“Todo e nenhum lugar” é a primeira individual de Lia D Castro em um museu. Em cartaz no MASP até 17 de novembro de 2024, a mostra reúne 36 obras produzidas entre 2013 e 2024, assim como registros de seu processo de trabalho.
A exposição integra a programação anual do MASP dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+ e é curada por Glaucea Helena de Britto, curadora assistente, e Isabella Rjeille, curadora, MASP.
Os artistas vencedores do Prêmio PIPA 2024 são Aislan Pankararu, Aline Motta, enorê e Nara Guichon. Eles fazem parte de exposição no Terreiro do Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, que ficará em cartaz até 20 de outubro. Na sala ao lado, uma mostra relembra os 15 anos do PIPA com obras de parte dos artistas premiados em outros anos, como Berna Reale, Paulo Nazareth, Renata Lucas, Arjan Martins, Éder Oliveira e Denilson Baniwa.
O Instituto Pipa foi criado por Lucrécia e Roberto Vinháes, ela com background de arquiteta de interiores e produtora de exposições, ele um investidor, além de patronos das artes. O curador do instituto é Luiz Camillo Osório, ex-curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, professor e atual diretor do departamento de filosofia da PUC Rio. Os premiados são escolhidos por um júri do instituto depois de passarem por indicação de um comitê de profissionais, renovado a cada ano. O prêmio serve também para orientar a formação da coleção de arte do instituto, com negociações de aquisição que podem acontecer no processo.
A cada ano, quatro artistas têm sido escolhidos pelo PIPA e recebem os holofotes. Este ano, ganham R$ 15 mil em doação cada um, verba que ajuda a custear obra e transporte para sua participação em exposição coletiva. Se o valor monetário parece pequeno, é bom lembrar a dificuldade de sustentação e financiamento que os artistas visuais enfrentam num país como o Brasil, que mantém na miséria suas instituições educacionais e culturais, inclusive seus museus, enquanto a indústria de apostas (bets, no anglicismo habitual) fatura R$ 68,2 bilhões em doze meses.
Sobre os premiados deste ano, é preciso mencionar ancestralidades e contextos pois são eles que alimentam a sua criação artística.
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Aislan Pankararu - A redescoberta. Tinta acrílica sobre linho cru
Enorê - Glitch 3 [rosto destruído], 2024 - impressão 3D em cerâmica de alta temperatura, esmalte
Nara Guichon - Sem título [Untitled], 2021 tricô manual e enrolamento de fios -redes de pesca descartadas, tintura com cascas de cebolas e cúrcuma, barra de ferro e arame
Aline Motta - Corpo Celeste III
Celestial Body #, 2020 instalação, animação projetada no chão, papéis impressos com provérbios em kikongo, umbundu, português e inglês, duração 02' 36’
Aislan Pankararu é um indígena do sertão semi-árido pernambucano, nascido em Petrolândia em 1990. Sua aldeia mãe é o Brejo dos Padres. Durante o processo de colonização e aculturação, seu povo perdeu a língua original, mas manteve a espiritualidade, o culto aos encantados, a pintura corporal em argila branca e certos rituais. Esse povo carrega a história do deslocamento forçado às margens do rio São Francisco, do alagamento paraconstrução de hidrelétrica e da destruição da cachoeira onde se relacionava com os ancestrais.
Aos 17 anos Aislan saiu da casa dos pais, fez vestibular e foi estudar medicina em Brasília. Em seus depoimentos, conta que ali percebeu o racismo estrutural nos questionamentos sobre ser indígena, o lugar do indígena como objeto de estudo na universidade, mas nem sempre bem-vindo como presença. Sentiu falta do bioma da caatinga. Na república em que vivia, começou a aliviar as dores e nostalgias de forma ritualística, pintando com escova de dente e guache em papel kraft. Uma forma de se reconectar com seu povo, cultura e geografia.
Seu trabalho, diz ele, é exaltar o índio sertanejo, de alta estatura, que se pinta com um elemento sagrado que é a argila branca retirada de local específico. Em suas pinturas aparecem elementos da cosmogonia pankararu, seus praiás (máscaras rituais), as entidades, os mensageiros entre a Terra e o céu, os ritos festivos, o mandacaru, o flechamento do umbu, a caatinga, assim como aparecem referências ao mundo da biologia e da genética, as células vivas e que respiram.
Enorê nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1992, é graduado em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ mas vive e trabalha em Londres. Ele transita entre mídias digitais e processos físicos. Faz impressão cerâmica 3D mas considera seu trabalho interdisciplinar, envolvendo desenho e pintura, às vezes vídeo e projeção, além de scanner e da impressora de onde saem cabeças, rostos e mãos.
Em seu depoimento para o PIPA ele fala sobre desafiar ou cruzar diferentes temporalidades, das coisas que não se dissolvem, não se destróem, “ficam nessa recursividade da existência”. Como funcionariam esses fantasmas digitais, sair da tela e voltar, serem construídos, dissolver de novo e serem construídos novamente. Embora esteja falando do próprio trabalho, o artista parece falar também da vida na era digital.
Suas obras recentes trazem títulos como Glitch 3 (rosto destruído); frio ao toque; ao perder seu corpo; dissolução; são todos você (aparição); Tudo que consigo segurar (fragmentos). Ele escreve muitos títulos com letra minúscula, e é também assim que grafa seu nome.
A gaúcha Nara Guichon, nascida em Santa Maria, em 1955, mora no sul da ilha em Florianópolis desde os anos 1980, e fez uma vida dedicada ao tricô, crochê, bordado e tecelagem. Recebeu prêmios de design de instituições como o Museu da Casa Brasileira. Nara também é uma conhecida ambientalista, atuou na recuperação da Mata Atlântica e se dedica à coleta e ao reuso de redes de pesca de poliamida (petróleo) abandonadas no mar. Essas redes respondem por metade da poluição mundial dos oceanos.
Seu impressionante trabalho artístico tem sido desenvolvido, em suas palavras, com “o material que está aí à deriva”. Ela reutiliza as redes de pesca com novas oxidações e pigmentações naturais, as tricota, articula com arames, sacos plásticos e tecidos industriais refugados. Sua obra escultórica tem formas orgânicas que evocam a natureza do planeta, a vida vegetal, animal e mais especificamente a paisagem do fundo do mar.
“Minha necessidade é trabalhar pedindo socorro pelo planeta. A minha arte é portentosa porque o lixo oceânico é portentoso”, explica.
Aline Motta nasceu em Niterói em 1974, estudou cinema e trabalhou como continuísta até abraçar a carreira artística e se mudar para São Paulo. Ela vem de uma família inter-racial e se dedica a extensas pesquisas iconográficas e documentais antes de criar suas obras. Encontrou indícios de que uma tataravó nasceu por volta de 1855 numa fazenda em Vassouras, epicentro do escravismo brasileiro naquela época.
Assim como Aislan Pankararu, Aline traz sua ancestralidade à obra. “Muito do meu trabalho é sobre minha própria família, especialmente sobre a minha avó”, gosta de dizer. Para ela, “linhagem é linguagem”.
Na exposição do PIPA, Aline Motta mostra Corpo Celeste III, de 2020, uma instalação em que são projetados no chão desenhos e provérbios das línguas africanas kikongo e umbundu, trazidas ao Brasil e outros países americanos com os escravizados vindos da região do Congo e de Angola.
A principal referência dessa obra é o chamado cosmograma bakongo e os diagramas conhecidos como pontos riscados, usados na umbanda para invocar entidades espirituais. Bakongo significa literalmente “povos kongo”. Sua língua é o kikongo. O cosmograma bakongo é uma espécie de mandala também conhecida como “diekenga”, que representa simbolicamente os grandes ciclos do sol, da vida, do universo e do tempo. Uma cruz divide o círculo em quatro etapas ou tempos. Uma linha horizontal, também chamada kalunga, representa o mar ou a separação dos mundos dos vivos e dos mortos.
Na animação de Aline Motta, aparecem o sol, a lua, estrelas, cruzes, caramujo, cobra coral, jabuti, tatu, embarcação e provérbios. Entre os provérbios estão: “O fogo não é mais forte que a água, a panela é que põe barreira”; “Princípios antigos, para compreender os novos”: “Luar claro não é sol”. A obra foi criada em colaboração com o percussionista Rafael Galante e pertence à Coleção Pinacoteca de São Paulo.
É curioso que essa exposição esteja sendo exibida no Terreiro do Paço, sala dos empregados do edifício inaugurado em 1743 como Casa dos Governadores, transformado em casa de despacho do Vice-Reino do Brasil em 1763, quando a sede do Vice-Reino foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, e promovido a Paço Real em 1808, com a chegada da família real portuguesa. Durante o reinado de Pedro II o terreiro dos empregados foi transformado em oficinas artísticas para o alemão Ferdinand Pettrich e o francês François-Auguste Biard, respectivamente o autor da primeira estátua em mármore feita no Brasil (Imperador em trajes majestáticos) e o pintor de vários retratos da família imperial.
O edifício foi sendo ressignificado ao longo dos anos, sediando a Casa da Moeda, o Real Armazém, registrando fatos históricos como coroações, o Dia do Fico, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da Independência do Brasil, até ser tombado pelo Patrimônio Histórico em 1938 e se tornar um centro cultural em 1985 vinculado ao IPHAN. Chegou o dia em que não é mais a história dos poderosos a passar-se ali, mas sim a imaginação e as visadas contemporâneas de artistas, eventualmente a revisitar fatos do passado, agruras do presente e a escancarar a diversidade cultural que o processo de dominação e exploração procurou e ainda procura apagar e massacrar.
Museu de Arte Sacra da Bahia
Foto: Wellington Da Costa Gomez
Museu de Arte Sacra da Bahia (MAS), cuja sede fica num antigo convento de Salvador, tem problemas estruturais e o acervo corre sérios riscos, adverte universidade
Depositário da maior coleção de arte sacra barroca da América Latina, o Museu de Arte Sacra (MAS) da Bahia vive dias de angústia em Salvador. Fechado preventivamente no último dia 10 de agosto pela reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sua gestora, por problemas estruturais, a instituição vive sob uma ameaça que já se torna frequente no cenário da museologia nacional.
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Vista aérea do Museu de Arte Sacra da Bahia
Foto: JP DRone e Vídeo
Azulejos portugueses expostos no Museu de Arte Sacra da Ufba. Foto: Reprodução/MAS
Altar armário/Custódia do Coração de Jesus.
Foto: Acervo – Museu de Arte Sacra da UFBA
Via Sacra VI – A Verônica limpa o rosto de Jesus
Acervo – Museu de Arte Sacra da UFBA
Santanna Mestra
Acervo – Museu de Arte Sacra da UFBA
Sagrada Família.
Acervo – Museu de Arte Sacra da UFBA
O reitor Paulo Miguez explica que o fechamento do Museu se tornou imprescindível como forma de prevenção de uma catástrofe semelhante à do incêndio no Museu Nacional, vinculado à UFRJ, que ocasionou perdas imensuráveis e irreparáveis ao patrimônio histórico do país.
A decisão foi chancelada pelo Conselho de Ensino Superior em 30 de julho deste ano. “Em um cenário de perdas orçamentárias às Instituições de Ensino Superior, que se acumulam ao longo dos anos, não há verba para o custeio da recuperação do Museu”, informou a nota divulgada pela UFBA.
A nota evidencia quão delicado é o caso do Museu de Arte Sacra (e seu acervo), e o quanto precisa de uma intervenção urgente. O museu é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) desde 1938. Em 1985, foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A coleção do Museu é composta por pinturas, azulejarias, ourivesaria, mobiliários, imaginárias religiosas, peças de prata pura e outros objetos que não tem similares em outras instituições. As obras do acervo permanente abrangem peças dos séculos 16, 17 e 18 e parte do século 19.
O Museu Nacional do Rio de Janeiro, também vinculado a uma universidade federal, foi destruído por um incêndio em 2018 (reconstruído, vai ser reaberto ao público em 2026).
Como se trata também de uma instituição ligada a uma universidade federal, portanto dependente de repasses de recursos federais, a reportagem de arte!brasileiros procurou o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão ligado ao Ministério da Cultura, para saber como o governo acompanha o caso do MAS. “Esclarecemos que Instituto Brasileiro de Museus – Ibram – não tem gerência administrativa sobre o Museu de Arte Sacra de Salvador, nem informações sobre os motivos que levaram ao seu fechamento ou sobre o estado de preservação do acervo do museu”, informou a assessoria de Comunicação do Ibram, que também asseverou que o instituto “irá verificar,junto à UFBA, qual a atual situação do acervo do Museu e avaliar que medidas serão necessárias”. Recentemente, houve um corte de R$ 1,28 bilhão do orçamento da Educação pelo governo federal, e as dotações orçamentárias anuais das universidades federais consequentemente caíram, o que não projeta bons presságios para o MAS.
A diretora do MAS, Maria Herminia Olivera Hernández, garantiu que não há riscos ao acervo e informou que o edifício que abriga o museu (cuja área total é de 5.261 metros quadrados) já está sendo objeto de obras emergenciais empreendidas pela universidade, e busca os apoios da prefeitura e do governo estadual para prosseguir com os trabalhos. “Esperamos que outras instituições públicas e privadas se somem ao esforço de restaurar este valioso patrimônio cultural”, disse ela à publicação Metro1. O museu, localizado na Rua do Sodré, próximo à Praça Castro Alves, no antigo Convento de Santa Teresa D´Ávila, e possui uma igreja em seu interior, com altar-mor de prata, proveniente da antiga Sé, demolida em 1933. Há também sacristia, coro, capela interior, refeitório e biblioteca com cerca de cinco mil títulos, disponíveis para consulta. O conjunto dispõe de 16 salões, 12 salas, 10 celas, corredores e galerias e duas escadarias de pedra com painéis de azulejos do século 17 nas paredes. Aberto, recebia cerca de 300 pessoas por mês.
Tour virtual pelo Museu de Arte Sacra da Bahia:
Créditos:
Projeto: TOUR VIRTUAL MAS 360
Curadoria e Coordenação: Museóloga Edjane Silva
Fotografia 360°: Henrique Muccini
Edição, Produção e Montagem: Bahia View360°
Fotografia Aérea: JP Drone e Vídeo
A exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil”, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, destaca a influência das línguas iorubá, eve-fom e bantu no português falado no Brasil.
Com curadoria do músico e filósofo Tiganá Santana, a mostra apresenta desde palavras de origem africana até obras de artistas contemporâneos.
Entre os destaques estão peças de J. Cunha, trabalhos de Rebeca Carapiá e videoinstalações de Aline Motta, além de registros de manifestações culturais afro-brasileiras.
Frequentador e pesquisador no Museu Afro Brasil há cerca de 12 anos, o curador, gestor cultural e doutorando em Antropologia Hélio Menezes, 37, assumiu a direção artística do “mais brasileiro dos museus” – como afirma –, há cerca de cinco meses, após ser um dos curadores da 35ª Bienal de São Paulo (2023), curador de Arte Contemporânea do Centro Cultural São Paulo (2019-2021) e cocurador da destacada mostra Histórias Afro-Atlânticas (2018), no MASP e Instituto Tomie Ohtake, entre outras. Quase dois anos após a morte de Emanoel Araujo (1940-1922), criador e diretor desde o início do Museu Afro Brasil (que agora leva também seu nome), Menezes chega à instituição no ano em que ela completa 20 anos, com uma série de planos para intensificar a conexão com a produção contemporânea – tanto artística quanto intelectual – e criar canais mais intensos e efetivos de diálogo com o público e a sociedade.
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Exposição permanente do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Foto: Alice Jardim / Divulgação
Exposição permanente do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Foto: Alice Jardim / Divulgação
Exposição permanente do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Foto: Alice Jardim / Divulgação
Para Menezes, o Museu Afro Brasil foi um grande “berçário”, “muito capaz de gerar uma geração de profissionais”, mas não foi capaz de mantê-la por perto ao longo do tempo. Criou e fomentou um campo de debate sobre a riqueza da produção afro diaspórica, sobre o racismo e decolonialismo, mas perdeu algum protagonismo no debate. Com uma coleção vasta e extremamente rica, de cerca de 10 mil obras de arte e mais milhares de livros e documentos, o museu já passou por algumas mudanças expográficas desde a entrada de Menezes, mas sempre respeitando o legado e os conceitos desenvolvidos por Emanoel. Entre elas, “arejou” o espaço com a retirada de alguns objetos, especialmente àqueles ligados a violência mais explicita da escravidão – como peças de tortura, por exemplo. “Para abrir literalmente espaço para mais narrativas, que não tentem subsumir a história afro brasileira ou afro diaspórica à escravidão. Não se trata de negá-la, mas de enfrentá-la a partir de estratégias que não busquem reencenar a dor.”
Vinculado à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, com um repasse anual de R$ 13 milhões, e visitação de 150 mil pessoas em 2023 (e 100 mil este ano, até o momento), o museu apresenta atualmente, além de um pequeno espaço de tributo a Emanoel, quatro mostras temporárias: “Entre linhas: Aurelino dos Santos e Rommulo Vieira Conceição”, “As vidas da Natureza-Morta”, com curadoria de Claudinei Roberto da Silva, “Artistas contemporâneos do Benin”, a partir do acervo da instituição, e “Wagner Celestino: caminhos do samba”.
A arte!brasileiros esteve no museu para entrevistar Hélio Menezes, que falou sobre estes e outros assuntos, entre eles a localização de um “museu disruptivo” em meio a uma das regiões mais ricas da cidade e os planos para a celebração dos 20 anos. Ao longo de um ano, a partir de outubro, a instituição organizará uma série de encontros, debates e mostras, relacionados à sua história. Entre elas, “A história do poder na África”, com curadoria de Vanicléia Silva-Santos, e uma grande mostra a partir do acervo de “arte popular” do museu – chamada também arte naif, arte bruta ou arte do inconsciente. “São expressões que serão debatidas, porque sempre colocam uma adjetivação à palavra arte, quase como uma maneira de negá-la”, afirma ele. O fato é que muitas exposições relembrarão mostras passadas, que ajudaram a constituir o acervo do museu, enquanto outras pretendem apontar caminhos para seu futuro.
Por fim, ao falar da potência crescente de uma produção intelectual e artística negra no país – “não se consegue mais falar com propriedade sobre a produção artística contemporânea se não se passa pela produção brasileira” – Menezes também não se ilude quanto ao papel da arte, por si só, como solução para problemas estruturais da sociedade. “Essa dívida que é social, que é econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora esse campo seja fundamental para a elaboração de novas visões, de uma elaboração mais crítica a partir dos sentidos”, conclui.
Leia a entrevista completa abaixo.
ARTE!✱ – Hélio, você assumiu a diretoria do Museu Afro Brasil há quase cinco meses. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho, um pequeno panorama. O que já foi possível entender, fazer e planejar?
Hélio Menezes – Talvez seja importante voltar um pouquinho no tempo. Eu comecei a minha pesquisa sobre o museu há cerca de 12 anos, a partir sobretudo de investigações de cunho acadêmico. Então, dediquei meus anos de graduação, iniciação científica, mestrado e doutoramento ao próprio museu – à curadoria do Emanoel e ao Museu Afro Brasil. A minha pesquisa inicial se deu sobretudo a partir das exposições curadas e organizadas pelo Emanoel que culminaram no Museu Afro Brasil, 15, 20 anos antes de sua abertura. Não necessariamente ele tinha isso em mente, esse objetivo predeterminado de que elas criariam o museu. E pesquisar essas exposições me levou à conclusão de que elas construíram o acervo da instituição. Então, o museu é uma espécie de reunião dessas experiências curatoriais e pesquisas que lhes antecederam. Ou seja, de alguma maneira, eu já conhecia com profundidade as histórias da composição de boa parte deste acervo.
Então isso acabou sendo uma um ponto facilitador para mim, porque se trata de um museu bastante complexo, cujas histórias remontam a décadas antes da sua própria fundação, à formação da coleção pessoal do Emanoel, à formação institucional do museu. É uma instituição bastante desafiadora para quem não a conhece, pelo seu tamanho, pela sua complexidade, por abordar uma série de temas e de artistas que não figuravam – e muitos ainda não figuram – nos principais manuais, livros ou cursos de história da arte do Brasil. É um museu disruptivo. A sua coleção é disruptiva e, por isso, necessariamente demanda do frequentador, do interessado, da interessada, um engajamento, inclusive emocional, mais intenso, mais denso.
E nesses cinco meses eu me concentrei especialmente, em primeiro lugar, em ouvir os funcionários do museu, das diferentes áreas. Foram semanas de muita escuta, leitura dos relatórios e dos organogramas. Isso me permitiu criar um diagnóstico dos desafios mais urgentes e daqueles desafios que precisam ser enfrentados com o tempo. E que diagnóstico é esse? Eu diria que o museu tem a necessidade mesmo de uma série de modificações que são de ordem operacional, de ordem interna, que diz respeito à criação de fluxos de trabalho, protocolos, de redesenho de um organograma de modo a ser um museu mais funcional. Há uma série também de pesquisas, sobretudo de documentação, de história das exposições, história das obras, trajetória da formação do acervo, que precisam ser tornados públicos, que precisam estar disponíveis à consulta e a pesquisadores. Então, há toda uma dimensão pouco visível ao público que me tomou boa parte do tempo e que certamente tomará os próximos anos.
Mas há uma outra dimensão que demandou a minha atenção ao longo dos cinco meses iniciais, que aí já é mais um trabalho visível ao público, que diz respeito a uma remodelação da exposição de longa duração; diz respeito a organizar um programa curatorial e cultural para o museu; e também de repensar conceitualmente. Eu acho que esse é o maior desafio: como repensar conceitualmente o propósito, a missão do museu, o seu acervo, os seus modos de exibição.
ARTE!✱ – Você teve essa experiência recente de ser um dos curadores da 35ª Bienal de São Paulo? Claro que uma bienal tem uma duração específica, um recorte curatorial específico e grandes holofotes sobre ela, é muito diferente da rotina de dirigir um museu, seu dia a dia. Ainda assim, queria saber se você acha que traz, aqui para o Museu Afro Brasil, aprendizados específicos do que viveu ali, coisas que podem ser valorosas e úteis no trabalho no museu?
Eu diria que não só a Bienal, mas toda minha trajetória anterior de alguma maneira pavimentou essa minha chegada aqui, ainda que não fosse de modo programático. Então é claro que a Bienal tem uma dinâmica diferente da rotina de museu, mas em algum sentido bastante aproximado. O museu é muito mais desafiador, mas de alguma maneira essas duas experiências profissionais se aproximam, na medida em que numa bienal você quase constrói uma instituição inteira, por três meses. Tem que pensar em todos os aspectos. E na 35ª edição a gente se preocupou especificamente com isso, não somente da exposição stricto sensu, mas de todo o programa educacional e público; da comedoria etc., dentro de uma preocupação curatorial. Então, de alguma maneira, fazer uma bienal é quase construir uma instituição.
ARTE!✱ – Um museu temporário…
Sim, um museu temporário, por assim dizer. Agora, é claro que o museu exige outras especialidades para o seu funcionamento. Há um cuidado, por exemplo, de salvaguarda, um cuidado de conservação de obras, sobretudo pensando em conservação preventiva, diante de um espaço como o nosso, com 12 mil metros quadrados, dentro de um parque. Quer dizer, então tem outras atribuições muito mais complexas. Mas, por exemplo, eu acho que eu trago mais até uma experiência em termos de gestão em aparelho público pelo tempo que eu passei no Centro Cultural São Paulo, por exemplo, do que propriamente a Bienal.
ARTE!✱ – Quando você assumiu o museu, uma das coisas que disse é que pretendia trazer um olhar mais contemporâneo para a programação e para o acervo. Queria que falasse um pouco mais sobre isso, o que seria esse olhar contemporâneo?
Eu penso que ao longo dos 20 anos do museu ele foi uma espécie de berçário, de celeiro, dos mais importantes profissionais da arte e da cultura. Sobretudo profissionais negros da arte, da cultura e da pesquisa tiveram suas trajetórias marcadas pelo Museu Afro Brasil. Seja como pesquisadores externos, como pesquisadores da casa, funcionários, pessoas contratadas para atividades de maior ou menor duração… alguns dos nomes mais importantes da curadoria, da pesquisa, de artistas e de gestores de instituições da minha geração passaram pelo museu. O que me chama a atenção é que a instituição foi muito capaz de gerar essa geração de profissionais, mas não foi capaz de mantê-los. Esses profissionais estão hoje nas mais importantes instituições do Brasil e do mundo, mas quase nunca aqui.
Então, trazer uma maior contemporaneidade ao museu significa aproximar estes profissionais, que queremos que estejam cada vez mais envolvidos, mas é também algo sobre a composição do próprio acervo. Ao longo desses últimos 20 anos, o Museu Afro Brasil foi uma das mais importantes instituições para fomentar um debate sobre decolonialidade, sobre produção negra contemporânea. Foi, e segue sendo, um museu que exerce uma decolonialidade muito antes desse termo estar em voga, mas a coleção, embora tenha sido alimentada e ampliada ao longo desses 20 anos, apresenta uma lacuna sobretudo dessa produção brasileira contemporânea, de autoria negra, que hoje está nas mais importantes coleções de instituições do mundo, mas não aqui.
Então trazer mais a contemporaneidade ao museu diz respeito a trazer os pensamentos mais contemporâneos sobre expografia, sobre curadoria, sobre produção artística, sobre historiografia brasileira. Esse é também um museu muito preocupado com a história e nesses 20 anos houve um florescimento da intelectualidade negra, um aumento expressivo das pesquisas historiográficas de Brasil, que precisam estar manifestas também no museu.
ARTE!✱ – Sobre o acervo, existe então um foco em aquisições neste momento?
Sim… no Museu Afro Brasil, quando falo em acervo, estou falando de três acervos que compõem a nossa coleção como um todo: um acervo museológico, um acervo documental e um acervo bibliográfico. Então, é nessas três dimensões que a contemporaneidade deve se expressar. Isso passa certamente por aquisições de novas obras. Ou seja, por estratégias para aquisição de novas obras, um diálogo mais aproximado com os artistas; uma abertura maior da nossa biblioteca, que é uma biblioteca extraordinária, mas que deve voltar a ocupar um lugar de maior interlocução com autores, com editoras, ou seja, uma frente muito ampla de expansão e revisão do acervo. E há todo um material que precisa ser continuamente renovado em termos de informações, de legendas e informações técnicas. São obras tanto documentais, quanto museológicas, quanto bibliográficas, que precisam ser continuamente alimentadas com informações sobre suas origens de doação, origem de chegada ao museu e assim por diante. Dizem respeito às características da coleção, retraçar essa história é uma missão continuada do museu, com um acúmulo de 20 anos para ser feito também.
ARTE!✱ – Tem uma citação sua muito interessante em entrevista recente à Veja: “Este é o Museu Afro Brasil e não o Museu da escravidão. Estamos buscando estratégias para falar da violência sem reencená-la. A denúncia continua a fazer parte, mas não é mais protagonista”. Isso tem a ver com o olhar contemporâneo que você quer focar? Pode falar um pouco mais…
Sim, todas essas questões fazem parte de uma visão mais ampla sobre o museu. Eu acho que quando digo que em 20 anos a historiografia, os debates curatoriais e artísticos se desenvolveram exponencialmente, muitas dessas reflexões, muitos desses debates miram o Museu Afro Brasil, naturalmente, nos demandando o que fazer diante das novas reflexões. Uma delas, de fundamental importância, diz respeito a essas imagens de controle, instrumentos de tortura, uma série de elementos que muitos museus, sobretudo os museus que têm uma certa preocupação com acervos negros ou que se denominam museus negros, muitas vezes têm as suas coleções em número expressivo. Eu acho que, embora esses objetos e imagens de controle colonial, de reencenação da violência, estejam muito presentes no nosso cotidiano como brasileiros – em grandes monumentos públicos, aqui mesmo próximos do museu, por exemplo; ou em cafeterias no centro de São Paulo é muito comum você observar reproduções de escravizados em situação de extrema violência colhendo café –, quer dizer, embora exista uma normalização dessa violência racial, não me parece que o museu seja um lugar para a reencenação disso. Acho que é um lugar para a desconstrução da naturalização da violência racial.
E, portanto, quando eu afirmo que este não é um museu da escravidão, com isso eu quero afirmar que a história afro brasileira ou afro diaspórica, de maneira mais ampla, não começa na escravidão – tem toda uma história que lhe é anterior –, não termina com o fim da escravidão e tampouco se resume a ela. É fundamental que outros aspectos da vida negra, que outros aspectos da cultura brasileira, da produção estética e artística afro brasileiras, encontrem espaço no museu para além de uma narrativa sobre a escravidão. A retirada do espaço expositivo, por exemplo, de alguns objetos de tortura, de alguns objetos de violência racial, abre espaço para uma discussão, para um debate. Esses objetos seguem disponíveis para consulta, tanto virtual quanto presencial, para quem quiser. Mas eles estão no momento retirados da exposição permanente e essa foi das primeiras modificações que fizemos nesses primeiros meses de trabalho na exposição de longa duração. Para abrir literalmente espaço para mais narrativas, que não tentem subsumir a história afro brasileira ou afro diaspórica à escravidão. Não se trata de negá-la, se trata de enfrentá-la a partir de estratégias que não busquem reencenar a dor, mas falar dela.
ARTE!✱ – Vivemos, de alguns anos para cá, um contexto em que pautas ligadas às questões identitárias, decoloniais e antirracistas ganharam grande destaque no mundo das artes e da cultura. Seja nos debates, pesquisas, na programação de instituições e até mesmo no mercado de arte. É curioso pensar, no entanto, que em meio a isso o Museu Afro Brasil – que exerce há 20 anos um trabalho intenso e que possui este acervo grandioso – não parece ter tido o protagonismo que merecia, ou poderia, ter. Já falamos sobre o distanciamento de pessoas “criadas” no museu, por exemplo. Mas eu gostaria que você falasse um pouco mais do assunto. Enfim, você concorda com este diagnóstico e, se sim, o que é possível fazer?
Essa é uma pergunta intrigante. Há mesmo algo paradoxal nesse lugar, que é de entender como que o museu foi proponente muito antes do tempo desses debates que hoje são centrais e incontornáveis em todo o mundo, mas não assumiu o protagonismo dentro deles posteriormente. E me parece que só é possível tatear uma resposta a esse paradoxo à maneira em que a gente observa que o museu, por uma série de questões, não se abriu aos canais de comunicação mais amplamente com a sociedade. Então me parece que só se enfrenta esse paradoxo aumentando esta comunicação com a sociedade e com essa nova historiografia, novos pensamentos curatoriais, com essas abordagens antirracistas e decoloniais. Quem são os atores? Quem são os pensadores? Quem são os artistas que estão nesse campo?
Quando você cita Histórias Afro-Atlânticas, que eu fiz parte, você me fez lembrar que, meses antecedendo a abertura dessa exposição, eu estava visitando aqui o museu e o Emanoel Araujo perguntou: “Hélio, por que você está fazendo essa exposição no MASP e não aqui?”. E eu respondi para ele: “Por que é que eu estou fazendo a exposição no MASP e não aqui?” Eu repeti a pergunta como resposta. Demos risada e não havia resposta possível a ser colocada naquele momento. Mas eu acho, agora, seis anos depois, que é por essa dificuldade que o museu durante alguns anos enfrentou nos seus canais de comunicação justamente com esses atores todos que ele próprio ajudou a fomentar, o que não o colocou como um protagonista natural neste momento. E é esse lugar de protagonismo que estamos recuperando.
ARTE!✱ – Agora, para além desse canal de comunicação com artistas, pesquisadores, curadores etc., penso no próprio público. Sabemos que a participação, a interação e as dimensões educativas de modo geral são cada vez mais relevantes nos museus, que há tempos deixaram de ser apenas espaços de fruição. Neste sentido, como aproximar o público e trazer mais gente para cá?
Neste aspecto, uma coisa é importante destacar. O Museu Afro Brasil tem um público extraordinário, bastante expressivo. Então, mesmo com esse paradoxo do qual falamos, ele nunca deixou de despertar interesse, procura e demanda das pessoas. O que me parece um objetivo é aumentar a variabilidade desse público e, também, trazer mais pessoas, claro. Nós temos um público bastante frequente sobretudo de pesquisadores e estudantes, uma quantidade de frequentadores do Parque Ibirapuera e um certo público também estrangeiro. Isso é muito interessante, você ouve outras línguas sendo praticadas neste museu diariamente. Muita gente vem ao Brasil e quando é perguntada sobre qual museu quer conhecer, é o Museu Afro Brasil. Porque é o mais brasileiro dos museus. Agora, esse público pode ser ainda ampliado e, sobretudo, não só na dimensão de frequentador, mas de interlocutor. Para que estas pessoas, estes diletantes, visitantes, pesquisadores ou simplesmente interessados por alguma exposição ou pela história do Brasil e pela arte brasileira, também possam se comunicar ao museu. Então não é só uma dimensão de expansão de público, mas de uma qualificação da instituição, para que a gente possa ter uma escuta ainda mais cuidadosa, ainda mais acolhedora.
Por exemplo, este ano completam-se 13 anos de um programa chamado Singular Plural, que é um programa de acessibilidade do museu. Além da dimensão da acessibilidade ser um ponto hoje central, o fato de ser um programa longevo tem trazido uma enorme, uma significativa expansão de um público com necessidades especiais – sejam cognitivas, físicas, motoras, sejam pela idade. Para mim é uma alegria ver o museu ampliando a participação desse público. Então quando eu falo de abrir canais de comunicação com a sociedade, isso diz respeito a uma ampliação de público, sem dúvidas, mas diz respeito também a uma melhor qualificação dos canais do museu para a escuta desse público, para relacionar-se com esse público.
ARTE!✱ – Isso passa também pelas redes sociais?
Sim. Isso passa pela comunicação do museu, que tem que ser reestruturada. Passa pelo site, pelas redes sociais, por uma comunicação que tem que ser mais estratégica, mas também por uma comunicação que possa servir melhor à produção de conhecimento. Nós estamos diante de um acervo que é tão extraordinariamente rico, com peças que, mesmo em exibição, quando destacadas, são iluminadas por informações valiosas. Então isso também tem que ser melhor extrovertido. Museus são espaços importantes de produção de conhecimento. Este daqui, em sendo, repito, o mais brasileiro dos museus, com um acervo museológico de entre oito e 10 mil peças, mas, contando os acervos documentais e bibliográficos chegamos a mais de 20 mil obras, há um pedaço literal do Brasil aqui. E há muita produção de conhecimento que se realiza internamente, que precisa ser melhor divulgada, melhor extrovertida.
ARTE!✱ – Agora, pensando no espaço físico do museu, ele está em um lugar muito especial da cidade, num edifício do Niemeyer, no parque mais importante de São Paulo, mas ao mesmo tempo um tanto afastado da vida urbana mais central – ao contrário de museus como MASP, IMS, Pinacoteca etc. Não há uma estação de metrô que sai no parque, por exemplo. Além disso, ele está cercado de bairros extremamente elitizados. Como lidar com isso e tentar trazer um público diverso?
Essa pergunta é excelente, porque a localização do museu já é uma de suas obras mais importantes. Ela já começa a afetar, digamos, já tem efeitos no museu por si só. Estamos falando de um museu negro, o Museu Afro Brasil, dentro de um conjunto de bairros onde se concentra a maior parte da riqueza da cidade, e de uma riqueza racializada, que é uma riqueza sobretudo branca. Para termos um comparativo, o bairro de Moema, que é um bairro contíguo ao museu, tem a menor população relativa negra entre todos os bairros de São Paulo. Em torno de 5%. E, no entanto, ainda assim, o museu é espaço dentro dessa zona, entre aspas, nobre, onde as negritudes, as periferias, encontram casa, encontram um local de acolhida e de expressão.
Então a localização do museu no parque carrega mesmo certa ambiguidade. De um lado é um local extremamente nobre, um parque bonito, com um prédio histórico, de um arquiteto histórico, por outro lado, não há transporte público e facilidade para chegada ao parque, as linhas tanto de ônibus quanto de metrô não são suficientes e geram algum tipo de empecilho – também em termos de acessibilidade isso é uma dificuldade. O que podemos fazer e estamos fazendo, e isso acontece desde antes da minha chegada, é ir aumentando a capacidade de conversa com os gestores, tanto públicos quanto privados. Hoje, o acesso ao Parque Ibirapuera é controlado por uma organização privada, então o museu negocia, conversa – assim como os demais museus que estão situados no parque –, mas não temos hoje uma capacidade autônoma de alteração desses fluxos em relação a transporte, a acesso.
E, nesse meio tempo, buscamos desenvolver estratégias, sobretudo de programação cultural, de ações educativas e de programações culturais que dialoguem com os anseios mais diversos presentes na sociedade, inclusive daqueles que não moram nos bairros em que o museu está interligado. Então, eu acredito que uma programação curatorial, educativa e cultural robusta, interessante, tem efeitos positivos nesse sentido. E temos colhido resultados, como ver as nossas exposições cheias tanto na abertura quanto nas semanas subsequentes. Abrimos a exposição do Entrelinhas com o Rommulo Vieira Conceição e o Aurelino dos Santos, abrimos a exposição Caminhos do Samba, com as fotografias do Wagner Celestino, As vidas da Natureza-Morta, que é uma exposição curada pelo Claudinei Roberto, e a exposição dos artistas contemporâneos do Benin, que foi feita a partir do acervo do próprio museu e vemos um público significativo.
ARTE!✱ – O Museu Afro Brasil passou a se chamar Museu Afro Brasil Emanoel Araujo após a morte do Emanoel. Queria aproveitar pra pedir pra você falar um pouco da importância dele. Nesse caso, menos como artista, que já sabemos, mas como criador, curador e gestor desse museu, um grande promotor da arte afro no país…
Emanoel é uma figura fundamental na história da arte brasileira, na história das instituições museais do Brasil, com passagens pelo Museu de Arte da Bahia e pela Pinacoteca – isso antes da criação do Museu Afro Brasil. Eu acredito, tenho certeza, de que a relevância do Emanoel está muito bem documentada e sedimentada, seja ele como artista, seja ele como responsável pela criação de um espaço como este museu ou pelo tempo de gestão dele em outras instituições pelas quais ele também passou. Penso que o Museu Afro Brasil, quando adota muito orgulhosamente o nome do seu fundador como parte do seu nome é uma um reforço desta homenagem e desta relevância do Emanoel no cenário nacional e também internacional. O único ponto que eu adicionaria a esse coro, ao qual me filio, de entender e respeitar a relevância fundamental do Emanoel, é de que o Museu Afro Brasil é, sim, resultado de um empenho pessoal dele, o que é inquestionável, mas eu o vejo como uma espécie de capitão, digamos assim, alguém que capitaneou uma luta que é também coletiva e histórica. Quer dizer, esse museu é resultado de uma luta negra.
Eu me dediquei, por exemplo, a entender quais foram as iniciativas de institucionalização e criação de museus de arte afro brasileira e, claro, podemos retroceder à criação do Museu de Arte Negra, pelo Abdias Nascimento, nos anos 50; podemos voltar ao Museu Afro-Brasileiro, em Salvador, cuja fundação remonta aos anos 70; a gente pode pensar em experiências museais como o Museu de Laranjeiras, em Sergipe, o Museu do Negro, no Rio de Janeiro… quer dizer, há uma série de iniciativas de diferentes portes, com diferentes fôlegos, de musealizar a arte negra ou a história brasileira a partir da perspectiva negra. O Museu Afro Brasil é, sem dúvida, o maior logro dessa luta, mas eu acho que é importante localizar o museu nesse histórico amplo de lutas negras que encontrou em Emanoel essa figura de proa, essa figura capaz de concatenar, num certo momento histórico, a criação do espaço como esse que fica de legado para todos nós.
ARTE!✱ – E 2024 marca os 20 anos do museu. Vocês pensam em fazer algum tipo de celebração, alguma exposição… Algo para marcar a data?
Sim, 20 anos não são 20 dias… e por isso pedem da gente um momento de reflexão desta caminhada da instituição, mas também, complementarmente, nossa visão quanto ao futuro, quanto aos próximos 20, 40, 200 anos do museu. E, portanto, o que a gente está preparando não será uma comemoração pontual, mas aproveitaremos todo o ano para homenagear as duas décadas e, ao mesmo tempo, apontar algumas direções daqui para frente. Então, estamos organizando uma série de exposições, mas também de seminários e de publicações que vão sempre lidar com essa dobradiça: como olhar para trás para mirar para frente. Isso inclui, por exemplo, um seminário de reflexão sobre o museu; o convite a uma série de pesquisadores das diferentes áreas que compõem a exposição de longa duração do museu, para que possamos repensar, juntos, essa reelaboração, essa reapresentação da nossa própria exposição de longa duração e por aí vamos.
ARTE!✱ – Para finalizar, uma pergunta um pouco mais geral, mas que obviamente repercute no que se pensa e se faz aqui no museu. Ao mesmo tempo que temos este destaque maior dado às pautas das quais falamos, sobre decolonialidade e antirracismo, parece haver também um aumento de ataques, no Brasil, à aspectos da cultura afro, como as matrizes religiosas, por exemplo. Há também uma extrema direita racista que parece ter saído do armário e se mostra muito poderosa. Te parece paradoxal isso? Ou justamente uma coisa pode ser uma resposta à outra…. Como você vê esse momento?
Eu me lembro que nós fechamos o último dia de exibição de Histórias Afro-Atlânticas no dia da eleição de Jair Bolsonaro. E para mim já foi uma sensação bastante curiosa a de visitar o último dia da exposição com uma grande manifestação pró-Bolsonaro na Avenida Paulista. Essa situação que você descreve que é de, ao mesmo tempo, um crescimento do interesse e mesmo de uma produção mais volumosa, mais robusta, de maior qualidade e diversidade de autorias negras, encontra, no mesmo tempo e espaço em que vivemos, uma contemporaneidade com um recrudescimento de uma violência racial. Ou de uma “dívida impagável”, para usar os termos da Denise Ferreira da Silva. Eu acho que essa dívida que é social, que é econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora esse campo seja fundamental para a elaboração de novas visões, de uma elaboração mais crítica a partir dos sentidos.
A arte nos possibilita redimensionar uma série de questões que rebatem no mundo social e abordá-las a partir de um outro prisma, a partir de uma outra sensibilidade. Mas acho que devemos cobrar das políticas públicas o que diz respeito a políticas públicas. Devemos cobrar de uma engrenagem socioeconômica uma maior responsividade, responsabilidade, equidade e justiça, e não pedir que o campo das artes resolva o que lhe escapa de possibilidade de resolução. E eu acho que é nessa situação que a relevância do Museu Afro Brasil se torna ainda mais exponencial. A relevância dele num contexto de recrudescimento de violência racial, num contexto de aumento – ou pelo menos de uma maior discussão e uma maior visibilidade – de casos de racismo no Brasil e no mundo, torna ainda mais importante o contraponto que este museu exerce há 20 anos.
Agora, não me parece necessariamente uma contradição que esse cenário aconteça. Porque não é à toa que muitas vezes nos momentos de maior violência é onde nós visualizamos uma maior resistência e uma exigência de maior criatividade, de criação de estratégias para fazer frente a esses avanços autoritários, conservadores, racistas, classistas. Então, o que me parece é que há uma movimentação artística no Brasil que foi ainda mais incentivada diante das adversidades. Isso não é um elogio às adversidades. Eu acho que se com pouco o Brasil já é capaz de fazer o que faz na produção de arte contemporânea, de modo a hoje pautar os debates de arte em todo o mundo, se com um pouco, com restrição de verbas, com restrição orçamentária e um cenário político desfavorável, ainda assim o Brasil se coloca como protagonista – e o Brasil negro, em especial –, imaginemos o que pode vir a ser um país que elogia a sua produção artística. Um país que apoia os artistas e as instituições de arte ao invés de persegui-las, censurá-los ou inibi-las.
'Paisagem selvagem IV' (2024), Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro
U ma catarata de saias das Arábias, um Eldorado na floresta tropical egípcia, o grande lago-loja de um aeroporto, a festa de São Tomás de uma província barroca, a cidade moderna baldia, a catedral jamais construída num canto do mundo setentrional e um altar do maior ovo Fabergé nunca antes visto – tais são alguns dos lugares para os quais nos projetam as imagens que se aglutinam nessas espécies de objetos que se comportam como grandes tapeçarias, almofadas, apoios de pés e de braços, com seus remates estampados, emborrachados e coloridos, e suas franjas que avançam estufadas, com frequência assediosas ao toque.
Ocorre que a paisagem adentrou de vez esses trabalhos como seu elemento organizador primeiro: há sempre céu, horizonte, muitas vezes lago. Quem sabe, não exatamente paisagem enquanto um gênero, mas como condição necessária para que esses trabalhos reportem sempre a um outro lugar, que, em sua franca impossibilidade, pois demasiado compósito e incongruente, atina no entanto com uma realidade bem mais materialmente comprovável do que a mera imagem idílica, árcade de um lugar perdido qualquer; trata-se, afinal, de paisagens que já vêm saturadas de sacolas, etiquetas, tags, que vêm já preparadas para o turismo, inclusive com a presença daquelas marcas cujas logos já se parecem com antigos conhecidos ilustres – aqueles quase-personagens com os quais nos sentimos em casa: aqui, o Wilson, ali, o bom camarada que aparece no saco de arroz…
Se há algo que não se deixa escapar nessas obras é a constante indagação desse “um outro lugar”; mas trata-se de paisagens que já não são mais oníricas, não admitem a absorção do sujeito em seus enredos paradisíacos: confundem-se muitas vezes com estampas de toda sorte; têm uma velocidade de preenchimento dos espaços com retalhos, cores e informações advindas de lugares distintos. Reagem, enfim, a uma compulsão pela totalização ou acúmulo: os trabalhos fecham-se sobre si mesmos, arredondam-se, oferecem-se como pequenos cosmos, em que as coisas mais discrepantes devem se submeter a uma ordem de abarcamento. E, no entanto, feitos de partes facilmente destacáveis, pendentes, de procedências francamente díspares, volumetricamente dissonantes, esses trabalhos obrigam essa totalidade a se autorreconhecer em sua desfaçatez. De saída, um modo estranho de pertencerem a seu próprio contexto imediato, um país já há muito abstraído em um exotismo tropical qualquer, todavia sem quererem flagrá-lo em sua iconografia endógena e indulgentemente nacional; afinal, os outros lugares a que esses trabalhos se descortinam são tão esvaziados de substância, densidade, história própria, que, em um ponto, parecem corresponder a todo lugar que possa ser chamado de outro, distante, exótico, incongruente – costelas de onde poderia sair uma Eva pintadas com as cores da costela-de-adão; mata virgem selvagem, encimada por camelos a passeio; paraísos de ouro que devem ter aprendido a se formar com Las Vegas, Miami e os parques temáticos e lojas de cacarecos ao redor do globo; ou, em outros termos, incongruências que não mais admitem qualquer solo seguro, genuíno, sem revelar estridentemente sua mitificação.
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'Caprichosa' (2024), de Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro
'Paisagem selvagem II' (2024), Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro
'Cinema' (2024), de Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro.
A todas essas paisagens tão impossíveis quanto muito provavelmente localizáveis de imediato num imaginário contemporâneo em que muita coisa que não procede de um lugar comum pode ocupar sem grandes problemas o mesmo campo semântico, soma-se, então, a escala e o formato de objetos prontos para responderem muito diretamente ao corpo de quem os vê, às vezes, pendendo o suficiente da parede, a darem a impressão de que poderiam ser abarcados em um abraço; outras vezes, quase que convidando ao movimento de uma leve espalmada; ou, ainda outras, plissados, supondo que eventualmente poderiam ser talvez vestidos – promessas igualmente cumpridas de uma compulsão pela empatia, em que tudo o que seja informe, esquisito, abjeto, deva, no fim das contas, devolver-se à apreensão imediata e acabar por fazer sentido a um observador sempre ávido pela posse dos objetos que lhe desafiem qualquer dificuldade.
A propósito, esses trabalhos ostentam com perspicácia o hábito da apropriação de coisas e imagens; vivem dos índices do deslocamento de objetos para dentro de seu universo particular. Uma simples passada de olhos e ali logo se percebem calças jeans transformadas em superfícies a serem pintadas, sacolinhas de compras que mal se decompuseram para serem adicionadas à lona, camisetas estampadas com cartazes de filmes. Uma polifonia, então, que não parece renegar de pronto a memória do hábito alimentar antropofágico, uma prontidão para aclimatar a história social, a variedade de gostos e procedências dos objetos que ali se deglutem.
Contudo, o modo mesmo com que concatenam suas disparidades é de pronto ambíguo: de um lado, domina a linguagem da confecção de peças do vestuário, a costura, o rebite, o remate, a sobreposição de tecidos, o volume adquirido pela sobreposição de peças e retalhos, o que leva a que a estrutura de tais objetos se ofereça como uma composição complexa, em tudo avessa a um acúmulo distraído de fragmentos; mas, de outro lado, tais pedaços de coisas existentes tendem a se acomodar visualmente uns aos outros por conta de uma espécie de uniformização de sua volumetria, intensidade cromática, desequilíbrio de tamanho e formato pela distribuição astuta da tinta sobre as superfícies, como se àquela estruturação primeira fosse sobreposta uma prática mais corriqueira de customização de peças.
Resulta disso que, tão logo as absorvem, os trabalhos também se despedem das descontinuidades de seus materiais, do choque que poderia ser produzido pelo encontro de coisas que vêm de lugares distintos. Pouco parece restar daquela espécie de promessa de “impertinência do subdesenvolvimento” que uma vez alimentou uma paixão por tudo aquilo que fosse sujo, marginal, periférico, capaz de se espantar com a violência de um tempo presente feito de perplexidades e contradições irresolutas.
Essas obras sabem que tudo o que recolhem traz a marca daquilo que já passou, que já não mais oferece respiro suficiente para provocarem um escândalo qualquer. Parecem ao contrário afirmar muito resolutamente que, tanto faz o que possam conter, qualquer que seja a natureza das imagens ou coisas que anexem a si, tudo ali será aplacadamente reconhecível, familiar. Por maiores que sejam, por mais repletas de elementos desconversados, sua estranheza não residirá em suas escolhas de materiais, em sua inconsequência, mas, antes, em que se pergunte o porquê resultam em compostos de coisas sempre ligeiramente ultrapassadas.
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'São Tomás' (2024), Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro
'Ovo' (2024), Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro
De fato, não é o frisson ou o suspiro que anima essas obras, mas aquela espécie de gravidade do caimento de um tecido que cessou de se mexer e agora pesa. Elas supõem, em seu acúmulo, em suas camadas de mesmas coisas, muitos objetos passados aglutinados juntos, mas seriam uma desfeita para quem quisesse examinar qualquer história da moda, da indústria têxtil ao olhar para elas. Se possuem uma enorme quantidade de objetos, seu volume às vezes corresponde apenas a uma só fração de tecido, a uma ou duas das estampas em voga na estação passada, não mais. Se se agigantam e engordam, não é porque carreguem ou suponham ser capazes de narrar o adensamento de uma verdadeira experiência acumulada.
Em seus materiais, não são obras dotadas de muito passado. Lidam, antes, com a dimensão material gigantesca de um ou dois meses atrás no tempo da circulação das imagens e objetos que consomem e de onde tiram um máximo de coincidências e analogias que se possam formular de uma tacada só: um santo figurado perto de um trecho de padrão decorativo, e o trabalho parece barroco, e com a adição de retalhos, bandeirinhas de São João; em outro trabalho, uma bananeira, e tudo se tropicaliza num exotismo marroquino; um xadrez, e o elemento arquitetônico vem às pressas acudir o significado de uma imagem; formas simbólicas geometrizantes, e, de repente, Klee, teosofia; dourado e azul, e o mesmo elemento que em outra obra era uma saia, agora agiganta um vitral oval goticizante.
Convenhamos, não é de modo algum difícil adivinhar nessas obras o quanto elas transpiram de referências à história da arte. Mas sabemos que parecer com coisas já vistas na arte não as justifica. Talvez seja que elas não prestem de fato reverência à arte; ou, talvez, seja também que elas não precisem exatamente da tradição da arte para serem compreendidas. Tudo o que elas fazem com aquele disparate de coisas que ostentam é chamá-las muito rapidamente de arte, antes mesmo que se possa pensar que sejam restos, coisas da cultura, que sejam de bom ou de mau gosto – nada disso importa. O que chega à obra como uma estampa qualquer de tecido que vá parar na borda de remate de um desses objetos é rapidamente repintado; a tinta faz com que a estampa impressa se converta, por coberturas rápidas, em pintura, esmalta a impressão de carga baixa que recebeu, e, por uma redução à manualidade do pincel, aquela estampa qualquer agora parece possuir alguma coisa do caráter apenas indicado com que um Matisse faz surgir um aroma de mundo imaginário perdido no manejo de padrões.
Os procedimentos de Leda com e sobre seus objetos os estilizam, impõem a eles uma maneira pessoal de se comportarem, cuja justificativa não se oferece nessa ou naquela obra, mas somente em uma visada de conjunto de sua trajetória. Se aquelas franjas de pontas arredondadas se assemelham aqui a objetos organicamente fálicos, é porque aprenderam há muito, na trajetória da artista, a significar línguas, depois asas de inseto, depois gotas, e agora sabem muito bem adquirir volume sem deixarem de ser vistas como um vocabulário próprio a seu trabalho.
Esses trabalhos são enraizados em autorreferências à obra da própria artista, mas são, antes que uma repetição, uma narrativa formal extensa, que, para ser explicada, deve ser observada no tempo de seu desenvolvimento – desde quando poderiam ser explicadas como “achados” individuais em um, outro ou outro trabalho do começo dessa trajetória (seria relativamente simples observar como se deu, lá atrás, o ingresso, nas obras de Leda, do procedimento de pintar as áreas de conexão entre um retalho e outro colados ou costurados; ou, então, quando ela começou a colar pequenos quadrinhos dentro de quadros ou telas maiores; ou, ainda, quando objetos começaram a pender da parede em direção ao espaço – derretiam-se, eles, vinham justificados por uma imagem de cachoeira, que, depois, virava espécies de tecido recortados em forma de gotas, ainda antes de se parecerem com dedos, falos, e de repente serem assumidos como bandeirinhas de São João, aqui, e línguas, ali, ou saias, acolá).
Não resta dúvida de que isso contribui para a impressão de que se trata, agora, de uma obra que se oferece com ares de uma “maturidade”, a ser quem sabe muito repentinamente associada a uma repetição de fórmulas que levariam a uma percepção de que o trabalho tinha se cansado de inventar, e, portanto, arrefecera em uma versão tardia de si mesmo. Não seria incorreto dizê-lo; essas obras já não justificam seus procedimentos de apropriação, inserção de objetos, figuras, em termos de um discurso mais ou menos disfarçado de “vanguarda”; eles são, tais procedimentos, silenciosamente artísticos, ou seja, não estão mais dispostos a revelar as fraturas de suas justificativas formais por conta dos elementos sociais, históricos, ideológicos que sabem que carregam — elementos de gosto, de procedência, de significado de suas estampas. Mas aí é que está: oferecerem-se como “formalismos”, como excessos “estéticos” é o modo desse trabalho atinar com o processo de ultraestetização a que ele sabe que se destina; ou, de outro modo, a que ele sabe que seus materiais igualmente se submetem. A estampa da moda que em pouco tempo perde seu valor inusitado e assoma no grande universo dos tecidos sem importância; a imagem icônica da ideia de exotismo – um camelo, quem sabe –, que, em pouco tempo, se torna mera logomarca; a imagem insondável das mil e uma noites que se substitui pela composição mais abstrata de correntes com tiras douradas dependuradas em uma saia. Trata-se de um trabalho que se oferece em franco processo de autonomização frente ao suposto impacto dos objetos que o compõem, decerto não mais os conflagrando de frente, mas desafiando silenciosamente sua onipresença na esfera da cultura com a autoafirmação de sua plasticidade sobre eles.
Ensaio escrito pelo crítico e professor de arte Carlos Eduardo Riccioppo para acompanhar a exposição Paisagem Selvagem, de Leda Catunda. A mostra fica em exibição entre 10 de agosto e 5 de outubro de 2024, na Carpintaria, no Rio de Janeiro.
Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala, que formam a equipe curatorial do 38º Panorama da Arte Brasileira - Mil graus. Foto: Bruno Leão/Estúdio em Obra
À frente da curadoria do 38º Panorama da Arte Brasileira, Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala queriam evitar, na seleção de seus 34 participantes, o que consideram uma armadilha colocada pela palavra panorama, uma impossível perspectiva totalizante da produção artística nacional.
“A gente tem uma amplitude geracional enorme, com artistas de 16 estados, vivendo em contextos diferentes, desenvolvendo práticas e pesquisas bem distintas. Mesmo assim, a gente sabe que se trata de um retrato provisório, tirado pela nossa visão”, pondera Dushá. “É algo muito pequeno perto da dimensão de um país continental, tão complexo, com infinitas culturas, que a gente chama de Brasil”.
A exposição vai acontecer entre os dias 5 de outubro de 2024 a 26 de janeiro de 2025. Devido às obras de reforma da marquise do Parque Ibirapuera, o Panorama não será abrigado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, como de praxe, mas pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).
Com o título Mil graus, expressão coloquial que sugere a ideia de intensidade, a mostra vai explorar experimentações artísticas “marcadas pelo calor” e que têm a transmutação como destino “inevitável”. Para Thiago de Paula Souza, trata-se de uma “noção curatorial ampla”.
“Olhamos para as dimensões espirituais e ecológicas da prática artística, pro tesão e pro erotismo dos fluxos de corpos, pela cidades, sejam eles sejam eles humanos ou não, e por último como tecnologia tem contribuído para a criação de imaginários políticos e sociais”, diz. “A partir daí, depois de meses de pesquisas, traçamos uma lista de pessoas que acreditamos trabalharem na intersecção dessas ideias.”
Dushá afirma que, à medida que as ideias em torno da curadoria foram se consolidando, vieram à tona nomes cujas práticas não necessariamente são vistas como artísticas, como a Tropa do Gurilouko (RJ), grupo que veste os trajes do Bate-bola (ou Clóvis), um personagem clássico do carnaval do Rio, “que sintetiza um pouco um viés importante dessa energia que a gente tá falando”, afirma. “Foi uma decisão insólita e heterodoxa convidar um grupo que venha para cá com um pensamento contemporâneo e não naquela chave de uma exposição sociológica, etnográfica, que queira fazer um mapeamento mais frio”.
A produção dos artistas plásticos baianos Rebeca Carapiá e José Adário dos Santos também seria exemplar do recorte proposto pelos curadores. Ariana lembra que ambos trabalham a materialidade do ferro em suas criações, mas suas obras têm pontos de partida distintos. Adário lança mão de ferragens para fazer “assentamentos” de orixás, ou seja, a consagração de objetos como representações das divindades do candomblé; ao passo que Rebeca se relaciona com o material por meio da metalurgia.
“O ferro mostra a esses artistas os caminhos que eles podem seguir, algo que contradiz a ideia de que os materiais não têm agência”, argumenta Ariana. “São poéticas numa contramão, mas que se encontram”.
Zahy Guajajara, Ureipy. Foto: Philipp Lavra | Adriano Amaral, Sem título. Foto: Lewis Ronald
Há também artistas que lidam com a terra ou “com a magia que vem da terra, do solo, do barro”, nas palavras de Dushá, a exemplo da veterana Maria Lira Marques (MG), que desenvolve um “trabalho muito fresco, novo, que só recentemente tem ganhado a projeção e a relevância devidas”, e também a produção de artistas jovens, que trabalham uma “dupla dimensão da terra, a magia, a imaginação e todas as evocações que podem vir daí”, diz o curador.
Do ponto de vista menos conceitual e mais formal, contam os curadores, houve uma preferência por artistas que estão vivos e atuantes, que nunca tivessem participado da Bienal de São Paulo ou de uma das edições do Panorama, conta Dushá. A seleção é marcada por uma considerável amplitude etária. A lista, ressalta o curador, também ajuda a traçar um arco temporal, em que se questiona e observa “aquilo que as pessoas que vieram antes colocaram de base para quem está trabalhando hoje”.
Para Ariana Nuala, “as idades distintas trazem densidades distintas” para o Panorama, de modo que as práticas de nomes como Dona Romana (TO), “uma liderança espiritual que não se considera uma artista”, Mestre Nado (PE) e Ivan Campos (AC), nascidos na década de 1940, estarão em diálogo com a de jovens, a exemplo de Melissa de Oliveira (RJ), Marcus Deusdedit (MG) e Rafaela Kennedy (AM), complementando umas às outras, segundo a curadora.
“Essa bagunça cronológica, que borra fronteiras, interessa-nos muito e tem tudo a ver com com o próprio conceito que a gente está trabalhando, de uma temperatura absoluta que se coloca sobre todo mundo”, argumenta Dushá. “Cada um vai entendendo os modos de responder e se transformar e transmutar a si mesmo a partir dessas condições ambientais que podem ser também poéticas, metafísicas, espirituais”.
Em sua seleção, a equipe curatorial também contemplou artistas que lidassem, do ponto de vista temático ou formal, com fluxos urbanos e a ideia de um Brasil do século 21 “como um produtor de tecnologia, de uma tecnologia que não necessariamente passe por visões eurocêntricas e norte-americanas”. Outra discussão que perpassa o trabalho dos participantes é uma “visão ecológica ampliada”, segundo Dushá.
“Uma perspectiva que diz respeito a uma conectividade total, a um compartilhamento deste ambiente em que a gente comunga, convive. E isso vai além das falsas dicotomias que pautaram o pensamento humano desde o romantismo até a modernidade, a cultura versus a natureza, o homem e o meio, o orgânico e o artificial. É muito mais uma mistura do que coisas separadas”, explica.
Também estão na lista de participantes do Panorama os artistas Adriano Amaral (SP), Advânio Lessa (MG), Ana Clara Tito (RJ), Antonio Tarsis (BA), Davi Pontes (RJ), Frederico Filippi (SP), Gabriel Massan (RJ), Ivan Campos (AC), Jayme Fygura (BA), Jonas Van & Juno B. (CE), Joseca Mokahesi Yanomami (RR), Labō (PA) & Rafaela Kennedy (AM), Laís Amaral (RJ), Lucas Arruda (SP), Marina Woisky (SP), Marlene Costa de Almeida (PB), Melissa de Oliveira (RJ), MEXA (SP), Noara Quintana (SC), Paulo Nimer Pjota (SP), Paulo Pires (MT), Rafael RG (SP), Rop Cateh – Alma pintada em Terra de Encantaria dos Akroá Gamella (MA) – em colaboração com Gê Viana (MA) e Thiago Martins de Melo (MA) –, Sallisa Rosa (GO), Solange Pessoa (MG), Zahy Tentehar (MA) e Zimar (MA).
Exposição 'Bloco do Prazer', no Museu de Arte do Rio (MAR)
A apropriação de um museu pelos moradores da cidade onde ele se encontra é um dos méritos alcançados pela mostra FUNK: Um grito de ousadia e liberdade, em cartaz até 24 de agosto no Museu de Arte do Rio (MAR). Ela foi inaugurada em setembro do ano passado, portanto há dez meses, e a lotação que se via no último dia 23 de julho, de visitação gratuita, surpreendeu até mesmo a equipe do museu: a fila para entrada se estendia para as calçadas e certamente a espera alcançava ao menos uma hora.
Está no DNA do museu a ligação com seu entorno: muitas foram as exposições nestes últimos 11 anos que trataram de temas essencialmente cariocas e o funk, sem dúvida, faz parte dessa linhagem. Não só a temática local, como a própria disposição de obras segue o estilo MAR, o que significa uma verdadeiro avalanche visual no andar que a exposição ocupa. No caso agora são 900 itens em exposição, com obras de arte como eixo principal, mas incluindo roupas, capas de discos e tantos elementos que ajudam a tratar do funk, como as pick-ups e toca-discos para DJ, com direito a participação do público.
Nesse sentido, a mostra, com curadoria da Equipe MAR junto a Taísa Machado e Dom Filó e a consultoria de uma dezena de especialistas, entre eles Deise Tigrona, é um apelo a todos os sentidos, o sonoro especialmente. A primeira sala se dedica ao Soul, movimento de músicas importadas dos anos 1970 e 1980, com ampla repercussão por aqui, influenciando moda e atitude. A foto de Alfredo Rizzuti, com Wilson Simonal recebendo James Brown, em 1973, no aeroporto de Congonhas, é um dos ícones desse momento na mostra.
Já a segunda sala é dedicada aos bailes de favela, que, segundo Marcelo Campos, curador-chefe do MAR, “constitui, talvez, uma das maiores forças de produção artística carioca e nacional”. A exposição inclui obras de artistas contemporâneos, como André Vargas, Gê Vianna, Manuela Navas, Maxwell Alexandre, Emerson Rocha e Bruno Lyfe, entre os cerca de cem brasileiros e estrangeiros presentes.
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Exposição 'Bloco do Prazer", no Museu de Arte do Rio (MAR)
Exposição 'FUNK', no Museu de Arte do Rio (MAR)
Exposição 'Bloco do Prazer", no Museu de Arte do Rio (MAR)
Exposição 'FUNK', no Museu de Arte do Rio (MAR)
A expografia assinada pelo Estúdio Gru.a. é tão instagramável que boa parte dos visitantes se registrava ao longo da exposição, o que acontecia também em outra mostra no museu, Bloco do Prazer, que tem na música seu princípio. Ela é inspirada nos versos de Fausto Nilo e Moraes Moreira para a canção Bloco do Prazer (1982), mas conhecida pela interpretação definitiva de Gal Costa. Com curadoria de Marcelo Campos, Amanda Bonan, Thayná Trindade, Amanda Rezende, Jean Carlos Azuos e do curador convidado Bitú Cassnudé, Bloco do Prazer se debruça sobre festas e celebrações que configuram momentos de alegria, catarse, transe e desejo da cultura brasileira, como as fantasias exageradas de Clóvis Bornay, ícone do carnaval carioca.
Com 350 trabalhos, a mostra tem em Gal Costa uma figura central, incluindo aí o Penetrável da Gal, feito em sua homenagem por Hélio Oiticica em 1970, assim como a faixa Fa-tal, criada por Waly Salomão, Luciano Figueiredo, Óscar Ramos, em 1971, para o espetáculo Fa-Tal: Gal a Todo Vapor, dirigido por Salomão. Além do penetrável, o mural Cariri Delícia, de Charles Lessa, é dos mais disputadas pelo público como cenário de autorretratos.
Com as duas mostras, o MAR segue relacionando cultura e arte de forma visceral, conquistando públicos que não são usuais em museus, e apontando como instituições podem repensar suas funções a partir do diálogo com o contexto.
Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Eduardo Fraipont
Água de feijão preto, terra de diferentes cores e texturas, açafrão, polvilho, bambu, carvão, folha de mangueira, nódoa de banana, erva de passarinho, eucalipto e por aí vai. São estes e vários outros elementos que servem de base para as pinturas e esculturas da artista mineira Josi, que apresenta em São Paulo a exposição arrastar chãos, juntar imbigos, na galeria Mendes Wood DM, até 10 de agosto.
Não se trata, que fique claro, de um simples interesse de Josi por materiais diversos da natureza, ou ainda da pesquisa de uma “curiosa” pelos elementos de ambientes diversos. Nascida no Vale do Jequitinhonha e criada parte da vida em Caeté, até se estabelecer mais recentemente em Belo Horizonte, Josi tem com essas matérias uma relação quase de “entrelaçamento”, como explica a curadora da mostra Galciani Neves. “Para a Josi, é muito coerente com o jeito que ela enxerga o mundo e os pactos da vida que se valesse desses materiais que estão ao alcance da mão, com os quais ela já convivia desde criança.”
Isso fica claro, inclusive, nos próprios termos utilizados pela artista, de 41 anos, para falar de sua trajetória – razoavelmente recente – no meio artístico. “O meu trabalho é um levantamento de fervura recente, mas de uma coisa que vem se adensando há muitos anos. E essa ebulição está muito ligada ao feijão”, conta. Atuante como educadora na rede pública de ensino desde jovem e posteriormente graduada em Letras – na primeira geração com curso superior em sua família –, Josi decidiu estudar arte na Escola Guignard, da UEMG, em 2017. E pouco depois veio a história do feijão, em período no qual estudava pintura com a professora Thereza Portes.
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Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Eduardo Fraipont
Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Eduardo Fraipont
Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Eduardo Fraipont
Um dia, em 2020, quando cozinhava em uma panela de pressão, viu uma espécie de sujeira vazando. Observando aquele líquido de tom azulado, que lentamente mudava para tons mais esverdeados ou arroxeados, percebeu o potencial deste pigmento para suas pinturas. E assim começou uma longa pesquisa que Josi relaciona à ideia de “quarar reverso” – que se tornou, inclusive, título de sua primeira exposição individual, em 2022 na Casa Fiat (Belo Horizonte).
O quarar, verbo que pode soar antiquado – ou é até desconhecido – para muitos, se refere a técnicas para tirar manchas de roupas e panos, em geral ligadas à exposição ao sol. Resumidamente, algo feito para alvejar peças com manchas causadas pelo uso doméstico. Para Josi, acostumada a utilizar deste processo ao longo da vida, a ideia agora, no entanto, é criar aparecimentos, não o contrário. “Então isso me guia para pesquisar pigmento. Tudo que mancha roupa eu vou buscar para trazer para a minha pintura. Então na exposição você vai achar muitos materiais que mancham roupa, como a seiva do umbigo da banana, que impregna, as terras aguadas, que podem ser desde uma aguinha rala até um barro, e assim por diante.”
Adensamento de gente
O fato é que toda a explicação sobre o trabalho com os materiais e pigmentos só ganha sentido por sua conexão direta com os temas e assuntos que surgem nas obras. Seja nas pinturas ou esculturas, corpos e rostos – em geral de pessoas, mas por vezes de outros seres – surgem adensados, marcando presenças e se voltando contra os apagamentos. Mais uma vez, são povoamentos, espécies de “quaramentos reversos”, mas agora de seres. “Quando eu falo muito de processo, dos materiais, é porque essa matéria também puxa muito pra esses temas. (…) Tem ali uma gentaiada né, é muita gente trançada”, brinca ela. “E como a água é muito parceira na minha pintura, pode-se pensar que tem também um aguado de gente. Às vezes da linha de uma pessoa já vem outra.”
Reverter apagamentos, como identifica Galciani, que conviveu com a artista nos últimos anos, também se liga diretamente com a história de vida de Josi, que abrange presenças, mas, também, muitas ausências e desligamentos. “O trabalho dela acontece de uma maneira muito conectada com a história e de sua família, com o lugar onde ela nasceu, onde ela vive, e o lugar onde estão essas pessoas que vieram antes, dessa ancestralidade da qual ela é muita próxima. Isso tudo é muito caro e importante para a Josi.”
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Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Gui Gomes
Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Gui Gomes
Trabalho da artista plástica Josi, na exposição 'arrastar chãos, juntar imbigos'. Foto: Gui Gomes
O corpo – representado nas obras – e o território – matéria prima da produção –, surgem fundidos no trabalho. A suposta separação entre natureza e cultura, comum ao pensamento ocidental, é substituída por uma grande fusão, em uma produção que parte muito mais de associações, conexões e ancestralidades do que de separações e categorizações. “O homem não é destituído da natureza”, destaca Galciani, completando que para Josi nada disso é apenas discurso ou teoria: “Não existe essa cisão, isso está arraigado no trabalho dela. Ela está contando uma história onde o corpo é completamente implicado e engajado no lugar. Tanto que esse lugar vem ‘matericamente’ para o trabalho”.
A segunda individual de Josi, já em uma das maiores galerias do país, mostra que a tal “fervura” de sua produção foi rápida, deixando a artista por vezes até insegura. Mas como ela mesma diz, sua história e suas “movências” são antigas, o que fica claro no próprio título da exposição: é toda uma vida de arrastar chãos, juntar imbigos, ou seja, de trabalhar com as mãos, de observar e atuar no mundo cotidianamente. “Então acho que é um encontro muito bonito entre as dinâmicas do que compõem um trabalho de arte: uma instância política, uma instância ética, uma instância técnica. O trabalho dela conjuga isso na prática, no encontro com o lugar e seus tempos e com as materialidades”, conclui Galciani.
'Negros na piscina' (2014), de Paulo Nazareth. Cortesia: Mendes Wood DM
Lançado discretamente no primeiro semestre deste ano (embora impresso ainda em 2023), o livro Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação (Ed. Fósforo) chegou nadando de braçadas para conquistar o pódio das melhores publicações saídas em 2024 sobre arte e cultura na cena contemporânea brasileira. Organizado pela jovem intelectual – com presença já expressiva no campo da curadoria e dos estudos curatoriais – Diane Lima, o livro traz textos, depoimentos e entrevistas produzidas por um conjunto formado por intelectuais e artistas afrodescendentes, afro-indígenas e indígenas.
Em todo o material ali reunido são apresentados aspectos que, por maneiras diversas, trazem possibilidades para que se entenda e se reflita sobre as transformações ocorridas no campo da arte contemporânea do Brasil nos últimos anos, a partir da emersão de novas gerações de artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as, representantes das camadas populacionais até então com rara representatividade nos ambientes privilegiados dos museus de arte, das muito exclusivas galerias paulistanas e cariocas e das afamadas coleções particulares dessas localidades.
Capa de ‘Negros na piscina’ (Ed. Fósforo), de Diane Lima. Cortesia da editora
Um dos pontos positivos de Negros na piscina é ter sido composto por textos ligados a diversas correntes metodológicas normalmente usadas para as reflexões sobre o fenômeno acima mencionado, o que demonstra uma saudável pluralidade no tratos das questões. Apesar dessa qualidade dos textos ali publicados – todos merecedores de comentários específicos – tratarei aqui de apenas dois desses ensaios, não somente pelo espaço exíguo desta resenha, mas sobretudo pelo impacto que ambos me causaram durante a leitura do livro. Refiro-me a Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação, de Diane Lima e Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, escrito por Amanda Carneiro, curadora.
Creio que, ao comentá-los, delineando seus principais pontos e a qualidade de muitas de suas observações e análises, estarei também chamando a atenção para a qualidade geral da publicação.
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O texto de Diane Lima, que também atua como introdução ao livro, não interessa apenas pelas reflexões fundamentadas, a respeito das mudanças ocorridas na cena artístico-cultural brasileira nas últimas décadas, no plano da absorção, no âmbito do circuito de arte, de agentes não-brancos[1]. Além da pertinência das considerações elaboradas por Diane sobre esse tema, seu ensaio igualmente interessa pela dimensão estética do seu texto que soube conjugar o conteúdo tão significativo a uma forma sofisticada de escrita. É interessante como a autora tece seu texto a partir da interpretação de duas fotografias que, ao impactarem a autora pela contundência imagética de ambas, funcionam como fios com os quais Diane engendrará sua escrita. A primeira é uma fotografia do artista afro-indígena Paulo Nazareth, sem título, de 2014, pertencente a uma série de trabalhos chamada Cadernos de África (iniciada em 2013 e ainda em processo); a segunda, uma foto produzida pelo intelectual e fotógrafo afrodescendente Jônatas Conceição, Por uma educação que interessa aos negros, produzida nos anos 1980, durante protesto ocorrido no Dia Nacional da Consciência Negra, em Salvador.
Diane usará a foto sem título de Paulo Nazareth – em que o artista posa com uma criança no colo e segurando um cartaz manuscrito, onde se lê Negros na piscina, não apenas como título para o livro por ela organizado, mas igualmente como metáfora para suas indagações sobre quais seriam as atuais condições dos artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as que, a partir sobretudo da segunda metade da década passada, começam a ter uma presença mais significativa no campo das artes visuais, após séculos em que raramente foram percebidos/as para além de sua condição de objeto de interesse estético e/ou etnológico. Em um dos momentos mais argutos do ensaio, Lima explicita o quanto o uso metafórico da obra de Nazareth lhe trouxe condições para pensar sobre a situação recentemente alcançada por esses jovens intelectuais e artistas. Assim ela escreve:
Mais uma vez a ironia e o duplo sentido despertam nossa dúvida, interesse e curiosidade de entrar na piscina. Momento em que nos abrimos à possibilidade de imaginar aquilo a que a palavra “piscina”, usada como figura de linguagem, nos convida: a piscina-foto, , a piscina-museu, a piscina-galeria, a piscina-instituição, a piscina-mercado de trabalho, a piscina-festa, a piscina-livro, a piscina-escola, a piscina-faculdade, a piscina-piscina e todas as infinitas possibilidades ou impossibilidades de ser e estar na piscina. Ou seja, todos os contextos, espaços ou situações – algumas vezes possíveis, antes impossíveis, inimagináveis, de algum modo desejáveis, proibitivos ou mesmo ilegais a corpos como o seu e os nossos – que a piscina, como campo da disputa, possibilita[2].
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'Negros na piscina' (Ed. Fósforo), de Diane Lima
'Negros na piscina' (Ed. Fósforo), de Diane Lima
Caracterizada essa nova situação alcançada pelas jovens gerações e artistas e intelectuais não-brancas no Brasil, a autora se posiciona criticamente sobre o que de fato pode significar, ou pode vir a significar, essa entrada nas várias “piscinas”, antes ocupadas apenas por brancos e brancas. Será a partir das possíveis consequências que essa “ultravisibilidade” pode ou poderá trazer para o devir desse contingente de novos/as intelectuais e artistas não-brancos, que a autora encaminhará suas considerações, até alcançar a outra foto mencionada, de Jônatas Conceição. Assim Diane descreve o que a impactou naquela imagem: “Na cena, registrada durante um protesto ocorrido nos anos 1980, em Salvador, duas mulheres negras, cercadas por muitas outras, empunham cartazes que, em meio às muitas palavras de ordem ilegíveis, dizem: ‘Por uma educação que interesse aos negros'”[3].
Para Lima, a imagem de Conceição serve como uma espécie de alerta para, em primeiro lugar, lembrar que a luta de muitas e muitos, no passado, foi crucial para a conquista de certas posições que podem ser usufruídas hoje; em segundo, lembra da necessidade de não se conformar e de desconfiar dos efeitos aparentemente bons que a recente conquista dos espaços institucionalizados trouxe para artistas e intelectuais não-brancas/os. Afinal, mesmo com a vitória, os espaços aparentemente conquistados – as piscinas – continuam pertencentes àqueles a que sempre pertenceram.
É a partir dessa espécie de encruzilhada que as duas imagens fotográficas lhe sugeriram que Diane, então, chamará a atenção para a necessidade de que o debate crítico continue, para que seja possível, efetivamente, realizar no concreto o que propunha a palavra de ordem lida na fotografia de Conceição: “Por uma educação que interesse aos negros” – ampliando, em muito os sentidos da palavra “educação”. E será, portanto, a partir da consciência de todos estarem naquela encruzilhada que a autora, então, esclarecerá os meandros conceituais que guiaram a escolha daqueles e daquelas que foram convidados/as a colaborarem com a publicação.
Nesse momento de reorganização necessária das táticas e das lutas a serem ainda travadas para que a hipervisibilidade alcançada pelos/as não-brancos/as não desague na mera submissão desses/as agentes ao mundo já instituído pelos antigos donos de todas as “piscinas”, é que Diane opta pela pluralidade de pontos de vista para convidar seus colaboradores. O que amplia ainda mais o interesse e importância de O negro na piscina, mostrando que a organizadora agiu bem ao tomar o partido da diversidade.
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Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, ensaio de Amanda Carneiro[4], além da qualidade das considerações e argumentações que apresenta, enquadra-se bem nos propósitos de Diane Lima em trazer para o interior do livro textos que, plurais, confiram novo gás para todas as questões que perpassam os sentidos da metáfora “os negros na piscina” e da palavra de ordem, “Por uma educação que interesse aos negros”.
Em Violentamente pacífica: …, a autora tem como propósito trazer para o setor dos museus de arte a discussão sobre a descolonização desse tipo de instituição, tradicionalmente mais atrelada aos museus de extração etnográfica. Ainda introduzindo seu temário, Amanda ajuda a definir de forma ainda mais explícita aquela encruzilhada percebida por Diane Lima, no texto anterior. Ela afirma:
Há quem associe a descolonização com a inclusão e diversidade, ou seja, com a entrada de grupos historicamente subalternizados nas hierarquias institucionais. Alguns indicam que é necessário ser radicalmente anticolonial e antirracista e se posicionam em favor de um rompimento radical com fundamentos estruturais do mundo da arte, não raro alicerçados na extração colonial de recursos e conhecimentos. Há quem denuncie também a cooptação do termo[5].
Depois dessa sintética caracterização da complexidade geral do debate, a autora traz a questão para o Brasil, afirmando que, apesar de uma tênue melhoria na frequência mais democrática aos museus, esta ainda é uma prática alheia ao interesse da maioria da população brasileira (periférica e trabalhadora). Mas o problema, para a autora, não termina aí. Se como público, as populações não-brancas ainda são raras nas instituições museológicas, essas, por sua vez, continuam sendo geridas por pessoal majoritariamente branco: “Ao olhar para o corpo diretivo e gestor – artístico e executivo, incluindo conselheiros e patronos –, amplia-se o fosso e a disparidade de representação dos diferentes grupos que compõem a sociedade”.[6]
A autora fará alusão ainda à série de saques que potências coloniais fizeram da produção de várias culturas não-brancas, atentando para um dado de muito interesse: o fato de que nos espaços museológicos europeus, essas coleções etnográficas pilhadas são tratadas dentro de uma prática que as tornam equivalentes a obras de arte. Ela declara, fazendo referência ao Humboldt Forum, de Berlim, que, ao receber uma coleção de mais de 70.000 objetos vindos da África, transformou aquela: “a coleção etnográfica com ares de equivalência a obra de arte. É claro que não se deve diminuir o valor artístico de tais objetos, no entanto, não soa coerente camuflar com isso as inúmeras coerções impressas no fluxo que os levaram até a instituição que hoje o abriga[7].
De volta ao cenário brasileiro, Amanda lembrará de algumas iniciativas no campo museológico que se prestaram a atender às demandas dos grupos sociais marginalizados, como negros, (o Museu de Arte Negra, de Abdias Nascimento), os indígenas (o Museu do Índio, de Darcy Ribeiro) e o dedicado a pessoas com distúrbios mentais (o Museu do Inconsciente de Nise da Silveira). Amanda lembra que tais instituições, no entanto:
Enquanto atendiam demandas de movimentos contestatórios, também reproduziam padrões excludentes, seja de maneira benevolente ou autoritária, sobretudo em torno das discriminações e da opressão de gênero e raça, mais em suas estruturas hierárquicas e ocupação de posições de poder do que em sus coleções, embora a primeira esteja contida na segunda.[8]
Face a essa situação complexa em que ações e comportamentos estruturalmente preconceituosos quanto à raça e a gênero imperam mesmo em iniciativas que se propõem atender à quebra dos privilégios nos museus, Carneiro se pergunta como, mesmo assim, descolonizar os museus? Não sendo uma indagação apenas retórica, a autora então começa a encaminhar seu texto para o final, afirmando que não se pode confundir os termos diversidade, pluralidade, multiculturalidade, decolonialidade e descolonização. Para Amanda, eles não são sinônimos e usá-los dessa maneira pode fazer com que, inadvertidamente, se acabe indo ao encontro dos interesses dos donos das piscinas (para reutilizar a metáfora cunhada por Lima).
Segundo Amanda, um museu diverso não será necessariamente decolonial. Para ela, o fato de uma instituição exibir e possuir em seu acervo obras de artistas negros, mulheres, pessoas transgênero e indígenas, não a transformam em uma instituição decolonial. E isto porque, mesmo em museus com esse novo perfil, a autora não percebe nenhuma mudança estrutural nos cânones que regem a hierarquização por trás das escolhas nas compras e nas exibições. Toda a diversidade das obras é submetida a valores apenas eurocêntricos que ainda direcionam as políticas da maioria dos museus.
Para agravar ainda mais a situação, todas essas instituições, mesmo as que buscam uma maior diversidade, estão mergulhadas naquilo que o intelectual peruano Aníbal Quijano, no final do século passado, definiu como “colonialidade”. Será, então, apenas nesse momento que Amanda explicitará o que entende pelos termos “colonialidade’, “descolonizar’, antes apenas sugeridos. Para tanto, afirma que, do ponto de vista de Quijano:
[…] se o conhecimento estiver sob influência da colonialidade, é fundamental a empreitada de descolonizá-lo. Mesmo após o término dos períodos coloniais em territórios anteriormente subjugados, a colonialidade perdura de diversas maneiras ao longo do tempo e no espaço. Seguindo essa linha de raciocínio, é necessário reconhecer que a colonialidade continua a se manifestar, inclusive na esfera cultural, onde sua detecção e superação podem ser mais complexas.
E finaliza sua definição do conceito de Quijano, afirmando: “Com frequência, essa noção de colonialidade conflui com outras tradições críticas que têm genealogias e interesses distintos, como os estudos subalternos e os estudos pós-coloniais”.[9]
Como fazer para romper com essa condição perene, de certa forma, também estrutural do processo da colonialidade? Esta é, no fundo, a maior e mais interessante questão que Amanda Carneiro enfrenta em seu ensaio, mas é claro que não vou relatar aqui o que a autora propõe para superar esse impasse, ou mesmo se ela proporá qualquer possibilidade de superação. Que o leitor/a tenha o interesse de saber como a intelectual conclui seu ensaio, como me referi antes, um dos mais interessantes presentes em O negro na piscina.
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Com outras contribuições assinadas por Jaider Esbell, Daniel Lima, Rosana Paulino e Claudinei Roberto da Silva, entre outros e outras, O negro na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação chega na frente e logo se institui como uma contribuição fundamental para a crítica e para a história da arte no país – o primeiro trabalho coletivo de fôlego, ao que me consta, que, em forma de livro, chega para peitar de frente a emersão desses intelectuais e críticos não-brancos e todos os desafios que eles trazem e instauram em pleno centro do poder da arte contemporânea no Brasil.
Que os grandes temas levantados e discutidos nas páginas do livro alcancem outros cantos e façam proliferar novos debates que ajudem a desanuviar as sombras e meios-tons que pairam sobre a prática da arte e da crítica no país. Impossível ler O negro na piscina e não reparar que é mais do que necessário explicitar a contradição em continuar pensando a produção artística brasileira apenas como continuidade dos valores artísticos e estéticos importados (ou “herdados”, como querem alguns e algumas) da Europa e/ou dos Estados Unidos.
Em que pese que grande parte das questões levantadas em O negro na piscina também surgiu da importação de temas originariamente levantados nos Estados Unidos, parece não restar dúvida de que eles, devidamente deglutidos por nossa circunstância, podem vir a fornecer subsídios importantes para que o debate aqui ganhe outros e mais interessantes contornos.
[1] – Essas mudanças, é preciso não se esquecer, têm suas origens mais remotas no início deste século, período da aprovação de leis que – consequências concretas da luta dos movimentos negros organizados –, criaram condições para as mudanças ocorridas na vida das comunidades não-brancas do país.
[2][2] – LIMA, Diane. “Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação” In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 16.
[4] – CARNEIRO, Amanda. “Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional”. In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 51.