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A Ferro e Fogo

Panorama da Arte Brasileira
Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala, equipe curatorial do 38º Panorama

Com o título Mil graus, expressão coloquial que sugere a ideia de intensidade, o 38º Panorama da Arte Brasileira explora experimentações artísticas “marcadas pelo calor” e que têm a transmutação como destino “inevitável”. Para Thiago de Paula Souza, integrante do trio curatorial junto a Germano Dushá e Ariana Nuala, trata-se de uma “noção curatorial ampla”.

“Olhamos para as dimensões espirituais e ecológicas da prática artística, pro tesão e pro erotismo dos fluxos de corpos, pela cidades, sejam eles sejam eles humanos ou não, e por último como tecnologia tem contribuído para a criação de imaginários políticos e sociais”, diz. “A partir daí, depois de meses de pesquisas, traçamos uma lista de pessoas que acreditamos trabalharem na intersecção dessas ideias.”

Flutuantes

Realizado desde 1969 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, o 38º Panorama acontece até 26 de janeiro de 2025, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Devido às obras de reforma da marquise do Parque Ibirapuera, a exposição não pode ser abrigada pelo MAM, como de praxe. 

Ao fazer a seleção de 34 artistas, Dushá, Nuala e Souza buscaram evitar o que consideram uma armadilha colocada pela palavra panorama, uma impossível perspectiva totalizante da produção artística nacional.

“A gente tem uma amplitude geracional enorme, com artistas de 16 estados, vivendo em contextos diferentes, desenvolvendo práticas e pesquisas bem distintas. Mesmo assim, a gente sabe que se trata de um retrato provisório, tirado pela nossa visão”, pondera Dushá. “É algo muito pequeno perto da dimensão de um país continental, tão complexo, com infinitas culturas, que a gente chama de Brasil”.

Dushá afirma também que, à medida que as ideias em torno da curadoria foram se consolidando, vieram à tona nomes cujas práticas não necessariamente são vistas como artísticas, como a Tropa do Gurilouko (RJ), grupo que veste os trajes do Bate-bola (ou Clóvis), um personagem clássico do carnaval do Rio, “que sintetiza um pouco um viés importante dessa energia que a gente tá falando”, afirma. 

“Foi uma decisão insólita e heterodoxa convidar um grupo que venha para cá com um pensamento contemporâneo e não naquela chave de uma exposição sociológica, etnográfica, que queira fazer um mapeamento mais frio”. 


Lais Amaral
Artista Lais Amaral, São Gonçalo, RJ.
obras: s/T I e II , série Como um zumbido
estrelar, 2024 (Ver galeria abaixo). 
Apresento duas obras, parte de uma mesma série, Como um zumbido estrelar, um pássaro no fundo do ouvido. Com esse título estou falando sobre comunicações ancestrais entre pessoas que estão nesse plano e as que já partiram. É uma homenagem ao meu pai, que faleceu de covid. Falo desse zumbido estrelar e de um pássaro no fundo do ouvido pensando em alguns insights que tenho ao pintar. Como se fossem um conselho, um direcionamento, algumas confirmações que tenho quando coloco em meu trabalho a relação entre vida e morte, uma relação de transformação. Eu materializo coisas no meu trabalho que estão muito além da matéria. Entendo que natureza e ser humano não estão separados. Logo, vida e morte tampouco estão separadas. Acredito num grande ciclo, numa grande transformação dessas formas de vida.
Ana Clara Tito
Artista Ana Clara Tito, Bom Jardim, RJ.
obra: s/T, 2023 (Ver galeria abaixo)
Quando me abordaram com a proposta de Mil Graus, eu, de cara, quis fazer algo que tinha feito antes, uma instalação, que tem uma vida individual, mas que ali se apresenta numa vida coletiva. E trabalhar com materiais com os quais eu já lidava, como materiais de construção civil, de canteiros de obra e demolições, e fotografia. Mil Graus me remete à ideia de um estado extremo, de transformação da matéria, que o calor gera. Isso se relaciona de forma direta com a minha pesquisa. Meus trabalhos remetem a algo que já foi e, ao mesmo tempo, parecem uma coisa ainda em construção. Há também uma relação profunda com a imagem, com a fotografia, aplicada sobre o concreto e outros materiais de construção. Então, o que acontece é um derretimento da imagem, na geração daquelas formas.
Rafaela Kennedy
Artista Rafaela Kennedy, Manaus, AM e Labō, Belém, PA . obras da série Amoré, 2023 (Ver galeria abaixo). Inicialmente, a gente tinha pensado em falar sobre a crise climática. A gente tomou outro rumo, mas acabou voltando ao mesmo lugar. Porque somos pessoas amazônicas, e isso nos atravessa de maneira muito sensível. Nós coexistimos com a natureza e a violência que a afeta. Nesse contexto, uma coisa que veio como um eixo foi a chuva, o rio. Se não chove mais, se está esquentando muito, o rio começa a ir embora. É como sentir a partida de um parente. Labō tem uma pesquisa com vestimentas feitas de materiais orgânicos. Uma das obras parece uma armadura, em que o rosto inteiro é revestido por plantas, antes de virarem palha. Como uma estratégia para nos mantermos vivos. E eu trago discussões sobre a travestilidade no Brasil. Sobre esse corpo mil graus, símbolo de resistência em um território perigoso.

A produção dos artistas plásticos baianos Rebeca Carapiá e José Adário dos Santos também seria exemplar do recorte proposto pelos curadores. Ariana lembra que ambos trabalham a materialidade do ferro em suas criações, mas suas obras têm pontos de partida distintos. Adário lança mão de ferragens para fazer “assentamentos” de orixás, ou seja, a consagração de objetos como representações das divindades do candomblé; ao passo que Rebeca se relaciona com o material por meio da metalurgia. “O ferro mostra a esses artistas os caminhos que eles podem seguir, algo que contradiz a ideia de que os materiais não têm agência”, argumenta Ariana. “São poéticas numa contramão, mas que se encontram”.

Há também artistas que lidam com a terra ou “com a magia que vem da terra, do solo, do barro”, nas palavras de Dushá, a exemplo da veterana Maria Lira Marques (MG), que desenvolve um “trabalho muito fresco, novo, que só recentemente tem ganhado a projeção e a relevância devidas”, e também a produção de artistas jovens, que trabalham uma “dupla dimensão da terra, a magia, a imaginação e todas as evocações que podem vir daí”, diz o curador. 

Do ponto de vista menos conceitual e mais formal, contam os curadores, houve uma preferência por artistas que estão vivos e atuantes, que nunca tivessem participado da Bienal de São Paulo ou de uma das edições do Panorama, conta Dushá. A seleção é marcada por uma considerável amplitude etária. A lista, ressalta o curador, também ajuda a traçar um arco temporal, em que se questiona e observa “aquilo que as pessoas que vieram antes colocaram de base para quem está trabalhando hoje”. 

Para Ariana Nuala, “as idades distintas trazem densidades distintas” para o Panorama, de modo que as práticas de nomes como Dona Romana (TO), “uma liderança espiritual que não se considera uma artista”, Mestre Nado (PE) e Ivan Campos (AC), nascidos na década de 1940, estarão em diálogo com a de jovens, a exemplo de Melissa de Oliveira (RJ), Marcus Deusdedit (MG) e Rafaela Kennedy (AM), complementando umas às outras, segundo a curadora. 

“Essa bagunça cronológica, que borra fronteiras, interessa-nos muito e tem tudo a ver com com o próprio conceito que a gente está trabalhando, de uma temperatura absoluta que se coloca sobre todo mundo”, argumenta Dushá. “Cada um vai entendendo os modos de responder e se transformar e transmutar a si mesmo a partir dessas condições ambientais que podem ser também poéticas, metafísicas, espirituais”. 

Em sua seleção, a equipe curatorial também contemplou artistas que lidassem, do ponto de vista temático ou formal, com fluxos urbanos e a ideia de um Brasil do século 21 “como um produtor de tecnologia, de uma tecnologia que não necessariamente passe por visões eurocêntricas e norte-americanas”. 

Outra discussão que perpassa o trabalho dos participantes é uma “visão ecológica ampliada”, segundo Dushá. “Uma perspectiva que diz respeito a uma conectividade total, a um compartilhamento deste ambiente em que a gente comunga, convive. E isso vai além das falsas dicotomias que pautaram o pensamento humano desde o romantismo até a modernidade, a cultura versus a natureza, o homem e o meio, o orgânico e o artificial. É muito mais uma mistura do que coisas separadas”, explica. ✱

Mil graus enfoca potência criativa das ruas

Dona Romana

Mil Graus, o 38º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, é uma mostra que, como o título promete, traz calor, mas não apenas o das queimadas – sim, eles também estão lá, mas especialmente o das ruas. Carnaval, rituais indígenas, movimentos urbanos, exercícios místicos, práticas culturais em geral divergentes dos padrões hegemônicos, algumas feitas por artistas, outras não, trazem uma energia acima da média ao circuito de mostras da cidade.

O time de curadores Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala faz desta edição – a primeira e, espera-se, única a ocorrer no Museu de Arte Contemporânea (MAC USP), por conta da lamentável privatização do parque Ibirapuera, cuja gestora forçou uma reforma no MAM – um panorama da cultura brasileira, mais que da própria arte.

Dona Romana (Natividade, TO, Brasil, 1941) Centro Bom Jesus de Nazaré, sítio Jacuba, Natividade, TO, desde setembro de 1989

Três trabalhos são sintomáticos nesta condição, o primeiro deles a monumental obra de Dona Romana, no sítio Jacuba, em Natividade, no Tocantins. Uma espécie de Gaudí (perdão pela referência colonialista) dos trópicos, por conta da maneira como sua arquitetura se constrói com formas orgânicas, ela criou um espaço sagrado, que é tanto sua residência como um templo para práticas espirituais. Dona Romana recusa o termo arte, considera sua missão espiritual, mas a experiência arrebatadora foi uma inspiração para a curadoria, como Dushá relata no catálogo. 

Concebida como um produto para além do típico registro de uma exposição, a publicação traz relatos das viagens de pesquisa em quatro estados (Tocantins, Paraíba, Maranhão e Minas Gerais), além de textos independentes com autores como Sidarta Ribeiro, Denise Ferreira da Silva e Abigail Campos Leal. No catálogo, Dona Romana ganha considerável conteúdo, enquanto na mostra em si, ela comparece com uma foto em grandes dimensões de seu espaço.

Semelhante procedimento recebe a Tropa do Gurilouko, um grupo de “bate-bolas”, espécie de personagem do carnaval. Criado em 2023, no bairro carioca de Campo Grande, eles usam uma vestimenta volumosa – no caso deste grupo uma cabeça de gorila com um corpo amarelo, segurando uma bola amarrada em uma corrente que é usada para fazer som. É um desses fenômenos populares com alta intensidade energética, que na mostra é visto pelas vestimentas, mas que terá uma saída em São Paulo no decorrer do Panorama. 

Já o terceiro caso que faz referência a uma prática cultural mais do que um fazer artístico está no universo do “grau”, um movimento de manobras urbanas em que motocicletas são empinadas até chegar a cerca de 160o do chão. No Panorama, os participantes desse grupo são vistos nas fotos da carioca Melissa de Oliveira. A popularidade dessa prática é tão grande que a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados realizou audiência pública para discutir essa iniciativa como atividade desportiva, já há três anos.

Em todos esses três trabalhos, a potência criativa é um denominador comum e revela-se uma vertente potente na mostra. Nos anos 1960, foi nos contagiantes ensaios da quadra da Mangueira que Hélio Oiticica (1937-1980) se inspirou para várias de suas obras, na busca por incluir o espectador. Ao retomar esse diálogo extra arte, o Panorama traz um importante recado para um momento um tanto entediante de predomínio das práticas predatórias do mercado de arte.

Essa situação tampouco escapa de Mil Graus, que traz a produção de figuras como o maranhense Zimar (Eusimar Meireles Gomes), com suas máscaras que pertencem ao universo do Bumba meu boi, ou o ferreiro baiano José Adário dos Santos, com suas ferramentas inspiradas nos elementos das culturas religiosas afro-brasileiras. Há muito pouco tempo, as obras de ambos eram vendidas por algumas centenas de reais, mas foram adquiridas por galeristas espertos e agora são vendidas na casa de cinco dígitos. Quando o mercado chega antes de exposições mais experimentais, há algo que merece ser refletido, afinal, a mercantilização dessa produção gera uma inescapável elitização, em geral distante da proposta inicial de seus criadores.

Mais consistentes são as colaborações, e Mil Graus traz um caso exemplar: Rop Cateh – Alma pintada em Terra de Encantaria dos Akroá Gamella. Trata-se de uma parceria entre os artistas maranhenses Gê Viana e Thiago Martins de Melo com o povo Akroá Gamella, também do Maranhão, que tem no centro o ritual do Bilibeu, uma festividade desta comunidade indígena. Ele costumava ocorrer durante o período do carnaval, mas desde 2017 passou a acontecer em abril para lembrar um brutal ataque sofrido por agentes externos. Os Akroá Gamella chegaram a ser dados como extintos.

O ritual, assim, torna-se uma espécie de defesa territorial e está representado em Mil Graus em um imenso painel com fotos e vídeos, além de trabalhos de Martins de Melo e Viana, que não só participaram do ritual, como desenvolveram workshops com a comunidade desde abril. 

Outra referência à questão indígena na mostra está em Moquém – Carnes de Caça, de Frederico Filippi. Ela é composta por uma grade – que na língua tupi é moquém, a grelha para assar carnes – sobre a qual estão peças de dois tratores incinerados pela polícia federal após uma operação de fiscalização em garimpos ilegais na região de Itaituba, no Pará. Filippi ainda comparece com Arco (2020- 2024), que aborda o arco de desmatamento, termo utilizado para se referir à região onde a fronteira agrícola avança em direção à floresta, resultando em mais de 500 mil metros quadrados de desmatamento na Amazônia. É o momento mais engajado da mostra.

Mas em uma curadoria de millennials não poderia faltar referências ao universo dos games e da tecnologia, e elas estão presentes especialmente em três trabalhos: Baile do Terror, de Gabriel Massan (o brasileiro que Madonna chamou para colaborar em seu show e que também está em exposição na Pinacoteca do Estado); Visage, de Jonas Van & Juno B.; e a instalação Cabeça d’Água, de Adriano Amaral. São trabalhos complexos, que se utilizam de narrativas bastante radicais e estranhas, e se aproximam de cenários distópicos.

No entanto, o Panorama também tem ênfase na manualidade, em uma produção realizada a partir de elementos naturais como terra e rocha, o que se percebe nas esculturas de Marlene Almeida, Maria Lira Marques, Mestre Nado, Paulo Pires, Sallisa Rosa e Solange Pessoa.

Com tantas vertentes distintas, Mil Graus apresenta-se como um ótimo panorama da produção atual, tão cheia de contradições. Expor esses dilemas é um ponto a favor, mas a sensação que fica é que as histórias por trás das obras, ou seja, a cultura em torno delas, são o que de fato aquece este Panorama. Os mil graus estão nas ruas e nos campos, não no museu. ✱

Tecendo outra história

Imagens da exposição Outros navios: uma coleção afro-atlântica: Máscara Gueledê, povo Nagô (Yoruba), República Popular do Benin, data de aquisição 1977

Há coincidências que revelam muito mais do que as aparências indicam, como a presença na agenda de exposições paulistanas de uma quantidade surpreendente de seleções que se debruçam sobre a cultura, a arte e a memória de culturas oprimidas e por longo tempo invisibilizadas. Elas representam o resultado de uma luta persistente de expansão dos horizontes de um circuito até poucos anos fechado sobre si mesmo. Essas exposições apontam para uma crescente compreensão de saberes e fazeres artísticos que se tornam cada vez mais fundamentais também para repensar o mundo contemporâneo e parecem mais um sinal de esgotamento dos modelos eurocêntricos, baseados em uma precária (e muitas vezes falsa) noção de autonomia da arte.

Exposições como Outros navios: uma coleção afro-atlântica, Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana, Defeito de cor e Línguas africanas que fazem o Brasil, que ocupam alguns dos mais importantes espaços culturais da cidade, têm em comum não apenas a centralidade africana, como também o fato de que todas propõem – em diferentes níveis e estratégias – rever a forma de pensar, exibir e fazer arte a partir de uma visão diversa desta cultura, pensada em movimento e não como algo congelado no passado, considerada em sua diversidade e não de maneira monolítica e isolada. “Perdemos muito tempo tendo que provar que a gente existia. Agora a gente tem que mostrar como a gente existe”, afirma Tiganá Santana, parafraseando o pensador moçambicano Severino Ngoenha. “Esse é um movimento irrefreável, incontível”, acredita o curador responsável pela curadoria desta que é a primeira exposição sobre línguas africanas feita no Brasil, que pode ser vista até 31 de janeiro no Museu da Língua Portuguesa

A mostra tem por ponto de partida algumas palavras de diferentes origens do continente africano que estão totalmente incorporadas ao léxico corrente. Termos como “minhoca” e “bunda” representam, metonimicamente, essa profunda e íntima relação com termos oriundos de línguas como o iorubá, fom, quimbundo e quicongo, que moldaram a língua hoje falada no país. Músico, poeta e pesquisador, Tiganá sublinha a força simbólica de falar dessa ancestralidade de dentro do Museu da Língua Portuguesa, aproveitando os recursos de alta tecnologia da instituição e buscando conciliar diferentes abordagens: plásticas, literárias, acadêmicas, sonoras a audiovisuais. Obras de artistas como Aline Motta, Rebeca Carapiá e J. Cunha convivem com mapas linguísticos, ricos registros da Missão de Pesquisas Folclóricas capitaneada por Mário de Andrade ou gravações feitas na década de 1940 quando da visita do linguista norte-americano Lorenzo Dow Turner ao país. “São muitos públicos, com repertórios diferentes. É preciso pensar no papel formativo ao lado de um compromisso estético”, pondera.

Tiganá reafirma a impossibilidade de segmentar a cultura africana em diferentes tipos de expressão artística como acontece na cultura ocidental. E enfatiza que a arte contemporânea é terreno fundamental para essa virada de entendimento das manifestações culturais africanas – com suas distintas implicações epistemológicas, artísticas, éticas – exatamente por causa da não-separação entre vida e obra. Cita, por exemplo, a impossibilidade de pensar isoladamente a música, a dança ou os trajes do candomblé. Essa confluência entre rito e arte está na base da performance “Bori”, que Ayrson Heráclito apresentou na Pinacoteca em 2022, com música do próprio Tiganá, e que agora pode ser revista no filme Irawo Bori: oferenda para cabeça cósmica, em exibição na sala de vídeo do mesmo museu.

Bori performance-arte oferenda à cabeça

Cotejar passado e presente, combinando elementos formadores dessa cultura com produções que investigam poética e formalmente os desdobramentos dessa história de violência e dominação, mas também de luta e esperança, parece ser estratégia fundamental dessas investigações expositivas. A mostra Defeito de cor, em cartaz no Sesc Pinheiros, parte da obra literária de mesmo nome para reunir sugestões visuais muito potentes, criando uma trama que coloca lado a lado um conjunto diverso de criações, que se conectam quer pela relação com temas e personagens do romance de Ana Maria Gonçalves – que também integra a equipe curatorial –, quer por uma história e um desafio em comum.

A mostra Outros Navios, que pode ser visitada até fevereiro do ano que vem no Centro Cultural Fiesp, também procurou uma interlocução com a produção mais recente, apesar de sua base eminentemente histórica. São cerca de 300 peças – algumas delas nunca mostradas anteriormente –, provenientes da coleção africana do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), acervo que começou a ganhar forma por iniciativa do arqueólogo Marianno Carneiro da Cunha no final dos anos 1960. Com diferentes núcleos temáticos – como De São Paulo a Ifé ou Ventos do Oeste Africano, a exposição optou por uma expografia em tom mais imersivo, sensorial, deixando um pouco de lado o caráter didático normalmente associado a instituições universitárias. Segundo Rosa Vieira, pesquisadora do MAE e uma das curadoras, o conceito da mostra é o de “caixa aberta”, interligando diferentes questões, promovendo a circulação das obras para fora da reserva técnica e num espaço de ampla circulação, diálogo e reflexão com diferentes agentes, reagindo assim à crítica cada vez mais frequente aos museus etnográficos como meros depósitos de despojos de uma lógica colonizadora. A exposição propõe interconexões com 11 poéticas contemporâneas, como a imagem em deslocamento criada por Denis Moreira, que transita da máscara africana à imagem Manoel Querino ou diálogo entre o olhar histórico de Pierre Verger e a fotografia de Denise Camargo, um autorretrato de sua sombra, “buscando problematizar o lugar no não-sujeito”, acrescenta Rosa. 

Entre a Cabeça e a terra, exposição que reúne aproximadamente 130 peças têxteis africanas, resulta de uma parceria entre a Pinacoteca, a Maison Gacha (Paris/França) e a Fundação Jean-Félicien Gacha (Bangoulap/Cameroun), e traz à tona um conjunto complexo de técnicas, conhecimentos ancestrais e tradições coletivas ainda presentes em território africano. A mostra se organiza em torno de sete núcleos, combinando aspectos técnicos, temáticos e sociais a mostra lida com aspectos como a presença marcante da geometria animal, o uso do azul proveniente do índigo, a riqueza das miçangas, num percurso marcado por deslumbramentos. Não se trata, entretanto, de enfatizar a riqueza dessa produção, mas de considerar esses tecidos como objetos de arte, de cultura e de conexão entre povos. 

Imagens da exposição Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana: Máscara Gueledê, povo Nagô (Yoruba), República Popular do Benin, data de aquisição 1977

O que está em questão não é uma arte enquadrada nos padrões de modernidade inventados pela Europa, ligados a exploração e acúmulo, em que aspectos como valor e singularidade são a regra. Noções como a ideia de autoria, por exemplo, não fazem sentido aqui. Trata-se de uma transmissão de conhecimento e técnicas intergeracionais, que estão carregadas de significados que vão muito além das noções de uso, apreciação estética ou reserva e intercâmbio de valores. São, sim, elementos que fazem parte de “uma cadeia muito longa, de produção de sociabilidade e conhecimento”, uma “amálgama de saberes”, explica o curador da Pinacoteca Renato Menezes, autor – em parceria com Danilo Losivi (Fundação Gacha) – da concepção e desenvolvimento da exposição. 

Durante muito tempo a cultura ocidental negou, desconfiou ou se apropriou da arte africana – ou indígena –, rotulou essa produção como arte popular ou artesanato, desconsiderando sua riqueza e especificidade e esvaziando-a de significado. Diluir essas generalizações, divulgar essas produções – em suas complexidades geográficas, históricas e culturais – são algumas das premissas que ganham corpo recentemente nos estudos e pesquisas curatoriais. “O público de hoje está muito preparado, curioso, com perguntas muito concretas e nosso papel é alargar esse debate”, conta Menezes. Ou, como afirma Lovisi no catálogo da exposição, “a ideia não é refazer a história, mas completá-la ou tecê-la de outra forma”. Como diz a estrofe de “Diáspora Negra”, composição de Nei Lopes e Rogê que ele adota como epígrafe, “carregando o passado na mente, olhando de frente o que ficou para trás”. ✱

Dandara: entre a lenda e a resistência

Dandara
Dandara, Renata Felinto, Aquarela, Ceará, 2019. Esta aquarela faz parte da série Ex-Votos e da instalação As que me Habitam. Coleção: Secretaria de Cultura de Anápolis/GO
Por Vanicleia Silva Santos (University of Pennsylvania)
Renata Felinto (Universidade Regional do Cariri)

Escrevi este ensaio em novembro de 2023 para um jornal brasileiro que solicitou uma análise sobre Dandara, abordando as seguintes questões: 1. Qual é a importância de Dandara para Zumbi? E para o Quilombo dos Palmares? 2. Dandara teve algum papel no rompimento de Zumbi com seu tio Ganga Zumba? 

O texto seria publicado no Mês da Consciência Negra, mas, por alguma razão, não foi. Suspeito que minha análise não tenha correspondido ao que o editor esperava – uma narrativa que confirmasse uma ideia previamente estabelecida sobre Dandara. 

Posteriormente, aproveitei essa oportunidade para expandir a discussão sobre a construção de personagens na luta pela liberdade da população negra no Brasil. Meu argumento é que a criação de narrativas e representações visuais é um mecanismo essencial que a comunidade negra brasileira tem utilizado para preencher o silêncio sobre a participação negra nos movimentos históricos do Brasil. Este ensaio foca em Dandara, mas a análise pode ser estendida a outras personagens que fazem parte dessa contranarrativa, como Maria Felipa, Zacimba Gaba e outras.

A origem da construção de Dandara

A comunidade negra abraçou Dandara como a esposa de Zumbi e uma mulher que teria lutado pela liberdade no Quilombo dos Palmares. A transformação de uma criação literária em uma figura quase histórica reflete a necessidade de quebrar o silêncio sobre a falta de referências nas fontes históricas sobre a participação das mulheres na luta contra a opressão, violência e o racismo praticados pelos portugueses no Brasil. Embora as fontes militares da guerra contra o Quilombo dos Palmares mencionem pouco as mulheres, sabemos que o quilombo era composto por homens e mulheres que lutaram juntos pela liberdade. A guerra contra o Quilombo dos Palmares ocorreu principalmente na segunda metade do século 17, quando várias expedições militares portuguesas tentaram destruir o quilombo, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. Apesar da resistência, o quilombo foi destruído em 1694, e Zumbi, seu líder, foi capturado e morto em 20 de novembro de 1695, data que hoje é celebrada como o Dia da Consciência Negra.

A pergunta sobre a importância de Dandara para Zumbi não pode ser respondida com base em sua existência histórica. No entanto, havia outras mulheres próximas a Zumbi que certamente desempenharam papéis decisivos em Palmares. Pesquisas históricas mostram que a ideia de uma mulher chamada Dandara surgiu como personagem literária no romance Ganga-Zumba de João Felício dos Santos, publicado em 1962. O escritor mineiro branco criou Dandara, e como Nei Lopes destaca em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, Dandara é uma “personagem lendária da história de Palmares… Celebrada como a grande liderança feminina da epopeia quilombola, teria morrido quando da destruição da cidadela de Macaco. Contudo, sua real existência ainda está envolta em uma aura de lenda.” 

Para responder à pergunta “Dandara teve algum papel no rompimento de Zumbi com seu tio Ganga Zumba?”, seria necessário igualmente ter fontes históricas que comprovassem sua existência. Porém, como já mencionado, Dandara emergiu como um personagem literário em 1962. Portanto, a narrativa de que Dandara teve um papel nesse rompimento baseia-se em narrativas orais que surgiram após sua divulgação na literatura e no cinema. Isso não diminui a importância simbólica que “Dandara” adquiriu nos últimos anos. É significativo que os movimentos sociais tenham transformado uma personagem fictícia em um símbolo de resistência contra a escravidão e a opressão, revelando o poder da comunidade negra de criar narrativas que questionam o silêncio das fontes históricas sobre as mulheres negras na luta contra a escravidão. 

No Brasil, a galeria de heróis nacionais é dominada por homens brancos, algumas mulheres brancas e poucos homens negros. A ideia de Dandara reflete a necessidade de heroínas afrodescendentes que se destacaram na luta pela comunidade negra. Essa construção de Dandara deve nos inspirar a estudar mulheres negras reais que lutaram para transformar a dura vida da população negra no Brasil. 

Recentemente, escrevi sobre Maria Firmina dos Reis, abolicionista e a primeira pessoa negra a publicar um livro no Brasil. Firmina dos Reis foi deliberadamente esquecida pela elite brasileira por denunciar os horrores da escravidão na obra Úrsula. Como ela, há muitas outras mulheres cujas histórias merecem ser pesquisadas e divulgadas. Embora não tenham lutado com armas, muitas mulheres negras, como Esperança Garcia, que viveu no Piauí, escreveu uma carta ao governador, em 1770, para denunciar as brutais e humilhantes condições de vida das mulheres que viviam na fazenda Algodões. Ela e outras mulheres comuns tiveram um papel fundamental na luta contra a escravidão. Além deste exemplo, jornais brasileiros do século 19 estão repletos de histórias de mulheres que fugiram da casa de seus escravizadores, confrontando diretamente o sistema da escravidão. A nossa ideia de heroínas deve ir além dos arquétipos de heróis criados pela ficção e pela história oficial.

Sobre o apelo das heroínas guerreiras, uma boa comparação pode ser feita com os filmes Mulher-Rei (2022), Queen Amina (2017), Rainha Jinga (2023) e outros sobre rainhas e guerreiras africanas que se tornaram populares nos últimos anos no cinema internacional. No cinema, figuras de rainhas e guerreiras negras servem como uma forma de dialogar com o público jovem sobre mulheres inteligentes, fortes, corajosas e valentes que lutaram para defender suas comunidades. Estas produções realizadas na África e em países da diáspora africana desafiam a narrativa dominante centrada em heróis masculinos brancos, destemidos e violentos. O resultado é que muitas pessoas são educadas ou informadas sobre as histórias de diversas sociedades pelo que assistem em produções audiovisuais, que, não, necessariamente, correspondem às evidências históricas. Logo, a nossa necessidade de heroínas negras, mesmo que ficcionais, faz parte da urgência em construir contranarrativas, pois as narrativas existentes até então silenciam as histórias das mulheres negras. De todo modo, precisamos ir além da ficção e pesquisar histórias de mulheres reais, como nós, que tiveram um papel essencial na defesa da liberdade no período da escravidão.

A produção artística sobre Dandara no Brasil

Como resultado do processo de construção histórica de Dandara como uma figura central para o Movimento Negro, diversas artistas brasileiras têm produzido obras significativas que celebram sua trajetória e de outras personalidades. Elas abandonaram a estratégia de apropriação de retratos fotográficos feitos no século 19 em estúdios de fotógrafos consagrados por registrar a população escravizada e passaram a criar novas representações. Um exemplo é a aquarela de Renata Felinto, que retrata Dandara como uma guerreira imponente e que faz parte da instalação As que me habitam, 2019, na qual a artista se autorretrata como heroínas negras subrepresentadas visualmente e historicamente no Brasil. Na obra de Renata Felinto, Dandara segura uma lança em uma das mãos e ostenta no pescoço um colar, do qual descem duas fileiras de contas que passam por baixo dos seios. Em um dos braços, ela usa um bracelete adornado com fitas esvoaçantes. Além de sua representação como guerreira, Dandara também é retratada como uma mulher sensual, evidenciada pelo saiote com aberturas laterais, o rosto ricamente decorado, os cílios longos e as pálpebras pintadas de lilás. Estes dois detalhes marcam as representações femininas da artista que enfatiza tais atributos lembrando-nos que mulheres negras podem ser aguerridas e destemidas e, ao mesmo tempo, ter feminilidade e autocuidado.

Dandara
As que me habitam, 2019, instalação de Renata Felinto com ex-votos em aquarela, cartas e fotografias

Renata Felinto pintou Dandara como um ex-voto para expressar a reverência e o respeito que esta mulher representa na luta pela liberdade dos povos afro-brasileiros e na resistência contra a escravidão. Ao mesmo tempo, para Felinto, este exemplo, sendo fictício ou verídico, fortalece a autoestima de meninas e mulheres negras Brasil afora. Ao retratar Dandara como um ex-voto, a artista conecta a figura histórica a uma tradição religiosa popular que envolve gratidão e devoção, elevando-a à condição de uma figura quase sagrada para o Movimento Negro. Por isso, Felinto adicionou esta frase à pintura: “Agradecemos a Dandara por sua coragem na defesa do Quilombo dos Palmares, no século 17.” (Figura 1)

Ex-voto é uma oferenda ou objeto que simboliza a gratidão de uma pessoa por uma graça alcançada. As pessoas agraciadas geralmente colocam tais objetos em santuários ou igrejas. No contexto religioso popular, especialmente no Brasil, ex-votos são uma maneira de materializar a fé e a devoção. Por exemplo, uma pessoa que acredita ter sido curada de uma enfermidade pode oferecer um ex-voto representando a parte do corpo curada, como uma perna ou um coração, como forma de agradecimento a um santo ou entidade religiosa. Esses objetos podem assumir várias formas, como pinturas, esculturas, placas de agradecimento, ou representações em cera ou madeira de partes do corpo que foram curadas. Neste caso, Renata Felinto ofereceu essa pintura para Dandara, como uma forma de agradecer pela luta pela liberdade do povo negro no Brasil.

O termo “ex-voto” vem do latim ex-voto, que significa “de acordo com o voto” ou “em cumprimento de uma promessa”. Para Renata Felinto, a imagem de Dandara como um ex-voto reforça a ideia de que ela não é apenas uma heroína histórica, mas também um símbolo de força, coragem e resistência para as comunidades afro-brasileiras. Ex-votos são normalmente oferecidos como forma de agradecer por um milagre ou uma bênção, e ao representar Dandara assim, Renata Felinto sugere que a memória dessa figura é uma “graça” concedida ao povo, uma fonte contínua de inspiração e empoderamento. Além disso, essa escolha artística ressignifica o conceito de ex-voto ao ligá-lo a uma narrativa de resistência, em vez de limitar-se à devoção religiosa tradicional. É uma forma de afirmar que Dandara é uma figura venerada não apenas no sentido espiritual, mas também político e cultural, sendo um exemplo eterno para a luta negra no Brasil.

Conclusão

Em suma, a construção da figura de Dandara, na literatura, nas artes plásticas, no cinema e nos movimentos sociais reflete a busca da comunidade negra brasileira por contranarrativas que desafiem a historiografia tradicional, muitas vezes marcada pela ausência ou distorção das contribuições das mulheres negras. Ao examinar a origem e a construção de Dandara, vemos que essa figura não apenas se tornou um ícone cultural, mas também serviu como um catalisador para a criação de narrativas que rompem com a supremacia branca no panteão dos heróis nacionais. A adoção de Dandara pelos movimentos sociais ilustra o poder da narrativa na construção de identidades e na reivindicação de espaços históricos para grupos tradicionalmente marginalizados. Além disso, a produção artística contemporânea, exemplificada pela obra de Renata Felinto, reinterpreta Dandara como uma figura de devoção e resistência, reforçando a conexão entre arte, memória e identidade. Essas representações artísticas não só homenageiam a luta das mulheres negras, mas também ressignificam conceitos religiosos, como o ex-voto, para incluir dimensões políticas e culturais da resistência negra no Brasil. Em última análise, a construção de Dandara como heroína, seja ela histórica ou simbólica, reflete uma estratégia poderosa da comunidade negra para desafiar e reescrever a história, garantindo que as vozes e experiências das mulheres negras sejam reconhecidas e celebradas. Essa construção não só fortalece a identidade e a autoestima das comunidades afro-brasileiras, mas também contribui para uma narrativa mais inclusiva e justa, que reconhece o papel central das mulheres negras na história do Brasil. ✱

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¹ Na obra Black Women in the Global Diaspora in the  XIX Century, que estou organizando com Vanessa Oliveira, coletamos mais de cem fontes de mulheres escravizadas que desafiaram a escravidão e a opressão em todos os continentes. Elas não se enquadram no arquétipo da heroína dos cinemas, mas foram essenciais para desmantelar o sistema escravista ao redor do mundo.

Desaprender o imperialismo e reparar

Fotografias que não podem ser mostradas: Diferentes maneiras de não dizer deportação, Evacuação de seu próprio “livre arbítrio”

A artista e acadêmica Ariella Aïsha Azoulay consegue personificar o conceito que ela criou de história potencial, que dá nome ao seu monumental livro: nascida em Israel (1962) de pais judeus, ela incorporou o nome árabe de sua avó Aïsha como um manifesto de que o passado pode ser também o presente.

Isso porque seu pai, um judeu árabe argelino, buscou apagar da família o legado pré-colonial para ser aceito primeiro como cidadão francês e, logo depois, como israelense, quando se muda com a família para o estado recém-criado em 1949. “Ele não perdeu a oportunidade de se passar por imigrante francês, e não pelo judeu argelino de pele escura que ele era”, conta ela em História potencial, lançado pela editora Ubu, com três dos sete capítulos da publicação original em inglês, que saiu em 2019, com quase 700 páginas.

O exemplo de seu pai é simbólico para apontar como os dominados se identificam com os dominadores, ou nas palavras dela sobre “o mundo de espelhos criado pelo imperialismo, em que as vítimas se tornam agressores e os agressores se tornam vítimas”. Ao resgatar o Aïsha apagado da avó, ela conta ter comemorado “a presença desse nome recalcitrante como uma relíquia inestimável de um mundo pré-colonial diferente, que inspirou este livro desde quando o descobri”.

Ariella Aïsha Azoulay
Radicada nos Estados Unidos dessde 2013, Ariella Aïsha Azoulay atua como professora no departamento de Cultura e Mídias Modernas na Universidade Brown

Assim, como defende o curador Benjamin Seroussi na introdução do livro, ela põe “em prática uma história potencial: desenterrar o que vive no presente, nos escombros do desastre (da colonização, da escravidão, da ocupação) e assim reduzir a tal história imperial apenas a uma história plausível – entre outras possíveis”.

Radicada nos Estados Unidos desde 2013, Azoulay atua como professora no departamento de Cultura e Mídias Modernas na Universidade Brown. História potencial pode ser visto como um guia ou mesmo um manifesto dentro das atuais reflexões decoloniais. Sua meta, afinal, é a mesma, já que se concentra em defender que é preciso desaprender o imperialismo. E isso “significa desaprender a dissociação que desencadeou um movimento incessável de migração (forçada) de objetos e pessoas em diferentes circuitos e a destruição dos mundos de quem eram parte”. 

Dessa forma, boa parte de sua análise se detém sobre as consequências do tráfico de escravizados da África, especialmente nos Estados Unidos, e da ocupação na Palestina, por conta de sua própria trajetória pessoal. “Este livro foi escrito como parte de minha recusa em ser ‘israelense’, a pensar como israelense, a me identificar como israelense, a ser reconhecida como israelense. Eu me recuso em parte porque ser israelense significa ter direito a terras roubadas e à propriedade alheia”. Se, quando o livro foi publicado em 2019, essas considerações já eram contundentes, hoje elas ganham impressionante atualidade.

História potencial

Arquivos

Como artista, Azoulay é reconhecida por trabalhar com arquivos. É o caso de sua publicação Unshowable Photographs – Different Ways Not to Say Deportation (fotografias que não podem ser mostradas – diferentes maneiras de não dizer deportação), de 2013, realizado a partir de fotografias tiradas na Palestina entre 1947 e 1950, reunidas nos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), em Genebra. Esse período compreende o Nakba (desastre), quando ao menos 700 mil palestinos foram expulsos de suas terras. Como ela não podia reproduzir essa imagens, simplesmente desenhou copiando algumas delas para a publicação, revertendo assim a invisibilidade do arquivo.

“Meu entendimento da história potencial derivou de meu trabalho de criar arquivos contra os arquivos existentes, mas também estimulou tal trabalho. Os arquivos fotográficos que comecei a reunir após ter escrito O contrato civil da fotografia me ajudaram a compreender que a discussão sobre fotografia e cidadania que faço neste livro constitui as histórias potenciais da fotografia e da cidadania que imaginam e atualizam diferentes formações políticas”, explica a artista, no livro publicado no Brasil.

O primeiro arquivo fotográfico que ela se debruçou foi justamente sobre os territórios ocupados de 1967 a 2007, e o segundo, sobre a ruína da Palestina e a constituição do Estado de Israel, entre 1947 e 1950. Ambos os arquivos do mesmo desastre causado pelo regime deram origem a uma história potencial do próprio arquivo.

Ao analisar O contrato civil da fotografia (2008), ainda não publicado no Brasil, Judith Butler afirma que “Azoulay argumenta que a fotografia é um conjunto particular de relações entre indivíduos com o poder que os governa e, ao mesmo tempo, uma forma de relações entre indivíduos iguais que restringe esse poder”. Ainda segundo Butler, o livro “mostra como qualquer pessoa, mesmo um apátrida, que se dirige a outros através de fotografias ou ocupa a posição de destinatário de uma fotografia, é ou pode tornar-se um cidadão na cidadania da fotografia. O contrato civil de fotografia permite-lhe partilhar com terceiros a reclamação feita ou abordada pela fotografia”.

Outro arquivo que Azoulay tratou foi um não-arquivo em verdade, mas ela trabalha muito com essa noção de (des)apagamento. É o caso de A História natural do estupro, que foi exibido na 12ª Bienal de Berlim, em 2022, uma investigação sobre os milhares de estupros que mulheres alemãs sofreram após a Segunda Guerra Mundial e que foram praticamente apagados dos livros da época. Em milhares de fotos realizadas em abril e maio de 1945, não há nenhuma com menção a estupro e, em 9.558 páginas sobre o período, apenas 161 abordam os estupros massivos de mulheres. 

Na bienal alemã, Azoulay apresentou uma mesa com os livros que tratam do assunto, mas as imagens estavam recobertas com uma tarja negra, como a proteger as vítimas. A artista exibiu ainda uma complexa documentação sobre o tema em uma parede. É simbólico aqui como ela revê a história dos aliados vencedores – ingleses, russos, franceses e norte-americanos – que ocuparam a Alemanha e os marca como estupradores, um exemplo da história potencial.

Contra o progresso

Pelo que se percebe, portanto, Azoulay sempre foi uma defensora de estratégias que permitem se contrapor aos dispositivos imperialistas, que em geral se baseiam na história como uma narrativa fechada e nas disciplinas acadêmicas isoladas, especialmente a História e a Política, como suporte da opressão. 

O livro História potencial, nesse sentido, busca propor métodos que se afastem do padrão. “A história potencial deve recusar o uso de ferramentas imperiais”, defende ela. Nem os museus escapam desse contexto: “A museificação da tradição e a exposição de alguns objetos sob o manto de tradição é uma tentativa de nos fazer esquecer que a tradição não diz respeito ao que é transmitido – objetos, imagens ou costumes –, mas à própria transmissão”. Assim, percebe ela, o museu muitas vezes se torna o fim em si, uma entidade legitimadora dela mesmo, mais do que uma reflexão de seus acervos.

Para Azoulay, há dois momentos históricos que definiram boa parte das narrativas imperiais: “Foi com a Revolução Francesa e a Revolução Americana e por meio delas que a história foi institucionalizada como um estudo do passado, baseado, por sua vez, na institucionalização do arquivo como o locus da “matéria-prima” do passado”. Ainda segunda ela, “é essa separação entre passado e presente que permite que quaisquer reivindicações e aspirações não imperiais sejam transformadas em algo de importância secundária para a narrativa do progresso”.

Para nós que, especialmente após à pandemia, estamos atentos às falas de lideranças indígenas e quilombolas, como Ailton Krenak e Nêgo Bispo (1959 – 2023), a crítica ao progresso não é novidade, mas como o livro é originalmente de 2019, portanto antes da pandemia da covid-19, ela ganha tom premonitório. 

“Este livro restaura uma promessa diferente na forma de uma barricada – a promessa de dizer não ao progresso. Não, isso não é possível é o grito que as pessoas emitem por toda parte contra aqueles que agiram como se nada pudesse limitá-los”, brada Azoulay, que antes explicava que a máquina imperialista sempre busca forçar impondo que “tudo é possível”.

Especialista em fotografia, no ano passado ela lançou com Susan Meiselas e outras três autoras o livro Collaboration, a potencial history of photography (colaboração, uma história potencial da fotografia), no qual inclui Rosângela Rennó, Claudia Andujar e o Zumví Arquivo Afro Fotográfico, Azoulay também aponta como a produção de imagens de escravizados foi feita por um obturador imperial. 

“Essas imagens muitas vezes são reproduzidas como ilustrações, sem informação alguma ou apenas com informação superficial sobre o contexto da imagem, de  maneira que fica fácil atribuir a penúria, pobreza e a subjugação dos afro-americanos à responsabilidade das pessoas fotografadas e dissociá-las da riqueza produzida com seu trabalho, sua obra e sua ação”. Como exemplo de história potencial ela lembra do abolicionista Frederick Douglass (1818-1895), que estava representado na 34ª Bienal de São Paulo, em 2021, e que se utilizava da fotografia como instrumento político capaz de contrapor estereótipos de raça.

Azoulay, por isso mesmo, é defensora de políticas de reparação e de grupos que defendem a derrubada de monumentos imperialistas: “As reivindicações de reparações não são uma contra-história, mas são contra a história. Elas se opõem à transformação dos crimes contra os quais recorrem, em ‘passado’, e, da mesma forma, procuram enfatizar a violência petrificada nas instituições.”

Ainda segundo ela, “as reparações não têm nada a ver com o progresso, nem o dos agressores nem o das vítimas; ao contrário, representam uma rejeição do princípio imperial e a recuperação de uma condição humana mundana, uma soberania mundana”. Essas reparações, que são abordadas no último capítulo do livro, são urgentes e não podem demorar a acontecer. “O tempo do adiamento terminou”, sentencia a acadêmica, no necessário tom ativista que o tema impõe. ✱

Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes: projeto de futuro no centro do Brasil

Sertão Negro
Alimentos Sertão Verde
Por Luciara Ribeiro, Ceiça Ferreira e Vitória Soares 
Sertão Negro
Alimentos Sertão Verde

Idealizado e criado pelo artista visual Dalton Paula e pela pesquisadora Ceiça Ferreira em Goiânia, no ano de 2021, o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes tem princípios alicerçados nos fundamentos dos terreiros, subúrbios e quilombos, por meio dos quais propõe uma formação artística conectada com a paisagem cerratense, seus saberes e tradições negras.

O espaço possui uma estrutura que contempla desde equipamentos e matérias primas para a produção artística, como forno para cerâmica, prensa de gravura, cavaletes e espaços para a prática da pintura, com disponibilidade de tintas e aquarelas, até o foco em sustentabilidade, bioconstrução e ecologia encontradas na sua própria formação e construção. 

No fomento à pesquisa e educação, o Sertão Negro atua na formação de artistas, com um programa de residência local, nacional e internacional, que promove o diálogo entre as artes visuais, o bioma Cerrado e os saberes ditos “tradicionais” das populações afro-brasilerias, sertanejas e indígenas. No espaço também são realizadas exposições, aulas de cerâmica, gravura e capoeira angola, além de sessões do Cineclube Maria Grampinho, cuja proposta curatorial destaca os cinemas negros. Vale destacar ainda uma biblioteca com mais de cinco mil títulos centrados no pensamento afro-brasileiro, africano, afro-diaspórico e indígena e suas relações com as artes, ciências sociais, filosofia, botânica e literatura.

Compreendendo o centro-oeste como um lugar de potência e um centro de criação, o Sertão Negro tece diálogos entre artistas nascidos em Goiás ou que aqui estão construindo suas trajetórias profissionais e assim se firma como um projeto que – parafraseando a artista Rosana Paulino – visa criar estratégias de consolidação, fomento, formação e manutenção da produção negra contemporânea brasileira. 

O ateliê-Escola se expande para um projeto de agroecologia, o Sertão Verde, de onde são colhidos vegetais e folhagens orgânicas para a alimentação de residentes e frequentadores. Recentemente também foi inaugurado o Sertão Vermelho, um novo espaço destinado à produção de proteína (peixe), visando, assim, a sustentabilidade e a soberania alimentar.

A partir da relação indissociável entre a poética artística de Dalton Paula, que reverencia pessoas e espacialidades negras historicamente invisibilizadas e a construção do Sertão Negro, ateliê-escola e centro cultural, no qual, juntamente com artistas e profissionais de diversas áreas, é que tem-se edificado uma ação política no contexto da arte contemporânea nacional.  

Isso significa pensar a formação artística de maneira mais ampliada, articulada à terra, à ancestralidade, a uma forma social negro-brasileira que, por meio do jogo da capoeira angola e dos saberes tradicionais de cultivo da terra ensina sobre tempo e sobre capacidade de negociação no mundo das artes e no cotidiano. 

Tais princípios orientam atividades individuais, como a elaboração do caderno de artista, do portfólio e do entendimento de sua poética por parte de cada artista; e também atividades coletivas, como por exemplo, as propostas curatoriais que o Sertão Negro levou a diversos lugares, entre eles, a SP-Arte Rotas Brasileiras: em 2023 e 2024, para onde o grupo utilizou na primeira participação tinta produzida a base de terras de Goiânia para transformar o “cubo branco” do estande da Feira; e na segunda, fomentou a partir da serrapilheira, processo da natureza que acomoda as folhas caídas e garante fertilidade ao solo, o tecer de um mosaico orgânico e dinâmico com os trabalhos de artistas residentes e assistentes.  

Este desejo de emancipação, de construção de futuro se consolida com a “Associação Jatobá Nascente”, projeto de ateliê-casa e centro de arte-educação, que visa a autonomia financeira, o desenvolvimento artístico e o comprometimento socioambiental de seis artistas residentes e assistentes do Sertão Negro. Trata-se de uma iniciativa pioneira que cria condições para que os artistas trilhem seus próprios caminhos e possam ser multiplicadores desse sonho de transformação social. 

Sertão Negro tem possibilitado a circulação de artistas e a elaboração crítica a respeito deles, tendo sido destaque em análises de importantes agentes das artes, que revelam as contribuições do projeto também para a relaboração dos pensamentos teóricos e conceituais das artes, na reelaboração dos modelos hegêmonicos de leitura, narrativa e olhares para as produções de autorias negras, indígenas e do centro do Brasil. ✱

Sobre as autoras:


Luciara Ribeiro – Educadora, pesquisadora e curadora. Nascida em Xique-xique/Bahia, reside entre São Paulo e Goiânia. É mestre em História da Arte e Diretora artística no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes


Ceiça Ferreira
– Fundadora e diretora do Cineclube Maria Grampinho, no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, projeto de vida que compartilha com o artista Dalton Paula. É Doutora em Comunicação pela UnB e professora e pesquisadora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG).


Vitória Soares
– graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolve pesquisa com enfoque em sociologia e antropologia, ancorando-se no pensamento negro radical para estudo da cultura, artes e movimentos sociais. É pesquisadora em Educação no Sertão Negro.

Novas derivas

Nesta edição da arte!brasileiros, damos a conhecer no Brasil, em língua portuguesa, dois capítulos de um texto do curador e crítico de arte espanhol Agustin Pérez Rubio, ex-diretor do MALBA (Argentina) e cocurador da 11ª Bienal de Berlim, realizada em 2020. Fizemos esta escolha a partir do trabalho excepcional que ele e a artista Sandra Gamarra realizaram como representantes do Pavilhão da Espanha na Bienal de Veneza de 2025, Estrangeiros por toda parte, que se encerra em 24 de novembro deste ano.O projeto da peruana Gamarra, residente na Espanha, traduz de maneira contundente o debate sobre a colonização e o seu papel na América, onde milhares de indígenas, aqui nascidos, e afrodescendentes, trazidos sob regime escravo da África, de Portugal e outras colônias, foram mortos ao longo dos séculos de presença europeia.

Fabio Cypriano resenha e critica o livro de Ariella Aïsha Azoulay que, em História Potencial, propõe “desaprender a violência original do imperialismo”. Cypriano também faz uma crítica do 38º Panorama do MAM, hoje albergado no MAC USP por questões de reformas. A exposição reflete um excelente trabalho de jovens curadores e artistas, que traz para os museus a voz das ruas.

Tudo o que se diga, hoje, sobre povos originários, racismo estrutural e dominação econômica cultural será pouco para entender a dificuldade de traçar um novo caminho para nossos países, carentes de uma revolução burguesa, e onde a desigualdade econômica e social atingiu raças, culturas e religiões.

Não por acaso há mais de dez anos a arte!brasileiros escolheu uma estética e didática interdisciplinar para falar de arte. Impossível falar de arte sem acompanhar sua época. A arte não escapou nem escaparia às tradições escravocratas, nem à sua denúncia. A arte, como as vezes digo, é um pretexto.

As bienais, exposições e os simpósios, nascidos no começo do Século XX, estão, cada vez mais, buscando novos formatos para abrigar movimentos culturais que possam dar conta das novas narrativas contra-hegemônicas por um lado, assim como das manifestações sociais em constante movimento.

Maria Hirszman visitou e compilou quatro exposições em cartaz, que propõem, a partir de diferentes perspectivas, preencher apagamentos da história sobre a importância da presença africana no Brasil.

Eduardo Simões esteve presente no seminário Ensaios para o Museu das Origens: políticas da memória, organizado pelo Instituto Tomie Ohtake, e escreve sobre a conferência Museo del Barro e Museu das Origens: crítica instituinte e políticas da memória na América Latina, com Ana Roman, Izabela Pucu, Lia Colombino e Paulo Miyada, e de que também participaram Gleyce Kelly Heitor e José Eduardo Ferreira Santos.

Uma experiência muito animadora deste segundo semestre foi o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, iniciativa idealizada pelo artista Dalton Paula e pela pesquisadora Ceiça Ferreira, em Goiânia, no ano de 2021. Ceiça, Luciara Ribeiro e Vitória Soares, integrantes do espaço artístico e cultural, escrevem sobre as propostas do lugar, que envolvem “diálogos entre as artes visuais, sertões e o cerrado a partir dos saberes tradicionais de base afro-brasileira e africana”.

Com pesquisa e olhar atento buscamos colaborar com a reflexão e divulgar um cotidiano da arte e da cultura – nacional e internacional – sempre preocupados em pensar seu tempo e seu entorno. Os que prezamos pela civilização estamos sempre à procura de novas equações de convivência e, fundamentalmente, novas derivas e possibilidades de intervenção. Boa leitura!

Trienal de Tijuana expõe arte como resistência

Trienal de Tijuana
Série: É salvo és alvo, 2021. Márcio Almeida Brasil

A segunda edição da Trienal de Tijuana 2: Internacional Pictórica (México), inaugurada em 6 de setembro, tem como eixo conceitual o pictórico que, em sua forma disruptiva, é tomado como ponto de partida, ressaltando a capacidade da pintura de se expandir e dialogar com outras formas de expressão. Tal escolha remonta ao projeto inaugural da Trienal de Tijuana Internacional Pictórica (2019), idealizado pelo Centro Cultural Tijuana (Cecut) e proposto pelo crítico mexicano Heriberto Yépez, que via no pictórico a possibilidade explorar novas poéticas da pintura.

Tijuana, cidade atravessada pela fronteira considerada uma das mais visitadas e violentas das Américas, simboliza divisões políticas e sociais profundas. Esse ambiente complexo torna-se cenário ideal para a sediar essa efervescência artística que atraiu mais de 500 artistas de 14 países. Foram selecionados 88 trabalhos, com equidade de gênero, para compor uma trienal pensada a partir de uma convocatória, sem tema pré-definido e somente trabalhos inéditos. As obras abarcam uma diversidade de questões, desde a poética ao trash, passando pelo discurso político, ecologia, questões de escolha de gênero e espaço ancestral de violência e tortura. Como curadora geral da Trienal, após longas leituras e avaliações, eu consegui reunir um conjunto representativo da produção artística contemporânea.

As novas formas de ver e fazer arte inserem-se em um campo expandido, cuja evolução é histórica e contínua. Há um esforço deliberado entre os criadores da Trienal de Tijuana em distinguir o “pictórico” e a “pintura”. No contexto teórico, Hal Foster, crítico e teórico norte-americano, falou em um seminário de 1988 sobre Visibilidade, que o pictórico na pintura ocorre através da ótica: “A visão é também social e histórica, e a visualidade envolve corpo e psique. Essa diferença entre ver e ser levado a ver aponta para as formas em que somos conduzidos a perceber o mundo”. Em resumo, o pictórico é a imagem que expressa transformação. Para Foster, trata-se de uma visualidade “pré-ocular”, que emana do olho interior, o “olho antes do olho”.

As obras selecionadas para esta edição da Trienal, que vai até 28 de fevereiro de 2025, refletem um momento de transcendências, negações, inovações e contrastes geracionais. Regina Silveira, aos 85 anos é hoje uma das artistas latino-americanas mais importantes, segundo a crítica Mari Carmen Ramírez. Sua vídeo-animação “Trampa” é uma execução virtual de um bordado que muda de cor sobre uma parede, evocando a ideia de uma pintura expandida que inclui a dimensão temporal. Na outra ponta, a jovem mexicana Solis Apollon, de 21 anos, apresenta “Pés sobre areia”, uma obra que comunica a impermanência do ser humano tanto em seus territórios de origem quanto fora deles.

A trienal se move em meio a questões sociais e políticas. O fotógrafo norte-americano Scott Henry Hopkins realiza uma intervenção crítica no famoso muro que divide Tijuana e San Diego, restaurado e expandido durante o governo de Donald Trump. Sua obra reflete sobre a dualidade patológica que caracteriza a política de imigração nos Estados Unidos. Com uma pintura exemplar, o equatoriano David Santillán Caicedo usa seu trabalho como ferramenta de crítica social, apresentando uma paródia de autodefesa, em que “vestido” com estravagante e elegante pano, que sugere uma saia, aponta a espingarda para o espectador, em alusão ao armamento generalizado. Geoneide Brandão, a jovem artista brasileira, discute a binaridade de gênero e a heteronormatividade em sua obra, retratando corpos queer em um momento de toque íntimo, enquanto Patrícia Gerber, também do Brasil, faz referência ao corpo feminino com uma pintura indagadora, sobre um corpo feminino pintado de azul, sem cabeça, destacando a objetificação da mulher pelo machismo ao longo da história. A performance presente na Trienal também é notável por seu caráter transgressor. Renato Pera, brasileiro, cria uma instalação impactante em que divide seu espaço expositivo em dois ambientes contrastantes, um rosa pink metalizado e outro vermelho forrado de pelúcia, convidando o visitante a participar de uma narrativa visual que flerta com a estética do terror tendo como protagonista um “morto-vivo”.

A produção latino-americana encontra, nesta Trienal, um território fértil para o diálogo entre linguagens artísticas e culturais. Claudia Casarino, do Paraguai, trabalha “nuvens” diáfanas de tule que sugerem corpos em movimento de balé. A obra surge a partir de leituras com um grupo de mulheres latino-americanas. A instalação, ¿ijerga? de Marilá Dardot, brasileira que vive no México, é um resgate de um dos objetos mais presentes nas casas mexicanas: um pano com padrão nacional de tecelagem que, tanto pode servir para limpeza quanto para cobrir móveis. Marilá trabalha com os sinais de interrogação e exclamação, usados em espanhol no início de uma frase, desencadeando experiências pictóricas com pinturas carregadas de percepção poética. Jerga é ainda um linguajar, no sentido de gíria, que foi criado para driblar o colonizador.

Em ação contínua, o artista argentino TEC, radicado em São Paulo, irrompe seu trabalho pelas cidades criando pontes, invadindo territórios, reinterpretando o homem em conexão com o mundo, com um grafismo inconfundível. São tantas verdades acobertadas pelo tempo, uma delas é revelada pelo artista mexicano Othón Castañeda que reconstrói El Palácio Negro de Lecumberri, datado de 1885 que foi um centro de detenção, cárcere de artistas e cidadãos indesejados, que funcionou de 1990 até 1976. Com esta obra, Othón tenta gerar atributos “geométrico-espaciais”, como ele diz, numa clara referência à Crujía J, nome do lugar destinado a confinar homossexuais. O termo derivou a expressão “joto” reconhecida pela Real Academia Española para se referir a um homossexual, expressão corrente até hoje no México e Honduras.

Com vocação internacional, Tijuana é a cidade dos destemidos, dos sonhos, da esperança. O coletivo Ediciones Caradura, formado por artistas mulheres de cidade, captou muito bem a realidade local ao homenagear as trabalhadoras da indústria maquiladora, aludindo à exploração econômica e social dessas operárias, a maioria vinda de outras cidades ou países esperando o momento de realizar seu desejo: atravessar a fronteira para os Estados Unidos. Com a instalação “Siete Negros”, o mexicano Hector Zamorra, que vive parte no México, parte no Brasil, expõe um novo trabalho em que “instala” tijolos verticalmente sobre a parede conferindo a esses elementos o estatuto de uma criação artística. Reorganizada em novas composições, as peças se aproximam dos mesmos mecanismos de leituras de uma pintura e fluem para uma partitura musical. 

O coletivo brasileiro Duas Marias exibe “Pandora”, uma videoinstalação poética projetada por quatro munitores que registram um andar contínuo dos pés de uma mulher. Este foi um dos dez trabalhos escolhidos para a premiação, mas que não chegou a ser agraciado. O México conquistou os três prêmios atribuídos pela Trienal, em primeiro lugar ficou Samara Collina, que se destacou com uma pintura expressionista, “Apesar de tudo, a alegria do encontro” em que captura a tensão da multidão em um ato político. Já a primeira menção honrosa coube a María Orozco, com uma pintura não concluída pelo seu pai, também pintor e que ela a retoma depois de dez anos, em homenagem a ele. A segunda menção honrosa obteve Enrique Rubio, com a obra “Woolander” em que trabalha a questão de gênero e manualidades em um bordado com lã, empregando a técnica needle felting, feltragem com agulha.

Como ato de resistência R. Trompaz, pintor, performer, videomaker, reinterpreta criticamente a bandeira do Estado de São Paulo para denunciar o abismo social latente na cidade mais rica da América Latina, com uma pintura aliada ao expressionismo abstrato. Diversidade é a marca os videomakers nesta exposição. Yuan Gong (China/Inglaterra) aparece com um vídeo em que atua interpretando uma performance entre a teoria culta e a prática popular. Por meio de danças públicas em praças das cidades, ele coloca em cena o conceito de Beuys em que aconselha: “cada indivíduo deve se ver como artista”.  Com um trabalho intimista, Meneghetti, cineasta e videomaker brasileiro, reinterpreta em vídeo fragmentos da vida de seus ancestrais, imigrantes vindos da Itália e Áustria para trabalhar no Brasil nas plantações cafeeiras de São Paulo, entre 1897 e 1924. Seu trabalho resulta em uma obra quase abstrata, em que a história familiar se mistura a um experimento artístico e visual intrigante.

Trienal de Tijuana
El peso de la desigualdad, 2023. Luis Fitch Estados Unidos

Outro destaque do conjunto é a obra do artista norte- americano Luis Flitch, que traz à tona a memória de George Floyd, homem negro morto por um policial branco em Minneapolis. Com carvão recolhido das ruas após as manifestações, Flitch desenha dezenas de crânios humanos, criando um retrato sombrio da injustiça social estruturada nos Estados Unidos. A morte também está presente em alguns outros trabalhos. Márcio Almeida na série “Es salvo es alvo”, se apropria de placas de madeira com perfurações de balas que, descontextualizadas de seus usos nos clubes de tiro, são ressignificadas como arte em trabalhos multidisciplinares. O artista brasileiro faz uma reflexão sobre a violência simbólica e física, com uma abordagem antropológica/investigativa. A exposição também inclui o trabalho de José Patrício, cujo projeto “Momento Mori” explora o conceito das vanitas, expressões artísticas ligadas à efemeridade da vida e à morte. A obra foi executada com mais de mil pequenos quadrados pintados de azul e negro, que formam uma grande caveira pixelada, que evocam a fragmentação dos momentos da existência humana.

Em meio às tensões políticas e sociais que definem a cidade, a arte aqui exposta reflete tanto o espírito do tempo quanto o desejo de paz, neste momento em que o México se renova ao eleger Claudia Sheinbaum, a primeira mulher a presidir o país. ✱

Colaboradores da edição #68

Agustín Pérez Rubio é historiador, crítico de arte e curador. Foi diretor artístico do MALBA (Argentina) e do MUSAC (Espanha), entre outros. Graduado em História da Arte pela Universidade de Valência, foi curador da Bienal de Berlín e aqui escreve sobre o Pavilhão da Espanha na Bienal de Veneza. formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros. Nesta edição, divide com Patricia Rousseaux a autoria da matéria sobre a artista-cientista Leticia Ramos

Renata Felinto é artista Visual, professora adjunta de Teoria da Arte do Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri (URCA, CE) e líder do Grupo de Pesquisa NZINGA. É também integrante do Colegiado do Observatório da Violência da URCA. Ambas, Vanicleia e Renata, escreveram o ensaio de Dandara.

Vanicleia Silva Santos é curadora da Coleção Africana no Penn Museum e professora no Departamento de Estudos Africanos da University of Pennsilvania. Especialista em História da África, Diáspora Africana, Cultura Material e Estudos Museológicos. Autora de diversos livros.

Fabio Cypriano é crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, colabora com a crítica ao 38º Panorama do MAM 2024 e com a resenha do livro História Potencial de Ariella Aisha Azoulay.

Coil Lopes é desenvolvedor multimídia e programador. Trabalha na arte!brasileiros desde sua fundação, auxiliando nas produções de fotografias, vídeos, newsletters. Nesta edição colaborou especialmente com a montagem gráfica da revista impressa e digital.

Fotos: arquivo pessoal

Museu Oscar Niemeyer abriga festa de casamento e gera polêmica

Casamento no Museu Oscar Niemeyer
Foto: Midori Kobiyama

Um dos maiores museus da América Latina, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com um acervo de 14 mil obras e 35 mil metros quadrados de área construída, o Museu Oscar Niemeyer (MON), de Curitiba (PR), é patrimônio público, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do governo do Estado. A secretaria destinou R$ 3.129.379,00 ao MON em 2024. Por causa disso, causou polêmica essa semana a celebração, pela primeira vez, de um casamento privado no espaço museológico do MON – tombado pelos órgãos do patrimônio paranaense e em estudo de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

O casamento foi no sábado, 12/10, unindo Yasmin Bonilha, filha de um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Paraná (Ivan Lelis Bonilha), com Gregorio Nissel. Isso suscitou também uma crítica de suposto conflito de interesses. Os convidados eram recepcionados na parte da frente do museu. O espaço recebeu algumas interferências cenográficas para a festa, como adesivagem do piso da rampa e fechamento das paredes do salão com tecido que imitava estampas de tecidos tradicionais árabes (reproduzindo um cenário das Mil e Uma Noites, com colunatas e portais). As mesas centrais continham réplicas de faisões. A cerimônia foi organizada pela produtora de eventos Ilze Lambach.

A instituição abriga referenciais importantes da produção artística nacional e internacional nas áreas de artes visuais, arquitetura e design, além de manter coleções de arte asiática e africana. No total, o acervo conta com aproximadamente 14 mil obras de arte (entre elas, peças de Andy Warhol, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Caribé e Tomie Ohtake). É visitado por mais de 200 mil pessoas por ano. O Museu Oscar Niemeyer (MON) divulgou uma nota, no final da tarde desta segunda-feira, a respeito da permissão dada à realização de um casamento em suas dependências.

Segundo a direção do museu, a Associação de Amigos do MON (AAMON) possui autorização expressa da Secretaria de Estado da Cultura para locação de espaços para eventos privados, incluindo eventos de natureza social. “Esta é uma fonte de recursos que viabiliza as atividades do Museu, incluindo melhorias em sua infraestrutura, produção de exposições, atividades educativas, entre outros. O objetivo principal é oferecer sempre a melhor experiência ao visitante, democratizando o acesso”. Não foi informado o valor cobrado pela cessão do espaço para a festa de casamento.

Conforme a nota, como o espaço está sendo preparado para receber nova exposição após o encerramento e desmontagem da mostra “Extravagâncias”, de Joana Vasconcelos, a visitação ao museu estava suspensa, o que evitou algum prejuízo ao visitante normal. “Além disso, no espaço Olho foi realizada apenas cerimônia de casamento breve, com todas as restrições para preservação do espaço e com aproximadamente uma hora de duração, e a festa de casamento ocorreu fora das dependências do museu, no Salão de Eventos e Vão Livre”, prossegue a nota.

Uma postagem em uma rede social, com registros da festa, incendiou a controvérsia. Os registros mostram equipamento extra para iluminação e sonorização, o que suscitou dúvidas acerca da segurança. O museu sustenta que a locação ocorreu com autorização dos órgãos competentes, com emissão de alvará temporário específico para o evento e licença perante o corpo de bombeiros. A instituição também informou que esse tipo de atividade é comum em diferentes museus públicos e privados, nacionais e internacionais, citando os casos do Instituto Inhotim, Museu Histórico Nacional, Museu do Amanhã, MAC Niterói, MAM-RJ, MUBE-SP, National Gallery (Londres), Art Institute Chicago, Museu de História Natural de Nova York, Museum of the City (New York), Asian
Art Museum (San Francisco) e o Brooklin Museum de Nova York.