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Pinacoteca Migrante

O autor e curador Agustin Pérez Rubio na Sala V - Dying Life Altarpiece, Pavilhão da Espanha em Veneza, 2024
Por Agustín Pérez-Rubio

Prefácio

Boicote à entrada triunfal:
A pintura como transmissora da colonialidade

Por Agustin Pérez Rubio “Cuando los museos olvidaron ser Jardines”. En: “Pinacoteca Migrante”. Sandra Gamarra Heshiki. 60ª esposizione internazionale D’arte. La Biennale di Venezia. Aecid, Madrid – Walther Und Franz König, Köln. (excerto do texto pp. 11-31). Tradução do original em espanhol para o português: Hélio Campos Mello

Em 25 de abril de 1716, o vice-rei interino do Peru, arcebispo Dom Diego Morcillo y Auñón fez sua entrada triunfal na cidade de Potosí, cidade onde os espanhóis extraíram a prata de seu morro durante mais de um século. A data da referida entrada é de mais de dois séculos depois da chegada de Cristóvão Colombo às costas do continente e a consequente conquista dos territórios de Abya Yala, deixando um rastro de exploração de recursos, degradação da paisagem, escravização da população local e da afrodescendente trazida pelo comércio ultramarino, além da consequente imposição cultural e religiosa. Ao chegar, o vice-rei certamente foi recebido com toda pompa pela população crioula, especialmente pelos azogueros (os capatazes da extração da prata), que queriam recuperar o pacto com a Coroa espanhola que lhes permitia empregar até 20 mil índios na exploração mineira, número que havia sido reduzido anteriormente e que desejavam aumentá-lo novamente¹.

Tudo isso se refletiu na pintura que hoje está guardada no Museu da América, em Madri², e que tem uma particularidade, por ser a história tão confiável, que mostra como os vizinhos usaram pinturas, tecidos e tapeçarias  para enfeitar as varandas e celebrar a passagem da referida figura política e religiosa. Se observarmos a iconografia das pinturas que estão penduradas no exterior, são personagens mitológicos em cenas pagãs: de Eros a Hermes, passando à fábula de Endimião, o colosso de Rodes, a Eneias e Anquises fugindo de Tróia. Esta galeria de arte suspensa, em vez de destacar os méritos do vice-rei interino, o que fez foi aconselhá-lo e colocá-lo em alerta, pois neste complexo aparato discursivo se vislumbrava toda uma série de críticas e advertências ao vice-rei que assumem um novo significado nas mãos do pintor, já que não conseguiram obter seu propósito, pois apenas seis meses depois de sua chegada o vice-rei morreu de causas naturais.

Três séculos separam esta pintura da pintura Pinacoteca Migrante (Quando as ruas falam), 2024, que serve de introdução ao projeto Pinacoteca Migrante de Sandra Gamarra Heshiki – a primeira artista migrante a representar a Espanha na Bienal de Veneza – esta última é apresentada como forma de compreender a perpetuidade do discurso colonial vigente sob a cronologia do tempo linear ocidental. Além disso, podemos transferir o seu conteúdo e imaginá-lo na contemporaneidade deste momento, protagonizado por políticos com agendas extrativistas, negociadores do extermínio natural, corretores de almas acorrentadas ao capitalismo juntamente com vendedores da supremacia branca ou colonos bombardeando impiedosamente territórios que não pertencem a eles: Trump, Putin, Bolsonaro, Netanyahu ou Musk, mas também a Monsanto, a First Quantum Minerals, o extrativismo verde da União Europeia, a HP Enterprise e o seu patrocínio ao genocídio palestino.

Desta vez as criadas, indígenas e negras, ou os serviçais homens, que hoje, como faziam há mais de três séculos, seguem a mesma trilha de expropriação e desigualdade, não saem à varanda em silêncio, porque não podem mais ficar calados. Suas vozes e suas histórias – de resistência e resiliência – são aquelas que ficam penduradas nas varandas que Sandra Gamarra Heshiki pinta. Ela captura o empoderamento de uma sociedade que tira as garras da colonialidade – perpetuada nas formas e meios de transmitir, educar, narrar, até pintar e exibir –, que grita e vaia os políticos, que processa Estados criminosos, que impede a construção de barragens e a derrubada de florestas, diz não ao racismo estrutural e se recusa a dar sementes às empresas transgênicas, expulsa garimpeiros³ dos territórios da Amazônia e até boicota as indústrias mais poderosas do planeta, que se recusam a ter seu gênero binarizado ou quem diz stop com a aporofobia, o ódio em relação aos despossuídos, do novo capitalismo das it girls e sua compulsão por fazer compras.

Sandra Gamarra Heshiki questiona o mundo, o seu mundo. Como migrante peruana que chegou à Espanha, como mulher que condensa na própria pele três culturas diferentes, como mãe que quer deixar um mundo mais justo, solidário e sustentável para seu filho, e como artista que questiona as formas hegemônicas de representação no capital simbólico não só da Europa, mas das antigas colônias a que ela mesmo pertence. É por isso que a sua prática torna visível a domesticação do nosso olhar colonial eurocêntrico, o que implica estruturas de racismo estrutural, machismo implícito e que põe em causa os nossos privilégios de classe e o acesso aos mal chamados “recursos”. Tudo isto aliado à forma como a hegemonia histórica e artística moldou os modelos de representação, tanto na pintura como posteriormente na fotografia, incluindo as formas de classificação e domesticação das culturas baseadas em esquemas e práticas como a museografia, a museologia ou a edição de repertórios de representação. Não em vão, a entrada do pavilhão, e por sua vez todo o projeto, leva aquela ideia de encenação herdada dos teatros do Renascimento europeu, já que os arquitetos viram as salas e galerias como um teatro pensado para a contemplação fixa, regulando rigorosamente o leque de movimentos do espectador e do objeto de atenção. A Pinacoteca Migrante, ao contrário, põe em xeque o tempo de unidade curatorial que se estabelece nos museus, onde as obras são penduradas de acordo com as normas, iluminação e umidade do ar e atendem aos requisitos de conservação. Os visitantes – ao entrar – aceitam sem hesitação este ambiente guardado, que fixa e regula a sua percepção. Nesse sentido, parte dessa direcionalidade do espaço é transmitida na forma como Gamarra Heshiki nos leva, como um trompe l’oeil barroco, numa espécie de mise-en-scène para que possamos desempenhar o nosso papel como público turístico na arte ocidental. Observaremos que as próprias pinturas revelam essa mesma lógica ou conformidade, aquelas paisagens idílicas, aquelas visões romantizadas da natureza, aqueles corpos exotizados, objetificados e sexualizados, mas rebelam-se em serem oferendas como naturezas mortas. Não são os frutos à disposição de todos, como algo que era para servir aos cavaleiros que chegavam, ou a serviço de…, da mesma forma que a pompa, o desperdício e a ostentação que se ofereceu em Potosí ao referido vice-rei Morcillo.

A apresentação de Sandra Gamarra Heshiki, Pinacoteca Migrante, é a sequência natural de um trabalho de fundo que a artista vem desenvolvendo ao longo de mais de 15 anos de pesquisa e implementação. Quanto mais caminhos percorre, mais coerência tem seu trabalho, desde os seus primórdios até o atual projeto para a Bienal de Veneza. Embora por vezes a artista tenha se colocado no interstício de outras instituições que estão à margem ou que pertencem a outros contextos – refiro-me ao LiMac, entre outros – Pinacoteca Migrante tem muita consciência do território e lugar que lhe corresponde. Posto que a apresentação deste pavilhão, que não deixa de ser “nacional”, é imediatamente deslocado pela presença híbrida da artista, que nacionalmente pertence a dois lugares. Por sua vez, a proposta mergulha nas referências da construção nacional de um país como a Espanha – não sem uma certa autocrítica – ao pensar como os modos de re/apresentação herdados na formação do imaginário da nossa sociedade em vários níveis, sendo agravada e comprometida pelo ressurgimento de certos postulados conservadores, com tintas fascistas em alguns dos outros países europeus, incluindo Espanha, além das crises derivadas dos processos de hiperprodução e superexploração do planeta e os consequentes ecocídios resultantes.

Embora acreditássemos que a pandemia serviria como autocrítica ou como um abrandamento, infelizmente temos experimentado ao longo destes quatro longos anos que os países europeus continuaram a inventar esta chamada colonialidade extractiva. Se não, vejamos quantas empresas europeias, juntamente com americanas, canadenses, etc., circulam livremente nas “ex-colônias” através da compra de políticos e financistas, realizando projetos de elevado risco ambiental e humano – que em seus países de origem não seriam permitidos – abrigadas atrás de palavras como apoio ou solidariedade, quando a realidade se baseia na simples e flagrante exploração dos “recursos” humanos e materiais dos territórios em desvantagem relativamente à sua soberania.

Mas hoje a Europa e as suas noções de hegemonia sucumbem à miragem narcisista do eurocentrismo. Não sem o esforço e a potência que vem de fora das suas fronteiras, também pela reivindicação de forças internas.Talvez porque alguns de nós na Europa começamos a compreender esse reflexo e essa influência do “continente da neurose monoteísta”. O continente do controle e do julgamento moral do mundo”, como o chama a antropóloga argentina Rita Segato. No meio desta neurose observamos, mais do que nunca, como as noções hegemônicas criaram o museu no qual se baseia o nosso patrimônio. Não apenas com um desejo de extrativismo cultural mas, em muitos casos, como dispositivos que normalizam culturalmente a violência destas pilhagens de identidade.

Pinacoteca Migrante quer evidenciar esta violência e ao mesmo tempo procurar formas de reparação histórica. Esta nova instituição criada pela artista transforma o Pavilhão Espanhol numa galeria histórica de arte ocidental, onde a noção de “migração”, nas suas múltiplas facetas, também é protagonista. O conceito ocidental de pinacoteca, que também foi exportado para as ex-colônias, é invertido ao expor uma série de narrativas que foram historicamente silenciadas. Dessa forma, a Pinacoteca Migrante revê os protocolos de acessibilidade, diversidade e sustentabilidade, para atualizar um quadro institucional que assuma contextos contemporâneos em relação ao racismo, à migração ou ao extrativismo nos museus. Os protagonistas são os migrantes, humanos e não humanos: organismos vivos, plantas e matérias-primas que muitas vezes faziam a viagem de ida e volta à força. No seu título, a nova instituição mostra como a migração, tal como a colonialidade, não é apenas um fenómeno humano e ambas continuam a ser extirpadas dos seus ecossistemas em benefício de poucos.

A extensa investigação realizada por Gamarra Heshiki reflete-se em mais de uma centena de novas pinturas que têm como ponto de partida pinturas pertencentes ao patrimônio de coleções de arte e museus de toda a Espanha, desde a época do Império até o Iluminismo. Cada obra interfere na falta de narrativas decoloniais nos museus e analisa as representações tendenciosas entre colonizadores e oprimidos. Entrelaça sociologia, política, história da arte e biologia para fornecer uma reinterpretação na qual as consequências históricas frequentemente ignoradas estão ligadas ao nosso contexto contemporâneo.

Embora o eixo central desta Pinacoteca Migrante assuma o museu como narrador de grandes histórias em forma de galeria de pintura, ela tem suas raízes nas formas de representar diversos gêneros pictóricos dentro de nossas coleções em museus e galerias de arte na Espanha. A construção monolítica dos Estados Nação baseou-se na destruição de outras formas de organização social. Para isso, foram criadas histórias de civilização e de evangelização, numa troca injusta em que a dívida por esse “progresso inicial” cresce incessantemente. Paradoxalmente, são os bens do chamado terceiro mundo que mantêm o progresso do primeiro, que mais tarde serão devolvidos, seja como mercadoria ou como desperdício.

Estas histórias de civilização foram escritas e imaginadas, criando modelos reconhecíveis daquilo que se aspira e, a este nível, a pintura tem sido uma das mais fortes criadoras de histórias, não só por se impor a outras formas de visualidade, mas também por criar um passado único, um lugar fixo ao qual se pode retornar para projetar o futuro toda vez que o presente sacode essas construções. Todo o capital simbólico que a representação pictórica destila é capturado a nível nacional naquilo que representam as galerias de arte europeias, também à escala regional ou local, todas elas devedoras do mesmo roteiro hegemónico.

Podemos rastrear esses mecanismos nos gêneros de pintura – paisagem, retrato, natureza morta – que naturalizamos como verdadeiros e que carregam consigo critérios de superioridade e individualidade ligados à nossa forma de organizar o mundo. Os processos de colonização importaram e impuseram essas formas de “ver”, e nesses outros territórios essas imagens foram retrabalhadas e voltam ao seu lugar de origem, criando agora interferências e lugares críticos de onde podemos sair dessa “normalidade” para compreendermos como uma peculiaridade.

I

Terra Virgem/Paraíso Perdido

Tierra Virgen é o título da primeira sala que esta pinacoteca, esta galeria de arte, apresenta. Ao entrar, parece que este início foi conectado pela artista com o espaço com que encerrou sua exposição Buen  Gobierno, em Madri, em 2021. Naquela ocasião, depois de percorrer os corredores superiores do espaço encarnado pelo Gabinete de Incomodidades Coloniales, se mostravam imagens pintadas de fragmentos de huacos pré-colombianos, cerâmicas que dormem nos depósitos do Museo de América, em Madri, de onde raramente saem à luz. A exposição terminava com a inclusão de uma nova pintura da artista que restituía a primeira da série das chamadas pinturas de castas do vice-rei Amat, já que esta nunca é mostrada publicamente devido ao seu mau estado de conservação. Nesta pintura intitulada Yndios infieles de Montaña, um missionário com uma longa barba, uma bengala na mão e um hábito  estende a mão a um casal com um filho. Junto a estes protagonistas, a artista acrescentou na parede o texto que acompanhava os fac-símiles das placas de Flora de la Real Expedición Botánica del Nuevo Reino de Granada (1783-1816), publicados no mesmo ano da inauguração do Museo de América, 1954, auge da era ditatorial do General Franco, com o título de Paraíso perdido. Podemos nos perguntar: perdido? Para quem? O regime fascista, através da defesa do passado imperial das colônias, sempre se interessou em suscitar esta ideia de perda, retomando inclusive aquela horrível expressão quando se quer manifestar resignação ou minimizar a importância de um problema ou retrocesso: “mas se perdeu em Cuba”. A verdade é que o casal parece que vai entrar nesta sala da Tierra Virgen para defender a sua terra, aquela que os conquistadores fizeram parecer que não pertencia a ninguém. Aquela terra nullius da qual parecia que poderiam extrair, liquidar sem limites ou nela empreender o que o imperialismo, o eurocentrismo e o capitalismo levaram a cabo até hoje. Apenas uma informação para ser mais objetivo: dos estimados 61 milhões de habitantes que estavam na América antes da chegada de Colombo, cerca de 55 milhões morreram durante as primeiras décadas da colonização européia. Isto produziu uma regeneração geral das florestas americanas, à medida que os ameríndios deixaram de cultivá-las, reduzindo assim a presença de carbono na atmosfera. O ano de 1610 é, portanto, a referência como limite inferior de concentração de carbono, marco zero do Antropoceno¹⁰. Por isso, a homogeneização das culturas e, portanto, dos ecossistemas, modificação que a colônia impôs à paisagem americana, em muitos lugares é, nem mais nem menos, a causa da quebra da biodiversidade do local.

Tierra Virgen mostra uma série de pinturas realizadas por Gamarra Heshiki e fazem referência ao atual território espanhol retomando uma série de obras pictóricas de paisagens que pertencem a diferentes museus espanhóis e remetem ao território espanhol atual, bem como as antigas colônias da América Latina, das Filipinas e do norte da África. Da mesma forma que acontecerá nas próximas quatro salas desta pinacoteca, a narrativa deste projeto elabora um ciclo contínuo entre a construção e a deterioração. Por isso, muitas das pinturas são apresentadas como esboços, poucas como obras acabadas e algumas em estado de permanente restauro. A História continua a ser construída, ela não é uma entidade fechada, e os processos de investigação, visibilização e reparação ajudam a modificar as noções monolíticas de uma história. A materialidade de cada uma das obras é uma metáfora das responsabilidades institucionais, que na história do Ocidente são inseparáveis da ferida colonial. Em cada pintura a artista combina diferentes temporalidades, passando do passado para o presente e vice-versa, inclusive aponta para uma certa futuridade ficcional que impulsiona uma mudança de consciência no espectador, em busca da sustentabilidade que nos impele na vivência contemporânea sob o prisma da ecologia.

Em todas estas pinturas observaremos como a colonização europeia das Américas produziu uma forma violenta de habitar a terra que rejeita a possibilidade de um mundo com um outro não europeu, em definitivo, um habitar colonial como altericídio, adotando a tese de Malcom Ferdinand que também afirma: “Longe de ter como único objetivo a ‘manutenção da vida humana’, o habitar colonial tinha como finalidade a exploração comercial da terra. Foi a possibilidade de extrair produtos para fins de enriquecimento que ‘deu origem à ideia’ de ‘habitar’. Pressupõe esta relação de exploração intensiva da natureza e dos não-humanos”¹¹.

É por isso que Gamarra Heshiki retira estas visões romantizadas de pintores como Frans Janszoon Post, o primeiro artista europeu a pintar as paisagens das Américas durante a colônia holandesa no Brasil. Ou as cenas idílicas como Paisage Tropical ou Paisage sudamericano (1855 e 1856) – ambas no acervo do Museu Nacional Thyssen-Bornemisza – do estadunidense Frederic Edwin Church, que também idealizou essas paisagens através da tradição das cenas pastorais como herdeira do Romantismo. Em alguns destes casos as imagens são repetidas, espelhadas, até triplicadas, para mostrar o próprio artifício da criação e exotização destas paisagens, muitas delas não pintadas in situ.

Para contemporanizar estas visões e trazê-las criticamente para o presente, a artista sobrepõe a estas pinturas citações de escritores, pensadoras ecofeministas ou intelectuais de diversas latitudes que, defendendo a Mãe Terra, nos convidam a destacar os matricídios da sociedade capitalista, para percebermos as consequências atuais relacionadas com a gestão dos recursos primários, a crise ecológica e o cuidado indígena da terra. Do filósofo indígena e ativista ecológico Ailton Krenak às acadêmicas que se interessaram pela saúde e ecologia da América Latina como Nancy Leys Stepan. O contraste dessas imagens idealizadas e o conteúdo desses textos nos faz imediatamente vê-los com outros olhos. Afasta-nos dos óculos do romanticismo e do academicismo pictórico como se fossem símbolos da verdade e inevitavelmente nos deixa nos rastros erosivos que o homem deixou desde a colônia até os dias de hoje, maltratando de uma forma ou de outra esta paisagem e seus mal chamados de “recursos”, na tentativa de engolir vorazmente a realidade e o contexto de diversas comunidades e habitats humanos e não-humanos, como evidenciado pelo texto de Krenak na tela, ao expor o estado de orfandade em que nos está deixando a terra devido aos resíduos da atividade industrial e extrativista¹².

Noutras ocasiões, a artista mostra a perpetuidade da deterioração colonial não com palavras, mas através da sobreposição de imagens ou da sua ocultação, e convida-nos a confrontar as causas da destruição acelerada pelas mãos da modernidade. Como acontece tanto na El Marco del Paisaje IV (Vista de um aterro de plástico na costa de Almería) como em El Marco del Paisaje V (Vista de um aterro de roupas usadas no deserto do Atacama), ambas de 2024, onde pratica uma mise en abisme do que aconteceu.  Nestas pinturas a artista cria uma espécie de abismo – algo que nos intriga e ao mesmo tempo nos assusta. Para isso, utiliza camadas sobrepostas de imagens de outras pinturas, entre as quais uma paisagem de Church, um desenho de um sepultamento nas Ilhas Vanuatu – atribuído a Fernando Brambila, que faz parte dos desenhos da expedição Malaspina realizada em finais do século XVIII –, uma imagem do famoso Códice de Trujillo sobre a província homónima do sul da Espanha, e uma paisagem norte-africana de Fortuny do século XIX. Termina na superfície com uma imagem contemporânea tirada dos meios de comunicação em que os plásticos das plantações de Almeria, na Espanha, inundam e contaminam a paisagem. Serão necessários séculos para que esta massa de lixo fotografado seja absorvida pela terra, com o consequente veneno que produz para os alimentos que mais tarde crescerão. Estas imagens sobrepostas apresentam-se como extratos de colonialidade, camadas de erosão e representação, em muitas vezes como modo de apropriação, uma forma de apropriar-se infinitamente daquele território, até chegar ao resultado, que em muitas ocasiões, como em El Marco del Paisaje V, retorna após a imagem distópica da imprensa do Deserto do Atacama à imagem da La Villa Imperial de Potosí, de 1755, pertencente à grande tela que se encontra no Museu do Exército de Toledo (sintomático que se encontre uma imagem deste tipo num museu militar), o que mais uma vez levanta a questão da pilhagem, do abuso que desde os tempos coloniais permaneceu entre o ambiente europeu e o contexto latino-americano. Uma imagem que se repete nesta sala, pois a importância da mesma demonstra toda a própria continuidade extrativista.

Em Tierra Virgen VII (Sequía y saqueo, mina de Potosí), 2024, a artista pinta novamente este mapa, mas desta vez para destacar os problemas da extração de lítio na mineração contemporânea por estar ligado ao urânio em sua extração, além de ser material radioativo, o método de evaporação utilizado implica uma enorme perda de água e um risco de salinização do solo, o que ameaça as frágeis zonas húmidas da Puna e dos Altos Andes. Assim é como as pinturas de Gamarra Heshiki condensam o sentimento coletivo em defesa do território; já que a artista relaciona a riqueza da prata extraída com o que a água significa hoje. Além disso, o Cerro de Potosí – perfil da cidade que está a seus pés – é coroado por uma representação dos pontos cardeais da pintura original, mas agora está coberto por uma espécie de manto de fios de prata, navegando entre a ideia fantasmagórica do que foi projetado e do que foi esta cidade e a proteção da Virgen del Cerro como representação da pachamama que os primeiros pintores da escola cuzquenha representaram de forma sincrética entre as duas crenças e cosmogonias (cristã e indígena). Mas o mais interessante desta nova pintura é que ela inclui as proclamações das manifestações contra a extração de recursos naturais nos Andes, nas quais o escudo da cidade é substituído pelo slogan “Lítio para hoje”. Fome para amanhã” e no qual podemos observar as atrocidades que a sociedade capitalista tem cometido em relação ao direito à água e às reivindicações de ativistas e manifestantes, que aqui se refletem nos lagos ou espaços aquíferos que a pintura original possui. Todas essas reivindicações estão diretamente relacionadas com o que Félix Guattari chama em sua ecosofia de “Capitalismo Mundial Integrado”¹³, que revela os processos pelos quais os interesses financeiros de algumas empresas – da Monsanto à Bayer, passando por muitas empresas mineradoras ou petrolíferas – ditam ao resto do mundo as formas violentas e desiguais de habitar a terra¹⁴. ✱

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¹Número restringido por Decreto Real de 1697 devido aos danos que a sua utilização nas minas causou à atividade agrícola na zona de Charcas. Ver Mariana C. Zinni (2021), “Poder y representación en las fiestas efímeras:  la entrada triunfal en Potosí del Virrey – Arzobispo Morcillo”, Revista Razón Crítica, n0 10. 

²Não esqueçamos que o Museu da América, de Madri, foi fundado em 1954 sob a ditadura do General Franco, que através da sua criação tentou combinar o seu regime nacional fascista com o esplendor do imperialismo espanhol como parte de uma enriquecedora missão cultural, econômica e evangelizadora imposta que, infelizmente, continua até hoje.

³No contexto brasileiro, os garimpeiros são garimpeiros ilegais que utilizam máquinas como monitores hidráulicos em busca de aluvião e mercúrio como substância para amalgamar ouro. Ambos os usos prejudicam gravemente o meio ambiente e a saúde de muitas comunidades indígenas. Às vezes, grandes empresas transnacionais esperam isso. eles conseguem uma grande veia para comprar ações em concessões mineiras de legalidade duvidosa, como as concedidas em áreas protegidas. O impacto ambiental do desmatamento e dos movimentos de terra que provoca são imensos: uma tonelada de terra e sedimentos removidos chega a cinco gramas de ouro. Se usam cianeto em vez de mercúrio, a situação agrava-se ainda mais. 

⁴Agustín Pérez Rubio (2021), Copiar a história sem véus. Notas sobre a decolonialidade no Buen Gobierno, de Sandra Gamarra Heshiki, em Agustín Pérez Rubio, Buen Gobierno, Madrid, Comunidade de Madrid. Serviço de Documentação e Publicações.

⁵Diana Fuss e Joel Sanders (2012), An Aesthetic Headache: Notes from the Museum Bench, em Johanna Burton, Lynne Cooke e Josiah McElheny (eds), Interiors, Nova York/Berlim, Center for Curatorial Studies, Bard College/Sternberg Imprensa.

⁶Clémentine Deliss (2023), O museu metabólico, Bilbao, Caniche Editorial, p. 17.

⁷Refiro-me tanto ao LiMac como a algumas de suas instalações, como Chakana, 2015-2021, como museu arqueológico andino simulando uma huaca, conforme realizado na exposição Buen Gobierno. Para mais informações sobre o LiMac, consulte o site: li-mac.org/es/about-2/about-limac/ e a entrevista com o artista nesta publicação. 

⁸Rita Laura Segato (2005), Santos e Daimones. O politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetípica, Brasília, Editora UnB. 

⁹Série de vinte pinturas encomendadas pelo vice-rei Manuel Amat y Junyent (1761-1776) para dar a conhecer na Europa as misturas raciais existentes no Vice-Reino do Peru; representação formal e patente do racismo estrutural que o Império Espanhol promoveu nas colônias, pois, dependendo da cor da pele e da pureza do sangue, os indivíduos tinham maiores benefícios, tanto sociais quanto econômicos, na escala piramidal, no que o sangue cristão e a pele branca estavam à frente. Este conjunto de pinturas integrou inicialmente as coleções do Real Gabinete de História Natural (1776) e posteriormente do Museu Nacional de Ciências Naturais, até que a sua secção de Antropologia, Etnologia e Pré-história foi desmembrada para formar o atual Museu Nacional. de Antropologia em Madri.

¹⁰Simon L. Lewis, Mark A. Maslin (2018), O Planeta Humano: Como Criamos o Antropoceno, New Haven, Yale University Press, pp. 147-187.¹¹Malcom Ferdinand (2022), Uma ecologia decolonial: pensando a partir do mundo caribenho, São Paulo, Ubu Editora, p. 50.

¹²Palavras extraídas da citação de Ailton Krenak encontrada na pintura Terra Virgem IV (Reverso do Rio Magdalena), 2024.

¹³Félix Guattari (1990), Las tres ecologías, Valencia, PRE-TEXTOS.

¹⁴Parafraseando o já acima citado no (11), Malcom Ferdinand.

Políticas da memória a gênese do Museo del Barro

Museu del Barro
Sala de cerâmica popular Paraguai

Na penúltima semana de setembro, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, abrigou o seminário Ensaios para o Museu das Origens: políticas da memória, iniciativa que dialogou com a Proposta para a Fundação do Museu das Origens, documento redigido pelo crítico de arte e professor Mario Pedrosa (1900-1981), por sua vez ponto de partida para a exposição Ensaios para o Museu das Origens, que a instituição realizou entre setembro de 2023 e janeiro de 2024, em parceria com o Itaú Cultural. 

Na conferência Museo del Barro e Museu das Origens: crítica instituinte e políticas da memória na América Latina, a crítica de arte e curadora Lia Colombino ressaltou que a criação da instituição foi um gesto de resistência política. O museu foi criado em 1979 pela artista visual Olga Blinder e por Carlos Colombino, pai de Lia, no Paraguai, que à época ainda vivia sob o regime da ditadura militar imposta em 1954, pelo general Alfredo Stroessner, que só viria a ser deposto em 1989. 

Museo del Barro
Sala de arte indígena

Hoje diretora da instituição, – de caráter privado, e que abriga uma vasta coleção de cerâmica indígena, como indica seu nome –, Lia iniciou sua fala citando três frases. A primeira, de  Carlos Colombino: “O Paraguai não é o sonho de ninguém”. A segunda, do crítico, curador e professor Ticio Escobar, ex-ministro da Cultura do país: “O Paraguai é um país difícil de se viver, mas tem como contrapartida, como compensação às vezes, a força de suas diversas culturas”. A última, do antropólogo espanhol Bartomeu Melià: “Não há como viver no Paraguai se você não o inventar todos os dias”. 

Após as citações, Lia descreveu o cenário das instituições artísticas durante o regime miltar: “Algumas delas eram um reflexo fiel da situação política: a ditadura stroessnerista; outras, eram ultraconservadoras ou não assumiam uma posição. Assunção carecia de espaços alternativos; e os grupos, movimentos ou tendências eram geralmente representados por uma única pessoa ou por algumas dela”.

O Museo del Barro, contou Lia, é composto de três coleções que nasceram separadamente, tornando sua história fragmentada: coleções de arte popular e a arte dos grupos indígenas, e diferentes expressões de arte na tradição ocidental. A proposta da instituição, disse, é que o tratamento das obras seja feito de forma que a arte popular e indígena seja colocada em pé de igualdade com a arte de tradição ocidental. 

“O projeto tem como objetivo também refutar o mito oficial que reduz a produção simbólica popular e indígena ao ‘folclórico’, ‘autóctone’ e ‘vernacular’; ao ‘nosso’, como se esse ‘nós’ fosse a mesma coisa”, ressaltou.

Em entrevista à arte!brasileiros, Lia também salientou que o Museo del Barro não é um museu de arte ou etnográfico. A perspectiva é a perspectiva da arte, afirmou, mas o seu objetivo é extra-artístico, tem a ver com o direito à diferença. 

“Este museu, que também contém todas essas questões vai além da própria ideia do que é um museu, porque inicia um relacionamento com essas comunidades [rurais e indígenas], e busca, mesmo que em pequena parte, melhorar suas condições de vida”.

Lia Colombino também ponderou que, embora o museu seja uma entidade privada, que não tem impacto direto nas políticas públicas, ainda assim a instituição sempre discutiu a questão decolonial, mesmo quando a palavra não existia. 

“Os estudos que o museu começou a desenvolver já na década de 1980, com livros de Ticio Escobar, como O mito da arte, o mito do povo, (0:31) ou, um pouco mais tarde, com A beleza dos outros, já eram visões decoloniais daquela ideia de arte, que tentavam romper um pouco com um certo cânone ocidental, eurocêntrico”, argumentou. “Embora o museu não influencie diretamente, ele o faz de forma tangencial e talvez, mais lentamente, essas questões estejam se normalizando um pouco mais.”

Em seguida à preleção de Lia Colombino, os organizadores do seminário – Ana Roman, Izabela Pucu, Lia Colombino e Paulo Miyada – fizeram considerações acerca da instituição do Museo del Barro à luz das proposiçõses para a criação do Museu das Origens, feitas em 1978 por Mario Pedrosa, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro havia sido sofrido um incêndio. 

Isabela Pucu iniciou sua participação lembrando que as propostas de Pedrosa estavam amplamente enraizadas “nos processo de luta pela redemocratização” do Brasil, que à época estava também sob o regime ditatorial militar. Ou seja, num cenário sociopolítico similar àquele em que surgiu o Museo del Barro. Segundo Isabela, por um lado, a iniciativa também engendrava “uma crítica às narrativas instituídas sobre as matrizes constitutivas das origens do Brasil”, e, por outro, cogitou “uma alternativa concreta instituinte ao sistem cultural vigente, às formas de fazer museu e memória, com uma proposta pautada pela colaboração e o sentido de comunidade”. 

Na sequência, Paulo Miyada propôs refletir sobre a estrutura e política do projeto de Pedrosa, e ponderou que ambas iniciativas – Museo del Barro e Museu das Origens, nunca concretizado – nasceram em contextos em que não há nenhuma garantia de vida democrática, de uma ideia de nação que não seja uma ideia de sistema totalitário de poder”.

Curador do Instituto Tomie Ohtake, Miyada também fez uma reflexão acerca da instituição: “A gente não está propriamente num museu, a nossa obrigação de memória é de honrar o nome de uma grande artista brasileira, nascida no Japão. Não temos um acervo, mas somos um espaço de cruzamento e troca de experiências e repertórios”, afirmou. 

O curador também observou que o instituto passou a se questionar como ele se insere “neste mundo, de maneira renovada, conforme o espaço ao redor, o tecido social, os pactos sociais que sustentam nosso cotidiano foram se mostrando cada vez mais frágeis”, nos últimos dez anos. 

Miyada lembrou da mostra Osso: Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga, realizada em 2017 no ITO, e em referência a Rafael Braga, um catador de latas jovem e negro, detido nas manifestações de junho de 2013 por portar frascos contendo desinfetante e água sanitária. Em seguida, o Instituto realizou a exposição AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de acabar, na virada de 2017 para 2018, um momento em que diversas mostras pelo país estavam sendo censuradas ou sofrendo tentativas de fechamento.

“A gente achou que um monte de museus e espaços culturais de São Paulo poderiam se unir para falar como, nos 50 anos de acirramento da ditadura militar, as coisas não estavam bem resolvidas”, disse. “Ninguém quis, mas os artistas e pesquisadores somaram forças, e esse projeto aconteceu”. 

Com a eleição de Bolsonaro, argumentou Miyada, a ideia de “ainda não terminou de acabar” que estava no racismo estrutural e nas atualizações dos esquadrões da morte e das milícias “ganhou um avatar mais literal” na figura do então presidente. Reflexões assim, sugeriu Miyada, também devem ter estado em jogo quando Pedrosa pensou no Museu das Origens. 

Ao fim da conferência, da esquerda para a direita: Lia Colombino, José Eduardo Ferreira Santos, Paulo Miyada, Gleyce Kelly Heitor e Isabela Pucu

Em sua apresentação, Ana Roman destacou o aspecto coletivo do processo de construção da exposição Ensaios para o Museu das Origens, realizada de setembro de 2023 a janeiro de 2024 no ITO. Segundo Ana, foi uma grande oportunidade de aprender a fazer museus, algo que se dá maneira muito distinta Brasil afora. No seminário, em participações como a de Lia Colombino, foi possível entender como a proposta de Mario Pedrosa ecoa outras iniciativas ocorridas na América Latina. 

“Nos interessa olhar esses outros projetos latino-americanos que estão pensando cultura, política e comunidade. Entender de que maneira eles têm intersecções ou se distanciam”, explicou Ana à arte!brasileiros.

A Ferro e Fogo

Panorama da Arte Brasileira
Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala, equipe curatorial do 38º Panorama

Com o título Mil graus, expressão coloquial que sugere a ideia de intensidade, o 38º Panorama da Arte Brasileira explora experimentações artísticas “marcadas pelo calor” e que têm a transmutação como destino “inevitável”. Para Thiago de Paula Souza, integrante do trio curatorial junto a Germano Dushá e Ariana Nuala, trata-se de uma “noção curatorial ampla”.

“Olhamos para as dimensões espirituais e ecológicas da prática artística, pro tesão e pro erotismo dos fluxos de corpos, pela cidades, sejam eles sejam eles humanos ou não, e por último como tecnologia tem contribuído para a criação de imaginários políticos e sociais”, diz. “A partir daí, depois de meses de pesquisas, traçamos uma lista de pessoas que acreditamos trabalharem na intersecção dessas ideias.”

Flutuantes

Realizado desde 1969 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, o 38º Panorama acontece até 26 de janeiro de 2025, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Devido às obras de reforma da marquise do Parque Ibirapuera, a exposição não pode ser abrigada pelo MAM, como de praxe. 

Ao fazer a seleção de 34 artistas, Dushá, Nuala e Souza buscaram evitar o que consideram uma armadilha colocada pela palavra panorama, uma impossível perspectiva totalizante da produção artística nacional.

“A gente tem uma amplitude geracional enorme, com artistas de 16 estados, vivendo em contextos diferentes, desenvolvendo práticas e pesquisas bem distintas. Mesmo assim, a gente sabe que se trata de um retrato provisório, tirado pela nossa visão”, pondera Dushá. “É algo muito pequeno perto da dimensão de um país continental, tão complexo, com infinitas culturas, que a gente chama de Brasil”.

Dushá afirma também que, à medida que as ideias em torno da curadoria foram se consolidando, vieram à tona nomes cujas práticas não necessariamente são vistas como artísticas, como a Tropa do Gurilouko (RJ), grupo que veste os trajes do Bate-bola (ou Clóvis), um personagem clássico do carnaval do Rio, “que sintetiza um pouco um viés importante dessa energia que a gente tá falando”, afirma. 

“Foi uma decisão insólita e heterodoxa convidar um grupo que venha para cá com um pensamento contemporâneo e não naquela chave de uma exposição sociológica, etnográfica, que queira fazer um mapeamento mais frio”. 


Lais Amaral
Artista Lais Amaral, São Gonçalo, RJ.
obras: s/T I e II , série Como um zumbido
estrelar, 2024 (Ver galeria abaixo). 
Apresento duas obras, parte de uma mesma série, Como um zumbido estrelar, um pássaro no fundo do ouvido. Com esse título estou falando sobre comunicações ancestrais entre pessoas que estão nesse plano e as que já partiram. É uma homenagem ao meu pai, que faleceu de covid. Falo desse zumbido estrelar e de um pássaro no fundo do ouvido pensando em alguns insights que tenho ao pintar. Como se fossem um conselho, um direcionamento, algumas confirmações que tenho quando coloco em meu trabalho a relação entre vida e morte, uma relação de transformação. Eu materializo coisas no meu trabalho que estão muito além da matéria. Entendo que natureza e ser humano não estão separados. Logo, vida e morte tampouco estão separadas. Acredito num grande ciclo, numa grande transformação dessas formas de vida.
Ana Clara Tito
Artista Ana Clara Tito, Bom Jardim, RJ.
obra: s/T, 2023 (Ver galeria abaixo)
Quando me abordaram com a proposta de Mil Graus, eu, de cara, quis fazer algo que tinha feito antes, uma instalação, que tem uma vida individual, mas que ali se apresenta numa vida coletiva. E trabalhar com materiais com os quais eu já lidava, como materiais de construção civil, de canteiros de obra e demolições, e fotografia. Mil Graus me remete à ideia de um estado extremo, de transformação da matéria, que o calor gera. Isso se relaciona de forma direta com a minha pesquisa. Meus trabalhos remetem a algo que já foi e, ao mesmo tempo, parecem uma coisa ainda em construção. Há também uma relação profunda com a imagem, com a fotografia, aplicada sobre o concreto e outros materiais de construção. Então, o que acontece é um derretimento da imagem, na geração daquelas formas.
Rafaela Kennedy
Artista Rafaela Kennedy, Manaus, AM e Labō, Belém, PA . obras da série Amoré, 2023 (Ver galeria abaixo). Inicialmente, a gente tinha pensado em falar sobre a crise climática. A gente tomou outro rumo, mas acabou voltando ao mesmo lugar. Porque somos pessoas amazônicas, e isso nos atravessa de maneira muito sensível. Nós coexistimos com a natureza e a violência que a afeta. Nesse contexto, uma coisa que veio como um eixo foi a chuva, o rio. Se não chove mais, se está esquentando muito, o rio começa a ir embora. É como sentir a partida de um parente. Labō tem uma pesquisa com vestimentas feitas de materiais orgânicos. Uma das obras parece uma armadura, em que o rosto inteiro é revestido por plantas, antes de virarem palha. Como uma estratégia para nos mantermos vivos. E eu trago discussões sobre a travestilidade no Brasil. Sobre esse corpo mil graus, símbolo de resistência em um território perigoso.

A produção dos artistas plásticos baianos Rebeca Carapiá e José Adário dos Santos também seria exemplar do recorte proposto pelos curadores. Ariana lembra que ambos trabalham a materialidade do ferro em suas criações, mas suas obras têm pontos de partida distintos. Adário lança mão de ferragens para fazer “assentamentos” de orixás, ou seja, a consagração de objetos como representações das divindades do candomblé; ao passo que Rebeca se relaciona com o material por meio da metalurgia. “O ferro mostra a esses artistas os caminhos que eles podem seguir, algo que contradiz a ideia de que os materiais não têm agência”, argumenta Ariana. “São poéticas numa contramão, mas que se encontram”.

Há também artistas que lidam com a terra ou “com a magia que vem da terra, do solo, do barro”, nas palavras de Dushá, a exemplo da veterana Maria Lira Marques (MG), que desenvolve um “trabalho muito fresco, novo, que só recentemente tem ganhado a projeção e a relevância devidas”, e também a produção de artistas jovens, que trabalham uma “dupla dimensão da terra, a magia, a imaginação e todas as evocações que podem vir daí”, diz o curador. 

Do ponto de vista menos conceitual e mais formal, contam os curadores, houve uma preferência por artistas que estão vivos e atuantes, que nunca tivessem participado da Bienal de São Paulo ou de uma das edições do Panorama, conta Dushá. A seleção é marcada por uma considerável amplitude etária. A lista, ressalta o curador, também ajuda a traçar um arco temporal, em que se questiona e observa “aquilo que as pessoas que vieram antes colocaram de base para quem está trabalhando hoje”. 

Para Ariana Nuala, “as idades distintas trazem densidades distintas” para o Panorama, de modo que as práticas de nomes como Dona Romana (TO), “uma liderança espiritual que não se considera uma artista”, Mestre Nado (PE) e Ivan Campos (AC), nascidos na década de 1940, estarão em diálogo com a de jovens, a exemplo de Melissa de Oliveira (RJ), Marcus Deusdedit (MG) e Rafaela Kennedy (AM), complementando umas às outras, segundo a curadora. 

“Essa bagunça cronológica, que borra fronteiras, interessa-nos muito e tem tudo a ver com com o próprio conceito que a gente está trabalhando, de uma temperatura absoluta que se coloca sobre todo mundo”, argumenta Dushá. “Cada um vai entendendo os modos de responder e se transformar e transmutar a si mesmo a partir dessas condições ambientais que podem ser também poéticas, metafísicas, espirituais”. 

Em sua seleção, a equipe curatorial também contemplou artistas que lidassem, do ponto de vista temático ou formal, com fluxos urbanos e a ideia de um Brasil do século 21 “como um produtor de tecnologia, de uma tecnologia que não necessariamente passe por visões eurocêntricas e norte-americanas”. 

Outra discussão que perpassa o trabalho dos participantes é uma “visão ecológica ampliada”, segundo Dushá. “Uma perspectiva que diz respeito a uma conectividade total, a um compartilhamento deste ambiente em que a gente comunga, convive. E isso vai além das falsas dicotomias que pautaram o pensamento humano desde o romantismo até a modernidade, a cultura versus a natureza, o homem e o meio, o orgânico e o artificial. É muito mais uma mistura do que coisas separadas”, explica. ✱

Mil graus enfoca potência criativa das ruas

Dona Romana

Mil Graus, o 38º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, é uma mostra que, como o título promete, traz calor, mas não apenas o das queimadas – sim, eles também estão lá, mas especialmente o das ruas. Carnaval, rituais indígenas, movimentos urbanos, exercícios místicos, práticas culturais em geral divergentes dos padrões hegemônicos, algumas feitas por artistas, outras não, trazem uma energia acima da média ao circuito de mostras da cidade.

O time de curadores Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala faz desta edição – a primeira e, espera-se, única a ocorrer no Museu de Arte Contemporânea (MAC USP), por conta da lamentável privatização do parque Ibirapuera, cuja gestora forçou uma reforma no MAM – um panorama da cultura brasileira, mais que da própria arte.

Dona Romana (Natividade, TO, Brasil, 1941) Centro Bom Jesus de Nazaré, sítio Jacuba, Natividade, TO, desde setembro de 1989

Três trabalhos são sintomáticos nesta condição, o primeiro deles a monumental obra de Dona Romana, no sítio Jacuba, em Natividade, no Tocantins. Uma espécie de Gaudí (perdão pela referência colonialista) dos trópicos, por conta da maneira como sua arquitetura se constrói com formas orgânicas, ela criou um espaço sagrado, que é tanto sua residência como um templo para práticas espirituais. Dona Romana recusa o termo arte, considera sua missão espiritual, mas a experiência arrebatadora foi uma inspiração para a curadoria, como Dushá relata no catálogo. 

Concebida como um produto para além do típico registro de uma exposição, a publicação traz relatos das viagens de pesquisa em quatro estados (Tocantins, Paraíba, Maranhão e Minas Gerais), além de textos independentes com autores como Sidarta Ribeiro, Denise Ferreira da Silva e Abigail Campos Leal. No catálogo, Dona Romana ganha considerável conteúdo, enquanto na mostra em si, ela comparece com uma foto em grandes dimensões de seu espaço.

Semelhante procedimento recebe a Tropa do Gurilouko, um grupo de “bate-bolas”, espécie de personagem do carnaval. Criado em 2023, no bairro carioca de Campo Grande, eles usam uma vestimenta volumosa – no caso deste grupo uma cabeça de gorila com um corpo amarelo, segurando uma bola amarrada em uma corrente que é usada para fazer som. É um desses fenômenos populares com alta intensidade energética, que na mostra é visto pelas vestimentas, mas que terá uma saída em São Paulo no decorrer do Panorama. 

Já o terceiro caso que faz referência a uma prática cultural mais do que um fazer artístico está no universo do “grau”, um movimento de manobras urbanas em que motocicletas são empinadas até chegar a cerca de 160o do chão. No Panorama, os participantes desse grupo são vistos nas fotos da carioca Melissa de Oliveira. A popularidade dessa prática é tão grande que a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados realizou audiência pública para discutir essa iniciativa como atividade desportiva, já há três anos.

Em todos esses três trabalhos, a potência criativa é um denominador comum e revela-se uma vertente potente na mostra. Nos anos 1960, foi nos contagiantes ensaios da quadra da Mangueira que Hélio Oiticica (1937-1980) se inspirou para várias de suas obras, na busca por incluir o espectador. Ao retomar esse diálogo extra arte, o Panorama traz um importante recado para um momento um tanto entediante de predomínio das práticas predatórias do mercado de arte.

Essa situação tampouco escapa de Mil Graus, que traz a produção de figuras como o maranhense Zimar (Eusimar Meireles Gomes), com suas máscaras que pertencem ao universo do Bumba meu boi, ou o ferreiro baiano José Adário dos Santos, com suas ferramentas inspiradas nos elementos das culturas religiosas afro-brasileiras. Há muito pouco tempo, as obras de ambos eram vendidas por algumas centenas de reais, mas foram adquiridas por galeristas espertos e agora são vendidas na casa de cinco dígitos. Quando o mercado chega antes de exposições mais experimentais, há algo que merece ser refletido, afinal, a mercantilização dessa produção gera uma inescapável elitização, em geral distante da proposta inicial de seus criadores.

Mais consistentes são as colaborações, e Mil Graus traz um caso exemplar: Rop Cateh – Alma pintada em Terra de Encantaria dos Akroá Gamella. Trata-se de uma parceria entre os artistas maranhenses Gê Viana e Thiago Martins de Melo com o povo Akroá Gamella, também do Maranhão, que tem no centro o ritual do Bilibeu, uma festividade desta comunidade indígena. Ele costumava ocorrer durante o período do carnaval, mas desde 2017 passou a acontecer em abril para lembrar um brutal ataque sofrido por agentes externos. Os Akroá Gamella chegaram a ser dados como extintos.

O ritual, assim, torna-se uma espécie de defesa territorial e está representado em Mil Graus em um imenso painel com fotos e vídeos, além de trabalhos de Martins de Melo e Viana, que não só participaram do ritual, como desenvolveram workshops com a comunidade desde abril. 

Outra referência à questão indígena na mostra está em Moquém – Carnes de Caça, de Frederico Filippi. Ela é composta por uma grade – que na língua tupi é moquém, a grelha para assar carnes – sobre a qual estão peças de dois tratores incinerados pela polícia federal após uma operação de fiscalização em garimpos ilegais na região de Itaituba, no Pará. Filippi ainda comparece com Arco (2020- 2024), que aborda o arco de desmatamento, termo utilizado para se referir à região onde a fronteira agrícola avança em direção à floresta, resultando em mais de 500 mil metros quadrados de desmatamento na Amazônia. É o momento mais engajado da mostra.

Mas em uma curadoria de millennials não poderia faltar referências ao universo dos games e da tecnologia, e elas estão presentes especialmente em três trabalhos: Baile do Terror, de Gabriel Massan (o brasileiro que Madonna chamou para colaborar em seu show e que também está em exposição na Pinacoteca do Estado); Visage, de Jonas Van & Juno B.; e a instalação Cabeça d’Água, de Adriano Amaral. São trabalhos complexos, que se utilizam de narrativas bastante radicais e estranhas, e se aproximam de cenários distópicos.

No entanto, o Panorama também tem ênfase na manualidade, em uma produção realizada a partir de elementos naturais como terra e rocha, o que se percebe nas esculturas de Marlene Almeida, Maria Lira Marques, Mestre Nado, Paulo Pires, Sallisa Rosa e Solange Pessoa.

Com tantas vertentes distintas, Mil Graus apresenta-se como um ótimo panorama da produção atual, tão cheia de contradições. Expor esses dilemas é um ponto a favor, mas a sensação que fica é que as histórias por trás das obras, ou seja, a cultura em torno delas, são o que de fato aquece este Panorama. Os mil graus estão nas ruas e nos campos, não no museu. ✱

Tecendo outra história

Imagens da exposição Outros navios: uma coleção afro-atlântica: Máscara Gueledê, povo Nagô (Yoruba), República Popular do Benin, data de aquisição 1977

Há coincidências que revelam muito mais do que as aparências indicam, como a presença na agenda de exposições paulistanas de uma quantidade surpreendente de seleções que se debruçam sobre a cultura, a arte e a memória de culturas oprimidas e por longo tempo invisibilizadas. Elas representam o resultado de uma luta persistente de expansão dos horizontes de um circuito até poucos anos fechado sobre si mesmo. Essas exposições apontam para uma crescente compreensão de saberes e fazeres artísticos que se tornam cada vez mais fundamentais também para repensar o mundo contemporâneo e parecem mais um sinal de esgotamento dos modelos eurocêntricos, baseados em uma precária (e muitas vezes falsa) noção de autonomia da arte.

Exposições como Outros navios: uma coleção afro-atlântica, Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana, Defeito de cor e Línguas africanas que fazem o Brasil, que ocupam alguns dos mais importantes espaços culturais da cidade, têm em comum não apenas a centralidade africana, como também o fato de que todas propõem – em diferentes níveis e estratégias – rever a forma de pensar, exibir e fazer arte a partir de uma visão diversa desta cultura, pensada em movimento e não como algo congelado no passado, considerada em sua diversidade e não de maneira monolítica e isolada. “Perdemos muito tempo tendo que provar que a gente existia. Agora a gente tem que mostrar como a gente existe”, afirma Tiganá Santana, parafraseando o pensador moçambicano Severino Ngoenha. “Esse é um movimento irrefreável, incontível”, acredita o curador responsável pela curadoria desta que é a primeira exposição sobre línguas africanas feita no Brasil, que pode ser vista até 31 de janeiro no Museu da Língua Portuguesa

A mostra tem por ponto de partida algumas palavras de diferentes origens do continente africano que estão totalmente incorporadas ao léxico corrente. Termos como “minhoca” e “bunda” representam, metonimicamente, essa profunda e íntima relação com termos oriundos de línguas como o iorubá, fom, quimbundo e quicongo, que moldaram a língua hoje falada no país. Músico, poeta e pesquisador, Tiganá sublinha a força simbólica de falar dessa ancestralidade de dentro do Museu da Língua Portuguesa, aproveitando os recursos de alta tecnologia da instituição e buscando conciliar diferentes abordagens: plásticas, literárias, acadêmicas, sonoras a audiovisuais. Obras de artistas como Aline Motta, Rebeca Carapiá e J. Cunha convivem com mapas linguísticos, ricos registros da Missão de Pesquisas Folclóricas capitaneada por Mário de Andrade ou gravações feitas na década de 1940 quando da visita do linguista norte-americano Lorenzo Dow Turner ao país. “São muitos públicos, com repertórios diferentes. É preciso pensar no papel formativo ao lado de um compromisso estético”, pondera.

Tiganá reafirma a impossibilidade de segmentar a cultura africana em diferentes tipos de expressão artística como acontece na cultura ocidental. E enfatiza que a arte contemporânea é terreno fundamental para essa virada de entendimento das manifestações culturais africanas – com suas distintas implicações epistemológicas, artísticas, éticas – exatamente por causa da não-separação entre vida e obra. Cita, por exemplo, a impossibilidade de pensar isoladamente a música, a dança ou os trajes do candomblé. Essa confluência entre rito e arte está na base da performance “Bori”, que Ayrson Heráclito apresentou na Pinacoteca em 2022, com música do próprio Tiganá, e que agora pode ser revista no filme Irawo Bori: oferenda para cabeça cósmica, em exibição na sala de vídeo do mesmo museu.

Bori performance-arte oferenda à cabeça

Cotejar passado e presente, combinando elementos formadores dessa cultura com produções que investigam poética e formalmente os desdobramentos dessa história de violência e dominação, mas também de luta e esperança, parece ser estratégia fundamental dessas investigações expositivas. A mostra Defeito de cor, em cartaz no Sesc Pinheiros, parte da obra literária de mesmo nome para reunir sugestões visuais muito potentes, criando uma trama que coloca lado a lado um conjunto diverso de criações, que se conectam quer pela relação com temas e personagens do romance de Ana Maria Gonçalves – que também integra a equipe curatorial –, quer por uma história e um desafio em comum.

A mostra Outros Navios, que pode ser visitada até fevereiro do ano que vem no Centro Cultural Fiesp, também procurou uma interlocução com a produção mais recente, apesar de sua base eminentemente histórica. São cerca de 300 peças – algumas delas nunca mostradas anteriormente –, provenientes da coleção africana do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), acervo que começou a ganhar forma por iniciativa do arqueólogo Marianno Carneiro da Cunha no final dos anos 1960. Com diferentes núcleos temáticos – como De São Paulo a Ifé ou Ventos do Oeste Africano, a exposição optou por uma expografia em tom mais imersivo, sensorial, deixando um pouco de lado o caráter didático normalmente associado a instituições universitárias. Segundo Rosa Vieira, pesquisadora do MAE e uma das curadoras, o conceito da mostra é o de “caixa aberta”, interligando diferentes questões, promovendo a circulação das obras para fora da reserva técnica e num espaço de ampla circulação, diálogo e reflexão com diferentes agentes, reagindo assim à crítica cada vez mais frequente aos museus etnográficos como meros depósitos de despojos de uma lógica colonizadora. A exposição propõe interconexões com 11 poéticas contemporâneas, como a imagem em deslocamento criada por Denis Moreira, que transita da máscara africana à imagem Manoel Querino ou diálogo entre o olhar histórico de Pierre Verger e a fotografia de Denise Camargo, um autorretrato de sua sombra, “buscando problematizar o lugar no não-sujeito”, acrescenta Rosa. 

Entre a Cabeça e a terra, exposição que reúne aproximadamente 130 peças têxteis africanas, resulta de uma parceria entre a Pinacoteca, a Maison Gacha (Paris/França) e a Fundação Jean-Félicien Gacha (Bangoulap/Cameroun), e traz à tona um conjunto complexo de técnicas, conhecimentos ancestrais e tradições coletivas ainda presentes em território africano. A mostra se organiza em torno de sete núcleos, combinando aspectos técnicos, temáticos e sociais a mostra lida com aspectos como a presença marcante da geometria animal, o uso do azul proveniente do índigo, a riqueza das miçangas, num percurso marcado por deslumbramentos. Não se trata, entretanto, de enfatizar a riqueza dessa produção, mas de considerar esses tecidos como objetos de arte, de cultura e de conexão entre povos. 

Imagens da exposição Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana: Máscara Gueledê, povo Nagô (Yoruba), República Popular do Benin, data de aquisição 1977

O que está em questão não é uma arte enquadrada nos padrões de modernidade inventados pela Europa, ligados a exploração e acúmulo, em que aspectos como valor e singularidade são a regra. Noções como a ideia de autoria, por exemplo, não fazem sentido aqui. Trata-se de uma transmissão de conhecimento e técnicas intergeracionais, que estão carregadas de significados que vão muito além das noções de uso, apreciação estética ou reserva e intercâmbio de valores. São, sim, elementos que fazem parte de “uma cadeia muito longa, de produção de sociabilidade e conhecimento”, uma “amálgama de saberes”, explica o curador da Pinacoteca Renato Menezes, autor – em parceria com Danilo Losivi (Fundação Gacha) – da concepção e desenvolvimento da exposição. 

Durante muito tempo a cultura ocidental negou, desconfiou ou se apropriou da arte africana – ou indígena –, rotulou essa produção como arte popular ou artesanato, desconsiderando sua riqueza e especificidade e esvaziando-a de significado. Diluir essas generalizações, divulgar essas produções – em suas complexidades geográficas, históricas e culturais – são algumas das premissas que ganham corpo recentemente nos estudos e pesquisas curatoriais. “O público de hoje está muito preparado, curioso, com perguntas muito concretas e nosso papel é alargar esse debate”, conta Menezes. Ou, como afirma Lovisi no catálogo da exposição, “a ideia não é refazer a história, mas completá-la ou tecê-la de outra forma”. Como diz a estrofe de “Diáspora Negra”, composição de Nei Lopes e Rogê que ele adota como epígrafe, “carregando o passado na mente, olhando de frente o que ficou para trás”. ✱

Dandara: entre a lenda e a resistência

Dandara
Dandara, Renata Felinto, Aquarela, Ceará, 2019. Esta aquarela faz parte da série Ex-Votos e da instalação As que me Habitam. Coleção: Secretaria de Cultura de Anápolis/GO
Por Vanicleia Silva Santos (University of Pennsylvania)
Renata Felinto (Universidade Regional do Cariri)

Escrevi este ensaio em novembro de 2023 para um jornal brasileiro que solicitou uma análise sobre Dandara, abordando as seguintes questões: 1. Qual é a importância de Dandara para Zumbi? E para o Quilombo dos Palmares? 2. Dandara teve algum papel no rompimento de Zumbi com seu tio Ganga Zumba? 

O texto seria publicado no Mês da Consciência Negra, mas, por alguma razão, não foi. Suspeito que minha análise não tenha correspondido ao que o editor esperava – uma narrativa que confirmasse uma ideia previamente estabelecida sobre Dandara. 

Posteriormente, aproveitei essa oportunidade para expandir a discussão sobre a construção de personagens na luta pela liberdade da população negra no Brasil. Meu argumento é que a criação de narrativas e representações visuais é um mecanismo essencial que a comunidade negra brasileira tem utilizado para preencher o silêncio sobre a participação negra nos movimentos históricos do Brasil. Este ensaio foca em Dandara, mas a análise pode ser estendida a outras personagens que fazem parte dessa contranarrativa, como Maria Felipa, Zacimba Gaba e outras.

A origem da construção de Dandara

A comunidade negra abraçou Dandara como a esposa de Zumbi e uma mulher que teria lutado pela liberdade no Quilombo dos Palmares. A transformação de uma criação literária em uma figura quase histórica reflete a necessidade de quebrar o silêncio sobre a falta de referências nas fontes históricas sobre a participação das mulheres na luta contra a opressão, violência e o racismo praticados pelos portugueses no Brasil. Embora as fontes militares da guerra contra o Quilombo dos Palmares mencionem pouco as mulheres, sabemos que o quilombo era composto por homens e mulheres que lutaram juntos pela liberdade. A guerra contra o Quilombo dos Palmares ocorreu principalmente na segunda metade do século 17, quando várias expedições militares portuguesas tentaram destruir o quilombo, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. Apesar da resistência, o quilombo foi destruído em 1694, e Zumbi, seu líder, foi capturado e morto em 20 de novembro de 1695, data que hoje é celebrada como o Dia da Consciência Negra.

A pergunta sobre a importância de Dandara para Zumbi não pode ser respondida com base em sua existência histórica. No entanto, havia outras mulheres próximas a Zumbi que certamente desempenharam papéis decisivos em Palmares. Pesquisas históricas mostram que a ideia de uma mulher chamada Dandara surgiu como personagem literária no romance Ganga-Zumba de João Felício dos Santos, publicado em 1962. O escritor mineiro branco criou Dandara, e como Nei Lopes destaca em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, Dandara é uma “personagem lendária da história de Palmares… Celebrada como a grande liderança feminina da epopeia quilombola, teria morrido quando da destruição da cidadela de Macaco. Contudo, sua real existência ainda está envolta em uma aura de lenda.” 

Para responder à pergunta “Dandara teve algum papel no rompimento de Zumbi com seu tio Ganga Zumba?”, seria necessário igualmente ter fontes históricas que comprovassem sua existência. Porém, como já mencionado, Dandara emergiu como um personagem literário em 1962. Portanto, a narrativa de que Dandara teve um papel nesse rompimento baseia-se em narrativas orais que surgiram após sua divulgação na literatura e no cinema. Isso não diminui a importância simbólica que “Dandara” adquiriu nos últimos anos. É significativo que os movimentos sociais tenham transformado uma personagem fictícia em um símbolo de resistência contra a escravidão e a opressão, revelando o poder da comunidade negra de criar narrativas que questionam o silêncio das fontes históricas sobre as mulheres negras na luta contra a escravidão. 

No Brasil, a galeria de heróis nacionais é dominada por homens brancos, algumas mulheres brancas e poucos homens negros. A ideia de Dandara reflete a necessidade de heroínas afrodescendentes que se destacaram na luta pela comunidade negra. Essa construção de Dandara deve nos inspirar a estudar mulheres negras reais que lutaram para transformar a dura vida da população negra no Brasil. 

Recentemente, escrevi sobre Maria Firmina dos Reis, abolicionista e a primeira pessoa negra a publicar um livro no Brasil. Firmina dos Reis foi deliberadamente esquecida pela elite brasileira por denunciar os horrores da escravidão na obra Úrsula. Como ela, há muitas outras mulheres cujas histórias merecem ser pesquisadas e divulgadas. Embora não tenham lutado com armas, muitas mulheres negras, como Esperança Garcia, que viveu no Piauí, escreveu uma carta ao governador, em 1770, para denunciar as brutais e humilhantes condições de vida das mulheres que viviam na fazenda Algodões. Ela e outras mulheres comuns tiveram um papel fundamental na luta contra a escravidão. Além deste exemplo, jornais brasileiros do século 19 estão repletos de histórias de mulheres que fugiram da casa de seus escravizadores, confrontando diretamente o sistema da escravidão. A nossa ideia de heroínas deve ir além dos arquétipos de heróis criados pela ficção e pela história oficial.

Sobre o apelo das heroínas guerreiras, uma boa comparação pode ser feita com os filmes Mulher-Rei (2022), Queen Amina (2017), Rainha Jinga (2023) e outros sobre rainhas e guerreiras africanas que se tornaram populares nos últimos anos no cinema internacional. No cinema, figuras de rainhas e guerreiras negras servem como uma forma de dialogar com o público jovem sobre mulheres inteligentes, fortes, corajosas e valentes que lutaram para defender suas comunidades. Estas produções realizadas na África e em países da diáspora africana desafiam a narrativa dominante centrada em heróis masculinos brancos, destemidos e violentos. O resultado é que muitas pessoas são educadas ou informadas sobre as histórias de diversas sociedades pelo que assistem em produções audiovisuais, que, não, necessariamente, correspondem às evidências históricas. Logo, a nossa necessidade de heroínas negras, mesmo que ficcionais, faz parte da urgência em construir contranarrativas, pois as narrativas existentes até então silenciam as histórias das mulheres negras. De todo modo, precisamos ir além da ficção e pesquisar histórias de mulheres reais, como nós, que tiveram um papel essencial na defesa da liberdade no período da escravidão.

A produção artística sobre Dandara no Brasil

Como resultado do processo de construção histórica de Dandara como uma figura central para o Movimento Negro, diversas artistas brasileiras têm produzido obras significativas que celebram sua trajetória e de outras personalidades. Elas abandonaram a estratégia de apropriação de retratos fotográficos feitos no século 19 em estúdios de fotógrafos consagrados por registrar a população escravizada e passaram a criar novas representações. Um exemplo é a aquarela de Renata Felinto, que retrata Dandara como uma guerreira imponente e que faz parte da instalação As que me habitam, 2019, na qual a artista se autorretrata como heroínas negras subrepresentadas visualmente e historicamente no Brasil. Na obra de Renata Felinto, Dandara segura uma lança em uma das mãos e ostenta no pescoço um colar, do qual descem duas fileiras de contas que passam por baixo dos seios. Em um dos braços, ela usa um bracelete adornado com fitas esvoaçantes. Além de sua representação como guerreira, Dandara também é retratada como uma mulher sensual, evidenciada pelo saiote com aberturas laterais, o rosto ricamente decorado, os cílios longos e as pálpebras pintadas de lilás. Estes dois detalhes marcam as representações femininas da artista que enfatiza tais atributos lembrando-nos que mulheres negras podem ser aguerridas e destemidas e, ao mesmo tempo, ter feminilidade e autocuidado.

Dandara
As que me habitam, 2019, instalação de Renata Felinto com ex-votos em aquarela, cartas e fotografias

Renata Felinto pintou Dandara como um ex-voto para expressar a reverência e o respeito que esta mulher representa na luta pela liberdade dos povos afro-brasileiros e na resistência contra a escravidão. Ao mesmo tempo, para Felinto, este exemplo, sendo fictício ou verídico, fortalece a autoestima de meninas e mulheres negras Brasil afora. Ao retratar Dandara como um ex-voto, a artista conecta a figura histórica a uma tradição religiosa popular que envolve gratidão e devoção, elevando-a à condição de uma figura quase sagrada para o Movimento Negro. Por isso, Felinto adicionou esta frase à pintura: “Agradecemos a Dandara por sua coragem na defesa do Quilombo dos Palmares, no século 17.” (Figura 1)

Ex-voto é uma oferenda ou objeto que simboliza a gratidão de uma pessoa por uma graça alcançada. As pessoas agraciadas geralmente colocam tais objetos em santuários ou igrejas. No contexto religioso popular, especialmente no Brasil, ex-votos são uma maneira de materializar a fé e a devoção. Por exemplo, uma pessoa que acredita ter sido curada de uma enfermidade pode oferecer um ex-voto representando a parte do corpo curada, como uma perna ou um coração, como forma de agradecimento a um santo ou entidade religiosa. Esses objetos podem assumir várias formas, como pinturas, esculturas, placas de agradecimento, ou representações em cera ou madeira de partes do corpo que foram curadas. Neste caso, Renata Felinto ofereceu essa pintura para Dandara, como uma forma de agradecer pela luta pela liberdade do povo negro no Brasil.

O termo “ex-voto” vem do latim ex-voto, que significa “de acordo com o voto” ou “em cumprimento de uma promessa”. Para Renata Felinto, a imagem de Dandara como um ex-voto reforça a ideia de que ela não é apenas uma heroína histórica, mas também um símbolo de força, coragem e resistência para as comunidades afro-brasileiras. Ex-votos são normalmente oferecidos como forma de agradecer por um milagre ou uma bênção, e ao representar Dandara assim, Renata Felinto sugere que a memória dessa figura é uma “graça” concedida ao povo, uma fonte contínua de inspiração e empoderamento. Além disso, essa escolha artística ressignifica o conceito de ex-voto ao ligá-lo a uma narrativa de resistência, em vez de limitar-se à devoção religiosa tradicional. É uma forma de afirmar que Dandara é uma figura venerada não apenas no sentido espiritual, mas também político e cultural, sendo um exemplo eterno para a luta negra no Brasil.

Conclusão

Em suma, a construção da figura de Dandara, na literatura, nas artes plásticas, no cinema e nos movimentos sociais reflete a busca da comunidade negra brasileira por contranarrativas que desafiem a historiografia tradicional, muitas vezes marcada pela ausência ou distorção das contribuições das mulheres negras. Ao examinar a origem e a construção de Dandara, vemos que essa figura não apenas se tornou um ícone cultural, mas também serviu como um catalisador para a criação de narrativas que rompem com a supremacia branca no panteão dos heróis nacionais. A adoção de Dandara pelos movimentos sociais ilustra o poder da narrativa na construção de identidades e na reivindicação de espaços históricos para grupos tradicionalmente marginalizados. Além disso, a produção artística contemporânea, exemplificada pela obra de Renata Felinto, reinterpreta Dandara como uma figura de devoção e resistência, reforçando a conexão entre arte, memória e identidade. Essas representações artísticas não só homenageiam a luta das mulheres negras, mas também ressignificam conceitos religiosos, como o ex-voto, para incluir dimensões políticas e culturais da resistência negra no Brasil. Em última análise, a construção de Dandara como heroína, seja ela histórica ou simbólica, reflete uma estratégia poderosa da comunidade negra para desafiar e reescrever a história, garantindo que as vozes e experiências das mulheres negras sejam reconhecidas e celebradas. Essa construção não só fortalece a identidade e a autoestima das comunidades afro-brasileiras, mas também contribui para uma narrativa mais inclusiva e justa, que reconhece o papel central das mulheres negras na história do Brasil. ✱

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¹ Na obra Black Women in the Global Diaspora in the  XIX Century, que estou organizando com Vanessa Oliveira, coletamos mais de cem fontes de mulheres escravizadas que desafiaram a escravidão e a opressão em todos os continentes. Elas não se enquadram no arquétipo da heroína dos cinemas, mas foram essenciais para desmantelar o sistema escravista ao redor do mundo.

Desaprender o imperialismo e reparar

Fotografias que não podem ser mostradas: Diferentes maneiras de não dizer deportação, Evacuação de seu próprio “livre arbítrio”

A artista e acadêmica Ariella Aïsha Azoulay consegue personificar o conceito que ela criou de história potencial, que dá nome ao seu monumental livro: nascida em Israel (1962) de pais judeus, ela incorporou o nome árabe de sua avó Aïsha como um manifesto de que o passado pode ser também o presente.

Isso porque seu pai, um judeu árabe argelino, buscou apagar da família o legado pré-colonial para ser aceito primeiro como cidadão francês e, logo depois, como israelense, quando se muda com a família para o estado recém-criado em 1949. “Ele não perdeu a oportunidade de se passar por imigrante francês, e não pelo judeu argelino de pele escura que ele era”, conta ela em História potencial, lançado pela editora Ubu, com três dos sete capítulos da publicação original em inglês, que saiu em 2019, com quase 700 páginas.

O exemplo de seu pai é simbólico para apontar como os dominados se identificam com os dominadores, ou nas palavras dela sobre “o mundo de espelhos criado pelo imperialismo, em que as vítimas se tornam agressores e os agressores se tornam vítimas”. Ao resgatar o Aïsha apagado da avó, ela conta ter comemorado “a presença desse nome recalcitrante como uma relíquia inestimável de um mundo pré-colonial diferente, que inspirou este livro desde quando o descobri”.

Ariella Aïsha Azoulay
Radicada nos Estados Unidos dessde 2013, Ariella Aïsha Azoulay atua como professora no departamento de Cultura e Mídias Modernas na Universidade Brown

Assim, como defende o curador Benjamin Seroussi na introdução do livro, ela põe “em prática uma história potencial: desenterrar o que vive no presente, nos escombros do desastre (da colonização, da escravidão, da ocupação) e assim reduzir a tal história imperial apenas a uma história plausível – entre outras possíveis”.

Radicada nos Estados Unidos desde 2013, Azoulay atua como professora no departamento de Cultura e Mídias Modernas na Universidade Brown. História potencial pode ser visto como um guia ou mesmo um manifesto dentro das atuais reflexões decoloniais. Sua meta, afinal, é a mesma, já que se concentra em defender que é preciso desaprender o imperialismo. E isso “significa desaprender a dissociação que desencadeou um movimento incessável de migração (forçada) de objetos e pessoas em diferentes circuitos e a destruição dos mundos de quem eram parte”. 

Dessa forma, boa parte de sua análise se detém sobre as consequências do tráfico de escravizados da África, especialmente nos Estados Unidos, e da ocupação na Palestina, por conta de sua própria trajetória pessoal. “Este livro foi escrito como parte de minha recusa em ser ‘israelense’, a pensar como israelense, a me identificar como israelense, a ser reconhecida como israelense. Eu me recuso em parte porque ser israelense significa ter direito a terras roubadas e à propriedade alheia”. Se, quando o livro foi publicado em 2019, essas considerações já eram contundentes, hoje elas ganham impressionante atualidade.

História potencial

Arquivos

Como artista, Azoulay é reconhecida por trabalhar com arquivos. É o caso de sua publicação Unshowable Photographs – Different Ways Not to Say Deportation (fotografias que não podem ser mostradas – diferentes maneiras de não dizer deportação), de 2013, realizado a partir de fotografias tiradas na Palestina entre 1947 e 1950, reunidas nos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), em Genebra. Esse período compreende o Nakba (desastre), quando ao menos 700 mil palestinos foram expulsos de suas terras. Como ela não podia reproduzir essa imagens, simplesmente desenhou copiando algumas delas para a publicação, revertendo assim a invisibilidade do arquivo.

“Meu entendimento da história potencial derivou de meu trabalho de criar arquivos contra os arquivos existentes, mas também estimulou tal trabalho. Os arquivos fotográficos que comecei a reunir após ter escrito O contrato civil da fotografia me ajudaram a compreender que a discussão sobre fotografia e cidadania que faço neste livro constitui as histórias potenciais da fotografia e da cidadania que imaginam e atualizam diferentes formações políticas”, explica a artista, no livro publicado no Brasil.

O primeiro arquivo fotográfico que ela se debruçou foi justamente sobre os territórios ocupados de 1967 a 2007, e o segundo, sobre a ruína da Palestina e a constituição do Estado de Israel, entre 1947 e 1950. Ambos os arquivos do mesmo desastre causado pelo regime deram origem a uma história potencial do próprio arquivo.

Ao analisar O contrato civil da fotografia (2008), ainda não publicado no Brasil, Judith Butler afirma que “Azoulay argumenta que a fotografia é um conjunto particular de relações entre indivíduos com o poder que os governa e, ao mesmo tempo, uma forma de relações entre indivíduos iguais que restringe esse poder”. Ainda segundo Butler, o livro “mostra como qualquer pessoa, mesmo um apátrida, que se dirige a outros através de fotografias ou ocupa a posição de destinatário de uma fotografia, é ou pode tornar-se um cidadão na cidadania da fotografia. O contrato civil de fotografia permite-lhe partilhar com terceiros a reclamação feita ou abordada pela fotografia”.

Outro arquivo que Azoulay tratou foi um não-arquivo em verdade, mas ela trabalha muito com essa noção de (des)apagamento. É o caso de A História natural do estupro, que foi exibido na 12ª Bienal de Berlim, em 2022, uma investigação sobre os milhares de estupros que mulheres alemãs sofreram após a Segunda Guerra Mundial e que foram praticamente apagados dos livros da época. Em milhares de fotos realizadas em abril e maio de 1945, não há nenhuma com menção a estupro e, em 9.558 páginas sobre o período, apenas 161 abordam os estupros massivos de mulheres. 

Na bienal alemã, Azoulay apresentou uma mesa com os livros que tratam do assunto, mas as imagens estavam recobertas com uma tarja negra, como a proteger as vítimas. A artista exibiu ainda uma complexa documentação sobre o tema em uma parede. É simbólico aqui como ela revê a história dos aliados vencedores – ingleses, russos, franceses e norte-americanos – que ocuparam a Alemanha e os marca como estupradores, um exemplo da história potencial.

Contra o progresso

Pelo que se percebe, portanto, Azoulay sempre foi uma defensora de estratégias que permitem se contrapor aos dispositivos imperialistas, que em geral se baseiam na história como uma narrativa fechada e nas disciplinas acadêmicas isoladas, especialmente a História e a Política, como suporte da opressão. 

O livro História potencial, nesse sentido, busca propor métodos que se afastem do padrão. “A história potencial deve recusar o uso de ferramentas imperiais”, defende ela. Nem os museus escapam desse contexto: “A museificação da tradição e a exposição de alguns objetos sob o manto de tradição é uma tentativa de nos fazer esquecer que a tradição não diz respeito ao que é transmitido – objetos, imagens ou costumes –, mas à própria transmissão”. Assim, percebe ela, o museu muitas vezes se torna o fim em si, uma entidade legitimadora dela mesmo, mais do que uma reflexão de seus acervos.

Para Azoulay, há dois momentos históricos que definiram boa parte das narrativas imperiais: “Foi com a Revolução Francesa e a Revolução Americana e por meio delas que a história foi institucionalizada como um estudo do passado, baseado, por sua vez, na institucionalização do arquivo como o locus da “matéria-prima” do passado”. Ainda segunda ela, “é essa separação entre passado e presente que permite que quaisquer reivindicações e aspirações não imperiais sejam transformadas em algo de importância secundária para a narrativa do progresso”.

Para nós que, especialmente após à pandemia, estamos atentos às falas de lideranças indígenas e quilombolas, como Ailton Krenak e Nêgo Bispo (1959 – 2023), a crítica ao progresso não é novidade, mas como o livro é originalmente de 2019, portanto antes da pandemia da covid-19, ela ganha tom premonitório. 

“Este livro restaura uma promessa diferente na forma de uma barricada – a promessa de dizer não ao progresso. Não, isso não é possível é o grito que as pessoas emitem por toda parte contra aqueles que agiram como se nada pudesse limitá-los”, brada Azoulay, que antes explicava que a máquina imperialista sempre busca forçar impondo que “tudo é possível”.

Especialista em fotografia, no ano passado ela lançou com Susan Meiselas e outras três autoras o livro Collaboration, a potencial history of photography (colaboração, uma história potencial da fotografia), no qual inclui Rosângela Rennó, Claudia Andujar e o Zumví Arquivo Afro Fotográfico, Azoulay também aponta como a produção de imagens de escravizados foi feita por um obturador imperial. 

“Essas imagens muitas vezes são reproduzidas como ilustrações, sem informação alguma ou apenas com informação superficial sobre o contexto da imagem, de  maneira que fica fácil atribuir a penúria, pobreza e a subjugação dos afro-americanos à responsabilidade das pessoas fotografadas e dissociá-las da riqueza produzida com seu trabalho, sua obra e sua ação”. Como exemplo de história potencial ela lembra do abolicionista Frederick Douglass (1818-1895), que estava representado na 34ª Bienal de São Paulo, em 2021, e que se utilizava da fotografia como instrumento político capaz de contrapor estereótipos de raça.

Azoulay, por isso mesmo, é defensora de políticas de reparação e de grupos que defendem a derrubada de monumentos imperialistas: “As reivindicações de reparações não são uma contra-história, mas são contra a história. Elas se opõem à transformação dos crimes contra os quais recorrem, em ‘passado’, e, da mesma forma, procuram enfatizar a violência petrificada nas instituições.”

Ainda segundo ela, “as reparações não têm nada a ver com o progresso, nem o dos agressores nem o das vítimas; ao contrário, representam uma rejeição do princípio imperial e a recuperação de uma condição humana mundana, uma soberania mundana”. Essas reparações, que são abordadas no último capítulo do livro, são urgentes e não podem demorar a acontecer. “O tempo do adiamento terminou”, sentencia a acadêmica, no necessário tom ativista que o tema impõe. ✱

Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes: projeto de futuro no centro do Brasil

Sertão Negro
Alimentos Sertão Verde
Por Luciara Ribeiro, Ceiça Ferreira e Vitória Soares 
Sertão Negro
Alimentos Sertão Verde

Idealizado e criado pelo artista visual Dalton Paula e pela pesquisadora Ceiça Ferreira em Goiânia, no ano de 2021, o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes tem princípios alicerçados nos fundamentos dos terreiros, subúrbios e quilombos, por meio dos quais propõe uma formação artística conectada com a paisagem cerratense, seus saberes e tradições negras.

O espaço possui uma estrutura que contempla desde equipamentos e matérias primas para a produção artística, como forno para cerâmica, prensa de gravura, cavaletes e espaços para a prática da pintura, com disponibilidade de tintas e aquarelas, até o foco em sustentabilidade, bioconstrução e ecologia encontradas na sua própria formação e construção. 

No fomento à pesquisa e educação, o Sertão Negro atua na formação de artistas, com um programa de residência local, nacional e internacional, que promove o diálogo entre as artes visuais, o bioma Cerrado e os saberes ditos “tradicionais” das populações afro-brasilerias, sertanejas e indígenas. No espaço também são realizadas exposições, aulas de cerâmica, gravura e capoeira angola, além de sessões do Cineclube Maria Grampinho, cuja proposta curatorial destaca os cinemas negros. Vale destacar ainda uma biblioteca com mais de cinco mil títulos centrados no pensamento afro-brasileiro, africano, afro-diaspórico e indígena e suas relações com as artes, ciências sociais, filosofia, botânica e literatura.

Compreendendo o centro-oeste como um lugar de potência e um centro de criação, o Sertão Negro tece diálogos entre artistas nascidos em Goiás ou que aqui estão construindo suas trajetórias profissionais e assim se firma como um projeto que – parafraseando a artista Rosana Paulino – visa criar estratégias de consolidação, fomento, formação e manutenção da produção negra contemporânea brasileira. 

O ateliê-Escola se expande para um projeto de agroecologia, o Sertão Verde, de onde são colhidos vegetais e folhagens orgânicas para a alimentação de residentes e frequentadores. Recentemente também foi inaugurado o Sertão Vermelho, um novo espaço destinado à produção de proteína (peixe), visando, assim, a sustentabilidade e a soberania alimentar.

A partir da relação indissociável entre a poética artística de Dalton Paula, que reverencia pessoas e espacialidades negras historicamente invisibilizadas e a construção do Sertão Negro, ateliê-escola e centro cultural, no qual, juntamente com artistas e profissionais de diversas áreas, é que tem-se edificado uma ação política no contexto da arte contemporânea nacional.  

Isso significa pensar a formação artística de maneira mais ampliada, articulada à terra, à ancestralidade, a uma forma social negro-brasileira que, por meio do jogo da capoeira angola e dos saberes tradicionais de cultivo da terra ensina sobre tempo e sobre capacidade de negociação no mundo das artes e no cotidiano. 

Tais princípios orientam atividades individuais, como a elaboração do caderno de artista, do portfólio e do entendimento de sua poética por parte de cada artista; e também atividades coletivas, como por exemplo, as propostas curatoriais que o Sertão Negro levou a diversos lugares, entre eles, a SP-Arte Rotas Brasileiras: em 2023 e 2024, para onde o grupo utilizou na primeira participação tinta produzida a base de terras de Goiânia para transformar o “cubo branco” do estande da Feira; e na segunda, fomentou a partir da serrapilheira, processo da natureza que acomoda as folhas caídas e garante fertilidade ao solo, o tecer de um mosaico orgânico e dinâmico com os trabalhos de artistas residentes e assistentes.  

Este desejo de emancipação, de construção de futuro se consolida com a “Associação Jatobá Nascente”, projeto de ateliê-casa e centro de arte-educação, que visa a autonomia financeira, o desenvolvimento artístico e o comprometimento socioambiental de seis artistas residentes e assistentes do Sertão Negro. Trata-se de uma iniciativa pioneira que cria condições para que os artistas trilhem seus próprios caminhos e possam ser multiplicadores desse sonho de transformação social. 

Sertão Negro tem possibilitado a circulação de artistas e a elaboração crítica a respeito deles, tendo sido destaque em análises de importantes agentes das artes, que revelam as contribuições do projeto também para a relaboração dos pensamentos teóricos e conceituais das artes, na reelaboração dos modelos hegêmonicos de leitura, narrativa e olhares para as produções de autorias negras, indígenas e do centro do Brasil. ✱

Sobre as autoras:


Luciara Ribeiro – Educadora, pesquisadora e curadora. Nascida em Xique-xique/Bahia, reside entre São Paulo e Goiânia. É mestre em História da Arte e Diretora artística no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes


Ceiça Ferreira
– Fundadora e diretora do Cineclube Maria Grampinho, no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, projeto de vida que compartilha com o artista Dalton Paula. É Doutora em Comunicação pela UnB e professora e pesquisadora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG).


Vitória Soares
– graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolve pesquisa com enfoque em sociologia e antropologia, ancorando-se no pensamento negro radical para estudo da cultura, artes e movimentos sociais. É pesquisadora em Educação no Sertão Negro.

Novas derivas

Nesta edição da arte!brasileiros, damos a conhecer no Brasil, em língua portuguesa, dois capítulos de um texto do curador e crítico de arte espanhol Agustin Pérez Rubio, ex-diretor do MALBA (Argentina) e cocurador da 11ª Bienal de Berlim, realizada em 2020. Fizemos esta escolha a partir do trabalho excepcional que ele e a artista Sandra Gamarra realizaram como representantes do Pavilhão da Espanha na Bienal de Veneza de 2025, Estrangeiros por toda parte, que se encerra em 24 de novembro deste ano.O projeto da peruana Gamarra, residente na Espanha, traduz de maneira contundente o debate sobre a colonização e o seu papel na América, onde milhares de indígenas, aqui nascidos, e afrodescendentes, trazidos sob regime escravo da África, de Portugal e outras colônias, foram mortos ao longo dos séculos de presença europeia.

Fabio Cypriano resenha e critica o livro de Ariella Aïsha Azoulay que, em História Potencial, propõe “desaprender a violência original do imperialismo”. Cypriano também faz uma crítica do 38º Panorama do MAM, hoje albergado no MAC USP por questões de reformas. A exposição reflete um excelente trabalho de jovens curadores e artistas, que traz para os museus a voz das ruas.

Tudo o que se diga, hoje, sobre povos originários, racismo estrutural e dominação econômica cultural será pouco para entender a dificuldade de traçar um novo caminho para nossos países, carentes de uma revolução burguesa, e onde a desigualdade econômica e social atingiu raças, culturas e religiões.

Não por acaso há mais de dez anos a arte!brasileiros escolheu uma estética e didática interdisciplinar para falar de arte. Impossível falar de arte sem acompanhar sua época. A arte não escapou nem escaparia às tradições escravocratas, nem à sua denúncia. A arte, como as vezes digo, é um pretexto.

As bienais, exposições e os simpósios, nascidos no começo do Século XX, estão, cada vez mais, buscando novos formatos para abrigar movimentos culturais que possam dar conta das novas narrativas contra-hegemônicas por um lado, assim como das manifestações sociais em constante movimento.

Maria Hirszman visitou e compilou quatro exposições em cartaz, que propõem, a partir de diferentes perspectivas, preencher apagamentos da história sobre a importância da presença africana no Brasil.

Eduardo Simões esteve presente no seminário Ensaios para o Museu das Origens: políticas da memória, organizado pelo Instituto Tomie Ohtake, e escreve sobre a conferência Museo del Barro e Museu das Origens: crítica instituinte e políticas da memória na América Latina, com Ana Roman, Izabela Pucu, Lia Colombino e Paulo Miyada, e de que também participaram Gleyce Kelly Heitor e José Eduardo Ferreira Santos.

Uma experiência muito animadora deste segundo semestre foi o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, iniciativa idealizada pelo artista Dalton Paula e pela pesquisadora Ceiça Ferreira, em Goiânia, no ano de 2021. Ceiça, Luciara Ribeiro e Vitória Soares, integrantes do espaço artístico e cultural, escrevem sobre as propostas do lugar, que envolvem “diálogos entre as artes visuais, sertões e o cerrado a partir dos saberes tradicionais de base afro-brasileira e africana”.

Com pesquisa e olhar atento buscamos colaborar com a reflexão e divulgar um cotidiano da arte e da cultura – nacional e internacional – sempre preocupados em pensar seu tempo e seu entorno. Os que prezamos pela civilização estamos sempre à procura de novas equações de convivência e, fundamentalmente, novas derivas e possibilidades de intervenção. Boa leitura!

Trienal de Tijuana expõe arte como resistência

Trienal de Tijuana
Série: É salvo és alvo, 2021. Márcio Almeida Brasil

A segunda edição da Trienal de Tijuana 2: Internacional Pictórica (México), inaugurada em 6 de setembro, tem como eixo conceitual o pictórico que, em sua forma disruptiva, é tomado como ponto de partida, ressaltando a capacidade da pintura de se expandir e dialogar com outras formas de expressão. Tal escolha remonta ao projeto inaugural da Trienal de Tijuana Internacional Pictórica (2019), idealizado pelo Centro Cultural Tijuana (Cecut) e proposto pelo crítico mexicano Heriberto Yépez, que via no pictórico a possibilidade explorar novas poéticas da pintura.

Tijuana, cidade atravessada pela fronteira considerada uma das mais visitadas e violentas das Américas, simboliza divisões políticas e sociais profundas. Esse ambiente complexo torna-se cenário ideal para a sediar essa efervescência artística que atraiu mais de 500 artistas de 14 países. Foram selecionados 88 trabalhos, com equidade de gênero, para compor uma trienal pensada a partir de uma convocatória, sem tema pré-definido e somente trabalhos inéditos. As obras abarcam uma diversidade de questões, desde a poética ao trash, passando pelo discurso político, ecologia, questões de escolha de gênero e espaço ancestral de violência e tortura. Como curadora geral da Trienal, após longas leituras e avaliações, eu consegui reunir um conjunto representativo da produção artística contemporânea.

As novas formas de ver e fazer arte inserem-se em um campo expandido, cuja evolução é histórica e contínua. Há um esforço deliberado entre os criadores da Trienal de Tijuana em distinguir o “pictórico” e a “pintura”. No contexto teórico, Hal Foster, crítico e teórico norte-americano, falou em um seminário de 1988 sobre Visibilidade, que o pictórico na pintura ocorre através da ótica: “A visão é também social e histórica, e a visualidade envolve corpo e psique. Essa diferença entre ver e ser levado a ver aponta para as formas em que somos conduzidos a perceber o mundo”. Em resumo, o pictórico é a imagem que expressa transformação. Para Foster, trata-se de uma visualidade “pré-ocular”, que emana do olho interior, o “olho antes do olho”.

As obras selecionadas para esta edição da Trienal, que vai até 28 de fevereiro de 2025, refletem um momento de transcendências, negações, inovações e contrastes geracionais. Regina Silveira, aos 85 anos é hoje uma das artistas latino-americanas mais importantes, segundo a crítica Mari Carmen Ramírez. Sua vídeo-animação “Trampa” é uma execução virtual de um bordado que muda de cor sobre uma parede, evocando a ideia de uma pintura expandida que inclui a dimensão temporal. Na outra ponta, a jovem mexicana Solis Apollon, de 21 anos, apresenta “Pés sobre areia”, uma obra que comunica a impermanência do ser humano tanto em seus territórios de origem quanto fora deles.

A trienal se move em meio a questões sociais e políticas. O fotógrafo norte-americano Scott Henry Hopkins realiza uma intervenção crítica no famoso muro que divide Tijuana e San Diego, restaurado e expandido durante o governo de Donald Trump. Sua obra reflete sobre a dualidade patológica que caracteriza a política de imigração nos Estados Unidos. Com uma pintura exemplar, o equatoriano David Santillán Caicedo usa seu trabalho como ferramenta de crítica social, apresentando uma paródia de autodefesa, em que “vestido” com estravagante e elegante pano, que sugere uma saia, aponta a espingarda para o espectador, em alusão ao armamento generalizado. Geoneide Brandão, a jovem artista brasileira, discute a binaridade de gênero e a heteronormatividade em sua obra, retratando corpos queer em um momento de toque íntimo, enquanto Patrícia Gerber, também do Brasil, faz referência ao corpo feminino com uma pintura indagadora, sobre um corpo feminino pintado de azul, sem cabeça, destacando a objetificação da mulher pelo machismo ao longo da história. A performance presente na Trienal também é notável por seu caráter transgressor. Renato Pera, brasileiro, cria uma instalação impactante em que divide seu espaço expositivo em dois ambientes contrastantes, um rosa pink metalizado e outro vermelho forrado de pelúcia, convidando o visitante a participar de uma narrativa visual que flerta com a estética do terror tendo como protagonista um “morto-vivo”.

A produção latino-americana encontra, nesta Trienal, um território fértil para o diálogo entre linguagens artísticas e culturais. Claudia Casarino, do Paraguai, trabalha “nuvens” diáfanas de tule que sugerem corpos em movimento de balé. A obra surge a partir de leituras com um grupo de mulheres latino-americanas. A instalação, ¿ijerga? de Marilá Dardot, brasileira que vive no México, é um resgate de um dos objetos mais presentes nas casas mexicanas: um pano com padrão nacional de tecelagem que, tanto pode servir para limpeza quanto para cobrir móveis. Marilá trabalha com os sinais de interrogação e exclamação, usados em espanhol no início de uma frase, desencadeando experiências pictóricas com pinturas carregadas de percepção poética. Jerga é ainda um linguajar, no sentido de gíria, que foi criado para driblar o colonizador.

Em ação contínua, o artista argentino TEC, radicado em São Paulo, irrompe seu trabalho pelas cidades criando pontes, invadindo territórios, reinterpretando o homem em conexão com o mundo, com um grafismo inconfundível. São tantas verdades acobertadas pelo tempo, uma delas é revelada pelo artista mexicano Othón Castañeda que reconstrói El Palácio Negro de Lecumberri, datado de 1885 que foi um centro de detenção, cárcere de artistas e cidadãos indesejados, que funcionou de 1990 até 1976. Com esta obra, Othón tenta gerar atributos “geométrico-espaciais”, como ele diz, numa clara referência à Crujía J, nome do lugar destinado a confinar homossexuais. O termo derivou a expressão “joto” reconhecida pela Real Academia Española para se referir a um homossexual, expressão corrente até hoje no México e Honduras.

Com vocação internacional, Tijuana é a cidade dos destemidos, dos sonhos, da esperança. O coletivo Ediciones Caradura, formado por artistas mulheres de cidade, captou muito bem a realidade local ao homenagear as trabalhadoras da indústria maquiladora, aludindo à exploração econômica e social dessas operárias, a maioria vinda de outras cidades ou países esperando o momento de realizar seu desejo: atravessar a fronteira para os Estados Unidos. Com a instalação “Siete Negros”, o mexicano Hector Zamorra, que vive parte no México, parte no Brasil, expõe um novo trabalho em que “instala” tijolos verticalmente sobre a parede conferindo a esses elementos o estatuto de uma criação artística. Reorganizada em novas composições, as peças se aproximam dos mesmos mecanismos de leituras de uma pintura e fluem para uma partitura musical. 

O coletivo brasileiro Duas Marias exibe “Pandora”, uma videoinstalação poética projetada por quatro munitores que registram um andar contínuo dos pés de uma mulher. Este foi um dos dez trabalhos escolhidos para a premiação, mas que não chegou a ser agraciado. O México conquistou os três prêmios atribuídos pela Trienal, em primeiro lugar ficou Samara Collina, que se destacou com uma pintura expressionista, “Apesar de tudo, a alegria do encontro” em que captura a tensão da multidão em um ato político. Já a primeira menção honrosa coube a María Orozco, com uma pintura não concluída pelo seu pai, também pintor e que ela a retoma depois de dez anos, em homenagem a ele. A segunda menção honrosa obteve Enrique Rubio, com a obra “Woolander” em que trabalha a questão de gênero e manualidades em um bordado com lã, empregando a técnica needle felting, feltragem com agulha.

Como ato de resistência R. Trompaz, pintor, performer, videomaker, reinterpreta criticamente a bandeira do Estado de São Paulo para denunciar o abismo social latente na cidade mais rica da América Latina, com uma pintura aliada ao expressionismo abstrato. Diversidade é a marca os videomakers nesta exposição. Yuan Gong (China/Inglaterra) aparece com um vídeo em que atua interpretando uma performance entre a teoria culta e a prática popular. Por meio de danças públicas em praças das cidades, ele coloca em cena o conceito de Beuys em que aconselha: “cada indivíduo deve se ver como artista”.  Com um trabalho intimista, Meneghetti, cineasta e videomaker brasileiro, reinterpreta em vídeo fragmentos da vida de seus ancestrais, imigrantes vindos da Itália e Áustria para trabalhar no Brasil nas plantações cafeeiras de São Paulo, entre 1897 e 1924. Seu trabalho resulta em uma obra quase abstrata, em que a história familiar se mistura a um experimento artístico e visual intrigante.

Trienal de Tijuana
El peso de la desigualdad, 2023. Luis Fitch Estados Unidos

Outro destaque do conjunto é a obra do artista norte- americano Luis Flitch, que traz à tona a memória de George Floyd, homem negro morto por um policial branco em Minneapolis. Com carvão recolhido das ruas após as manifestações, Flitch desenha dezenas de crânios humanos, criando um retrato sombrio da injustiça social estruturada nos Estados Unidos. A morte também está presente em alguns outros trabalhos. Márcio Almeida na série “Es salvo es alvo”, se apropria de placas de madeira com perfurações de balas que, descontextualizadas de seus usos nos clubes de tiro, são ressignificadas como arte em trabalhos multidisciplinares. O artista brasileiro faz uma reflexão sobre a violência simbólica e física, com uma abordagem antropológica/investigativa. A exposição também inclui o trabalho de José Patrício, cujo projeto “Momento Mori” explora o conceito das vanitas, expressões artísticas ligadas à efemeridade da vida e à morte. A obra foi executada com mais de mil pequenos quadrados pintados de azul e negro, que formam uma grande caveira pixelada, que evocam a fragmentação dos momentos da existência humana.

Em meio às tensões políticas e sociais que definem a cidade, a arte aqui exposta reflete tanto o espírito do tempo quanto o desejo de paz, neste momento em que o México se renova ao eleger Claudia Sheinbaum, a primeira mulher a presidir o país. ✱