Richard Bell, “Sol”, 2022. Foto: Patricia Rousseaux
Três exposições de grande escala em cartaz na Europa – a documenta de Kassel, a Bienal de Berlim e a Bienal de Veneza – dão conta de um complexo e complementar panorama da arte contemporânea. As duas primeiras são realizadas basicamente por fundos públicos alemães, o que permite maior independência – aliás, com curadores escolhidos por processos democráticos com profissionais da área.
Já a centenária bienal veneziana, a cargo da curadora italiana Cecília Alemani, segue próxima do mercado – apesar de, nesta edição, em todas as legendas as obras serem identificadas apenas como “cortesia do artista”, evitando assim o óbvio nexo. De qualquer forma, é explícito que a mostra italiana continua apresentando muito mais uma produção objetual, disponível em grande parte nas galerias poderosas do circuito, que vê a figura da artista e do artista como gênios individuais com um trabalho que valoriza o fazer em detrimento do conceito.
Enquanto isso, as exposições na Alemanha enfatizam processos, como dos trabalhos colaborativos, no caso da documenta, a cargo do coletivo indonésio ruangrupa; ou de denúncia social, como em Berlim, que tem à frente o artista franco-marroquino Kader Attia. Contudo, é inegável que ver Veneza é um prazer: a maior parte das obras parte de um acabamento estético primoroso, além de estar buscando um efeito de reparação à própria história da bienal.
Isso porque em cerca de 200 artistas presentes, 180 nunca participaram desta que é considerada a primeira bienal – iniciada em 1895 –, sendo que a maioria composta por artistas mulheres, além de um significativo aporte de negras, indígenas e figuras do Sul Global. As mostras alemãs, por outro lado, são muito mais contemporâneas de fato.
A documenta, com seu orçamento multimilionário de mais de 42 milhões de euros (R$ 232 milhões) consegue fazer algo que, desde o início da produção contemporânea, lá nos anos 1960, busca-se de fato: acabar com a representação para tornar a vivência o principal sentido da arte. Com cerca de 70 coletivos, que por sua vez mobilizaram mais de 1.500 artistas no total, a mostra em Kassel traz uma energia vibrante para apontar como a arte pode transformar o mundo, seja através de processos educativos, seja no cuidado com o ambiente, entre várias temáticas abordadas.
Já Berlim aposta na necessidade de denúncia, de apontar para questões que nem sempre estão visíveis, seja dos abusos pela polícia norte-americana contra imigrantes latinos, seja sobre como algoritmos conduzem o mundo para a direita. Tudo isso, importante dizer, sem abrir mãos de elementos estéticos que permitem que esses debates aterradores estejam no campo da arte. De qualquer maneira, cada uma a seu modo, essas exposições conseguem se complementar pois reúnem formas de trabalhar que, mesmo contraditórias em alguns casos, seguem sendo realizadas e constituem a complexa cena contemporânea atual.
Tivemos a oportunidade de acompanhar, nesses três meses, o debate que diversas mostras internacionais apresentaram para o mundo da cultura e da arte. Após o momento de privação que vivenciamos durante os dois últimos anos, elas refletem, ainda mais, as polarizações econômicas, sociais e políticas globais, em que a arte está tendo um papel notável como transmissor dessas disrupções.
Em vários de seus artigos nesta edição, o crítico e membro de nosso conselho editorial, Fabio Cypriano, descreve muito bem a complementariedade e a diversidade que aparecem nestas edições da Bienal de Veneza, na Itália, da Bienal de Berlim e da documenta quinze, em Kassel, ambas na Alemanha.
Há, porém, um denominador comum no intento de denunciar, de uma ou outra forma, a ferocidade com que o homem vem lidando repetidamente com o outro.
A necessidade de apagar o passado – segregações raciais e religiosas, invasões territoriais, massacres – ou confundir o presente usando-se dos avanços científicos e tecnológicos – fake-news, vigilâncias e centralização de dados digitais, milícias. Todas são, enfim, manobras a serviço de não refletir sobre esse passado colonial tão violento, marcado pelo abuso de poder e pela necessidade de uma perversa opressão do outro.
Frente a isto, Kader Attia, artista, filósofo e diretor criativo responsável pela Bienal de Berlim, conclama a militar, como forma de reparação, pela retomada de atenção por parte dos indivíduos, para tudo aquilo que nos rodeia. Certamente um dos pensadores mais agudos da problemática internacional, ele foi entrevistado pela arte!brasileiros, na capital alemã.
Para ele, perdemos a capacidade da “atenção”, de parar para ver, parar para entender, para nos emocionar. Consumimos imagens e informações soltas, meros objetos. Assim sua potente mostra se propõe a criar ligações sutis, com espaços intersticiais, em que, depois de imagens aterradoras, espera-nos um texto do psiquiatra e escritor anticolonialista Frantz Fanon, conclamando pelo humano: ”A única possibilidade de recuperar o equilíbrio é enfrentar todo o problema, já que todas estas descobertas e indagações levam apenas a uma direção: fazer o homem admitir que ele não é nada, absolutamente nada. E que ele deve por fim ao narcisismo em que se apoia para imaginar que ele é diferente dos outros animais”. (Black Skin, White Masks, 1952).
Esta crítica aparece também, implícita na proposta da documenta quinze, cujo diferencial com qualquer outra mostra anterior deixou perplexos desde alemães até brasileiros. Dirigida pelo ruangrupa, coletivo vindo da Indonésia, decidiu fazer da mostra uma obra, cujo corpo é formado por infinitos corpos.
A proposta associa a arte às práticas cotidianas e aos costumes de 14 outros coletivos de artistas vindos da Nigéria, do Camboja, das Américas e Indonésia.
Não se pode entender essa experiência sem perceber que ela não está nas suas partes e sim em um todo, cujo significado é a importância de aprender sobre diferenças e como conviver com elas.
A importância está dada em como partilhar conhecimentos, como cuidar do outro, como grupos distintos pensam a defesa do meio ambiente, organizam-se para um futuro sustentável e como a arte pode ajudar como catalisador.
A rigor, já nos anos 1980, na documenta sete, apesar de não vir de um coletivo, uma proposta parecida se transformou num dos paradigmas da arte contemporânea, quando o artista Joseph Beuys apresentou um dos maiores projetos de arte pública e ecológica, 7000 Carvalhos, em que, defendendo a proposta de escultura social, ele plantava sete mil árvores numa cidade de terra arrasada. Assim, ele trazia à tona um dos maiores bombardeios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, na cidade que deu início à documenta em 1955.
Hoje, 40 anos depois, quem entra em Kassel, vindo da principal estação de trem, não tem como não se emocionar ao ver uma frondosa alameda florida na primavera, crescendo ao lado de rochas, depositadas ao lado de cada árvore.
Há luz no fim do túnel, desde que resgatemos a pulsão de vida. E, como diria Deleuze, a alegria. A arte tem que sair do circuito que a transforma em mercadoria, tem que incomodar e fascinar.
"Antropofagia", Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Isabella Matheus / Acervo da Fundação José e Paulina Nemirovsky em comodato com a Pinacoteca de São Paulo
É possível imaginar o quanto já foi escrito sobre o modernismo de São Paulo, desde 1922. Um número incalculável de artigos de jornais e revistas, memórias, livros, dissertações e teses, assim como exposições, catálogos, palestras e cursos. É justamente esse conjunto de reflexões que fez com que o modernismo paulistano – e seu ponto crucial, a Semana de Arte Moderna de 1922 – com o tempo se tornasse um mito, símbolo da renovação da arte e da cultura brasileiras, um processo contínuo de renovação.
Porém, se muito se escreveu sobre a importância (ou não) da Semana de Arte Moderna e sobre os efeitos do modernismo no campo da literatura do País, parece-me que menos problematizada foi a questão das artes visuais.
Não quero afirmar que, em comparação ao papel do modernismo paulista na literatura, existam menos estudos no campo das artes visuais. Pode ser até que de fato isso ocorra, mas não é este propriamente o problema. O que interessa sublinhar é: se a história do modernismo literário de São Paulo é repleta de análises que reelaboram ou colocam em perspectiva as visões mais canônicas que foram construídas sobre o fenômeno, o mesmo não ocorre com as artes visuais. A narrativa criada sobre elas encontra-se apaziguada, seus pressupostos já naturalizados. Estudamos Anita Malfatti, estudamos Candido Portinari, entre outros, mas são raros os estudos que problematizem o que se convencionou entender sobre o modernismo paulista nas artes visuais.
“Antropofagia”, Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Isabella Matheus / Acervo da Fundação José e Paulina Nemirovsky em comodato com a Pinacoteca de São Paulo
Mas, afinal, o que se convencionou entender como o modernismo nas artes visuais? Suprimindo alguns eventos também considerados importantes, vamos lá:
1917/1918 – Exposição de Malfatti em São Paulo e a crítica de Monteiro Lobato “contra” a artista;
1919 – A “descoberta” de Victor Brecheret por Menotti Del Picchia, Helios Seelinger e outros;
1920 – A primeira maquete do escultor para o Monumento às Bandeiras;
1922 – Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, a Semana de Arte Moderna, contando com uma exposição no Theatro Municipal de São Paulo, “apresentando” ao público obras e de Malfatti, Brecheret e Emiliano Di Cavalcanti, entre outros. A exposição – como todo o evento – teria sido recebida com escândalo;
1924 – Manifesto Pau-Brasil;
1924 – Primeira exposição individual de Tarsila em Paris;
1928 – Lançamento do Movimento Antropofágico em São Paulo;
1929 – Primeira exposição individual de Tarsila no Brasil (Rio de Janeiro);
1932 – Criação da Sociedade Pró-Arte Moderna e do Clube dos Artistas Modernos, em São Paulo.
Seria possível continuar acrescentando datas a essa lista até desaguarmos numa espécie de apoteose, na criação dos museus de arte na cidade de São Paulo, o Masp, em 1947 e o MAM-SP, em 1948, sendo que, em seguida, poderíamos acrescentar 1951, data da inauguração da I Bienal Internacional do Museu de Arte Moderna de São Paulo[1].
Se na história da literatura modernista a supremacia do modernismo foi inúmeras vezes questionada, no caso das artes visuais ela há décadas se cristalizou como uma narrativa nascida a partir de uma inquietação apenas individual – leia-se Anita Malfatti –, até transformar-se em uma necessidade e ação coletivas – a criação dos museus de arte em São Paulo. Esse relato triunfante teve um arquiteto: o intelectual Paulo Mendes de Almeida, autor da obra De Anita ao Museu que, antes de ser lançado em forma de livro, foi publicado como uma série de artigos na imprensa paulistana, durante os anos 1950[2].
É claro que De Anita ao Museu não foi o único elemento a contribuir para a construção dessa visão – hoje naturalizada – de que, no campo das artes visuais, o modernismo teria se desenvolvido sem fissuras. Embora considere que o livro de Almeida se tornou a espinha dorsal desse processo de mitificação do modernismo, outros fatores também contribuíram para a construção do mito.
Assim, interessaria atentar para certos momentos daquela história ideal em que ela se chocou com situações concretas que – caso tivessem sido levadas em conta –, teriam retirado qualquer possibilidade de pensarmos que as artes visuais, de Anita aos museus, desenvolveram-se em São Paulo sem rachaduras, em um processo coeso, bem articulado e jamais interrompido.
Talvez o fato que mais comprometa essa visão tão idealizada encontre-se ainda perdido em alguma publicação obscura ou em um livro de memórias mal divulgado, ou mesmo num diário esquecido em uma gaveta qualquer. Porém, é quase inacreditável que um dos principais testemunhos de cisões dentro do modernismo de São Paulo encontra-se documentado em uma das mais importantes publicações do período, a Revista de Antropofagia, lançada em São Paulo em 1928 e que circulou até meados do ano seguinte.
De fato, ninguém parece ter dado a devida atenção para o que demonstra aquela publicação em relação às artes visuais em São Paulo.
Foi nas páginas da Revista de Antropofagia em que saiu publicado um artigo dividido em cinco partes de autoria do intelectual Oswaldo Costa.
***
“Cartão-Postal”, Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Coleção Particular RJ
Hoje um nome praticamente esquecido no debate cultural, Oswaldo Costa foi um dos profissionais importantes da crítica cultural e da crítica de arte da segunda metade da década de 1920, em São Paulo.
Nascido no Pará em 1900, foi para o Rio de Janeiro no início dos anos 1920 para estudar advocacia e, no final da década, encontrava-se em São Paulo trabalhando no Correio Paulistano e, mais tarde, também na Revista de Antropofagia. No jornal, em alguns de seus textos, assinava com o pseudônimo Antônio Raposo (que também usava na Revista), curiosamente um nome que fazia referência a Antônio Raposo Tavares, um bandeirante ativo no Brasil entre os séculos 16 e 17.
Foi no Correio que Costa publicou artigos sobre alguns modernistas, entre eles Gregori Warchavchik[3] e Tarsila do Amaral. Sobre essa última, Costa, ao que se sabe, publicaria dois textos: o primeiro, no dia 21 de setembro de 1929, o autor não assina o artigo; no dia seguinte, no entanto, usando os mesmos argumentos e assinando como Antônio Raposo, o crítico situa Tarsila como o nome mais significativo da pintura brasileira da época, e Cartão-postal, como sua principal obra[4].
Alguns de seus textos publicados na Revista de Antropofagia, deixam claro que, para os antropófagos, o modernismo de 1922 havia soçobrado num mar de compadrismo e de falta de criatividade. E isso, não apenas no terreno da literatura, mas igualmente – ou sobretudo – no âmbito das artes visuais.
***
Antes de trazer alguns dados para a questão, importa não esquecer que Oswaldo Costa não passou despercebido, nem pela crítica e pesquisadora Aracy Amaral e nem pelo intelectual e poeta Augusto de Campos. A autora, no livro que publicou sobre Tarsila do Amaral[5], atenta para o posicionamento crítico de Oswaldo Costa em relação a Tarsila, visíveis nos dois artigos citados. Porém, Amaral não deixa pistas para que o leitor se familiarize com a escrita de Costa, descobrindo que, para ele, a pintura moderna no Brasil teria começado com Tarsila (e não com Anita, ou Di ou Lasar Segall ou qualquer outro artista ligado à Semana de 1922).
Augusto de Campos, na introdução da edição facsimilar da Revista de Antropofagia[6], salienta a importância do intelectual no âmbito do Movimento Antropofágico. Embora, de maneira discutível, trate Costa como um “doublé de Oswald (até no nome)”. De qualquer maneira, o poeta o considera o único intelectual que, na Revista, se “identificava plenamente com as ideias revolucionárias do Manifesto” concebido por Oswald de Andrade, e publicado no primeiro número da Revista.
Embora Campos saliente que, para os antropófagos, o modernismo de São Paulo teria sido “uma fase de transição, uma simples operação de reconhecimento e mais nada”, o autor não aprofunda o clima de cisão que existia nos textos de Oswaldo Costa que, a certa altura, chega a perguntar: “em sete anos que resultou para nós da Semana de Arte Moderna?”[7]
Creio que aqui caberia a pergunta: por que Aracy Amaral e Augusto de Campos, intelectuais tão argutos, não aprofundaram os elementos de cisão em relação ao modernismo de 22, explicitado no texto de Costa? Se Amaral nada pronuncia a esse respeito, o máximo a que Campos se permite é a seguinte consideração:
Se não se preocupam exclusivamente com literatura, não deixam os “antropófagos” de fazer a crítica interna do modernismo e o corpo de delito de todos quantos, seguidores de primeira hora do movimento, derivaram para uma atitude moderada ou reacionária. Disso se encarrega sistematicamente Oswaldo Costa…[8]
A crítica que Oswaldo Costa fazia ao Modernismo não era “interna”. Ao opinar sobre o modernismo supostamente acanhado de Mario de Andrade e outros, Costa se colocava fora daquele movimento, entendendo a si e aos demais “antropófagos” como a superação do Modernismo de 22, e não a sua continuidade.
***
Fotografia do casamento de Pagu e Oswald de Andrade; da esq. para dir., Oswald, Pagu, Leonor e seu esposo Oswaldo Costa. Foto: Arquivo MIS / Reprodução
Mas essa maneira de pensar o modernismo paulista como uma árvore que, após a Semana de Arte Moderna, teria dado muitos e diversos frutos, como se sabe, não se encontra apenas em Augusto de Campos. Outros autores e autoras persistiram e persistem nessa compreensão grandiosa do modernismo de São Paulo e sua influência hegemônica sobre a arte e a cultura do país.
Ao ler o recém-lançado diário de Oswald de Andrade – Diário confessional[9] – fica nítido como, mesmo para o principal nome do Movimento Antropofágico era difícil pensar 1928, data do Manifesto Antropófago, como uma cisão fundamental com o Modernismo de 1922.
Em determinado trecho de suas anotações sobre os 30 anos da Semana de Arte Moderna, até então inéditas, ele parece que vai se posicionar como um partidário da ruptura do Movimento Antropófago com o Modernismo: “[…] Já em 28, dava-se o estouro e a compromissão [sic] política em que se forjaria o Brasil novo. Foi aí o divisor das águas brotadas em 22. A Antropofagia, pela sua revista, congregou os que iriam comigo, mais tarde, para o marxismo e para a cadeia.”[10] Mas para ele, a divisão também não significava rompimento. Tanto é verdade que, mais adiante, ele continua sua reflexão sobre o Movimento Antropofágico como “divisor das águas brotadas em 22”:
[…] O divisor de águas de 28 provocara uma manifestação de conteúdo que separava os modernistas em quatro grupo, obrigando-os a exibir, afinal, uma identificação política.
Em 22, houvera uma unidade proclamada pela liderança de São Paulo […] mas, com as transformações do mundo na década de 20, urgente fora que cada um vestisse a sua camisa ideológica.[11]
Embora esse trecho possa fazer supor que Oswald entendeu que, em 1928, essa divisão de águas poderia significar um rompimento efetivo com o passado modernista, pouco mais tarde ele se exprime, sem cerimônia, sobre a “maturidade da Semana”, demonstrando, então, que para ele não teria havido ruptura entre 1922 e 1928 (para permanecermos nessas datas simbólicas):
A maturidade da Semana já produziu três figuras de excepcional segurança e relevo: uma desconhecida, a do jovem crítico paulista Mário da Silva Brito […] As duas outras são as do romancista Gustavo Corção e do poeta Cassiano Ricardo. São três derivados da Semana e neles se estabelece o triunfo de nossas inquietações e pesquisas de 22[12].
Outro dado a enfatizar é que nesse balanço, Andrade demonstrará mais preocupação ainda com a literatura e a poesia do Brasil, pouco se dedicando às artes visuais. De qualquer maneira, ele reconhece a importância de artistas do Modernismo “histórico”, como Di Cavalcanti e Victor Brecheret[13].
Em determinado parágrafo, inclusive, Oswald demonstra uma inequívoca satisfação em reconhecer como o Modernismo se institucionalizava junto às elites paulista e carioca, recebendo a adesão do próprio presidente da República:
Hoje, quando a gente mais civilizada do Brasil, Ciccillo e Yolanda Matarazzo, em São Paulo, Niomar e Paulo Bittencourt, no Rio, dirigem a avançada triunfal do modernismo, quando a visão do sr. Getúlio Vargas oficializa a Semana, obrigando conhecidos paquidermes a pronunciar publicamente confusas besteiras adesistas, bem como a Academia Brasileira a dobrar o joelho reumático diante de nós, quando é levado ao governo de Minas Juscelino Kubitschek, o homem que muitos anos atrás chamou Oscar Niemeyer e Guignard para darem continuidade estética à grande Minas dos Inconfidentes e do Aleijadinho, difícil é ser passadista.[14]
Interessante como, nessa visão triunfalista de Oswald sobre o fenômeno artístico e cultural do País, de 1917 a 1952, ele está mais próximo de Paulo Mendes de Almeida, do que seu parceiro antropófago, Oswaldo Costa.
***
Interessa saber e refletir sobre como Oswaldo Costa se referia, tanto à produção de Victor Brecheret quanto àquela de Anita Malfatti.
Em Moquem II – Hors d’oeuvre, atentando para a crescente decadência do Modernismo, Costa explicita seu ponto de vista sobre a carreira de Brecheret:
… Por isso é que o Brecheret de Eva, capaz de nos dar uma obra interessante – apenas interessante, na minha opinião, porque eu não creio no sr. Brecheret – foi trocado pelo Brecheret insuportavelmente medíocre dos pastiches de Mestrovic, arte falsa, decadente, sem nenhuma expressão, superficial, chata e burguesa[15]
“Eva”, Victor Brecheret. Foto: Creative Commons
Por esse comentário que desqualificava a trajetória do escultor após seu primeiro estágio europeu, percebe-se que o crítico possuía alguma intimidade com a produção do escultor, e que estava atento à adesão do então jovem artista às formulações de Ivan Mestrovic, escultor croata com importante presença no restante da Europa, engajado na constituição de um corpus escultórico ao mesmo tempo distanciado dos cânones da escultura verista – tão forte na Itália do início do século passado –, e comprometido com uma linguagem moderadamente sintética, com uma adesão comedida à modernidade do período.
***
Na edição de 24 de abril da Revista, continuando o artigo, Oswaldo Costa desbanca Mário de Andrade como intelectual e crítico (a única produção de Andrade que Costa parecia respeitar era Macunaíma). Ele volta a desbancar Brecheret e, com a intenção de continuar o ataque a Mário de Andrade, envolve um trabalho de Anita Malfatti, mais especificamente uma pintura que a artista havia produzido em Paris e que contara com o apoio de Mário de Andrade para que o Estado de São Paulo o comprasse: a Ressureição de Lázaro: “Ora, quem se baba diante dos pastiches cretinos de Brecheret – arte de Saint Sulpice, como disse muito bem Fosca. Quem destaca na exposição de Anita, o que nela havia de ruim, o Lázaro”.[16]
***
Em março de 1929, Helios (pseudônimo de um dos modernistas de 1922, Menotti Del Picchia), publica no Correio Paulistano, na seção “Crônica Social”, o artigo “Crise no Modernismo”[17]. O poeta inicia o texto afirmando que o “modernismo estético” de São Paulo vivia uma crise da qual, talvez, não conseguisse escapar. Irônico, afirma que, talvez a Antropofagia “do Oswald d´Andrade” tivesse despertado nos “artistas de vanguarda”[18], uma gula que faria com que se comessem uns aos outros.
Menotti se explica:
O fato é que Brecheret – o formidável escultor de Eva, que com Anita Malfatti representou na arte plástica, o grito de renovação – começa a ser considerado passadista… Para mim, o criador ciclópico de tantas coisas admiráveis, apesar de se ter metido por um beco de arte perigoso, intelectualizado e amaneirado, continua a ser um dos maiores artistas nascidos no Brasil[19]
Sobre Anita Malfatti, Helios afirma:
Anita vai pela mesma rampa, no conceito dos que precipitam a arte pela ladeira abismal de todos os “ismos” … Anita também, como Brecheret, precisa fazer u´a marcha-a-ré e voltar àquelas expressões sadias e fortes da arte pessoal e admirável que já soube documentar com belíssimas telas. Mas Anita é ainda, como Brecheret, santo do meu mais alto culto. Grande talento, grande sensibilidade, grande cultura[20].
Como visto, o autor reforça a impressão de que a pintura de Malfatti havia regredido em qualidade, mas não deixa de registar que ela, como Brecheret, estava em alta conta em seu altar.
Essas declarações sobre os dois artistas – diga-se de passagem – retratam bem o quanto Menotti Del Picchia se esforçava, em seus artigos e crônicas, em atenuar as críticas que poderia ter em relação à produção de um artista ou literato, buscando um equilíbrio entre o apreciar e o não apreciar, entre o respeito à individualidade do autor (ou autora) e a adesão a determinadas escolas etc.[21].
O artigo segue salientando que o verdamarelismo[22] também tinha sido atacado, assim como o “macunaísmo”, ou seja, Mário de Andrade.
Caminhando para o final do artigo, Helios chama a atenção para um fato para ele fundamental: enquanto se desencadeava a crise a que aludira no início, “o passadismo entra na idade do ouro”. Diante de tal perigo, ele termina o texto, de forma conciliadora, exortando os modernistas a reverem suas posições:
Diante de tão grave crise, proponho um armistício geral na ala da frente: uma reação solidária, fraterna, formando uma fronte única. Sus! Na estacada, os verdamarelos, antropófagos, macunaimos, livre atiradores, frondistas de todas as cores, rebeldes de todos os credos!
Sus! Agi antes que nas nossas praças articulem algum outro monstro de bronze e nossas galerias se inflamem com algum outro cromo, parecido com o cartaz das pastilhas do dr. Richard […][23]
***
Alguns dias depois, Helios publicaria o artigo Carta aos antropófagos, em que, não sem ironia, descreve o almoço que os responsáveis pela Revista fizeram em homenagem ao palhaço Piolim.[24] O autor chama a atenção para o caráter previsível da refeição. Ele parecia esperar um encontro mais original, tratando-se de um evento formulado por antropófagos!
Ali, Helios atenta também para algo que vem reforçar a dimensão de ruptura entre os antropófagos e os líderes de outras vertentes atuantes em São Paulo. Nota a ausência, no almoço, do “grupo Macunaíma” – leia-se Mário de Andrade e seguidores. Para o cronista, Piolim parecia estar acima de qualquer rixa entre grupos. Ele também chama a atenção para a ausência dos verdamarelos Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Candido Motta Filho e Alfredo Ellis Jr[25]. Ao se perguntar o porquê da ausência desses seus companheiros, menciona Oswaldo Costa pela primeira e única vez:
Por quê? Já foram acaso comidos pelos antropófagos? O Bopp terá devorado Plínio? O Oswald d’Andrade teria moqueado Cassiano? E o Motta magruço, nervoso, osso e músculo quem teria ousado papá-lo? E o Ellis […] estaria, como Jonas, debatendo-se no ventre do Oswaldo Costa?
Mistérios… O fato é que as tribos andam em guerra[26]
Menotti termina o artigo pesaroso com a situação de esfriamento entre os grupos, dirigindo-se aos antropófagos também de maneira conciliatória:
Eu sou pela paz. À margem, quieto, anotando, arrasto a tristeza de um pai velhusco que vê a família desunida…
Meus caros Cunhambebes: eu vos saúdo do fundo do coração e apresto meu cachimbo para sempre trocarmos as baforadas do fumo da amizade.
Vosso sempre para novos ágapes.
***
Apesar das propostas de armistício de Menotti Del Picchia, as cisões entre os antropófagos de São Paulo e seus ex-companheiros tenderão a se agravar ainda mais. Daquele final de década em diante, cada um daqueles grupos (e, de certo modo, cada um dos indivíduos que os formavam) começará a caminhar separadamente, solitários, ou em grupos mais reduzidos, em direções opostas.
Assim, o mito de um modernismo triunfante, como já mencionado, apenas seria constituído com a criação dos Museu de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que transformaram a Semana de Arte Moderna de 1922, em berço esplêndido da arte moderna não apenas de São Paulo, mas de todo Brasil.
[1] – Sobre as relações entre o modernismo paulista e a criação dos museus de arte no final dos anos 1940, consultar: – CHIARELLI, Tadeu. “Arte em São Paulo e o núcleo modernista da Coleção”. IN MILIET, Maria Alice (ed.). Coleção Nemirovsky. Rio de Janeiro: MAM, 2003. E, do mesmo autor: “Que pena Oswald não ter nascido no Rio, né?”. Conversa de bar(r) Plataforma digital da revista ARTEBrasileiros! 7 de fevereiro de 2022. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/modernismo-ruy-castro/
[2] – ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976 (Segunda edição: São Paulo, Terceiro Nome, 2014).
[3] – Segundo herdeiros do arquiteto Gregori Warchavchik, Oswaldo Costa teria publicado o seguinte texto sobre a “Casa Modernista” projetada pelo arquiteto, em São Paulo: “A primeira realização da arquitetura moderna em São Paulo”. São Paulo. Correio Paulistano. 8 de julho de 1928, p.3. Os dois artigos sobre Tarsila foram republicados em AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975. Pág. 463 e segs., vol. I.
[4] – “EXPOSIÇÃO Tarsila do Amaral”. Correio Paulistano. São Paulo, 21 de setembro de 1929 p. 5; “Tarsila”. RAPOSO, Antonio. “Tarsila”. Correio Paulistano. São Paulo, 22 de setembro de 1929, p.2.
[5] – AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975. Pág. 267, vol. I.
[6] – “Revistas re-vistas: os antropófagos”. Augusto de Campos. IN Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária Publicada em S. Paulo – 1ª. e 2ª. dentições, 1928/29. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
[15] – “Moquen II – Hors d’oeuvre”. Oswaldo Costa (Como Tamandaré). Revista de Antropofagia. 14. 04, 1929
[16] – “Moquem III – Entradas”. Oswaldo Costa (como Tamandaré), Revista de Antropofagia24. 4. 1929. Aqui, Costa faz referência à pintura Ressureição de Lázaro, de Malfatti (hoje no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo), obra de qualidade discutível, dentro do conjunto de pinturas da artista, e que Andrade elogiou, visando interferir na decisão do Governo em comprar a peça. Em carta do crítico para a pintora, Mário afirma que pela amizade entre ambos, ele mentira publicamente sobre a obra, fornecendo-lhe qualidades que ela não possuía. Sobre o assunto, ler: ANDRADE, Mário. Mário de Andrade. Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
[17] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Crônica Social. Correio Paulistano. 20 de março de 1929, pág. 5.
[18] – É importante frisar que Helios deixa clara a divisão que faz da arte moderna: de um lado, os modernistas, “artistas de vanguarda”. Do outro o “novo espírito estético, que esse é um estado de consciência, logo uma vitória universal”. O autor se colocava nessa segunda vertente mais comedia. Sobre o assunto, ler: “”Sou moderno, mas não sou maluco”. Menotti Del Picchia e a arte”. No prelo.
[19] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.
[21] – Haveria nessa atitude o surgimento de algum tipo de ressentimento por parte do crítico, em relação aos dois artistas? Mais estudos poderão responder à pergunta.
[22] – “Verdamarelismo”, era a vertente modernista criada por Menotti, Plinio Salgado e Cassiano Ricardo, da qual também participavam, Raul Bopp (que depois migraria para a Antropofagia), Candido Motta Filho e Alfredo Ellis Jr.
[23] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.
[24] – “Carta aos antropófagos”. Helios (Menotti Del Picchia). Crônica Social. Correio Paulistano. São Paulo, 17 de abril de 1929, p. 4.
[25] – Importante reparar que pelo que Helios afirma, parece que apenas ele, Menotti, teria ido ao evento organizado pelos antropófagos. Sua postura conciliadora teria sido mais forte do que a atitude de Mário e seus companheiros, e de seus colegas do movimento Verdamarelo. Menotti ser o único “não antropófago” no banquete, diz muito sobre a personalidade do intelectual, mas diz também bastante sobre como as relações entre os artistas e literatos da cidade estavam esgarçadas.
[26] – “Carta aos antropófagos”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.
Na América Latina a modernidade chega tardiamente sob a pressão do novo e com desejo de afirmação de uma nova estética. Na Europa o moderno exalta a cidade, o fenômeno da solidão, quase como uma celebração de um outro tempo. Jorge Luis Borges em Anatomia do Meu Ultra, ressalta que a estética é o arcabouço dos argumentos edificados a posteriori para legitimar os juízos que nossa intuição faz a respeito das manifestações de arte.
Em todas as latitudes, a modernidade coloca seus tentáculos sobre um pensamento que rejeita a tradição; no entanto, o arquitetoa e teórico Roberto Segre lembra: “Mesmo que os espanhóis tenham apagado as pegadas das primitivas civilizações americanas, ao destruir templos, palácios, estradas, eles adequam a grade urbana do novo tempo ao traçado original de Tenochtitlán, capital dos maias e Cuzco, capital inca. Com o tempo, algumas cidades quase estáticas por séculos começam a transformar-se sob a pressão da modernidade.” Os artistas latino-americanos repudiam os cânones tradicionais e, também como os europeus, exaltam a cidade. Essa inquietação espalha centelhas para além das artes plásticas e chega à literatura, poesia, arquitetura, música. O cotidiano das grandes cidades, nos anos 1920, é registrado pelos modernistas ora numa linguagem figurativa ora abstrata influenciada pelo modernismo dos centros artísticos europeus, passando pelo expressionismo ou, a partir de 1923, pelo cubismo e surrealismo. Alguns artistas recebem apoio financeiro da família, viajam para Europa, deixam-se influenciar pelo que vivenciam.
Em seu livro Modernidade Periférica, Buenos Aires 1920 e 1930, Beatriz Sarlo, a expressiva intelectual argentina, contrasta autores portenhos, sem dissociar vida e obra. No texto de abertura: Buenos Aires, Cidade Moderna, tenta desvendar o mundo multifacetado das pinturas de Xul Solar, ícone da arte argentina e muito próximo de Borges. “Sempre vi os quadros de Xul como quebra-cabeças de Buenos Aires. Mais do que sua intenção esotérica ou liberdade estética, impressionavam-me sua obsessão semiótica, sua paixão hierárquica e geometrizante”. Para ela, Buenos Aires, nas décadas de 20 e 30, era o ancoradouro urbano de fantasias astrais. Sarlo descreve a vanguarda portenha como filhos de endinheirados, quase em debacle econômico e de imigrantes como o pintor Emílio Pettoruti, considerado um dos fundadores do modernismo argentino. Em sua autobiografia Um pintor Ante o Espelho, o artista revela que sempre quis conhecer a terra de seus antepassados, e assim vai para Itália, onde reside em Florença, Roma e Milão, tem contato com os futuristas Carlo Carrà e Giacomo Balla. Inspirado pela Commedia dell´Arte Italiana, pinta arlequins e dedica parte de sua vida às naturezas mortas. Antes de voltar a Buenos Aires expõe em Berlim, na galeria Der Sturm, e ainda vive seis meses em Paris. Quando volta à Argentina, Pettoruti influencia artistas e ensina o público a ver territórios ainda inexplorados naquela época. Em 1971, ano de sua morte, ele é homenageado com sala especial na 11ª Bienal Internacional de São Paulo.
1 de 2
Emilio Pettoruti, "Arlequín", 1928, reproduzido no catálogo "Pettoruti" editado pela Fundación Pettoruti em 1995, Buenos Aires, ficha Nº 259.. Foto: Foto: Direitos reservados a Fundación Pettoruti - www.pettoruti.com
Emilio Pettoruti, “El Improvisador”, 1937, Reproduzido no catálogo “Pettoruti”, editado por Fundación Pettoruti em 1995, Buenos Aires, ficha Nº 305. Foto: Direitos reservados a Fundación Pettoruti - www.pettoruti.com
Para a crítica argentina Marta Traba, o processo de modernidade em países da América Latina deve ser observado como áreas abertas e áreas fechadas; para o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, como povos testemunhos, povos novos, povos transplantados. Ou simplesmente, como teoriza Aracy Amaral, a partir do reconhecimento da existência de duas América Latinas: a das áreas ancestrais mexicanas, maias e andinas e, de outro lado, a desprovida de uma sólida cultura remota, como os países da área Atlântida, em particular Venezuela, Brasil, Uruguai, Argentina e parte do Chile.
Décadas antes do modernismo, a teoria da arte era algo que enriquecia as conversas sobre questões culturais, mas no seu auge é uma necessidade. No México nos anos 1920 os artistas tentam descobrir o ser nacional e individual. O muralismo e a gráfica aderem ao projeto nacional de reivindicação revolucionária que lentamente se institucionalizam. Jorge Schwartz, no livro Vanguardas Latino-Americanas, lembra que, enquanto Oswald de Andrade sonha com o matriarcado Pindorama, um grupo mexicano tem como utopia a fundação de Estridentópolis, um devaneio nascido de um movimento artístico de vanguarda, o estridentismo, que surge em Jalapa, Veracruz, em 1921.
Nada sonhador, o mexicano Diego Rivera dá relevo aos temas sociais e políticos com os quais está comprometido. Casa-se com Frida Kahlo na época em que intensifica os murais com temas que refletem o mundo à sua volta. Viaja a Paris e lá conhece intelectuais como Breton e Picasso, que se interessa pela sua obra. Desmond Rochfort, em seu livro Pintura Mural Mexicana, entende que nos anos em que Rivera pinta sua versão sobre a história do México, o enigma a ser resolvido é o da nação mexicana no momento em que a Revolução está no poder. Para o crítico, as visões do mundo moderno criadas pelos três grandes muralistas: Rivera, Orozco e Siqueiros, entre 1930 e 1940, situam-se no contexto de realidades contrastantes. “Para Siqueiros constituíam as bases de uma leitura profundamente parcial do mundo moderno. No caso de Orozco, os contrastes criam interrogação valorativa do conflito entre o ideal e a realidade. Na obra de Rivera, as dualidades do mundo moderno são tratadas com combinação de posições contraditórias, seja numa visão acrítica e mitificada da modernidade norte-americana ou por meio da retórica de seu socialismo revolucionário.” No início do século 20, quando surge o Movimento de Pintura Mural, o muralismo coloca como ponto central a elaboração de nova história que inclui o povo como ator principal, como etnia e classe. O movimento tem um viés pedagógico, uma vez que grande parte da população é analfabeta.
Joaquin Torres-García, New York Street Scene, c. 1920. Foto: Estate of Joaquín Torres-García / Catalogue Raisonné no. 1920.07
O Uruguai contribui para o movimento com um artista verdadeiramente internacional, Joaquin Torres-García, que desempenha um papel ativo tanto no movimento modernista de Barcelona entre 1892 e 1920, quanto em Paris de 1926 a 1932, além de seu protagonismo em Montevidéu. Como é inevitável, os artistas que se deslocam entram em contato com outros grupos locais que influenciam suas obras. Torres-García chega a Nova York em 1920, onde fica por dois anos. O impacto que a cidade mais moderna e dinâmica da época causa em sua obra é visceral, como ele relata no seu livro New York. Encantado com o que vê, regista nas telas letreiros luminosos, propagandas, casas vermelhas, amarelas, cinzas, letras flutuando. É o momento radical de sua produção que transborda e se notabiliza pela dinâmica única.
O modernismo alimenta forças antagônicas entre o atualizar e o interiorizar, entre a ruptura e a continuidade. O cubano Wifredo Lam, assim como Torres-García e Rivera, emprega rituais afros e mitos para criar um modernismo dinâmico. Rita Eder, historiadora de arte, observa que Lam se relaciona com Breton e Frida Kahlo reafirmando o poder das cosmologias pré-colombianas, por uma parte, e da África, por outra. As descobertas e os experimentos modernistas, especialmente na América Latina, são formas de os artistas reafirmarem uma nova maneira de ver, o que o resto da sociedade não consegue compreender.
EDUARDO SIMÕES é jornalista de cultura, com passagens por O Globo e Folha de S.Paulo, na cobertura das editorias de cinema e literatura. Foi ainda editor da arte!brasileiros, em 2015, e de diversos títulos de lifestyle. Também colaborador do Valor Econômico, ele assina a edição de textos neste número.
FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor-adjunto da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Nesta edição, fez as análises das bienais de Berlim e Veneza e da Documenta. Também participou da entrevista com Kader Attia.
LINE LEMOS é artista visual, quadrinista e zineira de BH. Mestre em História pela UFMG e estudante de Artes Plásticas na Escola Guignard, publicou, entre outros, os quadrinhos Artistas Brasileiras (Miguilim, 2018), que recebeu um Prêmio HQ MIX. É autora da ilustração da matéria Arte como respiro.
MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, fez a reportagem sobre o abandono no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, e a crítica sobre a exposição de Arthur Bispo do Rosário, no Itaú Cultural.
JOTABÊ MEDEIROS é repórter e escritor, biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e da Carta Capital. É editor-chefe do site Farofafá. Neste número, escreve sobre a crise da censura de obras no Masp.
Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). É colunista no site da ARTE!BRASILEIROS.
Equipe do Festival Imaginária: Daniela Moura, José Fujocka, Luciana Molisani, Daniele Queiroz Éder Ribeiro, Nathália Bertazi. Foto: Keiny Andrade
De amanhã (14) até domingo (17), acontece em São Paulo a primeira edição presencial do Festival Imaginária, evento que vai reunir mais de 30 expositores, entre editoras e autopublicadores de fotolivros do Brasil, da Argentina, de Hong Kong e outros países, em quatro andares do Edifício Vera, no Centro Histórico de São Paulo. A organização é da Lovely House, editora fundada em 2018 por Luciana Molisani e José Fujocka, que se dedica à pesquisa, publicação e divulgação de livros de arte, com ênfase na fotografia e em livros de artista, nacionais e estrangeiros.
Os expositores vão apresentar cerca de 400 títulos, de autores brasileiros e internacionais. Entre os destaques estão Asphalt Flower, de Claudia Jaguaribe; A Mesma Luta, de Rosa Galditano; Rio Baile Funk, de Vincent Rosenblatt; Atlas Drag, de Regis Amora, e Curso y Discurso, de Ricardo Báez, Gonzalo Golpe e Alejandro Marote.
A programação também vai abrigar mostras internacionais, como Constelações Latinas, com curadoria de Luciana Molisani e Daniele Queiróz; exposições de títulos do Hong Kong Photobook Festival de 2021 e do Prêmio Internacional FELIFA de 2021; e o Prêmio Lovely 2022, um concurso de maquete de livro fotográfico, dividido em duas categorias, Fotolivro e Fotozine, ambos com projetos inéditos.
O festival terá ainda um ciclo de conversas, com curadoria de Daniela Moura e da Lovely House. Em foco, reflexões sobre a publicação impressa como suporte indispensável da fotografia contemporânea. Ele acontecerá de forma presencial, no Edifício Vera, mas também haverá transmissões por meio de um aplicativo de videoconferência. Para saber mais detalhes dessa programação, acesse festivalimaginaria.com.br.
Todas as atividades são gratuitas, com exceção das oficinas. Entre elas, a do Clube do Fotolivro. Uma iniciativa de Andressa Ce, o Clube vai receber no domingo (17) dez participantes no festival, para apresentar seus protótipos de uma publicação em processo. Após a apresentação, haverá uma discussão coletiva entre os participantes, e outras pessoas interessadas, sobre esta etapa da produção de um livro. As vagas serão preenchidas por ordem de inscrição. Para se inscrever, basta preencher o formulário disponível no site do festival. Os selecionados serão avisados por e-mail.
SERVIÇO
Festival Imaginária
De 14/7 a 17/7
Edifício Vera – Rua Álvares Penteado, 87, centro histórico de São Paulo
Horários: de quinta-feira a sábado, das 14h às 19h; domingo, das 13h às 18h
"O fim continua_Barro-cerâmica", de Tatiana Blass, exposta na individual "Reviravolta", na Galeria Millan. Foto: Ana Pigosso
Que Tatiana Blass é uma das principais artistas de sua geração, isso todos nós já sabíamos; que ela continuava a desenvolver seu universo poético e a expandir sua linguagem com a mesma potência do início, isso é um dado novo. Ou melhor, um dado novo pelo menos para mim que, já faz alguns anos, não observava sua produção.
A mostra Reviravolta que a artista apresenta até o próximo dia 16 de julho na Galeria Millan, demonstra como Tatiana mantém a potência de seus trabalhos de início de carreira, de alguma maneira, ainda conseguindo tensionar a pintura e sua história, por meio de três movimentos:
Em primeiro lugar pela representação de espaços tridimensionais (salas, palcos?), condicionando-os irremediavelmente às duas dimensões da tela ou do papel ou do vidro.
O real tensionado na representação, os tons baixos, todas aquelas áreas trabalhadas por alguém que conhece as pinturas de Alfredo Volpi e Paulo Pasta, mas que não se contenta em ser mais um epígono obediente dos dois artistas, um desses adeptos interessados apenas em cristalizar determinadas soluções plásticas logradas com êxito por ambos.
Tatiana parece partir da pintura de Volpi e Pasta para trazer mais alguns dados à linguagem pictórica, ampliando soluções conhecidas, experimentando superfícies e transbordamentos que acabam por escapar ao rigor dos artistas mais velhos, ansiando por esbarrar e penetrar de maneira mais efetiva em outras áreas talvez mais alusivas.
1 de 3
Vista da exposição "Tatiana Blass: Reviravolta", na Galeria Millan. Foto: Ana Pigosso
Vista da exposição "Tatiana Blass: Reviravolta", na Galeria Millan. Foto: Ana Pigosso
"Os sentados", de Tatiana Blass. Foto: Ana Pigosso
O segundo movimento de Tatiana fica mais evidente em uma pintura em que a busca do tempo na pintura – a pintura, a arte do espaço, o teatro, a literatura, as artes do tempo (ver Lessing) –, se transforma numa espécie de “efeito caleidoscópio”, em que as áreas internas da pintura se movem e se removem, com humor.
Interessante ver como décadas após Abraham Palatnik propor, de maneira solene, a sua “arte cinética” – uma pintura que, envergonhada, busca introduzir o tempo no espaço – Tatiana retoma o mesmo problema agora como uma espécie de brincadeira de criança, uma brincadeira tão séria que chega a emocionar.
O terceiro movimento de Tatiana concentra-se no transitar entre a pintura e a escultura, produzindo objetos ou “cenas tridimensionais” que ocorrem dentro de estruturas idealmente cúbicas, cenas pictóricas, teatrais.
1 de 3
Obra de Tatiana Blass exposta em "Reviravolta". Foto: Divulgação
Obra de Tatiana Blass exposta em "Reviravolta". Foto: Divulgação
Obra de Tatiana Blass exposta em "Reviravolta". Foto: Divulgação
O uso dessas caixas virtuais onde “ocorrem” as esculturas da artista é o mesmo procedimento usado há séculos por Nicolas Poussin para realizar suas pinturas (refiro-me às maquetes produzidas pelo artista, reproduzindo as cenas que iria pintar). Poussin lá no século 17 e Giacometti, no século 20 – com seus cubos vazados, onde “ocorriam” algumas de suas esculturas – também me faz retornar ao trabalho de “desmanche” das esculturas de Tatiana.
Nesses trabalhos Tatiana se vale de um procedimento tão tradicional (as maquetes de Poussin, as caixas de Giacometti!) e encontra – pasmem! – outros dois artistas, estes contemporâneos que, cada um a seu modo, transformam e borram os limites da escultura, da pintura e do teatro. Refiro-me a Claudio Cretti e Erika Verzutti.
Cretti, a partir da exploração de objetos inusitados e suas relações entre si e o espaço real, caminhou para a construção de “palcos” em que esses mesmos materiais conectados, transformados agora em figuras, reclamam para o fazer escultórico tanto o teatral quanto o pictórico.
Verzutti, por sua vez, ao incorporar as bases que recebem suas formas na configuração geral do trabalho também encontra a pintura e o teatro onde – para modernistas impolutos – só deveria existir escultura.
É neste sentido que caminha Tatiana Blass, enveredando para a criação de encenações que ficam nas bordas do real, ou introduzindo o tempo quando só deveria ter espaço, nos limites entre a pintura, a escultura e o teatro. No limiar da matéria e do vazio.
1 de 2
Obra da série "bijoux", de Claudio Cretti. Foto: Cortesia do artista
Obra da série "bijoux", de Claudio Cretti. Foto: Cortesia do artista
***
Interessante como tanto Cretti, Verzutti quanto Blass, por caminhos distintos e com resultados tão singulares, demonstram a necessidade imperiosa da arte contemporânea buscar sua origem (ali, onde o teatro, a pintura, a escultura e o tableau vivant se encontram) como uma espécie de salvo conduto para continuar existindo e significando algo nos dias de hoje.
SERVIÇO
Tatiana Blass: Reviravolta Galeria Millan: R. Fradique Coutinho, 1360 – Pinheiros, São Paulo (SP)
Em cartaz até 16 de julho
Visitação de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 11h às 15h
“Mais do que um fotógrafo, Penna é um construtor de imagens”. A frase do produtor e curador Baixo Ribeiro ganha mais sentido ao caminharmos por Labirintos Revisitados, em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo. Traçando diálogos com referências artísticas do universo da pintura e da cinematografia, os trabalhos expostos compõem narrativas que se aproximam de cenas oníricas e ficcionais. Com curadoria de Agnaldo Farias e cocuradoria de Baixo Ribeiro, a nova individual de Penna Prearo reúne 49 fotografias. Apesar da longa trajetória do artista, a mostra enfoca trabalhos recentes, produzidos nos últimos três anos. “Não é uma exposição retrospectiva e isso para mim conta muito. Eu tenho cá comigo, firme, que mesmo com 50 anos de estrada, se eu estou vivo e produzindo, eu não estou retrospectando nada”, compartilha.
As cores saturadas, as diferentes texturas e as interferências visuais nos saltam aos olhos. Como destacam os curadores, há décadas Penna Prearo quebrou o (discutível) pacto que impõe à imagem fotográfica o dever de capturar uma fração do mundo, de forma transparente. “Passou a fazer da imagem fotográfica um bumerangue que bate no mundo para voltar repicando sobre si”, escreve Agnaldo Farias no texto curatorial. “Essa imagem dá uma autêntica descrição do que a gente sente quando olha o trabalho do Penna. Não são imagens comuns, não são imagens simples. Não estão representando nada. Então, quando elas vêm, nos capturam, nos ocupam a vista e a percepção”, complementa Baixo Ribeiro.
“Para mim, a fotografia mudou completamente de eixo”, diz o artista, que acredita que desde o início do seu trabalho esse eixo já estava deslocado da captura do real. “Com o tempo, fui dominando essas ferramentas [da fotografia] – ferramentas de pensar, inclusive. No começo, por exemplo, tive que criar coragem para sair da foto única e montar esses painéis com muitas imagens – isso faz muito tempo, já. Eu falo criar coragem, porque foi exatamente isso que aconteceu. Eu liguei para dois, três amigos para saber se eu podia fazer isso… Imagina! Você pode fazer tudo que você quiser. Então, eu fui me libertando dos parâmetros mais óbvios da fotografia, que é o documento”, conta. Assim, mergulhou seu trabalho em outra lógica, e através do tratamento digital, construiu suas imagens.
A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com o cocurador e com o fotógrafo Penna Prearo. Confira:
Mais um dos parâmetros da fotografia do qual Penna Prearo se libertou foi a necessidade de uma câmera fotográfica profissional. Aos 71 anos, o artista lida com Parkison há cerca de sete. “Afetou a mão direita, mão da câmera e do mouse. O mouse eu me adaptei com a esquerda e passei a usar canetinha digital. Com a máquina eu sempre usei muito tripé, mas a câmera pesada eu não dou mais conta, porque a mão direita ficou quase que inerte”, assim passou a construir suas imagens a partir de um aparelho celular.
“Aí, eu não mordo a isca de que o celular mudou meu trabalho, facilitou. Ele melhorou. É uma ferramenta muito oportuna e veio na hora certa. E para mim resolver a questão, eu não parei de trabalhar. Eu trabalho todo dia, todo dia. Quer dizer, todo dia eu finalizo uma imagem e ao menos assim eu poderia fazer uma exposição do tamanho dessa, fazer umas duas iguais”. E complementa: “A coisa do Parkinson e da idade começou a mostrar que o que a gente sempre achou que a vida é curta, você descobre que o tempo é curto mesmo. E o celular nessa hora, então, joga pra frente.”
Obras da exposição Gira, de Jarbas Lopes, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR)/Foto: Wesley Sabino
O Museu de Arte do Rio abriga duas exposições simultâneas, em cartaz até setembro. Em Gira, Lopes, cuja trajetória na arte começou há 30 anos, propõe novos significados para objetos que foram descartados nas ruas, de jornais e revistas a faixas de divulgação de shows e propaganda política, com os quais ele criou esculturas e pinturas interativas. Com curadoria de Amanda Bonan e Marcelo Campos, a mostra reúne cerca de 100 obras que fazem parte da produção do artista, além de trabalhos inéditos e projetos que só existiam no papel. Lopes também apresenta fotografias, desenhos, livros, maquetes e instalações.
1 de 2
Obras da exposição Gira, de Jarbas Lopes, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR)/Foto: Wesley Sabino
Obras da exposição Gira, de Jarbas Lopes, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR)/Foto: Wesley Sabino
Já a mostra Coleção MAR + Enciclopédia Negra propõe uma reparação histórica, trazendo à luz trabalhos realizados por artistas contemporâneos, que retratam personalidades negras cujas imagens e histórias de vida foram apagadas ou nunca registradas. Antes do século 19, apenas os nobres eram retratados. Já negras e negros, foram fotografados, muitas vezes, em condições anônimas ou em cenas em que apenas aparecem carregando mercadorias em suas cabeças.
A exposição – que hoje reúne obras de 36 artistas contemporâneos no MAR – nasceu da colaboração entre os consultores e curadores Flávio Gomes, Lilia Schwarcz e Jaime Lauriano e teve sua primeira apresentação na Pinacoteca de São Paulo, em 2021. O trabalho resultou também no livro Enciclopédia Negra, que reuniu biografias de mais de 550 personalidades negras, em 416 verbetes individuais e coletivos, publicado em março de 2021 pela editora Companhia das Letras (saiba mais).
1 de 3
Olhar de Mãe Aninha de Xangô, um dos trabalhos da mostra Coleção MAR + Enciclopédia Negra, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR)/Foto: Rafael Salim
Trabalho presente na mostra Coleção MAR + Enciclopédia Negra, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR)/Foto: Divulgação
Olhar de Tia Ciata, um dos trabalhos da mostra Coleção MAR + Enciclopédia Negra, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR)/Foto: Rafael Salim
Das 250 obras de artes expostas, 13 são novos retratos, criados por seis artistas contemporâneos, convidados pelo MAR, e que vão entrar para a coleção do museu após a mostra. O elenco de artista reúne Márcia Falcão, Larissa de Souza, Yhuri Cruz, Bastardo, Jade Maria Zimbra e Rafael Bqueer, que fizeram retratos de personalidades como Abdias Nascimento, Heitor dos Prazeres, Tia Ciata, Manuel Congo, Mãe Aninha de Xangô e João da Goméia. Em tempo: Coleção MAR + Enciclopédia Negra é a sexta exposição inaugurada neste ano pelo Museu de Arte do Rio e é parceria com a Pinacoteca de São Paulo.
SERVIÇO
Jarbas Lopes: Gira Até 16/9
Coleção MAR + Enciclopédia Negra Até 11/9
Museu de Arte do Rio (MAR) – Praça Mauá, 5 – Centro (RJ)
Horários: de quinta a domingo, de 11h às 18h (Última entrada no pavilhão às 17h)
Preço: R$ 20 (Inteira) R$ 10 (Meia) / Conferir política de gratuidade e meia-entrada no site e nas redes sociais do MAR
A história contada no argentino Vicenta, filme de Dário Doria, começa em 2006, com a personagem título descobrindo que Laura, sua filha mais nova e portadora de deficiência mental, havia sido estuprada por um tio e estava grávida. Junto com Valeria, a filha mais velha, Vicenta precisa conseguir que Laura possa abortar. Afinal, sendo uma criança, como poderia já ser mãe?
O documentário ganha certa momentum agora, tendo em vista que em dezembro de 2020 a Argentina aprovou o aborto legal e seguro para gestações até a 14ª semana. A decisão foi conquistada com muitos anos de luta, e o caso “LMR vs. Estado Argentino” contribuiu para impulsioná-la.
O tema do documentário é substancioso e urgente, mas seu formato também merece reconhecimento. O filme é inteiramente realizado com animação de bonecos e sua história é contada por uma narradora (Liliana Herrero) que não se dirige ao público de forma direta; onisciente e onipresente, ela conversa com Vicenta, ao invés disso. Com a escrita e a gravação bem executadas, esse elemento do filme torna-se um ás para a contação da história e contorna bem uma das barreiras para o seu feitio: o fato de que seus protagonistas não desejavam aparecer nele. “Como tornar essa história visível sem as duas principais ferramentas dos documentários, a entrevista e o registro direto?”, questionou Amir Labaki, fundador e diretor do festival É Tudo Verdade, onde o documentário faz sua estreia no Brasil.
O filme acompanha todo o processo de Vicenta, da descoberta da gravidez de Laura até o labiríntico processo com o Estado, “as próximas semanas serão idas e vindas ao tribunal. Para Laura, faltar à escola; para Valeria e para Vicenta faltar ao trabalho. Ir e voltar. Ir e voltar, uma vez e mil vezes”. Da apresentação de uma queixa, em 2011, ao comitê de direitos humanos da ONU ao ato de reparação pública a LMR, em dezembro de 2014.
Na resposta apresentada lia-se: “O comitê de direitos humanos da ONU em abril de 2011 considera que a falta de diligência do estado em garantir o direito legal a um procedimento exigido só por mulheres constituiu, em primeiro lugar, uma violação do direito à igualdade. Considera que a obrigação imposta a LMR de continuar sua gravidez constitui um tratamento cruel e inumano”.
Com isso, o comitê concluiu que o estado deveria reparar Laura, incluindo uma indenização, e tomar medidas para que violações desse tipo não ocorressem no futuro. Em resposta, o Estado deveria apresentar medidas para tal em um prazo de 180 dias. Finalmente, em 2014, a reparação chegou, oito anos depois, e a narradora pergunta a Vicenta: “Quanto dura um abuso de um tio? E das instituições? Quanto dura um dia Vicenta? E um ano? E oito?”.
*Trecho do texto de Miguel Groisman originalmente publicado em 14 de abril de 2021, confira clicando aqui.