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A escultura de Victor Brecheret: entre tradição e contemporaneidade

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"A índia escondida por um grande peixe", 1947-1948, de Brecheret, pedra rolada pelo mar. Foto: Reprodução

Às vésperas das comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, é importante refletir sobre a figura do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955), profissional cuja obra aguarda reavaliações. Este texto atenta para o fato de que sua produção, de início, se estabeleceu entre as franjas da tradição e da modernidade e, já no final da vida, entre a modernidade e o contemporâneo.

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Nathalie Heinich, socióloga francesa especializada em arte, no livro El paradigma del arte contemporâneo. Estrucuturas de uma revolución artística [1], afirma que a arte tradicional, ou “clássica”, seria “uma representação figurativa ajustada aos cânones herdados da tradição”. Já a arte moderna, “a expressão da interioridade do artista, às custas da transgressão dos cânones clássicos e, portanto, a favor de um valor aprioristicamente dado à personalização, à inovação, à originalidade”. Por último, Heinich define a arte contemporânea como sendo aquela produção engajada na “transgressão dos critérios que delimitam aquela noção”, ou seja, a noção de arte moderna antes formulada[2].

Apesar do esquematismo das definições[3], elas proporcionam uma entrada para as questões que pretendo discutir. É certo, no entanto, que elas precisam de complementações e eu me encarregarei de realizá-las.

Quando nos referimos à arte tradicional, (ou à arte “clássica”, como prefere Heinich), falamos sobre a tradição da arte europeia que iria, grosso modo, de meados do século 14 até o final do século 19. Durante esses séculos, ali se desenvolveu um conceito de arte como uma espécie de duplo do real, pautado em prescritivas nas quais qualquer transformação somente era aceita enquanto acréscimo e nunca como ruptura[4]. A arte, então, assumiu uma função de exemplaridade e, pautada sobretudo na representação da figura humana – mais ou menos idealizada, (dependendo da época) –, seu papel era acionar no espectador certos sentimentos e reflexões que transcendessem sua própria materialidade. A arte era assim instrumentalizada para transmitir ensinamentos religiosos, morais, éticos e, para tanto, era comum que o artista lançasse mão de elementos retóricos para enfatizar suas proposições, dentre eles a alegoria. Nesse contexto não eram incomuns obras que, apresentando ao público representações humanas idealizadas, buscassem traduzir conceitos abstratos, tais como amor, ódio, justiça e outros assuntos.

Teria sido contra esses códigos estabelecidos pela tradição que a arte moderna se insurgiu, estabelecendo novos paradigmas.

Se até então a obra de arte era produzida a partir da manutenção/disseminação de valores e práticas previamente estipuladas – e que deveriam, por certo, transcender suas respectivas materialidades para provocar no espectador sentimentos também previamente estipulados –, a partir do século 19 essa situação começou a mudar: contra as prescritivas mais estritas, contra as normas que impediam, em última análise, a própria manifestação da individualidade do produtor, começa a ganhar força, como novos elementos para valoração da obra de arte, a fuga a qualquer ordenação prévia, a ênfase à originalidade, a negação de qualquer impessoalidade para que a obra de arte passasse a se tornar uma manifestação da interioridade do artista.

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Até aqui estive circunscrito às definições de Heinich sobre “arte clássica” e “arte moderna”. Porém, um elemento que a autora exclui de sua definição de “arte moderna”, mas que também servirá ao seu surgimento, é a ênfase que vários artistas começaram a conferir à materialidade da obra e à exploração de seus elementos constitutivos; ou seja, dos elementos intrínsecos a cada linguagem artística. Em texto dos anos 1960, o crítico norte-americano Clement Greenberg sintetizou esse processo ao afirmar que, se até o início da modernidade a arte usara de artifícios (ou da arte) para esconder a sua materialidade, a partir de então os artistas empenham-se em deixar evidente em cada trabalho a matéria da qual o mesmo era constituído e os elementos que estruturavam cada uma delas[5].

Nesta nova situação em que a obra de arte não mais seria vista como representação do mundo real ou ideal, mas como uma nova realidade, é que se entende um dado importante e que também ajudou a forjar o conceito de arte moderna: o suposto banimento, na constituição da obra, de qualquer alusão a algo que estivesse fora de sua realidade concreta. Daí a proscrição dos elementos tradicionais da retórica, dentre eles, a alegoria[6].

No entanto, como veremos, tal exclusão não foi absoluta. Mas, é importante sublinhar que essa postura mais radical foi se tornando hegemônica, não propriamente nas produções dos artistas, mas nas interpretações de críticos, espalhados pelo mundo (inclusive no Brasil), que retiravam da corrente principal da arte moderna os artistas que continuaram lidando com questões outras, que não apenas as especificidades de suas respectivas linguagens.

É claro, portanto, que a narrativa criada por esses estudiosos concentrou seu interesse nas questões específicas da arte, deixando de lado outros problemas que também tiveram seu papel na passagem da arte tradicional para a arte moderna e que relativizam parte das diferenças entre as duas.

Dentro dessa situação, pontuaria um fenômeno que até o presente não foi encarado pelos estudiosos: a passagem da arte tradicional para a arte moderna não se estabeleceu de maneira abrupta, como querem nos fazer crer os textos canônicos sobre arte moderna. Houve um razoável período de entranhamento entre modernidade e tradição, em que valores desta tentavam se impor aos valores daquela, estabelecendo uma produção híbrida e, diga-se de passagem, interessante sob vários aspectos. Se no âmbito da escultura francesa, por exemplo, as experiências de Rodin e Maioll podem ser relembradas como casos exemplares, no Brasil a produção de Victor Brecheret me parece emblemática.

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“Ídolo”, c.1919, Victor Brecheret, bronze, 20 x 46 x 16 cm. Foto: Reprodução

Ídolo, Cabeça de mulher e as duas versões de Soror dolorosa (em mármore e em bronze) – todas as quatro produzidas por volta de 1919 – nos apresentam Brecheret recém-chegado de seu primeiro estágio europeu, período de seis anos que passou em Roma no ateliê do escultor italiano Arturo Dazzi.

Se a “presença” de Dazzi é perceptível no domínio da forma, é nítido, porém, que já naquele período Brecheret buscava outros parâmetros: enquanto estuda com Dazzi, ele se mostra atento às produções dos também italianos Adolpho Wildt e Arturo Martini, mas são sobretudo as produções de Ivan Mestrovic, escultor croata com penetração na cena internacional, aquelas que mais aguçam seu talento. De fato, Mestrovic parece ter sido a principal referência tomada por Brecheret nesse seu estágio romano e na curta temporada que passaria no Brasil (1920/21), antes de transferir-se para Paris.

Ídolo ainda testemunha a formação primeira do artista: nela persiste a sujeição à anatomia observada na escultura tradicional com forte presença na Itália, embora nela já se perceba– sobretudo na torsão do corpo e nos sulcos produzidos pela ênfase nos detalhes – certa sofreguidão no intuito de fugir às convenções então mais aceitas. Em Cabeça de mulher, por outro lado, tal ansiedade se materializa de maneira plena, na medida em que Brecheret – mais atento a Mestrovic do que a Dazzi – submete a obediência às convenções da anatomia artística à deformação da figura, agigantando-lhe o pescoço e transformando os planos em áreas repletas de sulcos, lugares onde as sombras formam linhas veementes.

Já nas duas versões de Soror dolorosa, constata-se, a exemplo da produção de Mestrovic, um pendor a uma figuração arcaizante, como uma espécie de repúdio ao realismo verista ainda tão presente na escultura centro-europeia de então, assim como a um gosto de derivação neoclássica, também ainda hegemônica naquele período. Nesse momento, as referências para o jovem Brecheret – sobretudo em Soror dolorosa – é a escultura pré-renascentista, eivada, no entanto, por um vigoroso pathos expressivo. Tais referências buscam recuperar/recriar com dramaticidade aquela tradição tão antiga, enfatizando, por um lado, o rigor hierático das formas, e, por outro, tensionando as superfícies onduladas, concluídas em linhas de sombras profundas, indecisas entre o ornamental e o obsessivo.

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Se as esculturas do segmento precedente possuem como característica uma espécie de frêmito interior que tende a ondear os planos, a sulcá-los de sombras trágicas, Virgem e o menino, explicita mudanças sensíveis na maneira como o artista passava a se posicionar frente ao fazer escultórico. Longe da dramaticidade de antes, nessa peça percebe-se o escultor encontrando uma maneira de substituir a teatralidade que caracterizava sua produção anterior por um hieratismo despido de qualquer dramaticidade. Pelo contrário: ali os planos se abrem serenos à luz e os volumes são concatenados uns aos outros por delicados sulcos na matéria, linhas sutis que demarcam as fronteiras entre as formas anatômicas e os limites entre os corpos. Mesmo a sugestão do panejamento, dos dedos dos pés e das mãos, e do ondular dos cabelos da figura principal, sujeitam-se ao ritmo manso de uma ordem que aspira ao atemporal, sempre em busca daquilo que, para o pensador alemão Johann Joachin Winckelmann, distinguia a arte grega: “[…] uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão […]”[7].

Victor Brecheret, “Virgem e o menino”, década de 1920, bronze, 75 x 15 x 15 cm. Foto: Reprodução

Porém, se em sua fase “arcaica” Brecheret investia na dimensão planar de sua escultura – quase que totalmente “em relevo” –, a partir dos anos 1920 tal característica passa por uma sutil, mas poderosa transformação, ao agregar àquele caráter uma volumetria elíptica, manifestando-se por meio de módulos[8].

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A pesquisadora Daisy Peccinini, tratando do estágio francês de Brecheret[9], atenta que, em 1924, em férias na fronteira entre a França e a Suíça, o artista se interessará pelas formas naturais encontradas naquelas paragens, sobretudo:

“… pelas formas dos seixos rolados, erodidos pela força das águas há milhares de anos. Para um artista que tinha forte inclinação a fazer apologia da natureza, foi um período decisivo na evolução de sua plástica, em direção às formas puras, orgânicas e naturais que vai explorar, uma vez no Brasil, na fase das “pedras” e da arte indígena, a partir de meados da década de 1940…”[10].

Como atesta a estudiosa, o interesse de Brecheret por aquelas formas ganhará papel preponderante na sua última produção. No entanto, já nos anos 1920 nota-se que aquelas formas oblongas que elas tornam visíveis, traduzidas para o mármore ou para o bronze. São essas formas – que ele pode ter percebido na natureza a partir de sugestões captadas na obra do escultor romeno Constantin Brancusi -, que caracterizam parte de sua escultura, entre meados daquela década e a seguinte. Virgem e o menino, já comentada, assim como Diana caçadora (dec.1920) e O beijo, 1932, exemplificam o interesse de Brecheret por essas formas que remetem a pedras roladas dos leitos dos rios e dos mares.

Por outro lado, a atenção que a obra de Brancusi despertou em Brecheret não parece ter se estancado no fascínio pela forma oblonga, mas, indo mais além, ela se desenvolveu também por meio da analogia que o brasileiro estabeleceu entre aquela forma – quando trabalhada em modelos encadeados –, e a configuração do corpo humano.  Essa espécie de ponte que Brecheret estabelece entre módulos elipticos concatenados e o corpo humano pode ser inferida em diversas de suas obras do período, entre elas a já comentada Virgem e o menino, e na parte superior de Portadora de perfume, 1924, pertencente ao acervo da Pinacoteca do Estado.

Quando, a partir de meados dos anos 1930, o artista se estabelece em definitivo no Brasil, nota-se que, paulatinamente, os elementos que caracterizavam a escultura por ele produzida nos anos 1920 se aprimoram ainda mais, logo no início daquela década para, na sequência, e aos poucos, irem sendo substituídos por outras demandas e outras soluções formais.

Se os anos 1930 terminam com Brecheret revisando a grande tradição da escultura ocidental a partir dos exemplos mais recentes de Bourdelle, Maioll e outros – e Torso feminino, de 1939, é um exemplo desse esforço –, a década seguinte aos poucos imprimirá novas orientações em sua trajetória que revelarão uma originalidade até então inaudita no ambiente do tridimensional do Brasil.

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Está certa Peccinini ao enfatizar os anos 1940 como o período em que Brecheret passará a explorar as pedras roladas, e isso por uma questão crucial: tal ação não se dará mais por meio de uma abstração em que, como nos anos 1920/30, o escultor traduzia a forma original daquelas pedras para o mármore ou o bronze, transformando-a em corpos de deusas, ninfas ou santas.  A operação por ele realizada a partir dos anos 1940 é de uma radicalidade ímpar no campo da arte moderna no Brasil: ao invés de representar em materiais preciosos a nobre simplicidade e a serena grandeza das pedras roladas, o artista agora delas se apropria, indo busca-las na natureza para nelas interferir.

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A historiografia artística brasileira ainda não se dedicou à reflexão sobre o significado dessa atitude de Brecheret, ação de alta radicalidade, mesmo se tomarmos como base não apenas a cena brasileira de meados dos anos 1940, mas também o ambiente artístico internacional do período. Afinal, como situar essa atitude do artista? O que pode ter possibilitado a ele, se não abandonar o mármore e o bronze, pelo menos acoplar a esses meios expressivos devidamente reconhecidos, a apropriação de pedras roladas, transformando-as também em meios de expressão? Por que ainda não foi dada a devida atenção ao fato de um artista como Brecheret ter colocado no mesmo patamar de sua produção já devidamente institucionalizada, um objeto tão comezinho – e, portanto, tão estranho à “grande arte” –, como as pedras roladas?

A partir da apropriação dessas pedras, desses objetos que não mais traduzem, mas que são a própria forma criada por milênios pela natureza, Brecheret irá nelas intervir a partir de incisões que podem apenas desvelar desenhos sugeridos pelo tempo na própria matéria (A índia escondida por um grande peixe, 1947-48), ou então, mesclando a esses estímulos já existentes a incisões voluntariosas, criar obras como A luta da onça com o tamanduá, 1947-48.

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A obra de Brecheret foi forjada no âmbito da modernidade do século 20, mas sempre entre franjas; primeiro em muito se confundindo com a tradição; e já no final da vida apontando para uma compreensão contemporânea da arte. Talvez tenha sido justamente se movimentar dentro dessas fronteiras difusas o que lhe permitiu produzir em concomitância obras devedoras da tradição europeia, em suas formulações mais discutíveis, em paralelo a outras peças em que se nota concepções que colocam o interesse sobre Brecheret em outro patamar.

Justamente por essa variedade na produção do escultor, com procedimentos e concepções vindos de diversas tradições, é que ele vem sendo colocado, por parte da crítica especializada, como um artista menor, um “eclético”. Como se essa característica, vista de forma negativa, fosse encontrada apenas nele.

Não só no Brasil, mas em toda cena internacional, é possível encontrar exemplos de artistas que desenvolveram concomitantemente suas respectivas obras em diversas direções. E mesmo que seus biógrafos ou especialistas “editem” esse suposto ecletismo na hora da produção de uma retrospectiva ou publicação, isso não faz com que ele desapareça e mantenha sua importância para a compreensão da obra como um todo. Como é o caso da obra de Brecheret.

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[1] – HEINICH, Nathalie. El paradigma del arte contemporâneo. Estrucuturas de uma revolución artística.Madrid: Casimiro Libros, 2017.
[2] – Idem, págs. 54/55.
[3] – No decorrer do livro, a autora irá matizar essas definições.
[4] – Para uma introdução a esta questão, consultar: GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano. O paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Fundamental também é a leitura do Prefácio desta obra, realizado por João Adolfo Jansen.
[5] – “Pintura Modernista”, de Clement Greenberg. IN FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 101,
[6] – Para uma introdução ao assunto, ler, de Craig Owens, “The allegorical impulse: toward a theory of postmodernism”, IN WALLIS, Brian (ed.). Art After Modernism: rethinking representation. New York/The New Museum of Contemporary Arte; Boston, David R. Godine, Publisher, Inc.
[7] – WINCKELMANN, J.J. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Editora Movimento/Un. Fed. Rio Grande do Sul, 1975, pág. 53.
[8] – Embora este não seja o espaço apropriado para análises sobre as estruturas do pensamento plástico de Victor Brecheret, registro aqui que, se durante os anos 1910, o artista trabalhou o objeto escultórico sempre confinado entre dois planos – dentro de padrões teorizados pelo escultor e teórico alemão Adolf Von Hildebrand –, parece que durante os anos 1920, ao lado da continuidade desse modelo, Brecheret, em várias de suas produções,  colocará um cilindro entre esses dois planos. Ou seja, em muitas de suas obras será perceptível o objeto escultórico surgir de um cilindro fechado entre dois planos. Tal cilindro normalmente será seccionado em algumas partes pelo artista para criar a sucessão de volumes ovoides.
[9] – O “estágio francês de Brecheret” ocorre entre os 1921 e 1932, período em que o artista viverá em Paris com eventuais visitas a São Paulo.
[10] – PECCININI, Daisy. Op. cit. Pág. 67/68. Em nota (pág.68), a autora cita um depoimento do escultor ao jornalista Luis Martins, de 1939, em que ele afirma ter levado para Paris alguns exemplares de pedras encontradas em suas férias. Mais à frente, no mesmo texto, Peccinini voltará a salientar o interesse de Brecheret por pedras e rochedos, relatando – segundo depoimento de Simone Bordat (então companheira do escultor) – as viagens que o artista e amigos faziam para o litoral da Córsega e da Bretanha, locais em que o escultor também se dedicava a admirar as formações rochosas das regiões (op. cit. pág 115 e seg.).

Onde encontrar a brasilidade depois dos modernos?

Atualizações Traumáticas de Debret, 2019-2021, Ge Viana
"Atualizações Traumáticas de Debret, 2019-2021", Gê Viana. Cortesia CCBB.

Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro até dia 22 de novembro e a caminho da unidade paulistana (de 15 de dezembro até 7 de março de 2022), a exposição Brasilidade Pós-Modernismo não foi pensada para ter um olhar histórico, mas sim focado na atualidade. Com 51 obras produzidas da década de 1960 até os dias de hoje, há também algumas inéditas, ou seja, já produzidas com uma maturidade e um distanciamento histórico dos primórdios da modernidade brasileira, como comenta a curadora da mostra coletiva, Tereza de Arruda. Para ela, a brasilidade de que se fala no título se mostra diversificada e miscigenada, regional e cosmopolita, popular e erudita, folclórica e urbana. “Temos aqui uma produção de pintura, fotografia, desenho, escultura, instalação, novas mídias, entre outras, como defensoras da diversidade artística nacional através da abrangência de meios e linguagens”.

O processo de pesquisa e as tratativas com os artistas começaram ainda em 2018. Algumas obras presentes na mostra foram emprestadas de coleções privadas, outras vieram diretamente do ateliê dos criadores. “No processo de elaboração da mostra, houve uma troca intensa com os artistas participantes e, a partir daí, muitos realizaram obras especialmente para Brasilidade Pós-Modernismo, como é o caso de Agarrados ao Poder, de Luiz Hermano, Série Biomas, de Armarinhos Teixeira, Índias Ocidentais, de Luzia Simons, Terra tão só, de Marlene Almeida, A visita aos ancestrais, de Jaider Esbell – falecido recentemente -, assim como a instalação suspensa de Francisco de Almeida”, conta Tereza.

Tal produção diversa é espalhada por seis núcleos temáticos que obedecem à ordem do percurso: Liberdade, Identidade, Natureza, Futuro, Estética e Poesia. A organização, desse modo, procura convidar o visitante a uma imersão: “Pensamos com a equipe em uma certa dramaturgia, composta por elementos como cor e luz específicos como parte da expografia a demarcar os temas abordados”, explica Tereza. A exemplo disso, nos núcleos dedicados à Liberdade e Identidade as obras estão inseridas em um ambiente mais fechado de luz para um convite introspectivo. “A luz vai se abrindo gradativamente durante o percurso, sendo que nos deparamos nos núcleos da Estética e Poesia com um ambiente claro a enaltecer a vitalidade ali exposta”, complementa a curadora.

"Voluta e Cercadura", 2013, Adriana Varejão. Foto: Jaime Acioli.
“Voluta e Cercadura”, 2013, Adriana Varejão. Foto: Jaime Acioli.

Do primeiro eixo, a liberdade vem em nome da descolonialidade, mas também da resistência à modernidade forçada. Nesse contexto, há várias obras na mostra a serem citadas. Tereza destaca a colagem Atualizações traumáticas de Debret (2019-2021), por Gê Viana, onde um drone aparece na mira de um arco indígena; Azulejão (Neoconcreto), de Adriana Varejão, que mostra o legado colonial europeu desgastado, “repleto de craquelês a desfazer e desmistificar o seu poder estético e sócio-cultural”; a série A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical, de Rosana Paulino, que segundo a curadora também alerta para o potencial de características de brasilidade a sobrepor preceitos eurocentristas; e por fim, as obras Rolo com disco amarelo e Brasil 1500-1996, de Anna Bella Geiger, que aludem à defesa e reconhecimento territorial – este último, aliás, um dos motes do modernismo brasileiro. Como explica a crítica de arte e historiadora Aracy Amaral, “no Brasil, internacionalismo e nacionalismo foram simultaneamente as características básicas do movimento modernista ocorrido nas letras e artes a partir de meados da segunda década do século passado”.

"Brasil, 1500-1996", Anna Bella Geiger. Cortesia CCBB.
“Brasil, 1500-1996”, Anna Bella Geiger. Cortesia CCBB.

Segundo a historiadora, o nacionalismo viria como decorrência de “uma ânsia de afirmação a partir da implantação da República (1889), estando daí em diante implícito o desejo de rompimento da intelectualidade com o século 19 e o academismo nas artes visuais”. Com isso, visava assumir nossa realidade física e cultural, até então menosprezadas pela elite, que se identificava com a Europa.

"Copa do Mundo, O futebol" (1974), Glauco Rodrigues. Cortesia CCBB.
“Copa do Mundo, O futebol” (1974), Glauco Rodrigues. Cortesia CCBB.

Em direção a essa questão, em Brasilidade Pós-Modernismo, Identidade é um dos núcleos mais interessantes da mostra, refletindo justamente sobre a ideia de uma identificação nacional e em que momento ela deságua nas nossas vidas particulares, ou se sobrepõe, e ainda que elementos fariam parte dessa pretensa imagem única. Para Tereza, o centenário da Semana de Arte Moderna propicia um momento oportuno acerca de debates dessa natureza. “A cada época novas respostas às reinventadas perguntas. Esta é uma oportunidade para o público reparar. Repare: olhe, observe, note! Estamos reparando: revendo, restaurando, renovando!”, afirma ao apontar, também, a necessidade de uma discussão inovadora, que atenda à demanda do nosso tempo.

A ocasião para revisitar a Semana de 22 e reavaliá-la criticamente não deve passar despercebida. Como lembram a pesquisadora Christina Queiroz e a professora da FFLCH-USP Maria Arminda do Nascimento Arruda, as revisitações críticas ao modernismo ganharam corpo somente a partir dos anos 1990. Até a década anterior, principalmente no cenário acadêmico paulistano, o movimento foi tratado como se estivesse acima de qualquer análise. Isso aconteceu, em parte, por conta do envolvimento de figuras ligadas ao cenário cultural modernista com a criação da USP. Desse modo, é preciso ressaltar a importância de estudar o modernismo através do país e não considerá-lo como uma repercussão do que acontecia em São Paulo.

Outro ponto a ser revisitado é a questão do protagonismo. Segundo Tereza, os artistas modernistas tentaram uma aproximação com “o outro” – o representante do regionalismo brasileiro. “Hoje vemos esta postura em partes como uma apropriação de um legado do outro. Foi necessário um centenário e um longo processo de reconhecimento, conscientização, assimilação e integração para chegarmos à essência da arte contemporânea brasileira apresentada em Brasilidade Pós-Modernismo, com artistas representantes de diversas etnias, gerações e procedências geográficas”, reflete.

Por hora, a mostra continua no CCBB Rio de Janeiro, que lançou recentemente um tour virtual por Brasilidade Pós-Modernismo. Confira aqui.

Leia também: Ampliação do debate sobre o modernismo brasileiro pauta mostras em grandes instituições, destacando o papel das artes decorativas e aplicadas e a produção de nomes como John Graz e os irmãos Gomide. Confira aqui.

Mostra no MAM-SP explicita caráter abrangente e multifacetado da arte moderna nacional

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"Mulata", 1927, Alfredo Volpi. Foto: Romulo Fialdini/ Divulgação

*Por Maria Hirszman e Patricia Rousseaux

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“Mulata”, 1927, Alfredo Volpi. Foto: Romulo Fialdini/ Divulgação

Alçada a símbolo maior da modernidade no País, a Semana de Arte Moderna – realizada no Carnaval de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo – foi apenas o lado mais barulhento de um processo amplo e descontínuo de ruptura com os modelos culturais vigentes no século 19 e de desenvolvimento de uma forma inovadora de pensar a cultura e a arte no Brasil. Com o intuito de explicitar esse caráter abrangente e multifacetado do desenvolvimento da arte moderna nacional, a exposição Moderno onde? Moderno quando?em cartaz até 12 de dezembro – reúne um conjunto diverso de obras produzidas nas primeiras décadas do século 20 em diferentes regiões do país.

Com obras de mais de 30 artistas, produzidas entre 1900 e 1937 (tendo como marco final o início do Estado Novo, momento de virada na trajetória política nacional), a exposição enfatiza alguns dos aspectos mais marcantes desse ímpeto modernizante: a adoção de temáticas e linguagens novas, desprezadas no passado oitocentista. Destaca-se um olhar atento para a cena local, seja por meio de registros do ambiente rural, seja na atenção crescente à renovação e expansão urbana vivenciada nas grandes cidades, bem como a incorporação crescente de modos de pintar, esculpir e fotografar muito mais próximos das experimentações de vanguarda que já há algum tempo sacudiam a arte europeia. Como explicam as curadoras Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, nota-se claramente no período um desejo de renovação, uma vontade de se reconhecer nessa nova produção e uma alteração dos anseios no Brasil após a queda do Império. “Queríamos comemorar o Brasil recente, o Brasil novo”, sintetiza Aracy.

Apesar das dificuldades decorrentes da pandemia, que tornou muito mais difícil a pesquisa e a obtenção dos empréstimos das obras, foi possível reunir um conjunto bastante significativo de trabalhos. Propositalmente, não há uma divisão clara entre os três núcleos centrais da exposição (pré-modernismo, a Semana e os desdobramentos do movimento nos anos subsequentes). Como num fluxo livre, a montagem permite ao visitante acompanhar, sem rigores didáticos, alguns pontos altos da produção do período. Ora os trabalhos selecionados têm uma força individual potente e catalizadora, ora representam de forma sintomática eventos centrais do período abordado, como a disruptora entrada do expressionismo pelas telas de Anita Malfatti, na pioneira exposição de 1917; a já citada Semana de 22; ou o também célebre Salão Revolucionário, realizado em 1931 no Rio, quando o urbanista Lucio Costa assumiu, mesmo que por pouco tempo, a Escola Nacional de Belas Artes. Do ponto de vista regional, São Paulo e Rio – e, num segundo plano, Recife – são as cidades com maior representação, mas nota-se uma clara intenção de desmontar uma versão bairrista da modernidade brasileira, evidenciando o espraiamento das ideias e práticas modernistas pelo território nacional. A ideia era “fugir um pouco desse ufanismo paulistano”, pontua Aracy Amaral. Procuramos “esparramar um pouco a ideia de modernidade e de modernismo pelo Brasil, não só temporalmente, mas em termos de território”, complementa Regina Teixeira de Barros.

“Fachada do Teatro Municipal”, 1911, de Valério Vieira.

A seleção combina desde obras icônicas da modernidade nacional a investigações menos conhecidas do público e normalmente dissociadas desse anseio modernizador, como por exemplo a tela Baile à Fantasia, pintada em 1913 por Rodolpho Chambelland, uma cena vibrante e de inspiração popular tendo a festa por tema. Vamos do violeiro ao carnaval, ilustra Aracy, enfatizando a multiplicidade de caminhos representados por autores tão diversos como Almeida Junior e Chambelland. A progressiva urbanização, que impõe uma acelerada incorporação de modelos mais sofisticados de comportamento e de configuração das cidades, também se faz presente no trabalho Fachada do Teatro Municipal, uma fotopintura executada em 1911 por Valério Vieira que destaca a exuberância do edifício e a intensa movimentação dos citadinos.

“Eu vi o mundo…Ele começava no Recife”, de Cícero Dias. Acima, na íntegra, abaixo, em detalhes. Foto: © Dias, Cícero dos Santos/ AUTVIS, Brasil, 2021

Curiosamente, o exercício de representação da cidade moderna de Vieira se encontra face a face da obra de maior destaque da exposição, o painel Eu vi o Mundo… ele começava no Recife, realizado entre 1926 e 1929, por Cícero Dias. Exposta originalmente num congresso psiquiátrico realizado no Rio de Janeiro e posteriormente no Salão Revolucionário, a obra tem uma enorme dimensão histórica e estética. A ousadia da composição, que mescla reminiscências de sua infância no Recife a referências contemporâneas da cena carioca, foi tamanha que ela foi vandalizada por conservadores e perdeu três dos 15 metros que possuía originalmente. “Há vários mundos aí dentro, vários brasis, que acontecem simultaneamente e desordenadamente”, afirma Regina Teixeira de Barros. “Há ali uma multidão de referências. Cada metro nos chama à meditação”, complementa Aracy. Pertencente a uma coleção privada, a obra é raramente mostrada ao público.

Esse desejo de Brasil, um anseio por “demarcar o território que vai ser amplamente desenvolvido no século 20”, como dizem as curadoras, se faz sentir na obra de todos os artistas representados, mesmo que em termos temporais fiquem claras mudanças internas nos processos pessoais de criação. É o caso, por exemplo, de Di Cavalcanti, representado com obras de diferentes momentos, da ainda sisuda Amigos ou a aguçada série de ilustrações intitulada Fantoches da Meia Noite, ambos de 1921, à sua peça de destaque, Cinco Moças de Guaratinguetá, de 1930. O artista é um exemplo claro dessa tentativa de modernização da linguagem tão ansiada nas décadas de 1910 e 1920 e que, no anos 1930, adquire uma clara dimensão política e de engajamento social.

Para complementar esse mergulho na produção visual e cultural do período, também será lançado um catálogo com texto de diferentes autores, como Ana Maria Belluzzo, Felipe Chaimovich, Ruy Castro e Cacá Machado, em data ainda a definir. Esses ensaios acabam por estender ainda mais o alcance da mostra, iluminando áreas e movimentos que não puderam ser contemplados na seleção expositiva.

Sesc Copacabana homenageia Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal

Foto horizontal, preto e branco. O rosto de Mercedes Baptista. A bailarina usa um turbante rendado na cabeça e tem uma expressão contemplativa e espontânea
A bailarina e coreógrafa Mercedes Baptista. Foto: Divulgação / Acervo Mercedes Baptista

Nascida em Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense, Mercedes Baptista foi a primeira mulher negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e uma das principais precursoras da dança afro no Brasil e no mundo. A artista, falecida em 2014, comemoraria seu centenário este ano. Em homenagem a sua vida e legado, o Sesc Copacabana recebe uma ocupação artística com ampla programação durante os meses de novembro e dezembro.

Após mais de um ano e meio fechada, a unidade do Sesc marcou sua reabertura, no último dia 5, com o espetáculo teatral Mercedes. Criada pelo Grupo EMÚ, a peça gira em torno da construção da identidade negra na dança brasileira, contada a partir de fatos reais e fictícios da vida da personagem-título. Na mesma data, foi inaugurada a exposição fotográfica Mercedes Baptista: a dama negra da dança, que reúne imagens da artista em diferentes épocas da vida e conta com a curadoria de Paulo Melgaço, biógrafo de Mercedes.

Quem visita a mostra pode também conferir a Videoinstalação ljo. Assinada pelo diretor e artista Thiago Sacramento, a obra consiste em bailarinos que se movimentam e criam, através de efeitos visuais, uma imagem luminosa e espectral em uma tela de led.

Resultado de pesquisas da coreógrafa Carmen Luz sobre a presença de artistas negros na dança brasileira, Cartas para Mercedessssssss passa a compor a ocupação a partir do dia 12 de novembro. O projeto artístico é formado por três obras – uma dançada, uma plástica e uma sonora – que imaginam e estabelecem conversas abertas entre os universos biográficos e artísticos de Mercedes Baptista e a vida e a dança das artistas envolvidas neste trabalho.

No dia 23, o palco do Sesc Copacabana recebe a apresentação musical do Grupo Dembaia, com participação da compositora e atriz Doralyce. Formado por mulheres negras do Rio de Janeiro, o grupo se dedica a pesquisas práticas e teóricas, oficinas e apresentações artísticas referentes à cultura tradicional e moderna de países da África do Oeste, como Guiné, Mali e Senegal. No dia seguinte (24), o percussionista Kaio Ventura, dá continuidade à programação musical, conduzindo a palestra “Metodologia da Percussão e Instrumentalização Africana”.

Imagem horizontal, colorida. Registro do espetáculo MERCEDES, em homenagem a Mercedes Baptista. Uma bailarina está no foco de luz, sentada no chão. Tem os braços elevados pra cima, em um movimento arredondado. A foto da impressão de movimento, como se estivesse em meio a uma coreografia.
“Mercedes”, espetáculo teatral do Grupo EMÚ. Foto: Julio Ricardo
Confira a programação completa

Ocupação Mercedes Baptista
ONDE: Sesc Copacabana: R. Domingos Ferreira, 160 – Copacabana – Rio de Janeiro
QUANDO: De 5 de novembro a 30 de dezembro de 2021

Espetáculo Mercedes
QUANDO: 5 de novembro a 28 de novembro |  sexta a domingo, às 19h
INGRESSOS: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 7,50 (credencial Sesc)

Videoinstalação Ijo
QUANDO: 5 de novembro a 30 de dezembro, das 10h às 19h
Entrada gratuita

Exposição Mercedes Baptista: a dama negra da dança
QUANDO: 5 de novembro a 30 de dezembro, das 10h às 19h
Entrada gratuita

Cartas para Mercedessssssss – Obras plástica e sonora
QUANDO: 12 de novembro a 28 de novembro, das 14h às 18h30
Entrada gratuita

Cartas para Mercedessssssss – Obra dançada
QUANDO: 12 de novembro a 28 de novembro | sexta a domingo, às 20h
INGRESSOS: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 7,50 (credencial Sesc)

Grupo Dembaia convida Doralyce
QUANDO: 23 de novembro, às 19h
INGRESSOS: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 7,50 (credencial Sesc)

Palestra Metodologia da Percussão e Instrumentalização Africana com Kaio Ventura
QUANDO: 24 de novembro, às 19h
Entrada gratuita

“Moderno Onde? Moderno Quando?”: Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros falam sobre exposição no MAM-SP

Parte do painel 'Eu vi o mundo...ele começava no Recife' de Cícero Dias

Reunindo obras de artistas modernistas de diversos estados do país, a exposição Moderno Onde? Moderno Quando? amplia no tempo e no espaço o legado da Semana de 22, abrangendo tanto seus antecedentes quanto seus desdobramentos. Com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, a exposição fica em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) até 12 de dezembro de 2021.

“Reza o senso comum que a Semana foi um divisor de águas entre o velho e o novo. Entretanto, se nos debruçarmos sobre a produção (artística, musical, arquitetônica, literária) que a antecede – e nos permitirmos considerar outras localidades do país além de São Paulo – encontraremos incontáveis evidências de que ela faz parte de um amplo (e descontínuo) processo que a extrapola, tanto temporal quanto espacialmente”, explicam as curadoras.

Para demarcar o arco temporal da mostra, foi eleito o período da virada do século, em 1900, até a implementação do Estado Novo por Getúlio Vargas, em 1937. O ano de 1900 representa o espírito da Belle Époque, período entre o fim do século 19 e começo do 20 marcado por transformações culturais, artísticas e tecnológicas. Assim, Moderno Onde? Moderno Quando? se divide em três núcleos: os pré-modernistas, as obras e os artistas participantes do evento no Theatro Municipal e os desdobramentos do movimento até 1937.

Segundo Cauê Alves, curador-chefe do MAM-SP, “mais do que uma celebração do centenário da Semana de 22, o museu contribui para a pesquisa e reflexão sobre o que significou esse evento, seus antecedentes e desdobramentos. A exposição certamente irá contribuir para redefinir a importância histórica da Semana de 22 e ampliar a compreensão do modernismo como um acontecimento nacional”.

A arte!brasileiros visitou o MAM São Paulo e conversou com as curadoras na ocasião da montagem da exposição. Confira a entrevista concedida à diretora editorial, Patricia Rousseaux:

Casa Fiat de Cultura retorna com restauro de obras de Aleijadinho

Rosangela Reis Costa, restauradora e coordenadora do projeto de restauro. Foto: Leo Lara.
Rosangela Reis Costa, restauradora e coordenadora do projeto de restauro. Foto: Leo Lara.

A Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, retorna gradualmente às atividades presenciais ao celebrar seu aniversário de 15 anos e o reencontro com o público através do restauro de obras do grande mestre barroco Aleijadinho. São elas Sant’Ana Mestra, pertencente à Capela de Sant’Ana, da comunidade de Chapada de Ouro Preto; São Joaquim, da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Raposos; e São Manuel, do acervo da Paróquia de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté.

O primeiro momento do projeto, que teve início neste dia 3 novembro, se dá com a abertura do ateliê-vitrine de restauro ao vivo. O ateliê será montado no hall principal da Casa Fiat de Cultura e ficará aberto à visitação do público por meio de agendamentos, com entrada gratuita. Já a partir de 2 de dezembro será inaugurada a mostra que revelará as obras de São Joaquim e São Manuel já restauradas, enquanto a imagem de Sant’Ana Mestra deve continuar em processo de restauro, ao vivo, para apreciação do público. A última etapa será o lançamento, no ano que vem, do e-book sobre a exposição, com todo o histórico e o registro do processo de restauro, culminando com a entrega das obras às suas comunidades.

Em paralelo, a Casa Fiat vai exibir a websérie Aleijadinho, arte revelada: o legado de um restauro na Casa Fiat de Cultura nas redes sociais, uma forma de compartilhar os detalhes dessa iniciativa com quem não está em Belo Horizonte.

A restauração das três obras de Aleijadinho será feita pelo Grupo Oficina de Restauro, com o acompanhamento técnico do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). A dinâmica a ser desenvolvida permitirá a aproximação entre os visitantes e os restauradores, que poderão acompanhar todo o passo a passo e conhecer os bastidores de um restauro, seja por meio de visitas presenciais agendadas, seja através das vitrines da Casa Fiat de Cultura ou, ainda, pela programação virtual.

​​Antes do processo de restauração dar largada, foram realizadas fotos científicas usando fluorescência de ultravioleta, que permite analisar a camada pictórica e o estado de conservação dos vernizes superficiais, e infravermelho, para identificar possíveis riscos e desenhos que não são vistos a olho nu. Além disso, para identificação de todas as uniões entre os blocos de madeira e os cravos usados na confecção de cada peça do conjunto escultórico, as obras passaram, ainda, por uma leitura oferecida pelo raio X.

Todas as imagens passarão pelo mesmo processo de intervenção, o que inclui, dentre outras etapas, higienização da obra, contenção de fissuras, reintegração de lacunas e manchas, complementação de partes faltantes com massa e a aplicação de verniz, que protege a superfície. Por fim, as peças serão colocadas em uma bolsa sem a presença de oxigênio – que garante a total desinfestação de cupins em madeira – e imunizadas por uma barreira química para evitar novos ataques. “A intervenção que faremos será a mais sutil possível e apta de ser retratável, de modo a não impedir futuras restaurações. Afinal, estamos atuando com o resgate da cultura, das memórias e, principalmente, com a preservação da história de um grande mestre”, reforça a restauradora Rosangela Reis Costa.

Sobre a instituição

A Casa Fiat de Cultura é situada no histórico edifício do Palácio dos Despachos e apresenta, em caráter permanente, o painel de Portinari, Civilização Mineira, de 1959. O espaço integra um dos mais expressivos corredores culturais do país, o Circuito Liberdade, em Belo Horizonte.

Protocolos de reabertura: Para visitar a instituição será obrigatório o uso de máscara cobrindo boca e nariz durante todo o tempo. Antes de entrar, todos terão sua temperatura aferida, sendo permitido o passeio somente se ela for menor que 37,5 ºC. Além disso, os visitantes são orientados quanto a higienização das mãos e a limpeza de todos os ambientes está sendo feita com maior frequência, informa a Casa Fiat.

“Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda” no Sesc 24 de Maio; assista ao vídeo

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"Embu das Artes", de Raquel Trindade. Foto: Vitor Penteado/ Divulgação

Em cartaz no Sesc 24 de Maio até o dia 12 de dezembro, a Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda apresenta a obra e vida da multiartista Raquel Trindade, nascida em Recife em 1936 e estabelecida na cidade de Embu das Artes até sua morte, em 2018. Ícone da cultura afro-brasileira, ela foi escritora, coreógrafa, artista plástica, carnavalesca, ativista contra o racismo e defensora do teatro e cultura popular afro-brasileira. Era considerada também uma griot, ou seja, guardiã de saberes ancestrais africanos.

Grande incentivadora da produção de outros artistas durante sua vida, Trindade serve agora de inspiração também para as 11 convidadas a participar da mostra: Aline Bispo, Aretha Sadick, Bianca Foratori, Charlene Bicalho, Daisy Serena, Eve Queiróz, Ione Maria, Maria Trindade, Nenesurreal, Patricia Gonzalez e Soberana Ziza. A arte!brasileiros esteve na mostra e conversou com Gabriela Xabay, técnica de Artes Visuais do Sesc 24 de Maio e uma das curadoras da mostra – assinada pelo Núcleo de Artes Visuais da unidade e por Renata Felinto. Assista ao vídeo abaixo:

SERVIÇO: Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda
ONDE: Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109 – Centro – São Paulo, SP)
QUANDO: de 15 de outubro a 12 de dezembro de 2021
Entrada Gratuita com agendamento pelo Aplicativo Credencial Sesc SP ou no site do Sesc 

 

CURA BH investiga novos territórios e propõe experiência imersiva

Imagem horizontal, colorida. Vista da Praça Raul Soares, em Belo Horizonte, onde ocorre o CURA 2021
Vista da Praça Raul Soares, em Belo Horizonte, onde ocorre o CURA - Circuito Urbano de Arte 2021. Foto: Cadu Passos / Área de Serviço

Da Rua Sapucaí, ao lado da Estação Central de metrô de Belo Horizonte, é possível ver 18 empenas grafitadas. Considerado o primeiro mirante de arte de rua do mundo, o local dá vista aos trabalhos gerados nas cinco edições do Circuito Urbano de Arte, o CURA. Neste ano, o festival se despede da icônica vista e chega à Praça Raul Soares, marco zero da cidade.

Para ir de um ponto a outro, caminhamos pela Av. Amazonas. Em suas margens, encontramos Selva Mãe do Rio Menino, primeira empena pintada por uma artista indígena no mundo, realizada por Daiara Tukano no CURA 2020. “Pedimos licença para, então, desaguar nesse novo território, rico em história e memória: uma praça-circular, local de travessias e atravessamentos”, conta Priscila Amoni, idealizadora do festival ao lado de Juliana Flores e Janaína Macruz.

A investigação do território foi o primeiro marco desta edição. Considerada o centro geográfico de Belo Horizonte, a Praça Raul Soares se configura como encruzilhada. Ela conecta as regiões leste, oeste, norte e sul da cidade, bem como é ponto de intersecções  de culturas. O chão do espaço, feito em mosaico português, é repleto grafismos marajoaras – povo indígena considerado extinto, que sobrevive em seus descendentes. Já a fonte, no centro da praça, nos remete à imagem da Chakana, a cruz Inca – povo originário do Peru, país onde fica a foz do rio Amazonas.

A Chakana adiciona uma nova camada de significado a este território, ao que é dividida em três partes “que representam três mundos: o mundo inferior, dos mortos; o mundo que vivemos, dos vivos; e o mundo superior, dos espíritos”, compartilham as idealizadoras. Foi lendo os signos desta praça que o CURA 2021 foi gestado. “Queremos mergulhar nesse lugar para nos conectarmos à vida que ali pulsa, ontem e hoje, no asfalto, edifícios, comércio, bares, igrejas e inferninhos. Queremos abrir um portal, criar dimensões, adentrar outros mundos dentro do nosso próprio mundo, conectar com outros seres e existências, alterar o ritmo da vida e do cotidiano”, explica Priscila Amoni.

Assim, em junho de 2021, deram início às reuniões que desenhariam esta edição do festival. Para isso, convidaram duas artistas a integrarem a curadoria: Naine Terena – mestre em artes, doutora em educação e mulher do povo Terena – e Flaviana Lasan – produtora e educadora especializada em ensino de História e América Latina, com investigação focada na história da arte produzida por mulheres.

Em coletiva de imprensa, realizada em 22 de setembro, Naine compartilhou suas visões sobre o processo curatorial: “Acho que, sobretudo, tivemos a oportunidade de exercitar a escuta, exercitar o poder de um pensamento que foge ao rotineiro, de ver as perspectivas de reunir saberes, encontros, distintos materiais e suportes de produção”. Para Flaviana, isso levou a duas dimensões principais do festival: “Uma primeira, do corpo, em constante exercício de luta para a preservação das memórias, e uma segunda, na condição sobrenatural, que nos ajuda a organizar o absurdo que é o cotidiano e auxilia a dar conta do que é desconhecido”.  

O desaguar

Esta edição do Circuito Urbano de Arte, iniciada no dia 21 de outubro, conta com pintura do chão da Av. Amazonas e de três empenas, bem como traz uma instalação urbana, uma vivência à Praça Raul Soares e gera um catálogo de registro.

Na empena do Edifício Levy, são pintados os cantos de cura Huni Kuin, por Kassia Rare Karaja e o Coletivo Mahku – Movimento dos artistas Huni Kuin. “A gente está precisando muito [de cura]: o Brasil e o planeta precisam. Escolhi uma pintura para esse momento de pandemia e pelas perdas irreparáveis”, afirma Kassia. Já a empena do Edifício Paula Ferreira está sob responsabilidade do mineiro Ed-Mun: “É uma arte em homenagem à escrita, à comunicação por símbolos e grafismos, inspirado na arte marajoara, mas com um estilo urbano contemporâneo que é o graffiti 3D”. A terceira empena será ocupada por Mag Magrela, selecionada na convocatória pública dentre 327 inscritos de 21 estados brasileiros. Já o Giramundo, grupo mineiro de teatro de bonecos que acaba de completar 50 anos de história, será responsável por uma instalação inédita na fonte da praça. 

No dia 29 de outubro, o chão da Av. Amazonas recebe a pintura-ritual de Sadith Silvano e Ronin Koshi, artistas do povo Shipibo, do Peru. A obra será pintada ininterruptamente, 24 horas por dia. “Com muita alegria e satisfação difundimos nossa cultura, através dos murais que criamos. Nos murais estampamos o conhecimento de nossos ancestrais”, declara Ronin Koshi, também ativista e líder indígena.

Entre os dias 30 de outubro e 2 de novembro, a praça se torna então cenário da vivência guiada por Tainá Marajoara numa criação coletiva com Mayô Pataxó, Patrícia Brito e Silvia Herval. A centralidade do ato estará em quatro alimentos-chave que têm valor ancestral: farinha de mandioca, tucumã, pimentas e beijus. Durante a ação, haverá um espalhar de sementes nas pedras portuguesas. “A gente quer atuar num processo de contracolonização, florescer no chão (ainda que simbolicamente) jenipapo, tucumã, urucum… entendendo que a pedra da colonização precisa sair do nosso caminho e, com ele, este sistema de pisotear, de cimentar nossa memória, nossa história, nossa identidade”, diz Tainá. 

Um mergulho nas artes urbana e ancestral

Vale pontuar que para além das travessias, a Praça Raul Soares é, sobretudo, um lugar de encontros de pessoas e histórias. Esse traço do território é parte fundante do CURA 2021. A edição põe a praça como epicentro para que as pessoas possam viver a cidade de uma outra forma, inseridas no meio das obras. “Uma experiência imersiva de apreciação artística”, afirma Juliana Flores. As demais idealizadoras do festival completam: “Se o mirante da Sapucaí nos convoca a ver, a Praça Raul Soares incorpora também o ser visto. Na praça, o público estará no centro e as novas empenas, serão como entidades que nos olham e nos guardam”.

Mariannita Luzzati apresenta mostra retrospectiva no Instituto Figueiredo Ferraz

"Queimada", 2021. Mariannita Luzzati. Cortesia do Instituto Figueiredo Ferraz.
"Queimada", 2021. Mariannita Luzzati. Cortesia do Instituto Figueiredo Ferraz.

Além de gravadora e desenhista, Mariannita Luzzati é uma das pintoras mais emblemáticas da geração 90. Ela, que hoje vive e trabalha entre São Paulo e Londres, iniciou seus aprendizados no começo da década de 1980, no Instituto per L’Arte e il Restauro, em Florença, Itália. Depois, chegou a estudar com Carlos Fajardo, Carmela Gross e Evandro Carlos Jardim. No final da mesma década, Luzzati começou a expor seu trabalho, participando de importantes salões em São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro.

Nos últimos 20 anos de carreira, a pintora tem se dedicado à paisagem, em específico a brasileira. Sobre a pintura de Luzzati, Gabriel Pérez Barreiro, curador da última Bienal de São Paulo, escreveu: “Se a ambiguidade é o elemento central na tradição do paisagismo, Luzzati a explora amplamente por meio de seu tema e sua técnica. No nível da técnica, suas muitas e finas camadas de tinta à óleo criam uma difração ótica que torna as imagens e as bordas ligeiramente turvas e indefinidas, como se observadas através de um leve vapor ou ainda lusco-fusco”.

Um pouco desse extenso trabalho pode ser visto agora, em Ribeirão Preto, no Instituto Figueiredo Ferraz (IFF), fundado em 2011 por João Carlos Figueiredo Ferraz, entusiasta da arte e fomentador cultural falecido este ano.

Vista da exposição no Instituto Figueiredo Ferraz. Foto: Cortesia do IFF.
Vista da exposição no Instituto Figueiredo Ferraz. Foto: Cortesia do IFF.

Em Paisagens Possíveis, Mariannita Luzzati apresenta 18 pinturas em grandes dimensões e cinco em pequenos tamanhos. Elas datam de 1990 a 2021, sendo seis das obras expostas pertencentes à coleção Figueiredo Ferraz. “Esses trabalhos nunca foram expostos juntos e isso me trouxe a oportunidade de analisar este percurso”, conta. Além da paisagem, como elemento uníssono na exposição Luzzati diz perceber “uma vontade de preservar um  momento ‘imagem’ em cada um dos trabalhos”, o que a fez vivenciar a experiência em cada um deles novamente.

Nas palavras da própria artista, “uma paisagem carrega com ela aquele momento onde o ar está quente ou frio, úmido ou seco, e tudo isso influencia a busca da cor”. Para ela, essa exposição tem uma relação cromática delicada com contrastes mais ou menos pontuados; “percebo que a busca das cores hoje é muito específica e menos casual do que no passado”.

"Praia Vermelha", 2020. Mariannita Luzzati. Cortesia do Instituto Figueiredo Ferraz.
“Praia Vermelha”, 2020. Mariannita Luzzati. Cortesia do Instituto Figueiredo Ferraz.

Nota-se nesse acervo que os elementos humanos relacionados ao progresso são inexistentes na paisagem. “Em 2010, durante uma visita minha ao Estado do Espírito Santo, especialmente às cidades de Vitória e Vila Velha, comecei a sentir a necessidade de ‘remover’, em minhas anotações de desenhos e estudos para as pinturas, os elementos urbanos que para mim ‘incomodavam’ as paisagens, para que as mesmas voltassem ao seu estado natural, sem nenhuma interferência do homem”, afirmou uma vez. “São imagens que sugerem ao expectador contemplar e refletir sobre o vazio e o silêncio, o que hoje para mim, é a nossa maior necessidade”. Luzzati reforça a última afirmação ao lembrar que “a pandemia nos fez olhar para dentro de nos mesmos. Tivemos que reavaliar nossas prioridades e nos fez pensar sobre a brevidade da vida”.

Além de Paisagens Possíveis, o IFF recebe mais duas mostras neste momento: a temporária Fotografo o que não vejo e a de longa duração Em branco. As três exposições foram abertas em comemoração ao aniversário de dez anos de atividade da instituição. O IFF abriga mais de 1.000 obras da coleção do casal Figueiredo Ferraz e, desde sua criação, em outubro de 2011, já recebeu mais de 50 mil visitantes nas mostras, cursos e projetos educativos que promove na região.

 

Fabio Szwarcwald fala sobre novos projetos e superação da crise financeira do Mam Rio

Fabio Szwarcwald
Fabio Szwarcwald. Foto: Fabio Souza/ Mam Rio

Fabio Szwarcwald mal havia assumido a direção do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Mam Rio) quando a pandemia de coronavírus obrigou o museu a fechar as portas e os funcionários a irem para suas casas. Um de seus objetivos, o de aumentar a visitação no museu carioca, acabou sendo adiada, mas vários outros planos foram colocados em prática. “Se as atividades presenciais foram suspensas, nesse período aproveitamos para planejar e promover uma intensa reorganização institucional”, afirma Szwarcwald.

De fato, é notável que as notícias recentes em torno do Mam Rio não usem mais a palavra “crise”, como ocorria até poucos anos atrás – em um contexto no qual o museu acabou vendendo um quadro de Jackson Pollock para amenizar a situação financeira -, e passem a focar nas aberturas de exposições, na contratação de novos diretores artísticos (Keyna Eleison e Pablo Lafuente), no estabelecimento da gratuidade na visitação, na retomada do Bloco Escola e das residências ou na reabertura da Cinemateca do museu. 

O novo momento do MAM não deixa de ter sido facilitado pelo caixa gerado com a venda do quadro do artista americano, como ressalta Szwarcwald – “é mais importante o museu estar vibrando do que estar fechado com o Pollock na coleção -, mas é também resultado de uma série de novas parcerias. Nos quase dois anos da atual gestão, 25 novas empresas passaram a patrocinar o museu – que tem 91 funcionários e um custo anual de manutenção de R$ 13 milhões – e o círculo de patronos foi expandido.    

É claro que nem tudo são flores para a administração do museu que abriga cerca de 16 mil obras de arte no célebre edifício projetado por Affonso Reidy nos anos 1950. Para Szwarcwald, o contexto não é “simples nem fácil”, já que a gestão da cultura no país deixa as instituições cada vez mais vulneráveis. “Acho uma pena não ter mais o Ministério da Cultura [rebaixado para Secretária no governo Bolsonaro], porque a cultura é tão importante quanto a educação, o turismo ou a saúde”, diz ele.

Economista com passagem pelo Credit Suisse, colecionador de arte e diretor da EAV Parque Lage entre 2017 e 2019, o diretor executivo do Mam Rio conversou com a arte!brasileiros sobre esses e outros temas, como o reposicionamento crítico feito pelo museu carioca em relação à história brasileira e à contemporaneidade, além do foco intenso do museu no trabalho educativo. Leia a seguir.

Fachada do Mam Rio. Foto: Fabio Souza / Divulgação

ARTE! – Você assumiu a direção do Mam Rio em janeiro de 2020 com uma série de planos, entre eles o de aumentar a visitação do museu. Exatos dois meses depois, a pandemia obrigou o Mam – e todas as instituições culturais – a fechar as portas. Como foi essa experiência, esse momento inicial, e o que foi possível fazer para não parar totalmente as atividades?

Fabio Szwarcwald – Eu assumi a direção no dia 13 de janeiro. E no início de um trabalho desses você vai tateando, conhecendo as pessoas, as equipes, um pouco das dinâmicas, dos processos. Então, nesse momento de transição, tivemos essa situação totalmente inusitada. Quer dizer, no momento em que eu entro no museu, começo a entender quais são as estratégias e trabalhos, me deparo com esse quadro em que a presença no espaço físico é suspensa e todo mundo vai para casa. Foi um período muito complexo. Para a nossa sorte, nesse início algumas pessoas entraram na equipe e ajudaram a fazer o planejamento, essa profunda reorganização e adaptação para o trabalho online. E, com cada um em sua casa, nós não paramos, conseguimos manter nossa estratégia e nosso cronograma de projetos. Se as atividades presenciais foram suspensas, nesse período aproveitamos para planejar e promover uma intensa reorganização institucional. Algumas áreas foram criadas, outras mais desenvolvidas, e lançamos a nossa chamada aberta para a direção artística, com convite para pessoas do Brasil e do mundo inteiro. Lançamos também o programa de residência com o CAPACETE, à época online, criamos um canal para a Cinemateca no Vimeo, para as pessoas poderem acompanhar de suas casas – e foi um sucesso, tivemos mais de 40 mil pessoas assistindo mais de 340 filmes. Então essas novas maneiras de continuar atuando foram muito importantes para preservar o museu e todo o nosso plano inicial da gestão, sem que a pandemia nos afetasse tanto. E focamos muito nos canais digitais, que era algo que o museu fazia pouco.

ARTE! – Aliás, muito se falou no início da pandemia sobre as instituições culturais estarem muito despreparadas para esse tipo de atuação virtual. Você concorda?

Sem dúvida. De modo geral, elas já tinham uma atuação digital importante, mas não era esse o grande foco. E o foco agora se voltou para isso, para a comunicação online, os cursos online, residências online, visitas mediadas etc. Criou-se um novo ambiente para as pessoas visitarem os museus, participando do nosso dia a dia.

ARTE! – E, ao mesmo tempo, esse foco “forçado” no universo digital acabou favorecendo uma ampliação de público para muitas instituições, já que a programação pode ser acompanhada de qualquer canto do mundo. Isso ocorreu no Mam Rio? Você citou, por exemplo, o grande público que acompanhou a Cinemateca no Vimeo…

Sim, houve vários ganhos também. Acho que de certo modo conseguimos fazer de um limão uma limonada, nos concentrando muito nessa atuação virtual. E acho que isso fez com que a gente repensasse a questão territorial também, do espaço físico. Quando você vai para o virtual, atinge novos horizontes, outros públicos que nem imaginaria que pudesse alcançar. No caso da Cinemateca, pessoas de mais de 40 países viram os filmes; nos cursos online foram alunos de 15 estados e seis países. Então é uma oportunidade para várias pessoas que não são só os moradores ou visitantes do Rio de Janeiro.

ARTE! – E agora o museu está totalmente reaberto? Como está a visitação?

Nós reabrimos de uma forma muito inovadora, com contribuição sugerida – você paga se quiser e quanto quiser. Fizemos isso por entender que o público no Rio é muito diverso e, muitas vezes, não tem condição de vir ao museu. Uma pessoa que ganha R$ 2 mil por mês e quer ir com seus dois filhos ao museu não tem condições de gastar R$ 80 ou R$ 100 em um passeio no fim de semana. E, em decorrência disso, nós triplicamos a visitação e quase dobramos a receita de “bilheteria”, apesar da pandemia. E assim cria-se também uma acessibilidade para que as pessoas possam frequentar o museu quantas vezes quiserem.

ARTE! – Falando da questão da ampliação do público, aparentemente um dos problemas é ainda uma ideia que existe na sociedade de que o Mam Rio é um lugar para as elites. Isso é um problema no universo das artes como um todo, mas há as especificidades do museu carioca. Para além da gratuidade da visitação, como mudar essa mentalidade e trazer mais gente para o museu?

O que a gente mais quer aqui no museu é criar um sentido de pertencimento, para que todos participem deste museu. Nesse caminho, temos uma preocupação muito grande com a formação e capacitação do público. Então vários cursos foram criados, tanto no ano passado quanto neste ano, e estes cursos também são gratuitos, assim como as visitas mediadas que temos aos domingos (apoiadas pelo Petrobras), os workshops com os educadores e as oficinas como o Zona Aberta. E todas essas ações são muito importantes para trazer o público de várias formas e ajudar a formá-lo. Isso traz para essas pessoas uma sensação de que elas podem entrar no museu, ver uma exposição, perguntar coisas e conversar com a equipe de mediação – que temos preparado para estar cada vez mais atenta ao público. Então são várias ações para se criar experiências novas e acolhedoras para todos os públicos.

ARTE! –  Existe essa ideia muito forte atualmente na gestão das instituições culturais de que não basta democratizar o acesso, receber um número maior de visitantes, mas que é importante ter um público participante. Importa a qualidade dessa visita, a possibilidade de fazer junto. É nesse sentido que o Mam trabalha?

Sim, não adianta, por exemplo, você simplesmente ter uma exposição incrível, é preciso criar um ambiente para a pessoa entrar no museu e se sentir bem, poder discutir e entender a mostra. Isso às vezes faz mais diferença do que somente a exposição em si. Porque os museus são espaços de reflexão e de educação também. A gente quer capacitar e educar para as pessoas participarem e entenderam o que estamos fazendo, o que estamos mostrando.

O Bloco Escola e seu pátio, em 1989. Foto: Aertsens Michel/ Coleção Mam Rio

ARTE! – Nesse ponto, você poderia falar também sobre a importância da reativar o Bloco Escola?

Quando eu entrei foquei em trazer para nossa estratégia esse tripé de formação do museu: arte, educação e cultura. E o Bloco Escola foi o primeiro equipamento a ser construído e aberto no Mam Rio, em 1958. Foi uma escola importantíssima para grandes artistas das décadas de 1950, 1960 e 1970. Passaram por lá Fayga Ostrower, Ivens Machado, Ivan Serpa, Abraham Palatinik… e teve o Grupo Frente, o neoconcretismo. Houve toda uma efervescência aqui no Bloco Escola que trouxe uma importância muito grande para o museu. Então meu objetivo foi voltar com ele, já começando com os cursos digitalmente, além das residências. Primeiro fizemos as residências junto ao CAPACETE, no ano passado, e agora continuamos com a nossa programação: abrimos duas residências ainda ano passado, com 19 vagas para artistas e pesquisadores, e esse ano lançamos mais cinco programas que tiveram 3500 inscritos para 38 vagas. E cada um deles tem um foco: uma residência para curadores periféricos; uma para professores de escolas públicas; uma para adolescentes; uma para pessoas com deficiência; e outra para artistas e profissionais das artes. Todos esse projetos são muito importantes porque queremos de fato voltar cada vez mais com o Bloco Escola, com esse foco na educação, na formação de nossos pesquisadores, artistas e visitantes. Estamos, ainda, fazendo projetos para captar recursos para também fazer o restauro desse espaço físico, deixá-lo remodelado e modernizado. E sem dúvida essas oficinas, seminários e palestras são demandas muito importantes hoje da sociedade.

ARTE! – Uma das coisas marcantes nessa gestão foi uma chamada aberta inédita para a Direção Artística da instituição, que resultou na escolha da Keyna Eleison e Pablo Lafuente. Qual a ideia por trás desse processo, e como você avalia o trabalho da dupla até o momento? Com essa nova dupla, o museu busca também se atualizar em relações a questões mais urgentes da contemporaneidade?

O objetivo com essa chamada aberta era, primeiro, trazer as melhores pessoas possíveis para o museu. Ou seja, não é uma indicação pessoal minha, alguém do meu círculo. E os processos de contratação tem que ser assim, transparentes, nos quais as vagas são abertas e as pessoas se inscrevem. No caso dessa chamada, inédita, foi muito bom porque tínhamos dois grupos trabalhando. Um interno, de pessoas do museu analisando os currículos e projetos enviados, e um grupo externo, de curadores, artistas e diretores de outras instituições. Foi feito de uma forma muito democrática, buscando entender o que é o melhor hoje para o museu, o que nós achamos que realmente faz sentido para o nosso momento atual. Então foram 103 projetos inscritos, dos quais 20 foram selecionados – para que os candidatos aprofundassem mais as propostas – e depois saíram os cinco finalistas. Aí sim entramos na parte das entrevistas, que resultou na seleção da dupla Keyna Eleison e Pablo Lafuente. E o fato de ser uma dupla, algo que não tínhamos pensado ao início, foi muito interessante, no sentido de ter mais pontos de vista. E eles têm realizado um trabalho incrível, com novas visões expositivas e conceituais, com novos olhares sobre as coleções e também com destaque para novos artistas, menos conhecidos e estabelecidos.

ARTE! – Desde a sua passagem pelo Parque Lage, talvez por conta do seu histórico profissional, você sempre teve um foco grande na parte financeiro-administrativa das instituições. E isso, novamente no Mam Rio, tem trazido resultado. São 25 novas empresas que passaram a investir no museu desde o início da sua gestão. Queria que contasse um pouco como se deu essa aproximação e qual o destino principal desses recursos.

Eu acho que um grande objetivo nosso é desenvolver uma estratégia de estabilidade financeira para o museu, o que nós sabemos que não é simples. A manutenção do Mam Rio não é barata, são mais de 15 mil obras no acervo, uma Cinemateca com mais de 60 mil rolos de filmes, 3 milhões de documentos. Então foi criada, já no início da gestão, essa área de parcerias institucionais, para desenvolver um trabalho junto às empresas, trazendo de uma forma muito clara e objetiva todo o nosso programa que seria desenvolvido. Fizemos várias apresentações para uma série de empresas, mostrando esse reposicionamento do museu, os novos projetos de educação, de uma nova direção artística etc., sempre com uma transparência muito grande sobre o que nós estávamos querendo fazer e de que forma. E mostramos também que essa nova estratégia só se viabilizaria com o apoio deles, porque o museu precisa de recursos para a sua atuação e para a manutenção da coleção. E os patrocinadores gostaram muito dos projetos. Criamos também um programa de patronos, que se somou ao de associados, e entraram neles mais de 45 pessoas neste período, com apoio de verbas livres. E isso tudo em um período muito difícil, porque acabaram os eventos, contratos foram renegociados, houve problemas de inadimplência. Então essas novas parcerias trouxeram um comprometimento muito bom. Até porque o Mam é um lugar único no Brasil, e os apoiadores sabem disso. É um equipamento cultural com uma história maravilhosa, ao lado do centro da cidade, na frente da Baía de Guanabara, em cima do aterro, com um acervo incrível… Então, junto a isso, esses novos projetos trouxeram um interesse enorme dos patrocinadores. E por conta da transparência, claro. Em setembro deste ano entregamos um grande relatório de atividades com tudo o que tinha sido proposto e tudo o que fizemos no período, e isso é muito importante, faremos de novo no ano que vem.

Fora isso, estamos também com uma estratégia de desenvolver uma captação internacional, uma parceria com a Brazil Foundation em que a gente consegue sair um pouco da dependência de Lei Rouanet e ICMS. E acho que o nosso maior gol, além disso, é o desenvolvimento de um fundo de Endowment, que vai trazer realmente uma sustentabilidade financeira de médio e longo prazo para o museu. Então tem um caminho que viemos traçando desde o ano passado para que em 2022 a gente possa começar esse fundo, que surge também a partir do momento em que as pessoas começam a acreditar cada vez mais no projeto do museu.   

ARTE! – Nesse período, e por conta da pandemia, foi preciso demitir, cortar funcionários?

A gente fez uma reestruturação do museu, mas mais contratou do que demitiu. Analisando as equipes, fizemos algumas mudanças, como é normal em qualquer novo processo de desenvolvimento de projetos, e criamos novas áreas de comunicação e captação, por exemplo. No primeiro ano também fizemos reformas que eram necessárias, na estrutura física, e o fundo financeiro que tínhamos por causa da venda do Pollock também ajudou nesse processo.

ARTE! –  Pensando hoje, você acha que uma atuação mais forte nessa busca de apoios financeiros poderia ter evitado essa polêmica venda do quadro do Jackson Pollock, em 2019?

É difícil falar sobre isso porque eu não estava no museu. Mas na época eu apoiei a venda, entendendo que ela era muito importante para esse processo de transformação do Mam. É mais importante o museu estar vibrando, como está hoje com todas essas exposições e projetos, do que o museu estar fechado com o Pollock na coleção.

ARTE! – Me parece que essas questões financeiras de que você fala não se desligam das questões políticas do país. Quando você fala da Lei de Incentivo a Cultura, por exemplo, impossível não pensar na paralisia que está ocorrendo para a aprovação dos projetos na Secretaria de Cultura. Gostaria que falasse um pouco sobre como enxerga esse momento político do Brasil, mais especificamente na área cultural.

Eu acho que a gente passa por um momento muito complexo nessa área cultural, o que faz com que os museus tenham que ter muita criatividade. E não adianta a gente tentar fazer algo que não vai dar certo, que não vai ser aprovado, que não vai passar. Então o que temos feito é tentar entender os caminhos possíveis que aparecem para que a gente consiga viabilizar nossos projetos culturais e artísticos de manutenção do museu. E não é simples, não é fácil, porque o cenário não é simples nem fácil. Infelizmente a área cultural tem sofrido muito nesses últimos anos. Acho uma pena não ter mais o Ministério da Cultura, porque a cultura é tão importante quanto a educação, o turismo ou a saúde. A cultura educa, fala da nossa história, da nossa ancestralidade, traz um sentimento de pertencimento à uma sociedade. E, nesse sentido, quando se desfez o Minc nós já começamos a perder muito. E acabamos ficando cada vez mais vulneráveis nesse contexto. Então não é um momento fácil, mas é o momento que temos que encarar, buscando as melhores soluções, conversando e criando pontes. 

ARTE! – Parece existir também um clima crescente de perseguição a certos tipos de manifestação artística, até mesmo no que se refere à aprovação destes projetos na Lei de Incentivo a Cultura. A censura, que parecia algo do passado, voltou a ser um assunto recorrente. Isso de algum modo afeta o trabalho no Mam Rio?

Eu acho que essa preocupação paira no ar o tempo todo. Mas dentro dos projetos que estamos fazendo no museu, felizmente não estamos vendo toda essa questão, tão pesada. Mas sem dúvida, com todas as situações que já aconteceram, isso fica marcado na nossa cabeça e de muitos artistas. E isso é muito ruim, porque a arte é uma expressão livre, não dá para cercear essa possibilidade dos artistas fazerem o que imaginam, sonham e canalizam.   

Keyna Eleison e Pablo Lafuente, curadores do MAM Rio, em frente ao museu
Keyna Eleison e Pablo Lafuente em frente ao MAM Rio. Foto: Fábio Souza/ Divulgação

ARTE! – Então, para concluir em um sentido mais positivo, eu queria perguntar um pouco da importância dessas exposições que foram inauguradas este mês, em um momento em que os números da pandemia começam a melhorar e as pessoas estão começando a sair um pouco mais. 

Nós abrimos a exposição A memória é uma invenção, com cerca de 300 obras de três acervos – MAM Rio, Museu de Arte Negra/IPEAFRO e Acervo da Laje -, a coletiva Composições para tempos insurgentes e a mostra da Ana Clara Tito no projeto Supernova, que é um programa de individuais de artistas novos, muitos deles saídos dos nossos programas de formação e pesquisa. E um grande objetivo é trazer essa visão cada vez mais atual sobre o que estamos vivenciando hoje, o que está acontecendo, o que as pessoas estão pensando e quais os debates mais atuais. Então eu acho que é um momento muito interessante para o Mam, porque vejo que o museu realmente tem se reposicionado como um espaço mais conectado ao que está acontecendo no dia a dia, mais atento a essas faltas que ocorreram ao longo da nossa história – faltas que nós precisamos trazer, falar sobre, entender um pouco melhor o que foi que aconteceu no nosso país. Acho que Composição para tempos insurgentes traz muito disso. E cada mostra tem uma expografia diferente, utilizando o museu de uma forma aberta, valorizando toda a sua arquitetura, colocando os curadores para pensar. Acho que são exposições mais propositivas, mais instigantes, que criam novas aberturas. E com isso você traz também um público cada vez mais diverso, plural e maior para visitar o museu.