no Nordeste do Brasil, com o marido Bruno Morais -, “percebi muito rapidamente que seria difícil para mim trabalhar em Itacaré, porque eu pareço uma gringa e não falo português adequado, então as pessoas eram um pouco rudes e ninguém queria ser fotografado ou mesmo falar comigo”. Uma de suas estratégias para não pensar no quão frustrante é não poder viajar e explorar o país como uma fotógrafa é refletir em seu trabalho sobre a situação que estamos vivendo sem sair de sua casa, seu bairro ou sua cidade. Não só a sua segurança, mas a de outras pessoas é algo desafiador nesse processo criativo.

O brasileiro Victor Moriyama concorda, ao notar que “por mais que nós tomemos os cuidados, há sempre uma preocupação, um medo de contrair o vírus, de contaminar outras pessoas, isso é extremamente preocupante: você ser um transmissor silencioso”. Para ele, o risco de contágio faz com que fotografar no meio da pandemia traga um perigo análogo ao de cobrir um conflito, embora o compromisso com o jornalismo o mantenha motivado a continuar. Moriyama integrou a iniciativa Covid Latam, criada pelo fotógrafo Sebastian Gil Miranda, que une 18 fotógrafos de 13 países na América Latina com o propósito de fornecer uma cobertura mais ampla e concreta, como também apoiar o trabalho desses profissionais.

Cobrindo o Covid no Irã, Arash Khamooshi reflete sobre o valor histórico da fotodocumentação da crise: “As fotos que tiramos durante a pandemia para capturar esses momentos definitivamente terão um valor maior no futuro. O mundo moderno não passou por nada assim. Talvez possamos compará-lo à pandemia de gripe de 1918, mas estamos experimentando algo diferente”. Ele relata que teve que se adaptar a todas as medidas de segurança: máscara e luvas o tempo todo. Mas revela que se tivesse que se aproximar para ter um retrato mais autêntico ele faria o necessário. “Talvez seja isso que gera empatia, não apenas com o retratado, mas também com quem vê a fotografia”.

Tal proximidade não é apenas física. Em seus trabalhos publicados nesta matéria, Rodrigo Abd lida com o tema da morte, tanto em seus registros nos cemitérios Nueva Esperanza e El Angel quanto na missa rezada pelo Arcebispo Carlos Castillo. Ao retratar temas delicados como esse, ele preza: “Sempre tente se aproximar deles [os retratados] antes de começar a fotografar”. Abd confessa que isso o ajudou a ser bem-vindo a fotografar um momento de muita dor que é um enterro. “No cemitério de Nueva Esperanza, conversei bastante com os parentes das vítimas fatais de Covid-19. É essencial para mim explicar às pessoas a importância da fotografia para criar uma memória histórica sobre o que acontece conosco como sociedade. Isso abre portas, os parentes entenderam muito bem, por exemplo.”

Embora tenham abordagens diferentes, esses fotógrafos compartilham uma característica que é evitar o uso do choque como recurso narrativo. Fazendo isso eles negam dizer o que nós devemos sentir e nos permitem sentir coisas que nós não entendemos muito bem, como afirmou a teórica cultural Susie Linfield. “Às vezes, tenho que ser direto com o meu público através das minhas imagens para alertá-los” afirma Khamooshi, complementando: “Eu não acho que é preciso fazer uma imagem chocante para mostrar isso. Em geral, a presença de pessoas nas minhas fotos é muito determinante”. Essa escolha, para Abd faz com que a leitura das imagens pelo observador seja enriquecida, porque nos força a pensar sobre o registro, ao contrário das imagens meramente descritivas que “convidam a um consumo rápido e passivo”.

Veja as fotos a seguir:

Foto: Jean Gaumy, Fécamp, França. 22 de março de 2020.

Nossa filha Marie e seus filhos ficaram confinados, infectados com o vírus por 12 dias. Doze dias difíceis. Marie ficou febril e privada de sono, assumiu bravamente seu papel enquanto nós, avós, só conseguíamos nos aproximar da janela deles. Viemos o mais rápido possível, mas não era para entrar na casa deles. Naquele dia, tivemos a surpresa de encontrá-los tocando violoncelo. Estavam finalmente melhorando.

Foto: Rodrigo Abd. Cemitério Nueva Esperanza, Lima, Peru. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Um fotógrafo de rua vende fotos para os parentes de Adrian Tarazona Manrique, 72, que morreu devido à Covid-19, durante seu enterro no cemitério Nueva Esperanza, nos arredores de Lima, Peru. Em 2013, visitei o cemitério de Nueva Esperanza pela primeira vez e encontrei um de seus trabalhadores, Juan Luis Cabrera, coveiro. Ele diz que nunca trabalhou tanto quanto nos últimos meses. Ele continua trabalhando, tentando fazê-lo com alegria, apesar da dor e desolação que é sentida no ar.

Foto: Rodrigo Abd. Cemitério El Angel, Lima, Peru. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

A família e os amigos dos que morreram sofrem duas vezes como resultado da perda de entes queridos e da incapacidade de se despedir intimamente. Apenas poucos membros da família podem comparecer; a grande maioria dos mortos é cremada em solidão.

Fotografia Covid
Foto: Rodrigo Abd. Cemitério Nueva Esperanza, Lima, Peru. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Noly Suarez segura uma cruz durante o enterro de seu irmão Flavio Juarez, 50 anos, que morreu de Covid-19, no cemitério Nueva Esperanza, nos arredores de Lima. O cemitério Nueva Esperanza está entre os maiores do mundo, com mais de um milhão de túmulos, e está localizado em um dos bairros mais pobres de Lima. Ele cresce dia após dia, cheio de parentes dos falecidos com o coração partido devido à súbita perda de seus entes queridos.

Foto: Rodrigo Abd. Lima, Peru. Junho de 2020. Cortesia do fotógrafo.

No sábado, 13 de junho, uma missa sem precedentes foi realizada sem os paroquianos, a catedral estava cheia de retratos de mais de 5.000 pessoas que morreram de Covid-19. O arcebispo Carlos Castillo declarou-se ‘agradavelmente e profundamente surpreso com a resposta do nosso povo’ ao realizar esta despedida coletiva. Em seguida, ele criticou o sistema de saúde peruano: ‘ele se baseia no egoísmo e nos negócios, e não na misericórdia e na solidariedade com as pessoas’.

Foto: Newsha Tavakolian. Teerã, Irã. Março de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Um ano após a morte do pai, Behrooz, Newsha e a irmã foram colocar flores no túmulo. Elas haviam planejado uma grande cerimônia com convidados e comida, mas tiveram que cancelá-la quando o surto de coronavírus se espalhou pelo Irã. “Foi muito triste, mas o que podemos fazer? Decidimos ir ao cemitério Behest-e Zahra de Teerã. Os iranianos adoram visitar seus entes queridos e, especialmente, nas semanas que antecedem o Ano Novo”. O cemitério, normalmente muito movimentado durante o ano novo iraniano, parecia estranho e abandonado. “O medo está em toda parte. Medo da morte, medo do futuro. Medo de um ano terrível pela frente”.

Foto: Newsha Tavakolian. Teerã, Irã. Março de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Observar, em frente à janela, a árvore que floresce no jardim deixa Jila, mãe de Newsha, feliz. Com a pandemia, ela passa boa parte do tempo na mesa da cozinha olhando para fora ou assistindo TV. Newsha conta que um dia o telefone dela tocou, era uma senhora que tinha errado o número. Independentemente disso elas conversaram por uma hora e descobriram que ambas haviam perdido seus maridos no ano passado. “Minha mãe desligou e riu. ‘Eu me sinto bem’, disse ela”.

Foto: Newsha Tavakolian. Teerã, Irã. 2020. Cortesia da fotógrafa.

A irmã da autora, cansada de ficar dentro de casa, veste uma máscara facial para jogar badminton com as amigas. Newsha tem saído de casa para fotografar. Ela diz que no Irã, o povo está acostumado a crises e se adapta rapidamente a novas realidades. A fotógrafa conta que coloca luvas de látex, uma máscara sobre a boca e o nariz e carrega um higienizador antisséptico na bolsa de sua câmera.

Foto: Arash Khamooshi. Teerã, Irã. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Dentro de seus carros, as pessoas lêem o Alcorão, durante o Ramadan, na Noite do Destino, Laylat al-Qadr; a celebração marca o começo da revelação do Alcorão ao profeta Maomé no Monte Hira, em Meca.

Fotografia Covid
Foto: Arash Khamooshi. Teerã, Irã. Março de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Na véspera do Ano Novo Persa, uma estação de ônibus na capital do Irã fica vazia em razão das medidas do governo para conter a disseminação do novo coronavírus.

Foto: Cristina De Middel. Itacaré, Brasil. 7 de maio de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Cadeiras são colocadas do lado de fora da agência local do banco do governo, distribuindo a ajuda financeira fornecida às famílias afetadas pela Covid-19

Foto: Cristina De Middel. Itacaré, Brasil. 18 de abril de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Brinco com um certo senso de confusão e surpresa, tentando associar imagens a significados que não são convencionais. Para mim, uma boa imagem é aquela que você não sabe como reagir: engraçada e triste, ridícula e bonita, ofensiva e tenra … as combinações são infinitas.

Fotografia Covid
Foto: Cristina De Middel. Itacaré, Brasil. 18 de abril de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Ednaldo Cardoso (44) é o sacerdote da única igreja católica em Itacaré. Ele é bastante progressista, tem uma banda de música, bebe cerveja. Sua igreja foi fechada nas últimas 3 semanas, mas ele se manteve disponível para quem precisasse de conselhos espirituais via Whatsapp. Ele não pode confessar, mas pode ouvir e tentar apaziguar seus paroquianos à distância.

Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 17 de março de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Comprador em uma feira orgânica no Parque da Água Branca, em São Paulo. O Brasil confirmou neste dia a primeira morte por Covid-19.

Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 20 de março de 2020. Cortesia do fotógrafo.

O florista Valdemir da Silva encomenda as flores de sua barraca enquanto aguarda o fechamento total das lojas na cidade de São Paulo.

Fotografia Covid
Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 18 de maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Passageiros na Estação da Luz durante o horário de pico.

Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 8 de maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Tallytta Ferreira, de verde, faz as unhas em uma manicure no bairro de Paraisópolis.

 

Foto: Hélio Campos Mello. São Paulo, Brasil. 2020. Cortesia do fotógrafo.

Fundado na França em 1971, o MSF – Médicos Sem Fronteiras trabalha pelo mundo e atende vítimas de conflitos, de desastres naturais e de flagelos como o ebola e agora o coronavírus. Nesta imagem, uma de suas médicas atende a população mais vulnerável ao Covid-19, em São Paulo. Em 2015 eram 15.905 homens, mulheres e crianças que moravam nas ruas. Segundo censo encomendado pela prefeitura da cidade em 2019 e recentemente divulgado, aquele número cresceu para 24.344. E a imensa maioria deste número assustador – são quase 25 mil pessoas sem casa para morar! – não está lá por escolha própria.

 

Fake News da colonização

Foto: Divulgação

Os brancos que insistem em nos chamar de atrasados e com pouca riqueza avançam sobre nossos territórios porque já saquearam tudo o que tinham. Enquanto isso os “vândalos” arrancam as estátuas dos genocidas em busca de “justiça”, pois nenhum feito heroico aconteceu por parte daqueles que desnudaram o Brasil. Toda essa loucura que vemos dia e noite em nosso país, está refletindo a grande fake news que os livros de história, monumentos, nomes de ruas contam, silenciando as tragédias que cometeram para perpetuarem no poder. Para meu povo, o homem branco foi chamado de Peka Sahâ, homem de fogo, capaz de destruir tudo o que toca. É aquele que rouba e que mata com sua ganância insaciável.

Os povos indígenas nunca fizeram monumentos, porque esta forma de ver o mundo através de homens heróis é uma fantasia criada pelo homem branco para vender seus produtos de guerra. Nós preferimos praticar nossas cerimônias e falar com os espíritos do que entrar nesta selvageria suicida. Nossas riquezas estão vivas e só têm “valor” por estarem vivas. São nossas casas terrenas e espirituais, muitas delas conhecidas por sítios sagrados. São as montanhas e cachoeiras sagradas. Não costumamos deixar rastros, lixo ou violência por onde passamos, assim existimos e resistimos para continuarmos sendo povos diferentes, cujos valores se expressam na simplicidade de nossos rituais coletivos e pinturas corporais.

Para retirar o véu da ilusão heroica, é preciso incluir a voz de todos os silenciados. Vamos sacar as armas de Borba Gato e de Martin Bugreiro lembrando: quantos índios foram caçados, assassinados e esquartejados? Quantas cabeças e orelhas foram cortadas, para premiar estes heróis brancos? E isso continua acontecendo. Ontem era o colonizador que nos matava, hoje são os mineradores, fazendeiros e plantadores de soja. Vamos etiquetar os nomes das empresas e grandes corporações ou dos deputados e bolsonaristas que querem matar índios. Vamos pintar os monumentos com cores, adornos e seres mitológicos, como a Cobra Grande, para que ela possa engolir a memória das violências transformando na cura que a humanidade tanto precisa. É urgente que as violências sistêmicas da colonização sejam expostas.

São os mesmos poderosos que perpetuam no poder. É este pensamento colonizador doentio que segue financiando as atuais guerras: causando fome, desmatamento, as doenças e pragas que chegaram até nós pelo desequilíbrio da cultura colonizadora. A história não deve ser apagada, melhor que ela seja ressignificada para que esta memória nos sirva de exemplo para gerarmos uma nova consciência.

O que fazer com os monumentos de exaltação aos bandeirantes?

monumentos
O Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, com tinta jogada por manifestantes em 2016. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

“Tem gente chorando por estátua, mas não é capaz de chorar quando morre um negro”, disso o filósofo e advogado Silvio Almeida, em maio passado, em um programa de entrevistas de televisão. Sua frase resume um debate que se instaurou desde que monumentos foram destruídos na Inglaterra e na Bélgica, na esteira dos movimentos antirracistas desencadeados pelo assassinato brutal de George Floyd por um policial, nos EUA.

Em síntese, o que se debate é se monumentos públicos que exaltam líderes genocidas merecem ser mantidos. Nas redes sociais, uma “legião de imbecis” como já apontava Umberto Eco, em 2015, quando recebeu o título de doutor honoris causa na Universidade de Turim, saíram em defesa do patrimônio, deixando de lado uma história de violência e segregação, chamando de “vândalos” aqueles que, em 7 de junho, em Bristol, jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston. Ele foi um traficante de pessoas escravizadas, responsável pelo tráfico de nada menos que 80 mil africanos, sendo que 20 mil morreram no mar.

Já em Antuérpia, no dia 9 de junho, a estátua de Leopoldo II, incendiada anteriormente, foi retirada da praça pública para ser inserida em um museu. O monarca, que reinou entre 1865 e 1909, foi o responsável pela morte de 10 milhões de africanos, a maioria da República do Congo, que era uma possessão pessoal de Leopoldo II (1835 – 1909). Finalmente, semanas depois a família real belga pela primeira vez se manifestou “arrependida” pela violência na África.

Nessa mesma sequência, o Museu de História Natural de Nova York anunciou que vai retirar da sua entrada principal a estátua do ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, em cima de um cavalo, sendo acompanhando por um indígena e um negro. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, concordou com a medida, dizendo que o monumento “retrata pessoas negras e indígenas como subjugadas e racialmente inferiores”.

Pelo mundo todo, afinal, estão sendo revistos esses símbolos racistas e, em São Paulo, coube à deputada Erica Malunguinho (PSOL) encampar o debate. Ela protocolou um projeto de lei para impedir homenagens a pessoas que tenham comercializado escravos.

Trabalho do inglês Banksy, divulgado no Instagram do artista

A proposta de Malunguinho inclui a remoção de monumentos públicos, segundo  o artigo 5° do 2° parágrafo do projeto: “Os monumentos públicos, estátuas e bustos que já prestam homenagem a escravocratas ou a eventos históricos ligados a prática escravagista devem ser retirados de vias públicas e armazenados nos Museus Estaduais, para fins de preservação do patrimônio histórico do Estado.”

Trata-se aí de um debate necessário, já que São Paulo tem entre suas mais famosas imagens o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, de Victor Brecheret. Inaugurado em 1953, uma maquete da obra chegou a ser exposta na Semana de Arte Moderna de 1922, o que revela o caráter elitista do movimento. Afinal, as bandeiras, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, em Brasil: uma biografia, “dizimaram populações locais”. Essas bandeiras “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”. Em suma, eles foram os milicianos da colonização brasileira.

Já há sete anos, em 2013, o monumento de Brecheret foi alvo de um protesto, tendo sido manchado com tinta vermelha. “Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência”, escreveu na época Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá. O fato ocorreu quando se discutia a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) que transferia a competência da União na demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilitava a remarcação das terras indígenas.

As manifestações antirracistas vêm colocando em xeque o que se considera como “história universal”. Em geral, essa história é um relato de homens brancos, que ignoram todos os conflitos e resistências, impondo uma visão única. Está na hora, portanto, de descolonizar nossa história e nossos símbolos, ressignificando esses monumentos que exaltam lideranças genocidas.

A proposta de Malunguinho é a mesma que vem sendo posta em prática em vários países, como é o caso da Bélgica. Há outras ideias mais criativas. Em sua conta no Instagram, o artista Banksy faz uma ótima proposta para Bristol: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, acrescentando, contudo, outras estátuas representando pessoas tentando derrubá-la, tornando permanente, assim, o gesto de reescritura da história.

Não se deve apagar a história, ou mesmo fazer de conta que ela não existiu, como se fez com o período da ditadura militar no Brasil. A transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual. É preciso, portanto, rever esses monumentos e recontextualizá-los de forma que não se esqueça o passado violento que se abateu sobre os povos indígenas, para que ele não mais se repita.

Para ampliar esse debate, arte!brasileiros convidou Naiara Tukano, do povo indígena Yepá Masã, de São Gabriel da Cachoeira, no interior do estado do Amazonas. Leia a seguir seu texto. ✱

Chile: al aire, libre

Constanza Alarcón, Augurios, 2020. Chile: al aire, libre
Constanza Alarcón, "Augurios", 2020. Foto: Divulgação.

Al aire, libre (ao ar, livre) foi uma exposição efêmera, realizada entre os dias 16 e 17 de maio, ao longo do território chileno, desde a região de Copiapó, no deserto do Atacama, ao Norte, até Coyhaique, na Patagônia.

A maioria das obras foi produzida pelos artistas em seus diferentes locais de confinamento, após serem convocados pelo curador brasileiro Tiago de Abreu Pinto.

Nascido em Salvador, Bahia, Tiago passou dez anos da sua vida profissional na Espanha, onde realizou também sua tese de doutorado apresentada em 2017, sobre Philippe Thomas, Readymades belong to everyone. O artista francês tem uma conversa com a historia da arte e a literatura onde explorou textos de Fernando Pessoa e Blanchot.

Seguindo a sua pesquisa, Tiago desenvolveu projetos nessa linha em vários países, onde reúne relatos de artistas e os transforma em relatos ficcionais. Essa ideia foi desenvolvida numa exposição com Ivan Grilo, na Casa Triângulo, em São Paulo.

“De férias em Santiago do Chile fui pego pelo fechamento de fronteiras e voos. Assim, decidi fazer a minha quarentena no país”, conta o curador. “Pelo sentimento de desconexão com a comunidade – estávamos todos ilhados, isolados um do outro – entrei em contato com a artista chilena Voluspa Jarpa para escutar sobre seu trabalho. Propus a ela fazer um projeto inspirado no trabalho de uma curadora de Berlin, Ovul O Dormusuglu”, segue ele. “Voluspa, nesse momento e durante todo o projeto, foi quem mais me animou, e se transformou em uma guia durante todo o processo.”

Still do vídeo criado pelo projeto, 2020
Still do vídeo criado pelo projeto, 2020. Foto: Divulgação.

Tiago convocou mais de 70 artistas visuais para realizar uma experiência de colaboração, relacionamento e fala, num momento em que manifestar-se sobre a pandemia foi e será uma necessidade fundamental. Cada um desde seu lugar de residência.

Algumas perguntas sobre a percepção deste período estavam presentes na convocatória. “Somos seres anônimos aos nossos vizinhos? Se ninguém está perto para nos escutar, emitimos algum som?” Redes que reforçaram o espírito de solidariedade apareceram no trabalho.

Entre os artistas convocados estão Paz Errázuriz, Prêmio Nacional de Artes Plásticas 2017. A fotógrafa chilena iniciou sua carreira durante a ditadura chilena de Pinochet. Seu trabalho se concentra em retratar pessoas e espaços que por diversos motivos foram deslocados para as margens da sociedade – uma importante mostra da sua obra estava prevista para abrir no dia 17 de março, no IMS em São Paulo.

Delight Laby e Raúl Zurita, “Esto también passará” (2020). Foto: Divulgação.

Outros participantes de Al aire, libre foram Raúl Zurita, Prêmio Nacional de Literatura 2000; coletivos nacionais como Mil M2, que convidou um grupo de moradores de Torres de Tajamar para fazer perguntas de suas janelas; as artistas Ángela Cura, Felipe Santander e Milena Moena, que projetaram para seus vizinhos um filme que contava a história dessa mesma comunidade de vizinhos, tornando-os participantes do projeto.

“A arte não vai encontrar cura para a Covid-19, mas existe uma necessidade latente de realizar esse projeto, pois, como Voluspa me contou, ‘as obras compartilham emoções coletivas com o momento presente’”, enfatiza Abreu Pinto.

“A resposta do grande número de participantes foi exemplar como exercício para criar estratégias em tempos de crise e quarentena”

“A resposta do grande número de participantes foi exemplar como exercício para criar estratégias em tempos de crise e quarentena. Mas, vai além de uma exposição. Foi um processo social e comunal de solidariedade”, diz Tiago de Abreu. E, conclui: “É muito importante ressaltar que essa foi uma exposição física, antes de mais nada. O projeto online é a concentração dos registros feitos por cada um dos artistas que reverberavam fisicamente em um espaço e durante um certo período de tempo.” ✱

O grito que vem da arte

"Pano Preto na Janela", de Julio Villani, intervenção do artista no muro da embaixada brasileira em Paris. Foto: RA

Com o isolamento compulsório por conta da Covid-19, parte da comunidade artística cria novas interrogantes com trabalhos impregnados de críticas ao governo Bolsonaro. A arte produzida nessas circunstâncias nasce contaminada por outras filiações como psicanálise, ativismo e política. Os trabalhos se expandem quase independentes da vontade do autor, com ações inimagináveis.

Julio Villani, brasileiro que mora em Paris desde 1982, é tranquilíssimo. Mas, no dia 21 de maio último vira a mesa e surpreende a todos com a intervenção  Pano Preto na Janela, feita no muro da embaixada brasileira da capital francesa. Seis longas bandeiras, com desenhos iguais à do Brasil, mas nas cores preto, vermelho e amarelo, exibiam palavras e frases contra a política de Bolsonaro, reproduzindo algumas de suas  sandices. Muita gente se espantou porque, com raras exceções, seu trabalho não traz carga política explícita. “Posso ser um sonhador, mas sou um sonhador acordado”. No fim do ano passado, ele já fazia lençóis bordados denunciando os “reviramentos” da liberdade no Brasil. Isso não foi suficiente, então decidiu agir. “A embaixada brasileira se impôs como lugar natural para vomitar nosso desacordo.” Uma semana antes ele cria uma bandeira preta, um GIF no Instagram. “Os outros painéis nascem de um só traço e a ligação com os panos pretos nas janelas se faz automaticamente.” Passados esses dias, ele desabafa: ”Foi uma gota d’água nascida com a única coisa que sei, com a única coisa que sou”. Villani representa uma parcela de brasileiros revoltada com o comportamento vulgar do presidente. “O governo dele nem chega a ser autoritário, mas desgoverno, destruição sem nome e, se nome tem, é fascismo. O que sinto é oposição visceral.”

A imprensa francesa noticia e o Quotidien des Arts abre com o título: “Comando artístico contra Bolsonaro”. O importante para Villani é que o jornal explica cada bandeira, expondo o desgoverno. O Figaro também publica as críticas e, no Canadá, brasileiros usam as imagens em ação na embaixada brasileira em Ottawa. Em Lisboa e Coimbra, elas aparecem em manifestações anti-Bolsonaro e estão disponíveis no site da paulistana Casa do Povo. Se os seis painéis pretos impactaram o público, o que ficou no coração do artista foi o branco, pequeno, com a frase: um outro Brasil é possível. “Temos que encontrar ideias e ações para fazê-lo voltar a existir. A outra opção, não é uma opção.”

Projeções da série Convivência, Ação para Tempos de Isolamento, de Ana Teixeira. Foto: Divulgação.

Com ativismo rápido e disseminado, os artistas se infiltram no tecido da cidade, ganham territórios e audiência para suas falas. Ana Teixeira transformou a janela de sua casa, na Vila Madalena, em São Paulo, em palco de onde projeta luz com textos de resistência ao autoritarismo do governo, além de textos jornalísticos ou filosóficos como os de Ailton Krenak e Eliane Brum. Convivência, Ação para Tempos de Isolamento traz também suas narrativas que aderem às paredes dos prédios, como pele da arquitetura. A projeção é um ritual que se repete diariamente, também com outros autores.

A cidade é um imenso corpo narrativo e lugar de embates. Ana recebeu ameaça de um vizinho, não identificado, ao projetar alguns trabalhos, com som, como a hashtag #ForaBolsonaro. Alguém não gostou, desferiu uma saraivada de laranjas contra sua casa e, a partir daí, ela eliminou o som. Ela tem seguidores que a acompanham aqui e no exterior. “Mantenho contato com artistas que também constroem modelos de ocupação e resistência urbana em suas cidades. Em Barcelona um grupo projeta meus trabalhos e eu os dele.”

Trabalho da série Aller et Retour, de Maurício Silva. Foto: Anne Furci/ Divulgação.

Na década de 1980, Maurício Silva vive uma vadiagem criativa, com artistas igualmente jovens, em torno do grupo Paranambuco, formado por José Patrício e Alexandre Nóbrega, entre outros. Socialistas utópicos, achavam mais produtivo e divertido o trabalho coletivo. O tempo passou, mas o espírito inquieto de Maurício permanece intacto. Hoje ele mora em Meudon, nos arredores de Paris, com a mulher Anne e quatro filhos. No isolamento, ele criou uma estratégia para suturar o tempo com a série Aller et Retour, pinturas sobre bilhetes do metrô guardados por ele. “Os tickets são registros de minhas idas e voltas nessa sociedade que nos limita e oprime.” Pintados e colados lado a lado formam uma grande tela, com marcas da sua obstinação pelas texturas. Cores fortes e luz intensa são parte da reserva afetiva que ele carrega do Recife. Aller et Retour acabou, não por esgotamento do projeto, mas pela troca de tickets por cartões magnéticos introduzidos pela prefeitura de Paris.

O livro Poesia Pandemia, de Maurício Silva. Foto: Anne Furci/ Divulgação.

Nesse contexto ainda produziu o livro Poesia Pandemia, com infiltrações de resistência política, com seus textos, colagens e desenhos, e pronto para ser impresso. Um alívio para ele, que confessa: “Nada é tão assustador quanto a possibilidade de morrer sem dizer nada. E sobreviver depois de tudo isso será mudar para melhor, com certeza”.

Na tentativa de salvar o país da desintegração nacional, as redes sociais fervilham com mensagens saídas de diversas trincheiras. Diariamente trabalhos de autores anônimos, com identidade comum, se integram à Cólera Alegria, definida pelos participantes como “ação colaborativa de caráter político”. Sem nenhuma voz de comando, os integrantes não se reconhecem como coletivo ou grupo. Com um comitê invisível, tudo para eles é colaborativo, provisório e dinâmico, assim como a entrada e saída dos participantes, a qualquer hora. A execução dos trabalhos nasce nas pegadas do Arts and Crafts, com papelões e panos pintados que se transformam em cartazes, bandeiras, estandartes, que circulam tanto nas redes sociais como nas ruas, em manifestações políticas. Irreverência e humor não faltam à ação que age por meio do compartilhamento de imagens junto à hashtag #coleraalegria. Com a ascensão da direita no Brasil, se apoderando de símbolos e cores nacionais, eles tentam retomá-las, assim como as palavras deturpadas pelo discurso autoritário do governo.

Trabalho divulgado pelo Cólera Alegria

Pela ideia transformadora, Cólera Alegria foi incluída na exposição Against, Again: Art Under Attack in Brazil, com curadoria de Nathalia Lavigne e Tatiana Schilaro, sem a identificação dos artistas, na Faculdade de Direito John Jay, em Nova York. A mostra está interrompida por conta da Covid-19, sem data de retorno. ✱

Leia também: Projeto de arte pública realizado no Chile, em meados de maio, reuniu mais de 70 artistas e coletivos que estiveram presentes em espaços suspensos e postergados durante o isolamento na pandemia. Neste link.

O normal não era normal: Que museus queremos depois da pandemia?

Por João Fernandes e Marcelo Araujo

 

Há um sentimento universal neste momento de pandemia de que o mundo não será igual quando a humanidade puder voltar a se encontrar no espaço público, quando se puder voltar a viajar, a trabalhar nos locais de trabalho, a encontrar amigos, a abraçar gente, a ir ao cinema, ao teatro, a concertos, quando se puder voltar a visitar museus e exposições…

Temos seriamente que nos interrogar como foi possível chegar a um momento desses. Quão indefesos estávamos perante uma possibilidade que antes só parecia possível em filme de ficção científica ou em filme de terror? E temos que assimilar muito do que sentimos, aprendemos e pensamos nestes dias de confinamento, e saber agir a partir de tudo isso.

No caso dos museus, que museus iremos encontrar quando reabrirem? É por demais óbvio que os museus não poderão reabrir do mesmo modo em que os conhecemos antes da pandemia. É previsível que restrições aos números de públicos que os visitam, cuidados sanitários, uma outra organização necessária do espaço, dos percursos e da mobilidade dos visitantes, um outro funcionamento do seu trabalho interno e das suas atividades públicas modificarão as suas rotinas por um período neste momento ainda indefinido. Desejando que esses cuidados sejam temporários (o que não é certo se a pandemia evoluir para uma realidade endêmica de longo prazo, como alguns já referem…), também no contexto dos museus importará interrogar a “normalidade” em que se vivia antes, de modo a alimentar a esperança de que o mundo melhore e não perpetue tantas das suas outras enfermidades reconhecíveis que nos conduziram à situação que agora vivemos.

Nesses tempos que hoje parecem longínquos (há três meses apenas…), antes de serem forçados a encerrar as suas portas, os museus, muitas vezes independentemente da sua dimensão ou relevância, viviam já alguns momentos difíceis. Dificuldades de natureza política, logísticas, de funcionamento e de financiamento, ensombreciam o trabalho na maioria dos museus do planeta, exceção feita àqueles museus estelares que marcavam a galáxia internacional, os quais mereceriam muitas interrogações pelas realidades contraditórias que propagavam. O papel do museu surgia cada vez mais condicionado pela busca sôfrega de visitantes, cujas estatísticas definiam junto a governos, mecenas e opinião pública os critérios de sucesso e de legitimação. O museu integrava-se veloz e apressadamente numa sociedade global do espetáculo que o pressionava cada vez mais para que se transformasse num elemento essencial da paisagem mundial do entretenimento e do lazer, mobilizando uma indústria do turismo que nele identificava uma das suas atrações. Aliás, como sucede no Brasil, não deixa de ser significativo que a pasta antes ministerial da cultura se integre agora como secretaria num ministério do turismo… São numerosos os casos que se verificam, num contexto internacional, dessa associação política da cultura ao turismo, muitas vezes acrescida do desporto, da China a Abu Dhabi, da Turquia à Etiópia…

Nesta sociedade que se estrutura ideologicamente no roubo do tempo à vida das pessoas, o museu surgia igualmente como um lugar de ocupação intensiva do tempo dos seus visitantes, não um tempo para a experiência sensorial das obras, o conhecimento, nem tanto assim um tempo para a aprendizagem ou a partilha dos objetos ou dos documentos neles apresentados, a reflexão individual ou coletiva em situações que neles se pudessem viver, mas antes um tempo ocupado em leitura nas suas paredes de textos quantas vezes simplistas ou redutores (quando não crípticos ou incompreensíveis…), um tempo preenchido com a duração de materiais audiovisuais sem fim, com visitas guiadas por audioguias, frequência de lojas, cafés e restaurantes, filas intermináveis para ver exposições blockbuster nas quais o tempo para estar em frente a uma obra era definido pela fila de espera que a essa obra dava acesso.

O museólogo Marcelo Araujo, diretor geral do Instituto Moreira Salles. Foto: Rogério Cassimiro

A visita ao museu começava a assemelhar-se à visita ao shopping center, condicionando a atenção e a curiosidade do visitante à permanente excitação das numerosas atrações que se lhe oferecessem no seu percurso. Ficava de fora o prazer da descoberta do desconhecido, o estímulo da curiosidade mais radical, o desconforto revigorante do confronto dissonante com as ideias, sempre já feitas e servidas como fast food para o espírito. O museu se afirmava como lugar de anestesia dos conflitos da vida, muitas vezes à revelia das obras apresentadas, mesmo quando os enunciava edulcorados pelo perfil curatorial politicamente correto das suas exposições e programas. A transmissão constante de informação se sobrepunha frequentemente ao convite à reflexão individual e/ou coletiva, à experiência e consequente interpretação livres do visitante, nessa entropia diabólica que leva a que o excesso de informação distancie quem a recebe do conhecimento crítico que a partir dessa informação possa construir.

Mega-exposições caríssimas cartografavam o mundo, movimentando obras que não deveriam viajar, deslocadas em função das relações de poder entre museus ou do dinheiro que pudessem originar, alimentando outras economias nas quais, para além do turismo, sobressaiam as economias de outros negócios, como os das empresas de transporte e de seguros, ou dos vários mercados que encontravam nessas exposições suas vitrines de luxo. Muitos museus ou centros de arte infantilizavam os seus públicos, numa visão equivocada de educação, dirigindo a percepção e a interpretação, em vez de as estimular dentro da liberdade individual de cada um e da sua expressão nas discussões coletivas que pudessem originar.

Fragilizados no seu financiamento, assim como na sua função republicana (não esqueçamos o Louvre como um dos primeiros momentos de expressão da emancipação da cidadania), atrofiados pela demissão do investimento dos estados democráticos e seus governos, os museus caíam cada vez mais na dependência crescente dos critérios de marketing das empresas que os financiavam, assim como dos gostos artísticos de seus mecenas, muitas vezes colecionadores privados frequentemente beneficiários nas suas coleções da informação especializada que obtinham através das sua participação em patronatos, conselhos ou comitês de aquisição de obras.

Como instituições integradas numa sociedade acumulativa e quantificadora, os museus eram igualmente entidades que refletiam na organização do seu trabalho interno a lógica economicista dominante nessa sociedade, destinando o tempo dos que neles trabalham e as verbas de que dispunham ao privilégio de uma hiperatividade focada na produção de programas contínuos e intensivos para um público pensado como ávido e consumista, secundarizando a investigação, o estudo das suas coleções, os serviços das suas bibliotecas, diminuindo todo um trabalho invisível que deveria pautar as suas finalidades. Integrados numa sociedade dinamizada pelo crescimento vertiginoso da desigualdade social, o museu perpetuava as relações de trabalho injustas reconhecíveis nessa sociedade, contribuindo para a paralisia social, expressando as suas discriminações sociais e culturais, programando em função dos valores culturais, econômicos e sociais que o financiam e gerem, explorando o trabalho intelectual dos seus funcionários, abusando do trabalho extraordinário e precário, não reconhecendo o tempo de investigação extra-laboral necessário, nem sempre respeitando a paridade de gênero nas suas hierarquias, reservando sempre os graus mais baixos dos seus organogramas e dos seus postos de trabalho para as gentes mais discriminadas social, racial e economicamente na sociedade que representam.

O curador João Fernandes, diretor artístico do Instituto Moreira Salles. Foto: Renato Parada

Agora que o mundo parou por uma pandemia, e os museus encerraram temporariamente as suas portas, aproveitemos este momento de suspensão para avaliar aquilo em que eles se estavam tornando e interrogar o que eles poderão ser após as suas reaberturas. Como em relação a tudo quanto antes vivemos, também nos museus vai tudo ficar igual depois deste confinamento, descontadas as precauções necessárias para reativar o que já se chama de “novo normal”? É provável que assim seja, pois a sociedade não mudou nas suas formas de decidir, nos políticos que elegeu, nas injustiças e contradições que revela. E no entanto, todas e todos sentimos em maior ou menor grau essa perguntazinha inquietante: vai tudo ficar igual?! Ela nos confronta com a urgência de que algo terá que mudar para nos protegermos melhor, para não chegar de novo a este ponto que nos revela tão vulneráveis e desprotegidos. Também em relação aos museus, ao mundo da arte com os seus momentos de atividade febril recentemente protagonizados pelo crescimento incessante do números de bienais e de feiras de arte, sentimos que não vai ser possível regressar a esse mundo, que é urgente pensar novas possibilidades de ser e de atuar, quanto mais não seja pela astral pegada ecológica deixada no passado por tantos dos seus diretores e curadores, movidos pela necessidade de acompanhar o mundo em que o seu trabalho virava global. Se configura urgente repensar essa mobilidade interminável paga pelos orçamentos institucionais ou até pessoais, outras vezes financiada por tantas feiras de arte ou festivais por meio das e dos quais o mercado filtrava as percepções curatoriais. Algo nos indicia que esse globalismo terminou, que estar em todos os lugares e em todos os fusos horários do planeta no rodopio incessante das bienais, feiras e grandes exposições internacionais chegou ao fim como missão e como objetivo…

Descobrimos ao longo deste período de confinamento novas formas de solidariedade, de preocupação com aqueles que nos são próximos e com aqueles que não conhecemos, novos modos de usar as redes e as ferramentas eletrônicas, além das evidências que se tornaram constantes (e em relação às quais vivíamos tão anestesiados), de como pequenas decisões podem reequacionar a sobrevivência, a relação entre a vida e a morte, a injustiça que criou discriminações tão ameaçadoras para a condição humana, a estupidez de eleger decisores que não estão preparados para nos proteger, que não nos querem proteger e para isso invocam a (sua…) economia. Descobrimos ao longo destes meses novos modos de sentir que habitamos juntos este planeta e que juntos deveríamos repensar o que lhe fazemos e como nele vivemos. O mundo que sobreviverá a esta pandemia nos chama a repensar as nossas vidas e as nossas tarefas a partir do desejo de uma outra proximidade, a partir das nossas casas, das famílias, dos amigos, dos conhecidos e desconhecidos em relação aos quais reconsideramos a nossa existência a partir da redescoberta de que a vida humana conta e tem que ser protegida quando se revela tão frágil e vulnerável.

É a partir dessa consciência que o museu necessita se reinventar, se recentrar nas suas tarefas, nas suas missões e objetivos. É a partir dessa redescoberta de nós mesmos que ganharemos a consciência de que o museu não pode nunca deixar de ser local, de se situar no lugar onde existe, no bairro, na sua cidade, no seu país, numa cultura da qual preserva, interpreta e redefine a memória e propõe um presente para essa memória. Atento ao tempo em que vive, será da conjugação de tempos múltiplos e da diversidade de modos de ver, de sentir e de pensar que resultará a sua viagem temporal, a sua intemporalidade. Assim descobriremos que o museu não pode deixar de se dirigir ao mundo, aos seus públicos mais próximos ou distantes, buscando incluir, mas não massificar nem indiferenciar, a partir da expressão da sua localidade, da história específica do contexto em que surgiu, reunindo-se agora a um mundo onde a curiosidade, a informação e o conhecimento crítico possam ser cada vez mais recíprocos a partir do reconhecimento de diversidades sem fim, de pontos de vista diferenciados, que se surpreendam entre eles em vez de se empobrecerem e resumirem na condição única e totalitária de serem globais.

Por isso é tão prioritário descolonizar a história dos museus, desconstruir os pontos de vista uniformizadores, exigir aos grandes museus “coloniais” do passado, como o Louvre, o British Museum, o Metropolitan, o Prado e tantos outros, que saibam reconstruir as suas narrativas a partir da consciência desse passado, da libertação das regras dos poderes que lhes definiram as coleções mas que não lhes deverão limitar a consciência crítica da diversidade dos pontos de vista. Despertos e conscientes das novas formas de trabalho e de conhecimento que estamos descobrindo a partir da internet, das redes sociais e das plataformas online, importa compreender que o mundo virtual não é apenas uma vitrine dos acervos e dos programas de atividades, mas também uma plataforma de encontro, de trabalho, investigação, de criação, de partilha de saberes e de conhecimentos, de discussão crítica e diversidade de pensamento, do trabalho em conjunto possibilitado a partir do reconhecimento dessa diversidade, da necessidade de reinventar novas formas e novos programas internacionais de colaboração. É indispensável começar de novo, descolonizar o museu da sua condição servil da ideologia de um poder e de uma economia globais que é urgente analisar e reconsiderar, compreender como as narrativas que os museus protagonizavam, a forma como recebiam os seus públicos, na condição de meros turistas consumidores, os desvirtuou e lhes roubou os desafios de uma contemporaneidade que só pode ser redefinida coletivamente, a partir da soma e não da acumulação estatística das percepções individuais nem da massificação redutora das emoções e dos conhecimentos. Novas relações de trabalho, novas transparências dos processos de trabalho são necessárias e possíveis nesse novo paradigma por construir.   

Um museu no Brasil, por exemplo, se confronta permanentemente com a necessidade de não se revelar inconsciente a respeito de uma história colonial marcada pela escravidão, assim como desse cruzamento tão fascinante quanto sempre reinventado entre uma cultura popular viva e surpreendente com uma cultura erudita tão singular e atenta ao seu contexto e história específica. Um museu no Brasil não pode negligenciar essa premência da revelação da diversidade cultural e artística do país, de uma diversidade racial, cultural, social, geográfica, de gênero e de identidades sexuais, seja nas suas programações, seja nas políticas de acessibilidade, ou nas formas de organização do seu trabalho interno. Um museu no Brasil necessita saber existir local, nacional e internacionalmente, consciente da amplitude do país, mas procurando mais longe ainda do que as suas fronteiras geográficas. Um museu no Brasil não pode ignorar a experiência de tantas ações inovadoras e exitosas como os museus de quilombos, favelas e comunidades indígenas.

A colaboração entre museus, suas programações e acervos, a nível nacional e internacional; as redes que possa estabelecer com museus da América do Sul, África e do resto do mundo serão um compromisso obrigatório, a ativar na miríade de ocasiões e de opções que se revelam, ou naquelas que se torna necessário e urgente construir. As pautas são inúmeras. Haverá que redefinir tarefas, missões, objetivos e prioridades. Toda uma conversa, toda uma discussão nos aguarda.

No momento em que se reabram as portas dos museus, não, não voltemos a esse “normal” que não o era, e que hoje é já obsoleto, por ter se revelado incapaz de nos proteger e preparar para os desafios com os quais o presente não cessa de nos confrontar. Desafios de um contexto necessariamente diferente, que certamente irá necessitar de museus. Para ele iremos reabrir, mais solidários, mais conscientes dos problemas e dos dilemas de um mundo por vir.

 

*Texto originalmente publicado na Revista Museu

Política, cultura e o cenário museal no país

Museus
A sede do Instituto Moreira Salles em São Paulo. Foto: Divulgação. Foto: Pedro Vannucchi

arte!✱ – Neste contexto da pandemia do coronavírus e da necessidade de isolamento social, como vocês estão trabalhando no IMS? Que tipo de trabalho tem sido possível realizar e qual o planejamento que estão fazendo para os próximos tempos?

O IMS fechou ao público seus centros culturais em São Paulo (SP), no Rio de Janeiro (RJ) e em Poços de Caldas (MG) no momento em que foram divulgados os alertas das autoridades da área de saúde dos três Estados, e colocou todos seus funcionários em regime de trabalho domiciliar. Desde então temos nos dedicado às ações necessárias para garantir a segurança e preservação dos acervos e edifícios, bem como a uma série de ações voltadas para a manutenção e ampliação de nossa presença nas redes virtuais, especialmente em nosso site. Seja pela continuidade de iniciativas habituais, como a Rádio Batuta e outras relacionadas a nossos acervos, seja por novas iniciativas especialmente pensadas para esse momento, como o IMS Quarentena, que oferece conteúdos relacionados às revistas serrote e ZUM; o IMS de Casa, com conteúdos ligados aos acervos; e o Programa Convida, que em sua primeira edição apresenta 60 artistas e coletivos de todo o Brasil que foram convidados a criar obras que refletissem sobre o isolamento resultante dessa pandemia.

Falando sobre os museus brasileiros e pensando no texto que vocês publicaram, para além de pensar em que tipo de museus – e de experiências – queremos ter após a pandemia, infelizmente ainda precisamos pensar na própria capacidade de existência e sobrevivência de muitas dessas instituições. Acabamos de assistir, menos de 2 anos após o incêndio do Museu Nacional do Rio, outro incêndio, no Museu de História Natural da UFMG. Queria que falassem um pouco como enxergam esses acontecimentos e esse quadro.

O cenário museal brasileiro enfrente uma série de imensos desafios históricos, dos quais talvez o mais grave seja a ausência de políticas públicas consolidadas que compreendam a natureza, o papel e a importância dessas instituições, e possam lhes oferecer reais condições de desenvolvimento. Importante registrar que existe, por parte dos profissionais desses museus, em todos os níveis, plena consciência e conhecimento das necessidades técnicas, operacionais, administrativas e culturais de suas instituições, mas infelizmente esse conhecimento não tem encontrado ressonância junto às autoridades responsáveis.

Vocês diriam que a situação de muitos museus públicos no Brasil demonstra uma fragilidade de um modelo de instituições culturais financiadas diretamente pelo Estado? Modelos mistos ou instituições privadas se mostram menos vulneráveis? Como enxergam esse quadro? 

Pelo menos dois terços dos museus brasileiros são estatais. Há portanto imperiosa necessidade de se construírem políticas públicas para essas instituições. Há modelos de gestão compartilhada (como o modelo de gestão por OS) que tem demonstrado grande potencial, desde que devidamente implantado, gerenciado e respeitado pelos diferentes níveis de Governo. Mas obviamente não é uma solução mágica nem aplicável a todas as situações. Por outro lado, as instituições privadas, em sua imensa maioria, também enfrentam grandes dificuldades, inclusive a nível de sobrevivência, e devido à sua importância, não podem prescindir do apoio público por meio de diferentes estratégias, como as Leis de Incentivo.

Pensando no contexto político e cultural no país de modo amplo, em cerca de um ano e meio de governo Bolsonaro chegamos agora ao quinto titular na pasta da Cultura. O que isso demonstra sobre o valor dado à cultura pelo governo? E de que modo esse quadro todo afeta o trabalho também no IMS?

O momento político que o Brasil atravessa é particularmente doloroso para a área da Cultura como um todo. Atacada de todas as maneiras, com suas instituições – especialmente no nível federal – violentadas e desrespeitadas, e enfrentando os terríveis impactos dessa pandemia, a Cultura brasileira está sob terríveis ameaças, para as quais apenas a coragem, a dedicação e a competência de seus diferentes agentes oferecem expectativas de superação.

Como instituição intrinsicamente vinculada ao contexto brasileiro, o IMS vivencia cotidianamente esses impactos, se solidariza com todas nossas companheiras e companheiros nessa luta, e busca oferecer apoios e espaços que possam contribuir de maneira solidária para todo esses difíceis enfrentamentos.

Desconstruir a hegemonia branca nas artes brasileiras é uma ação efetiva de mudança

Aline Motta
Aline Motta, (Outros) Fundamentos #3, 2017-2019. Foto: Cortesia da artista

O  jornalista e crítico de arte Gonzaga Duque foi um dos primeiros responsáveis pelo estudo sobre a definição daquilo que compreendemos por arte brasileira. Em livro lançado em 1888, Duque entendia a chegada da Missão francesa ao Brasil e a concomitante fundação da Academia Imperial de Belas Artes como o início daquilo que poderíamos nomear por arte brasileira. Essa, que começaria por um viés eurocêntrico, foi, de lá pra cá, revista e ampliada por diversos estudos e iniciativas, como os modernistas de 22, os escritos de Mário Barata, Mário Pedrosa, Aracy Amaral, entre outros.

Apesar dessas pesquisas apontarem uma arte brasileira composta por produções diversas, em linguagens e autorias, ainda mantemos em seu interior estruturas que naturalizam a predominância das autorias brancas e de origem ou descendência europeia. Nesse sentido, o crítico e curador Paulo Herkenhoff, ao escrever sobre a chamada produção nipo-brasileira, aponta para o fato de que, “nesse viés, prenuncia-se um certo racismo das diferenças internas, pois deve haver crítico e historiador universitário que nunca sequer escreveu o nome de um artista nipo-brasileiro em sua trajetória ensaística”. Podemos estender essa observação também para os artistas afro-brasileiros, indígenas brasileiros e aos demais de outras origens asiáticas, sendo o comentário de Herkenhoff a denúncia de uma realidade presente e constante aos artistas cujas produções estão marcadas pela racialização. No caso do uso do termo nipo-brasileiro, quando adotado como padrão para mencionar as contribuições de artistas de origem asiática, ocorre uma segunda exclusão, pois este é insuficiente para contemplar as demais origens asiáticas e invisibiliza contribuições para além da de origem japonesa.

É comum encontrarmos livros de arte brasileira que não citam nenhum artista negro, indígena e de ascendência asiática, nem mesmo os nipo-brasileiros, que possuem trajetória relevante na historiografia da arte brasileira. Nesse sentido, precisamos sempre nos perguntar o porquê de racializarmos determinadas populações e atribuirmos a elas termos específicos, como afro-brasileiras, indígenas brasileiras ou asiático-brasileiras (termo este ainda pouco difundido, mas que visa abranger vivências de brasileiros de origem asiática mais amplas do que a narrativa somente pautada pelas experiências nipo-brasileiras): será porque reconhecemos a chamada arte euro-brasileira como sendo apenas arte brasileira? Segundo a artista e pesquisadora Grada Kilomba,  isso não ocorre por acaso. De acordo com a autora, a universalização e predominância da pessoa branca nas artes é parte de uma construção ideológica, colonial e racialista que define  o ser branco e europeu como o padrão das narrativas do mundo, atribuindo a ele noção de neutralidade e normalidade. Em contraposição, abordam os demais como específicos e diferentes, elaborando nesse “outro” a sua oposição. Esse debate foi realizado recentemente pelo curador e pesquisador Hélio Menezes, em sua dissertação de mestrado Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira, defendida em 2018, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Para ele, as discussões sobre os “direitos civis, identidade negra, combate às desigualdades racializadas de renda e de acesso a bens e serviços, direito à memória e a diversidade têm se avolumado na agenda política do país”,  e, no campo das artes, têm sido reivindicadas por algumas vias, como a exigência de “releitura crítica dos modos de representação”, a “revisão das políticas de branqueamento” e o “combate do anonimato” de diversos artistas.

Evidenciar tal disparidade no tratamento dado a determinados grupos torna-se importante e urgente. Presenciamos nas últimas semanas debates em torno dos racismos e as disparidades sociais que afetam a vida das pessoas negras no mundo. Desde o dia 25 de maio, data do assassinato do afro-estadunidense George Floyd, um intenso conjunto de ações demonstraram a necessidade de combate ao racismo estrutural e sistemático como uma responsabilidade de toda a sociedade contemporânea. Nesse período, diversas instituições utilizaram suas redes para demonstrar apoio a campanha Black lives matter, inclusive instituições e profissionais das artes. Entretanto, mais que apoio verbal, a luta antirracista precisa de ações efetivas e permanentes, que, no campo das artes, vão para além de escrever uma mensagem nas redes sociais, incluir um artista em uma exposição, citar um autor ou ser amigo de alguém cuja identidade foi marcada pela racialização. Essas ações são válidas e merecem o reconhecimento, mas precisam ser ampliadas para que possam alcançar dimensões que modifiquem as estruturas e dinâmicas do funcionamento das artes no país. É necessário que, tanto no micro quanto no macro, façamos a defesa de políticas que gerem permanência da mudança.

Nessa perspectiva, destacamos aqui algumas iniciativas recentes que têm apontado caminhos possíveis para o combate a hegemonia branca nas artes brasileiras. Com projetos que falam para além das já conhecidas ausências, pesquisadores, artistas e curadores, principalmente negros, indígenas e de ascendência asiática, se empenham em trabalhos que constroem um cenário artístico crítico e diverso. São projetos que primam pelo profissionalismo e conhecimento de pesquisa em arte, que revelam novos processos para as artes contemporâneas e suas movimentações.

A 12ª Bienal do Mercosul é um exemplo salutar. A mostra, que em decorrência da pandemia de Covid-19 está sendo realizada virtualmente, por meio de uma plataforma online, conta com a curadoria geral da argentina Andrea Graciela Giunta e tem como título Feminino(s). visualidades, ações e afetos. Para essa edição, a curadora formou uma equipe composta por mais três curadores adjuntos, Dorota Biczel, Fabiana Lopes e Igor Simões,  sendo dois deles negros. Além da contribuição relevante que esse curadores deixam para o projeto da bienal, suas presenças já são históricas por ser uma das poucas vezes que a equipe curatorial de uma bienal no Brasil foi composta 50% por curadores negros. Esse dado é simbólico, representativo e respeitoso com a população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras.

Apesar desse avanço, ainda há muito o que ser feito. Tanto a Bienal do Mercosul  como a Bienal de São Paulo, as duas maiores exposições com esse perfil no país, nunca contaram com a curadoria geral de uma pessoa negra. Essa é uma discussão antiga, uma questão já levantada por diversos curadores, mas que, insistentemente, se repete.

Além de marcar a presença de profissionais negros na equipe curatorial, a 12ª Bienal do Mercosul conta também com a histórica lista de artistas majoritariamente composta pelo gênero feminino. Um vasto grupo de produções, linguagens, idades, origens e identidades, são mulheres que se destacam na cena contemporânea, mas que ainda enfrentam barreiras para se estabelecerem. No caso das artistas negras, o desafio é ainda maior. Em 2018, o Coletivo Mulheres Negras nas Artes realizou uma pesquisa acerca das participações de mulheres negras em três edições da Bienal de São Paulo (30ª, 31ª e 32ª). Segundo o coletivo, dos 390 artistas que participaram das três edições, 154 eram brasileiros, 45 mulheres, e, desse total, apenas 4 eram negras.

O número é assustador. Mas, para a curadora Fabiana Lopes, apontar esses percentuais, apesar de importante, é insuficientes se não houver um compromisso de ir além da estatística. Segundo a curadora, “a produção intelectual e artística de autoria negra oferece um vasto campo de referências que contribuem para um entendimento expandido da arte brasileira, além de deixar pistas importantes sobre o contexto social contemporâneo”. Para ela, “pensar a equidade no espaço expositivo deve ser responsabilidade de todo curador comprometido com uma transformação social tão necessária”. Por outro lado, “o compromisso com equidade não deve nos deter de um aprofundamento nos debates, referências e propostas que tal produção apresenta, nem nos privar de engajar numa leitura generosa e ampliada que essa produção merece”.

Outra ação recente que merece destaque é o Projeto Afro, uma plataforma digital idealizada e criada pelo pesquisador Deri Andrade. Lançado em 21 de junho, o site tem como propósito ser um local de armazenamento e difusão do estudo das produções de autoria negra, tanto práticas quanto teóricas, servindo para experimentações e mutações curatoriais e artísticas. Segundo Andrade, o Projeto Afro “servirá para consulta e divulgação da produção artística do país, entendendo a produção de autoria negra como fundamental na compreensão das artes brasileiras, atribuindo a elas um tratamento adequado as suas complexidades e especificidades”. O pesquisador acrescenta que “a abertura do site já estava em desenvolvimento e que foi uma grande coincidência que o seu lançamento viesse ao encontro com o atual período de manifestações antirracistas”. Para ele, o Projeto Afro é “uma via possível de descolonizar os olhares, já formados historicamente para ver essas artes como ‘menores’, ‘primitivas’, ‘regionais’, ‘periféricas’, entre outros adjetivos responsáveis por caracterizá-las e intitulá-las no tempo”.

Pensar a narrativa das artes brasileiras para além das autorias brancas também é o objetivo do Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva. O projeto, coordenado pelas Profª Drª Carolina Ruoso, Profª Drª Joana D’Arc de Sousa Lima e a Profª Drª Rita Lages Rodrigues, conta com uma lista extensa de parcerias, como a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM/Recife), o Laboratório de Arte-educação, curadorias e histórias das exposições da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/Ceará), o Caderno Vida & Arte do Jornal O povo e a Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), e tem por objetivo apresentar um estudo das histórias das curadorias e exposições no Brasil.

O grupo, além de ser formado por pesquisadores de diversas áreas e regiões do país, está preocupado em realizar o estudo das curadorias e exposições brasileiras sem reproduzir as já marcadas exclusões históricas. Além de tomarem o eixo Norte, Nordeste e Centro-oeste como participantes centrais na construção da arte brasileira, o grupo também se preocupa em contemplar diferentes identidades, idades, gêneros, temas, formatos e modelos de realização e atuação dos curadores no país. Segundo Ruoso, “a pesquisa sobre os curadores nasceu da linha de pesquisa Teorias e Metodologias de Curadoria de Exposição e foi financiada pelo edital 11/2017 para os recém doutores da UFMG, mas que, de toda forma, é uma iniciativa que nasce do Laboratório de Curadoria de Exposição Bisi Silva, cujo o propósito é construir uma narrativa crítica sobre as artes e as curadorias no Brasil, entendendo-as como fundamentais na construção dos discursos artísticos no país”.

Essa preocupação já se faz visível pelo nome do grupo, que optou por homenagear uma curadora mulher, negra e nigeriana. Bisi Silva, que faleceu em março de 2019, é reconhecida internacionalmente pela sua atuação no Centro de Arte Contemporânea de Lagos (CCA) e na Escola de Arte Asiko, espaços que ela fundou e dirigiu por muitos anos. Além de promover a pesquisa, o ensino, a exibição e a circulação das produções contemporâneas nigerianas, Bisi Silva colaborou para a criação de redes artísticas com os demais países africanos e com outros territórios, como o europeu.

Entender a curadoria como um campo em disputa também é o lema de duas das curadoras indígenas brasileiras de destaque nos últimos anos, Naine Terena e Sandra Benites. Ambas, demonstram que é preciso pensar novos modos de se fazer curadoria. Sandra é de origem Guarani, estudante de doutorado no Museu Nacional e a primeira curadora indígena contratada por uma instituição artística brasileira, o Museu de Arte de São Paulo. Sua contratação foi realizada no final de 2019 como parte do processo de organização da exposição Histórias indígenas, programada pelo MASP para ser realizada em 2021. Naine é de origem Terena, é doutora em educação, professora universitária e curadora da exposição Véxoa: Nós sabemos, que ocuparia a Pinacoteca do Estado de São Paulo neste ano e que está suspensa em decorrência da pandemia. Ela atua como curadora e educadora, e entende que a educação atravessa todos os âmbitos da sua atuação. Segundo Naine, sua atuação envolve apresentar uma arte contemporânea pelo viés indígena, como possibilidade também de educar o olhar do público não indígena. Ela acredita que “o processo de formação e de diálogo com gestores, curadores e programadores, ajuda a combater estereótipos, preconceitos e estimula a construção de relações respeitosas”. A curadora destaca também que sua ação não é individual, mas coletiva, e que “é necessário pensar a partir da coletividade e da escuta para a construção de um cenário nacional consistente”.

Mover-se em coletivo também é uma das premissas do Movimento de artistas indígenas Mahku, da etnia Huni Kuin, moradores da cidade de Rio Branco, Acre. A região, pouco representada nas narrativas da história das artes brasileiras, vem conquistando mais espaço através do grupo. O artista Ibã Huni Kuin é a principal liderança do movimento e se destaca pela atuação como artista e agente cultural. O propósito do grupo é o de valorizar a produção artística através das estéticas locais, além de criar um sistema de circulação e conceitualização de suas produções. Para o artista, curador e ativista Denilson Baniwa, outro artista indígena em destaque, esse movimento de artistas indígenas já existe há muito tempo, mas apenas nos últimos anos foi acessado com mais atenção pelas redes não indígenas. Segundo ele, “foi através da coragem desafiadora de alguns artistas que lugares foram abertos, gerando uma rede crescente de outros artistas que já produziam ou que começaram a produzir com mais liberdade”. De acordo com ele, “esse movimento contribui não apenas para os artistas indígenas, mas, sobretudo, para demonstrar que há um outro tipo de visão possível de arte, e que pode servir de base para a construção de um meio decolonial e crítico”.

Os artistas indígenas, assim como os demais que são racializados pelo sistema, possuem dificuldade de inserção nas coleções museológicas, nas galerias de arte e nos acervos privados de arte contemporânea. É comum encontramos galerias brasileiras que não possuem nenhum artista negro, indígena ou de origem asiática em suas listas. Como crítica a esse mercado excludente, o arquiteto e urbanista Alex Tso, brasileiro filho de imigrantes chineses, abriu a primeira galeria dedicada a artistas cujas vidas são marcadas pela racialização. Segundo o site da instituição, por compreender a necessidade de lançar um olhar atento para as “questão de gênero, raça, classe e territórios geopolíticos”, a Diáspora Galeria se propõe a defender a “articulação de uma rede de colecionadores que reconheçam o valor de mercado como indissociado do valor histórico da produção artística dos artistas”, que não entenda a arte apenas pela “circulação única como objeto e valor monetário”, mas que a expanda “enquanto legado de ancestralidade e identidade, tornando-se simultaneamente proponente de uma nova contemporaneidade”. Para Tso, o reconhecimento da população brasileira de ascendência asiática deve extrapolar o já conhecido termo “nipo-brasileiro” e a migração japonesa como referência. “É preciso começar a entender a participação de outros grupos asiáticos na conformação da sociedade brasileira, como as comunidades chinesa, sul-coreana e indiana, dentre outras múltiplas migrações advindas da região”. Além disso, “o reconhecimento dessa população como racializada também é parte fundamental para o engajamento na luta antirracista”.

O galerista também aponta que é importante a adoção de políticas que visem a ampliação de pessoas racializadas nos quadros de funcionários das instituições de arte, reforçando a sua presença em todas as instâncias e lhes garantindo maior autonomia profissional, inclusive nos postos de decisão e cargos de gestão. Ele complementa dizendo que a Diáspora Galeria é uma “possibilidade de criar isso enquanto uma rede produtiva integralmente racializada, que possa suprir e se distanciar das práticas do circuito até então hegemônico e apresentar outras possibilidades de organização dentro desse sistema”. E que, para além desse compromisso, “o espaço apresenta uma possibilidade de transformação para o sistema das artes, acreditando em sua capacidade de ser menos excludente, menos branco, menos elitizado; e mais crítico, mais posicionado e envolvido com a sociedade”.

Empenhar-se na construção de um novo futuro para as artes brasileiras é entender-se enquanto agente de mudança. É compreender que são ações diárias que as tornarão permanentes. Para isso, é fundamental a mudança de postura, a autocrítica, a crença no trabalho coletivo, a cobrança de políticas públicas para o setor, a realização dos revisionismos históricos, dos critérios estéticos, das nomenclaturas, das linguagens, dos termos, entre tantas outras ações. Combater a hegemonia branca nas artes é um desafio que deve ser enfrentado por todos e todas. Rejeitá-la é acreditar em um novo projeto de futuro para as artes brasileiras.