Com o título Mil graus, expressão coloquial que sugere a ideia de intensidade, o 38º Panorama da Arte Brasileira explora experimentações artísticas “marcadas pelo calor” e que têm a transmutação como destino “inevitável”. Para Thiago de Paula Souza, integrante do trio curatorial junto a Germano Dushá e Ariana Nuala, trata-se de uma “noção curatorial ampla”.
“Olhamos para as dimensões espirituais e ecológicas da prática artística, pro tesão e pro erotismo dos fluxos de corpos, pela cidades, sejam eles sejam eles humanos ou não, e por último como tecnologia tem contribuído para a criação de imaginários políticos e sociais”, diz. “A partir daí, depois de meses de pesquisas, traçamos uma lista de pessoas que acreditamos trabalharem na intersecção dessas ideias.”
Realizado desde 1969 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, o 38º Panorama acontece até 26 de janeiro de 2025, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Devido às obras de reforma da marquise do Parque Ibirapuera, a exposição não pode ser abrigada pelo MAM, como de praxe.
Ao fazer a seleção de 34 artistas, Dushá, Nuala e Souza buscaram evitar o que consideram uma armadilha colocada pela palavra panorama, uma impossível perspectiva totalizante da produção artística nacional.
“A gente tem uma amplitude geracional enorme, com artistas de 16 estados, vivendo em contextos diferentes, desenvolvendo práticas e pesquisas bem distintas. Mesmo assim, a gente sabe que se trata de um retrato provisório, tirado pela nossa visão”, pondera Dushá. “É algo muito pequeno perto da dimensão de um país continental, tão complexo, com infinitas culturas, que a gente chama de Brasil”.
Dushá afirma também que, à medida que as ideias em torno da curadoria foram se consolidando, vieram à tona nomes cujas práticas não necessariamente são vistas como artísticas, como a Tropa do Gurilouko (RJ), grupo que veste os trajes do Bate-bola (ou Clóvis), um personagem clássico do carnaval do Rio, “que sintetiza um pouco um viés importante dessa energia que a gente tá falando”, afirma.
“Foi uma decisão insólita e heterodoxa convidar um grupo que venha para cá com um pensamento contemporâneo e não naquela chave de uma exposição sociológica, etnográfica, que queira fazer um mapeamento mais frio”.

obras: s/T I e II , série Como um zumbido
estrelar, 2024 (Ver galeria abaixo).
Apresento duas obras, parte de uma mesma série, Como um zumbido estrelar, um pássaro no fundo do ouvido. Com esse título estou falando sobre comunicações ancestrais entre pessoas que estão nesse plano e as que já partiram. É uma homenagem ao meu pai, que faleceu de covid. Falo desse zumbido estrelar e de um pássaro no fundo do ouvido pensando em alguns insights que tenho ao pintar. Como se fossem um conselho, um direcionamento, algumas confirmações que tenho quando coloco em meu trabalho a relação entre vida e morte, uma relação de transformação. Eu materializo coisas no meu trabalho que estão muito além da matéria. Entendo que natureza e ser humano não estão separados. Logo, vida e morte tampouco estão separadas. Acredito num grande ciclo, numa grande transformação dessas formas de vida.

obra: s/T, 2023 (Ver galeria abaixo)
Quando me abordaram com a proposta de Mil Graus, eu, de cara, quis fazer algo que tinha feito antes, uma instalação, que tem uma vida individual, mas que ali se apresenta numa vida coletiva. E trabalhar com materiais com os quais eu já lidava, como materiais de construção civil, de canteiros de obra e demolições, e fotografia. Mil Graus me remete à ideia de um estado extremo, de transformação da matéria, que o calor gera. Isso se relaciona de forma direta com a minha pesquisa. Meus trabalhos remetem a algo que já foi e, ao mesmo tempo, parecem uma coisa ainda em construção. Há também uma relação profunda com a imagem, com a fotografia, aplicada sobre o concreto e outros materiais de construção. Então, o que acontece é um derretimento da imagem, na geração daquelas formas.

A produção dos artistas plásticos baianos Rebeca Carapiá e José Adário dos Santos também seria exemplar do recorte proposto pelos curadores. Ariana lembra que ambos trabalham a materialidade do ferro em suas criações, mas suas obras têm pontos de partida distintos. Adário lança mão de ferragens para fazer “assentamentos” de orixás, ou seja, a consagração de objetos como representações das divindades do candomblé; ao passo que Rebeca se relaciona com o material por meio da metalurgia. “O ferro mostra a esses artistas os caminhos que eles podem seguir, algo que contradiz a ideia de que os materiais não têm agência”, argumenta Ariana. “São poéticas numa contramão, mas que se encontram”.
Há também artistas que lidam com a terra ou “com a magia que vem da terra, do solo, do barro”, nas palavras de Dushá, a exemplo da veterana Maria Lira Marques (MG), que desenvolve um “trabalho muito fresco, novo, que só recentemente tem ganhado a projeção e a relevância devidas”, e também a produção de artistas jovens, que trabalham uma “dupla dimensão da terra, a magia, a imaginação e todas as evocações que podem vir daí”, diz o curador.
Do ponto de vista menos conceitual e mais formal, contam os curadores, houve uma preferência por artistas que estão vivos e atuantes, que nunca tivessem participado da Bienal de São Paulo ou de uma das edições do Panorama, conta Dushá. A seleção é marcada por uma considerável amplitude etária. A lista, ressalta o curador, também ajuda a traçar um arco temporal, em que se questiona e observa “aquilo que as pessoas que vieram antes colocaram de base para quem está trabalhando hoje”.
Para Ariana Nuala, “as idades distintas trazem densidades distintas” para o Panorama, de modo que as práticas de nomes como Dona Romana (TO), “uma liderança espiritual que não se considera uma artista”, Mestre Nado (PE) e Ivan Campos (AC), nascidos na década de 1940, estarão em diálogo com a de jovens, a exemplo de Melissa de Oliveira (RJ), Marcus Deusdedit (MG) e Rafaela Kennedy (AM), complementando umas às outras, segundo a curadora.
“Essa bagunça cronológica, que borra fronteiras, interessa-nos muito e tem tudo a ver com com o próprio conceito que a gente está trabalhando, de uma temperatura absoluta que se coloca sobre todo mundo”, argumenta Dushá. “Cada um vai entendendo os modos de responder e se transformar e transmutar a si mesmo a partir dessas condições ambientais que podem ser também poéticas, metafísicas, espirituais”.
Em sua seleção, a equipe curatorial também contemplou artistas que lidassem, do ponto de vista temático ou formal, com fluxos urbanos e a ideia de um Brasil do século 21 “como um produtor de tecnologia, de uma tecnologia que não necessariamente passe por visões eurocêntricas e norte-americanas”.
Outra discussão que perpassa o trabalho dos participantes é uma “visão ecológica ampliada”, segundo Dushá. “Uma perspectiva que diz respeito a uma conectividade total, a um compartilhamento deste ambiente em que a gente comunga, convive. E isso vai além das falsas dicotomias que pautaram o pensamento humano desde o romantismo até a modernidade, a cultura versus a natureza, o homem e o meio, o orgânico e o artificial. É muito mais uma mistura do que coisas separadas”, explica. ✱