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Colaboradores #72

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Neste número contribui com sua visão sobre a 36ª Bienal de São Paulo

FABIO CYPRIANO Jornalista, é crítico de arte, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano colabora com sua crítica da 36ª Bienal de São Paulo, além dos textos sobre a exposição de Beatriz González na Pinacoteca e a primeira individual do artista Thiago Martins em São Luís – MA

JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê entrevista nesta edição o intelectual Ailton Krenak e o curador da Ocupação Paulo Herkenhoff, Leno Veras

LEONOR AMARANTE jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição escreve sobre o Pompidou Paraná e a Bienal das Amazônias

LUIZA LORENZETTI é jornalista, especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP. Atualmente, é Gerente Web da Arte!Brasileiros. Nesta edição visita a exposição Línguas africanas que fazem o Brasil em Vitória – ES

Fotos: arquivo pessoal

A parede do crítico

“Nesta parede estão algumas das obras que guardo em minha casa. Outras doei ao MAR, o Museu de Arte do Rio”. O apontamento do crítico, gestor, professor e artista Paulo Herkenhoff ao pé de uma seleção de telas de Lygia Pape, Hércules Barsotti, Alfredo Volpi, Aluísio Carvão, Antonio Manuel, Haroldo Barroso, Katie van Scherpenberg, Rubem Ludolf, Hélio Oiticica e outros parece empurrar o pensamento do espectador para um lugar além da fruição: então é possível palmilhar o gosto pessoal de um supercurador de arte por aquilo que ele mantém pessoalmente perto de si, em sua casa?

A Ocupação Paulo Herkenhoff, em curso no Itaú Cultural da Avenida Paulista, abre essa prodigiosa caixa de curiosidade e revelações em torno da figura de um dos mais rigorosos personagens da crítica de arte do Brasil, Paulo Estellita Herkenhoff Filho, capixaba nascido em 1949 na mesma cidade do “Rei” Roberto Carlos, Cachoeiro de Itapemirim. “Tenho um especial apreço pelo neoconcretismo e pela abstração geométrica como uma arte de um Brasil exuberante e otimista”, diz Herkenhoff em outra legenda mais adiante, uma das sementes que vão sendo deixadas pelo caminho da mostra para que se possa acompanhar esse percurso do curador e artista. “A arte é uma semente; o curador, um jardineiro que deve ser atento às necessidades vitais da semente; a galeria, a terra, que não pode ser árida; o olhar do espectador é o sol que fará florescer significados inesperados do significante ‘arte’”, escreve Herkenhoff sob a foto dos pais visitando a 23ª Bienal de São Paulo.

Um assombroso Volpi sem data parece sugerir um cruzamento entre as igrejinhas de Guignard e uma abstração geométrica de Ivan Serpa. Geraldo de Barros e José Oiticica Filho arrombam as percepções sobre fotografia e construção. Uma colagem de “origamis” de Athos Bulcão surge como um flyer do concretismo. “Tudo é devoração. O homem na exploração parasitária do planeta se entre-devora”, discursa o manuscrito original de Oswald de Andrade sobre antropofagia que está ali nas imediações de uma bolsa bege de Nicola Constantino. Arthur Bispo do Rosário, Flávio Shiró, Geraldo de Barros, Paulo Mendes da Rocha, Iberê Camargo: a diversidade de interesses e o refinamento da coleção pessoal do curador, que ocupa metade da exposição, delicia a percepção. “Quero viajar cada vez menos para o estrangeiro. Eu me tornei um ‘curador local’. Não tenho mais tempo para deixar o Brasil”, escreve Paulo.

Responsável pelo “descobrimento” de diversos artistas cruciais, curador de centenas de exposições, gestor de museus no Brasil e no exterior, como o Museu de Arte do Rio (MAR), Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Bienal de São Paulo, Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, nos Estados Unidos, e a Documenta de Kassel, na Alemanha), Herkenhoff tornou-se um farol para a cultura das artes visuais no Brasil. Ao voltar-se para o curador como o próprio objeto de curadoria, a Ocupação Paulo Herkenhoff amealhou cerca de 350 obras, vídeos e objetos de coleções de 10 instituições nacionais e internacionais — mas o que fascina mesmo é poder acompanhar, pela primeira vez, uma amostra significativa da pequena coleção privada de Herkenhoff, que permite iluminar sua trajetória.

A diversidade de interesses e pesquisas de Herkenhoff dita o percurso. Vê-se, por exemplo, uma obra da Escola de Cuzco, uma magnífica Nossa Senhora de Copacabana, da coleção do Museu de Arte do Rio, que ajuda a entender o desafio de reconstituição de uma história latino-americana. “Art is a garanty (sic) of sanity”, diz a tabuleta da artista franco-estadunidense Louise Bourgeois, uma espécie de paleta de aquarela criada no ano 2000. Com um erro na grafia inglesa da palavra “garantia”, a plaqueta emoldura uma série de objetos que mostram a relação pessoal do curador e da artista.

Com curadoria do pesquisador, educador, curador e comunicador Leno Veras e expografia de Fred Teixeira, a Ocupação Paulo Herkenhoff percorre a história (e a mente) do curador em três eixos: Publicações, Exposições e Coleções. O ponto alto da mostra reúne 45 dos seus Cadernos de Anotações, célebres na cena das artes visuais.

Cadernos de Paulo Herkenhorff em sua estante, em 2025. FOTO: LETÍCIA VIEIRA /ITAÚ CULTURAL

ARTE! BRASILEIROS: O que você, como curador, acha que a diversidade de interesses desse conjunto de obras exposto revela sobre Paulo Herkenhoff?

LENO VERAS: O Paulo criou do zero muitas coleções públicas e privadas do país, um trabalho hercúleo — ainda mais sabendo-se que patrimônio, tanto o cultural quanto o histórico, anda longe de ter planos e políticas e verbas para aquisição. Então, tudo foi feito num trabalho de formação de rede e, sobretudo, de levantamento de formas de pensar a historiografia. A proposta foi pensar publicações, exposições e coleções como três níveis do pensamento do Paulo, que é sempre um pensamento esférico. Esse é um dos conceitos que a gente desenvolveu ao longo dos anos de trabalho na coleção do Museu de Arte do Rio, que foi talvez uma das mais importantes contribuições do Paulo para o campo do colecionismo público no Brasil, já que ele ali arregimenta uma coleção pública municipal do zero, pensando em linhas étnico-raciais da formação da identidade brasileira. Então é um trabalho feito com a linha árabe, uma linha judaica, uma linha sino e nipo-brasileiras, uma linha afro-brasileira, uma linha indígena e dos povos originários, construindo historiografias que revisam que já era da prática crítica do Paulo, sobretudo no contexto, por exemplo, do estudo de um dos conceitos-base dessa ideia de formação identitária a partir da colonialidade, das escolas de Belas Artes, das academias europeias, especialmente a francesa, no contexto do Rio de Janeiro. Esses debates históricos muito presentes no contexto das coleções nacionais que estão territorialmente muito alocadas ali na geografia do Paulo, que é um capixaba que vem para a cariocagem, digamos assim. Esse olhar sobre as coleções do Paulo curador, que trabalha como colecionador, é a atividade primeira, eu diria. O curador de exposições é um mediador de coleções, primeira preocupação do pensamento herkenhoffiano, um pensamento warburguiano, benjaminiano, a ideia da formação de uma história a partir dos fragmentos, pensando as coleções de imagens transversalmente, algo que envolve cultura visual, pública, popular, arquivos e documentos históricos, bibliografia histórica. Paulo, por exemplo, esteve à frente das coleções da Biblioteca Nacional, bem como do Museu Nacional de Belas Artes, Funarte, então grandes instituições com seus arquivos e bibliotecas. O Paulo colecionador, nessa mostra específica da ocupação, é o mote principal, tanto que a gente conta com coleções de pelo menos dez instituições nacionais e internacionais de grande relevância, contribuindo com tipologias diferentes de coleção, não de artes visuais, mas coleções de História, de cultura visual, coleções de documentação, coleções inclusive digitais, como videoarte do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Mas a gente tem presença do arquivo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), da biblioteca do Museu de Arte do Rio, com sua fortíssima coleção de livros de artistas, doada pelo Paulo, era a maior coleção de livros de artista no Brasil, mais de 800, o Paulo fez a doação integral para a biblioteca do Museu de Arte do Rio, por exemplo. O Museu Nacional de Belas Artes tem pinturas históricas que também tiveram relação com o processo de doação do Paulo, assim como coleções como a da própria Fundação Itaú. A gente teve diálogo com o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), com o Museu de Arte de São Paulo (MASP), no campo da documentação, com a Fundação Bienal de São Paulo e o próprio pôster original, o cartaz da 24ª Bienal, a Bienal da Antropofagia, realizada pelo Paulo, que está na exposição junto com os catálogos materialmente originais. Então tem um foco na construção de uma grade, um alicerce, que é a presença do Paulo nas coleções, não só inclusive como curador, mas também como artista, caso do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Temos várias obras que foram restauradas e gentilmente cedidas num prazo menor do que o comum, com esforços de todas essas coleções que se integraram para conosco arregimentar (o conjunto), muitos colecionadores privados, muitas coleções de artistas que foram sendo elencadas ao longo dos seus diálogo com Paulo. A ponto de a gente contar com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, que a própria Ana Maria Maiolino trouxe fisicamente um dia antes da abertura da mostra, além da sua ilustre presença na inauguração. A exposição se pensava como um conjunto de estruturas de conhecimento arregimentadas pelo Paulo. Tanto que, no eixo de publicações, há centenas de publicações, mais de cem, do próprio Paulo. Estão expostas e em rotação porque o espaço não continha, não tinha a condição de acolher a dimensão dessa estrutura de pensamento. Inclusive, na parte de documentação, a gente teve que fazer grandes escolhas e uma das frentes foi digitalizar todo esse processo que está disponibilizado por meio também de um hotsite, que fica como uma espécie de guia de pesquisa para a produção intelectual do Paulo, que se desdobra no catálogo da exposição, pequeno compêndio de grandes textos publicados ao longo da carreira do Paulo sobre importantes temas, contando também com textos originais contemporâneos. Esse tipo de costura, que vai da Documenta de Kassel à Fundação Patrícia de Cisneros, a própria Fundação Louise Bourgeois, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Todas essas instituições tiveram diálogo com a gente, cedendo imagens. Temos telas com entrevistas, mais de 20 testemunhos de grandes artistas, curadores, cientistas, pesquisadores, colecionadores, que contaram sua história oralmente, assim como a digitalização de muita documentação que está ali: cartas, ofícios, manuscritos, bilhetes. 

E para encerrar esse sobrevoo, acho que o ‘crème de la crème’, o coração da exposição, são os cadernos do Paulo, cadernos nos quais, ao longo de décadas, o Paulo desenvolve as suas mnemotécnicas, a estrutura de uma forma de registro da sua reflexão crítica. Tem mais de uma centena de cadernos em processo de digitalização e muitos deles, dezenas, estão expostos fisicamente. Cadernos que, às vezes, são relacionados a artistas, a temas de arte, a espaços físicos, a épocas temporais e às vezes atravessam, de fato, anos, décadas de trabalho crítico relacionado a Tomie Ohtake ou ao Japão ou à Bienal de São Paulo ou à 24ª Bienal ou a um tema como a pop art, ou a uma área, como o Piauí. Há essa estrutura de um projeto arquivístico, memorial, que esse colecionador certamente esteve por trás. O “pensamento esférico” é um conceito que foi pela primeira vez recuperado em relação ao trabalho de Herkenhoff pela (psicanalista) Tania Rivera, que foi uma das professoras e pesquisadoras que deu aula para o grupo de desenvolvimento dessa exposição. A gente coletou testemunhos de todo mundo que colaborou de muitas maneiras, e ela trouxe esse de volta esse conceito do “pensamento esférico”, conceito desenvolvido pelo próprio Paulo em conjunto com (o filósofo e historiador da arte Georges) Didi-Huberman. Acho que tem muito a ver com esse Paulo colecionador, a formação de uma estrutura de pensamento que se vê expansiva e que é capaz de, entropicamente, dar conta dos núcleos significativos, da expansão dos questionamentos críticos, e isso tudo ainda é para mim a ciência da informação com Paulo, que coleciona conhecimento, sistematiza e, por meio disso, se arvora na construção do que isso quer dizer em relação às artes visuais, sobretudo.

ARTE! BRASILEIROS: Quais são as obras inéditas dessa exposição, coisas que nunca foram exibidas antes? Pergunto porque não me lembro de ter visto antes aquele Volpi maravilhoso. 

LENO VERAS: Tem ali uma cultura visual que vai do design de um banco com orientalismo, mineiro, barroco, ao design de caixa de engraxate no século XX no Brasil, no Rio de Janeiro. Tudo isso faz parte das coleções que o Paulo arregimentou. Então, tem muita coisa nessa exposição que nunca foi exposta antes. São coleções que o Paulo envolve no seu pensamento, objetos de culto, de religiosidade diversas, além de uma série de obras de arte trazidas pelos próprios artistas a partir dessa curadoria que se pensa mais como uma infraestrutura para a ocupação do pensamento do Paulo, que é orgânico, que vai sempre se enredar e transbordar e amalgamar as peças que estão ali. Mais da metade do que a gente vê foi trazida a partir da imersão na casa do Paulo, que é um gabinete de curiosidades ‘per se’, um grande relicário da sua própria vida, que vai de grandes peças de arte doadas ou adquiridas por ele ao longo do seu diálogo direto com os artistas, seu acompanhamento crítico, até na formação de grandes coleções, com perspectivas sobre a arte brasileira, como a coleção Fadel, a própria coleção Roberto Marinho, a coleção de Luiz Chrysostomo, para citar exemplos de pessoas que estão exercendo esse olhar na formação do acervo sobre a arte contemporânea relativa ao seu próprio tempo. E muitas dessas obras também fazem parte de acervos que foram, ao longo desse diálogo, sendo doados também para coleções públicas. Esse é um trabalho que o Paulo também realiza há décadas. Algumas dessas peças estão expostas na nossa ocupação justamente por terem uma relação muito pessoal. O azulejão da Adriana Varejão que está na exposição foi de propriedade do Paulo, foi uma das peças contemporâneas mais relevantes que se juntam a uma grande coleção histórica que vem lá dos neoconcretos, Hélio Oiticica, Mira Schendel, Cildo Meireles. Muitos artistas com quem ele teve diálogo muito direto… Tomie Ohtake. São diversos. Beatriz Milhazes e contemporâneos, como Rosana Paulino, o próprio Emanoel Araújo. Às vezes, a gente pode fazer genealogias, relacionar geografias: ao Centro-Oeste, ao Nordeste, ao Norte. Você vai ver ali a Cláudia Andujar, Luiz Braga. São camadas de relações também com linguagens expressivas. Um estudo sobre a gravura. A gente vai ver Lívio Abramo, Rossini Perez, Maria Bonomi. E às vezes são exposições que ele está curando hoje mesmo, como a exposição no Passeio Imperial da Maria Bonomi, que está com 90 anos. E ao mesmo tempo você vai ver as aquisições de Maria Bonomi para coleções de 30, 40 anos atrás, feitas quando o Paulo estava à frente (da implementação) dessas coleções. A ideia, nesse sentido, foi de elencar obras inéditas, muitas vezes que ninguém conhece porque estavam nos corredores do apartamento do Paulo em Copacabana, ou estavam em coleções públicas que não têm uma visibilidade tão notória. Sobretudo coleções de grandes instituições públicas no Rio de Janeiro, que por vezes têm dificuldade na promoção e circulação de suas obras. A gente vai ver, por exemplo, a primeira representação de uma mulher negra pintada a óleo, que é do MAR; a primeira representação de um instrumento afrobrasileiro, que está no Museu Nacional de Belas Artes. São peças muito relevantes para o seu contexto sócio-político, histórico, mas que muitas vezes não estão sendo vistas em práticas de exposições de arte contemporânea. E a justaposição disso tudo é um dos principais trabalhos do Paulo, práticas que são tanto anacrônicas à luz do Didi-Huberman, Walter Benjamin. Você vai ter ali, posso dizer, talvez uma dezena, de obras que ou eram desconhecidas de um público mais amplo ou realmente pouco visibilizadas a partir da falta de acesso à mediação desses conteúdos. Até uma peça de um Aleijadinho. Que não são de interesse tão prioritário, digamos assim, para as práticas expositivas de arte presentes no nosso circuito contemporâneo. Isso também era um dos objetivos da exposição. E além disso, muitos artistas estão trazendo peças a partir da abertura. Sandra Cinto levou uma obra. Teve peças até da Ocupação Krenak, empréstimo simbólico que o Paulo fez no dia da abertura. Essa é a prática que está sendo desenvolvida ali na mostra: um exercício de reflexão sobre os processos curatoriais, editoriais, expositivos, colecionísticos, e pelo próprio Paulo. É uma celebração em vida que não teria melhor forma e método do que ele mesmo promover a estruturação e a desestruturação contínua e reflexiva, dialógica, fenomenológica, que é tudo que ele sempre fez sobre si mesmo, sobre o seu pensamento, sobre sua própria memória. Cada vitrine daquela foi montada com Paulo pelo Paulo, sobretudo justapondo cada um daqueles objetos. Onde você vai ver assim, tem lá a Medalha da Ordem do Mérito da Cruz que ele recebeu das mãos da própria presidente Dilma, ao lado da publicação que ele fez na Funarte, ao lado da fotografia dele com Adriano Pedrosa, na sua própria Bienal, justaposta com um vídeo dele atuando junto com o artista dentro do Pavilhão da Bienal. E aí vem uma obra do Sidney Amaral, contemporânea, que foi adquirida por consultoria do Paulo para a Coleção do Itaú Cultural quando nós fizemos a exposição Modos de Ver o Brasil, celebrando os 30 anos do Itaú Cultural na Oca, no Ibirapuera. Essa obra retrata o próprio Sidney em relação a um prédio modernista como o da Fundação Bienal sendo espelhado. Isso tudo está em discussão junto com o poster da 24ª Bienal. São essas práticas rizomáticas, de discussão conceitual, da repetição, do duplo, da remixagem. A gente está metodologicamente exercendo esse “pensamento esférico”. Fora a parte de livros que ele levou, livro do Krenak, livro da Lilia Schwarcz, uma presença forte da Heloísa Teixeira, por exemplo, tantos outros pensadores que ele traz para dizer: “Essas são minhas referências, não são só os livros que eu escrevi, são os livros que eu li” e por aí vai.

ARTE! BRASILEIROS: A Ocupação Herkenhoff poderia se concentrar somente no território das ideias, mas acabou sendo algo orgânico, com intervenções do próprio Paulo escrevendo em paredes, fazendo legendas e desenhos. O artista Herkenhoff é o denominador comum de todas as outras atividades: curador, ensaísta, crítico?

LENO VERAS: Uma das coisas mais difíceis de trazer para essa exposição da ocupação Herkenhoff foi o Paulo artista. O Herkenhoff artista está presente em algumas coleções, sobretudo de arte moderna e contemporânea brasileiros, mas de modo rarefeito. Os seus vídeos, videoarte e as suas fotografias, as intervenções em jornais impressos da época, são os vestígios de práticas mais amplas, de práticas mais performáticas, e que acho que são uma ponta do iceberg. A ocupação tem uma presença maior de um conjunto que está presente no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, que são sobretudo as intervenções em notícias de jornal da ditadura civil-militar no Brasil, feitas pelo Paulo enquanto obra. A gente tem um conjunto ali de seis peças, inclusive um pequeno caderno. Essas obras foram talvez o conjunto mais expressivo que a gente conseguiu encontrar fora dos conjuntos de documentação arquivística e biblioteconômica. Ou seja, o artista Paulo ficou pouco presente, pouco evidenciado e eu acho que esse foi um trabalho feito pelo próprio curador e crítico Paulo, o de se sobrepor ao artista Paulo. Creio que o próprio Paulo pensa na sua prática artística como algo de outro momento. Mas eu concordo com a pergunta de que o artista Paulo permeia todas essas práticas. Como uma construção relacional. Ela é um tanto oitentista, eu diria assim. Tem uma construção muito voltada para o pensamento de Lygia Clark, da arte como esse espaço de terapia conjunta — na melhor acepção dessa ideia de busca por uma cura no sentido de elucidação das dúvidas ou de construção de questões, uma prática educacional, que é o que permeia a prática editorial, a prática curatorial, a prática colecionista do Paulo. São sempre processos de interesse de construção de diálogo, construção de sentidos e questionamentos sobre o que esses sentidos querem dizer para a realidade do nosso tempo, para determinadas territorialidades. Estruturas de recepção de comunidades diversas, práticas que estão pensando o conhecimento a partir de uma chave educacional desse artista educador. Eu confundo o Paulo Artista com o Paulo Educador, porque (tudo) faz parte de um método que serve para ambas as frentes. E eu concordo plenamente que essa presença do Paulo na sua própria ocupação, desmontando a própria história, questionando, inserindo textualmente, no manuscrito, pregando adesivo na parede com um bilhete ou um cartão postal que ele comprou no museu no dia anterior, revistas que trouxe da banca de jornal enquanto trabalhava na montagem, essa forma de autodocumentação que culmina na abertura da exposição na qual Paulo reencena brevemente o videoarte Estômago, no qual ele ingere uma notícia de jornal no período ditatorial brasileiro. E, hoje, ele pega um pedaço de uma notícia de crítica de arte de jornal e faz esse mesmo processo, que é uma discussão antropofágica. Então, você vê o artista Paulo pensando através da prática performática nos anos 1970, o conceito antropofágico, comendo a notícia. Ele come a notícia sobre sua própria exposição. São formas críticas, eu diria. Distintas, mas dentro de um processo metodológico que, dentro da estrutura de sentido, está muito amalgamado, liquidificado, é tudo muito viscoso mesmo nessa leitura do Paulo. Tudo se contagia ali, tudo se mescla. E o artista Paulo é responsável por essa alquimia, por distribuir esses sentidos, pesá-los, medi-los, adicionar às vezes mais sal, às vezes mais açúcar, às vezes mais pimenta. Tem sempre um sentido de uma busca pela construção coletiva, um pouco sinestésica, do que essas peças de arte têm a dizer e, no caso das próprias obras, foi muito importante para quem não conhecia. Eu mesmo tinha pouco acesso a essas obras, (que permitem) entender de onde vem essa prática tão audaciosa, enquanto curador, enquanto escritor, enquanto crítico de arte, enquanto professor, enquanto educador, enquanto pesquisador. O Paulo foi catedrático do Centro de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo junto com a Helena Nader, tem fotos disso lá, numa cartografia de arte e ciência. Helena, pesquisadora de primeira linha da SBPC, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. É o Paulo Artista se transmutando em todos esses outros Paulos, o Paulo Artista presente de maneira carnal na exposição, o Herkenhoff vivo, atuando dessa maneira. Quando ele dá a mão a um artista indígena, o Denilson Baniwa, a curadora amazônica Vânia Leal, e juntos vão à ocupação Ailton Krenak, que estava sendo montada no dia da abertura da Ocupação Herkenhoff, amigos que coexistem, e vai lá e pega emprestado pedras da cenografia do Krenak para ter a presença disso aqui, e traz as pedras com esses companheiros, para junto de uma obra que vem do colecionador Ricardo Ribenboim, com as cinzas do (incêndio do) Museu Nacional, que ele pediu empréstimo na semana da montagem da exposição, é de fato um vórtex, um furacão de relações. Acho que a liberdade dessas relações está baseada numa prática artística, que é educacional, que é crítica curatorial, e que pode, inclusive, questionar esses sistemas de conhecimento que às vezes se sobrepõem à própria linguagem poética.

 

Bienal sussurra mas nem todos ouvem

Ernest Mancoba Sem título, 1993.

Em sua 36ª edição, aberta no início de setembro, a Bienal de São Paulo reafirma seu papel de difusora de uma produção artística que se desenvolve distante do grande público, sendo acessível apenas a pequenos grupos de iniciados. Em 2025, a tônica da exposição parece ser a de mesclar linguagens suaves, que se orientam por uma relação pessoal e poética com o universo das coisas, muito calcada em fazeres tradicionais, sem grandes arroubos teóricos, técnicos ou emotivos. A isso se soma uma escolha por uma montagem fluida, gerando como resultado uma mostra aprazível, ventilada, que muito se assemelha à metáfora dos estuários, uma das várias utilizadas pela equipe curatorial para definir sua intenção de iluminar momentos de encontro fértil entre águas de diferentes naturezas, doces e salgadas.

Durante quatro meses — já que este ano o período de exibição foi dilatado em um mês, o grande público (estimado em cerca de um milhão de pessoas) terá acesso a uma seleção ampla de poéticas, de lugares e autores distantes a serem observados sem a ilusão de que se trata de um resumo do maior, do melhor, ou do mais novidadeiro, mas como reflexo de um esforço narrativo autoral. O panorama — ou melhor, o percurso — proposto por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e sua equipe de curadores assistentes, Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Keyna Eleison e Thiago de Paula Souza, tem alguns traços característicos. Suas principais qualidades residem numa visão alargada de tempo, na incorporação de formas de fazer e pensar a arte, nem a partir da obediência dos modelos eurocêntricos nem de combate feroz a eles. Nota-se na seleção uma quantidade ampla de artistas, de diferentes partes do mundo, que construíram uma gramática particular, mesclando ancestralidade e reinvenção da modernidade, como é o caso, por exemplo, dos pioneiros Ernest Mancoba (1904-2002) e do marroquino Farid Belkahia (1934-2014), figuras de destaque no modernismo africano e internacional.

Curiosamente, essa mesma fluidez e amplitude são indícios de um de seus pontos mais problemáticos: a desinformação. Bastante precária, a sinalização das obras faz com que o visitante perca um tempo precioso caçando o nome do artista e da obra, que pode estar no chão, na parede, em forma de QR-Code ou que simplesmente não exista. Convém destacar a inventiva intervenção nos pilares do edifício: alguns deles foram ampliados em sua circunferência para criar uma superfície larga o suficiente para abrigar um texto explicativo acerca dos temas e participantes de cada núcleo. Mas trata-se de uma leitura mais densa, que não substitui a referência mais direta da legendagem.

O que aparentemente veio para ajudar as pessoas a se guiarem pela mostra — uma subdivisão em “capítulos”, associados a uma paleta de cores variada — na verdade amplifica essa sensação de desnorteamento. Após familiarizar-se com o título siléptico, porém pleno de significado, tirado de poema de Conceição Evaristo (“Nem todo viandante anda estradas”), surgem os nomes dos capítulos. Além de herméticos (como “Fluxos de cuidado e cosmogonias plurais” ou “Cadências de transformação”), eles são tão abertos que não faltam exemplos de trabalhos que poderiam facilmente ser deslocados de um bloco a outro sem grandes perturbações.

A falta de informação e essa trama conceitual que se aplica sobre o chão da exposição — as obras — acabam por reduzir a força de seu impacto poético. É o caso da obra de Chaïbia Talal (1929-2004), que ganha uma nova e potente dimensão quando o espectador fica sabendo que essa marroquina, nascida em 1929, casou-se aos 13 anos, teve um filho, enviuvou aos 15 e só aos 25 tornou-se artista, autodidata, quando sonhou que estranhos lhe ofereciam papéis e canetas — vindo a ser, na década de 1960, a primeira marroquina a ter uma carreira internacional.

A menção a Chaïbia — ao lado de outras artistas como a brasileira Maria Auxiliadora (1935-1974) — nos permite enfatizar dois aspectos centrais dessa 36ª Bienal: a força do autodidatismo, da pulsão artística como elemento de organização (pessoal ou social) e o peso das mulheres no rol dos artistas selecionados, sendo esta talvez a mais ampla participação feminina da história das Bienais. São elas que respondem por parte significativa dos trabalhos de maior impacto visual da mostra, ao interagir com os espaços mais sacramentados do Pavilhão: a ganesa Theresah Ankomah (1989) recobre com um gigantesco tapete de folhas de palmeira trançadas a fachada frontal do prédio, cobrindo o rigor modernista com a persistência e imperfeição do gesto artesanal e do material natural, perecível. A francesa Laure Prouvost (1978) domina o vão central do pavilhão com uma obra viva e sonora, um conjunto de elementos como plantas, sementes e uma engenhoca feita em diáfano tecido cor-de-rosa, prenhe de ovos-luz, que dança sobre a cabeça dos visitantes. A nigeriana Otobong Nkanga (1974) ocupa as grandes paredes ao fundo do prédio, nos três andares, com suas tapeçarias impressionantes, que de longe parecem um tanto abstratas, mas que na proximidade revelam-se comentários dolorosamente críticos acerca de temas fundamentais como a debacle Ambiental.

Outros trabalhos interagem de maneira desafiadora com o espaço icônico, símbolo da arquitetura moderna de Oscar Niemeyer, como o camaronês Tanka Fonka (1966), que — na parte visual de um projeto que associa diferentes linguagens   subverte a coluna central do prédio, usando-a como suporte para uma abstração cromática vibrante, povoada por signos oníricos, que remetem à cosmogonia de artistas como Paul Klee e Wifredo Lam. Já Ana Raylander Mártis dos Anjos (1995) inverte o eixo natural do prédio e sua horizontalidade, fazendo com que suas esculturas totêmicas (feixes recobertos de elementos carregados de memória familiar) atravessem de um piso para o outro, lidando de forma comovente com a lógica estrutural e escultural do amplo pavilhão, desenhando uma nova possibilidade de espaço e ao mesmo tempo iluminando o icônico espaço que abriga bienais há exatos 68 anos. Um exemplo claro do que afirmou Alya Sebti em entrevista ao dizer que a expografia seria algo como “tirar o prédio de Niemeyer para dançar”. Esse mesmo jogo de movimento e negociação com o prédio se materializa na opção cenográfica de utilizar cortinas coloridas e translúcidas para diferenciar os “capítulos” e substituir as tradicionais divisórias. Apesar de excessivos em alguns momentos, esses maleáveis campos cromáticos têm grande efeito em parte da mostra, sobretudo no andar superior, tornando ainda mais potente apresentações como a da pintura gráfica e intensamente cromática, inspirada na arte corporal indígena, de Aislan Pankararu (1990).

Brasil e África são, do ponto de vista geopolítico, as duas grandes forças da Bienal. A imponência da seleção brasileira é notável, com uma participação diversificada e ampla. Apesar de algumas representações históricas, como a de Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Zózimo Bulbul (1937-2013), o peso da produção contemporânea (com um conjunto amplo de obras comissionadas) é majoritário. Destacam-se no segmento as participações de Marlene Almeida (1942), Márcia Falcão (1985), Gervane de Paula (1961) e Antonio Társis (1995). Oriundos de diferentes regiões do País e pertencentes a diversas gerações, eles também compõem um panorama plural de questões e linguagens, da pintura à instalação, da defesa da terra e crítica ao agronegócio à investigação da representação do corpo e da paisagem urbana, desordenada e caótica.

Diversidade semelhante está presente no outro grupo mais potente da mostra. Não apenas é grande o conjunto de artistas originários de países africanos, como a atual Bienal foi capaz de quebrar uma visão monolítica dessa produção, contornando estereótipos e mostrando uma grande diversidade de linguagens, interesses e investigações vinculadas ao presente do continente e da produção artística. Evidentemente, temas como apagamento da memória, colonialismo, opressão política e de gênero estão vivamente presentes, mas sempre em conexão àquela “intratável beleza do mundo”, um dos motes adotados como lema curatorial por Ndikung, parafraseando Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau.

Há, evidentemente, na Bienal um conjunto amplo de trabalhos de cunho mais político, que se insurgem em torno de questões candentes. É possível citar intervenções como a de I Gusti Ayu Kadek Murniasih (1966-2006), balinesa que foi violentada pelo próprio pai aos 9 anos e autora de uma obra que explicita e reelabora experiências traumáticas e violentas ou a impactante cena de um mar pegando fogo em vídeo do grupo Forensic Architecture/Forensis. Mas na maioria das vezes não há gritos. Nesta edição, as obras parecem mais sussurrar do que gritar, procurando desvios, resgatando memórias e, como indica o subtítulo escolhido (“Da humanidade como prática”), acumulando forças para lidar com um mundo em deflagração.

 

EXPOSIÇÃO DE LÍNGUAS AFRICANAS NA CULTURA BRASILEIRA CHEGA EM VITÓRIA – ES

Tiganá Santana, curador da mostra, na videoinstalação em 2 canais, Corpo Celeste III e IV, 2020 - 2024, de Aline Motta em colaboração com Rafael Galante. FOTO: FELIPE AMARELO

O Museu Vale é um dos principais espaços culturais do estado do Espírito Santo e, em seu momento extramuros, amplia sua presença no território capixaba, expandindo suas atividades e levando diferentes manifestações artísticas e programas educativos para instituições culturais e de ensino, além de espaços como praças e parques. Dessa forma, conecta-se de maneira ainda mais ativa e direta com os diversos públicos.

Alinhado às diretrizes do Instituto Cultural Vale, o Museu abre espaço para novas vozes, métodos e caminhos, com programações acessíveis, colaborativas e comprometidas com o território e suas demandas. Ao se deslocar pelo Espírito Santo, o Museu Vale assume uma postura de escuta ativa, aproximação e descentralização, não apenas geográfica, mas também simbólica e afetiva.

É nesse contexto que se insere o desdobramento da itinerância da exposição Línguas africanas que fazem o Brasil, do Museu Vale em parceria com o Museu da Língua Portuguesa.

Para Claudia Afonso, diretora do Museu Vale, trazer esta mostra para o público capixaba tem um significado importante: “O Espírito Santo é uma região marcada pela forte presença afro-indígena e por influências linguísticas que se entrelaçam na formação de nossa identidade. Apresentar esta exposição é uma forma de ampliar o acesso do público capixaba a uma experiência cultural única. É uma oportunidade de reconhecer a pluralidade de vozes, palavras e símbolos que compõem a riqueza cultural brasileira, marcada pela força da ancestralidade.”

Para além dos trabalhos apresentados na montagem original, Claudia tinha o desejo de que a produção artística local fosse integrada à itinerância. Com curadoria do músico e filósofo Tiganá Santana, a mostra recebeu o acréscimo de três artistas capixabas: Castiel Vitorino Brasileiro, Natan Dias e Jaíne Muniz. Além disso, os visitantes poderão assistir a um filme inédito sobre as presenças linguísticas e africanas no estado do Espírito Santo. O trabalho foi idealizado e desenvolvido por Claudia, junto com a pesquisadora Isabella Baltazar e com o produtor cultural, Matheus Noronha. O minidocumentário Línguas Africanas no Espírito Santo conta com a participação de Débora Araújo e Osvaldo Martins, professores da Universidade Federal do Espírito Santo, que têm suas pesquisas voltadas à memória da população negra.

Núcleo central – palavras e expografia

Um dos eixos centrais da expografia diz respeito às palavras de origem africana presentes no português do Brasil. De acordo com Tiganá, a escolha dessas palavras possui duas camadas.

Na primeira, estão aquelas cuja origem a maioria das pessoas desconhece, mas que foram amplamente incorporadas pelos brasileiros, como “caçamba”, “fofoca”, “moleque”, “xingar”. Algumas aparecem impressas em estruturas ovais de madeira acompanhadas de suas etimologias; outras podem ser apenas ouvidas por caixas de som espalhadas pelo espaço expositivo.

Na segunda camada estão as palavras que se preservam africanas, como “Axé”, “Pemba”, “Exu”. Estas compõem um espaço interativo: dispostas em um grande painel, se transformam em imagens sempre que o visitante as enuncia em voz alta. Ao dizer “Acarajé”, por exemplo, uma fotografia do alimento aparece na tela.

Linguagem não verbal

A exposição também aponta para outras formas de linguagem. “A leitura dos Búzios é uma leitura textual complexa, como outras leituras textuais que existem no mundo nas experiências culturais diversas”, observa Tiganá, lembrando que assim como a leitura dos búzios, o uso de miçangas ou turbantes nos terreiros de Candomblé constituem sistemas complexos de significação.

Fundamentos curatoriais 

As línguas africanas não são novidade no repertório de Tiganá. Por meio de seu álbum intitulado Maçalê (“você é um com a sua essência”, em iorubá arcaico), lançado em 2009, ele se tornou o primeiro compositor brasileiro a criar canções em línguas africanas. Além disso, sua tese de doutorado “A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil”, é um estudo tradutório, filosófico e intercultural que traz para o português brasileiro a cosmologia bantu-kongo do pensador Bunseki Fu-Kiau.

“Todo processo colonial é um processo de esvaziamento ontológico”, afirma Tiganá. “Esse processo violento de corte, de ruptura entre certos corpos e suas dimensões de linguagem causa prejuízos que são absolutamente profundos”. Para o curador, a colonização enfraqueceu sobretudo a coletividade: “Porque ela mesma não compreende o que seja esse processo de uma certa ideia de coletividade. Essa presença comunitária se faz traduzir pelo que se enuncia e pela forma como se pensa”. Por exemplo, na língua quicongo, que se faz presente no léxico corrente do Brasil, não se diz que alguém cometeu um crime, mas que carrega um crime. “Daí a gente já tem uma dimensão coletiva de algo que é absolutamente profundo numa instância social. Para aquilo de destoante acontecer, situações coletivas concorreram. Então, é interessante pra gente pensar a nossa própria sociedade. Quantos crimes carregamos e achamos que não carregamos, que alguém individualmente cometeu”. 

Segundo ele, o pensador Bunseki Fu-Kiau critica os africanistas que analisam culturas e aspectos do continente africano como meros objetos de estudo, sem estabelecer qualquer vínculo com as línguas que as constituem — línguas que, ao mesmo tempo, moldam e são moldadas por essas culturas. “A  exposição é uma retomada dessas presenças linguísticas em um lugar inclusive expográfico de dignidade e da centralidade que essas presenças africanas ocupam quanto à formação da cultura brasileira”. 

O acréscimo luxuoso de artistas capixabas

Se em São Paulo a mostra contou com obras de Rebeca Carapiá, com suas esculturas em metal em diálogo com grafias afrocentradas, e de Aline Motta, com uma videoinstalação sobre grafias centro-africanas do povo bakongo, em Vitória ela se enriquece com “o acréscimo luxuoso”, nas palavras do curador, dos artistas capixabas Castiel Vitorino Brasileiro, Natan Dias e Jaíne Muniz.

O primeiro contato de Castiel Vitorino Brasileiro com a arte aconteceu ainda na infância, nos barracões de Carnaval de sua comunidade. Foi nesse ambiente coletivo que ela se conectou com a prática escultórica, com a pintura corporal, com os adereços e com a música. Sua trajetória institucional, porém, começou em 2016, com duas residências artísticas sob curadoria de Diane Lima e sua primeira exposição na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Na itinerância de Línguas africanas que fazem o Brasil, Castiel apresenta a série Basta eu olhar pra você para eu me apaixonar novamente, composta por quinze desenhos em giz pastel sobre papel preto. Os primeiros trabalhos desse conjunto surgiram em 2021, quando a artista vivia no Rio de Janeiro e passou a investigar a relação entre desenho e palavra, buscando ultrapassar ou aproximar os diálogos entre representação e abstração. As obras que integram a exposição foram realizadas em 2024, durante uma residência na Cité des Arts, em Paris, em que novas cores, padronagens, palavras e formas se somaram à pesquisa.

Inspirada nos pontos riscados da Umbanda e em práticas cosmológicas da África Central, a série entrelaça elementos ritualísticos como linhas, espirais, círculos, com palavras em diferentes línguas: português, iorubá, quimbundo, espanhol e pajubá — linguagem cifrada utilizada pela comunidade LBTQIA+, mas sobretudo pelas travestis e mulheres trans. “Na Umbanda, a gente compreende que os pontos riscados não são meramente desenhos, mas são formas de comunicar a história de uma alma”, explica Castiel. “Essa encruzilhada entre desenho e palavra é o estudo que desenvolvo com essa série. Trago elementos ritualísticos, mas também palavras cotidianas, não tão sagradas, para misturar essa noção entre sagrado e profano, sagrado e cotidiano no nosso idioma”.

De perto, as obras revelam frases que podem ser lidas inteiras, apesar da disposição que afasta uma palavra da outra. Em um dos trabalhos, lemos “Nunca te esquecerei, mas agora preciso de um tempo para viver o mundo”. Palavras como “sol”, “tempo’’ e “amor”  são algumas consideradas sagradas pela artista, que propõe refletir sobre o que é sagrado para cada um e a importância disso na linguagem. 

A série marca ainda a primeira vez em que Castiel assina como Ayshá, seu nome espiritual. Para ela, exibir esses trabalhos no Palácio Anchieta possui um significado bonito: “Estudei o Ensino Médio numa escola logo atrás do Palácio e vinha a cada semestre com minha professora de artes ver as exposições. Poder estar aqui hoje como artista faz um ‘match’ com a minha adolescência e com a minha comunidade. Minha família é daqui, meus amigos são daqui. É sempre especial mostrar o trabalho na própria casa”.

O segundo artista convidado para integrar a mostra em Vitória, Natan Dias, iniciou sua trajetória artística no teatro, em 2012, antes de se dedicar às artes plásticas. Das experiências com a performance, descobriu a escultura como campo de pesquisa central, em diálogo com o corpo no espaço: “O pensamento escultórico, para mim, ainda é um pensamento do corpo”, afirma.

Sua investigação ganhou fôlego em 2014, quando, em uma residência artística, passou a trabalhar a partir das memórias de sua avó. Ela lhe contava sobre a mudança de sua família da zona rural para urbana em Vitória, em busca de melhores condições de vida, e sobre o período em que, durante uma ocupação, montava o barraco que em seguida era desmontado pela polícia. Essa experiência marcou o artista, que passou a pensar em esculturas que montassem e desmontassem e que também fossem modulares.

Desde então, Natan desenvolve esculturas que podem ser reorganizadas ou ampliadas no futuro. Na mostra Línguas africanas que fazem o Brasil, ele apresenta Movimento à tecnologia, peça de 300 kg em aço, já exibida no Parque Cultural Casa do Governador em escala maior. O trabalho parte da plasticidade do facão, ferramenta presente na vida rural de sua família, para propor um gesto de corte na própria história da arte. “Proponho esse corte para que essa história da arte volte a florescer com uma outra perspectiva. Isso só é possível a partir da poda, que não é um corte. A poda é uma proposição para a árvore crescer de um outro modo”, explica.

“É muito importante que essa exposição esteja no Espírito Santo”, diz o artista. “O estado é um espaço riquíssimo em relação ao pensamento cultural, ao pensamento africano e a população negra do Espírito Santo é uma população muito ativa, altamente inteligente, altamente capacitada no quesito da compreensão de racialidade”.

O ferro, material recorrente em sua produção, é entendido não apenas como suporte, mas como sujeito. “O ferro, para mim, sempre foi um sujeito, um indivíduo, um parente antigo. Então, aquelas memórias que foram ditas para mim pela minha avó, são materializadas no ferro. O ferro é alguém que vai cuidar das memórias da minha família”. 

Atualmente em residência na FAAP, em São Paulo, Natan dá continuidade à pesquisa Paralelo, na qual investiga dualidades históricas — narrativas oficiais amplamente divulgadas em contraste com outras, muitas vezes silenciadas. Na capital paulista, a escala da cidade e sua arquitetura vertical têm influenciado novas formas em suas esculturas, deslocando sua prática para outros formatos e cores.

Por fim, a pesquisa de Jaíne Muniz parte da relação do corpo com elementos naturais e de como essa experiência pode se traduzir em abstração. Em sua obra Ser horizonte, que integra a itinerância, a artista se debruça sobre o horizonte do mar, paisagem cotidiana de Vitória e Vila Velha, onde viveu. “Foi uma investigação para entender o que existiria em uma travessia para encontrar África”, explica.

No entanto, o exercício revelou um limite: não há como refazer esse caminho ou recuperar literalmente um passado perdido. “Entendi que não tinha como atravessar. Voltar a esse passado que muitas vezes a gente procura hoje, não é possível. Então, o movimento foi de retorno, de tentar entender como essa ideia de expansão podia se dar de outras maneiras aqui mesmo, no lugar onde a gente já está”.

O resultado é uma instalação imersiva, que convida o público a interagir com transparências, cores e movimentos, refletindo sobre o que significa “ser horizonte” para cada um. “Lidar com o mar em uma experiência africana é lidar com kalunga, com a ciclicidade da vida. Trazer esse horizonte para dentro da exposição é reconhecer como nos relacionamos com esse território, como reconhecemos nossa herança africana, e com tudo que foi deixado de África e que está aqui”.

Jaíne Muniz em frente à obra Ser-horizonte, da série Espaços para
desmaterialização humana (2025)

Línguas africanas que fazem o Brasil fica em cartaz até 14 de dezembro de 2025 no Palácio Anchieta. “A gente espera que as pessoas do território possam identificar a exposição nas suas vidas e possam reconhecer as suas vidas na exposição”, conclui o curador.

 

Do espiritual na arte

A Rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes, Thiago Martins de Melo. Obra exposta no Convento das Mercês. FOTO: ESPAÇO CHÃO SLZ

“Minhas pinturas são tanto realidade quanto desejo, tanto aprendizado quanto imaginação. São reflexo do ambiente que me formou e, ao mesmo tempo, projeção de um horizonte de revolução”, diz Thiago Martins de Melo em entrevista publicada no catálogo da mostra Cosmogonia Colérica, sua primeira individual em sua cidade natal, São Luís do Maranhão.

Com 21 obras produzidas entre 2013 e 2025, a exposição tem curadoria de Germano Dushá e ocorre em dois espaços da capital maranhense, o Convento das Mercês e o CHÃO SLZ, espaço criado pelo próprio artista com Samantha Moreira, há dez anos. Inaugurada em agosto passado, a mostra segue em cartaz até outubro. O CHÃO é um local independente, dos poucos em São Luís, que ajudou a formar toda uma geração de artistas como Gê Viana, agora na 36ª Bienal de São Paulo. 

“Cada obra reunida aqui é um portal. Seja nas grandes figuras, seja nos pequenos detalhes, nas imagens explícitas ou nos mistérios ocultos, há uma imensidão simbólica a ser experenciada”, diz Dushá, em meio à mostra. Não deixa de ser notável que essa é a primeira vez que uma grande quantidade de trabalhos do artista é vista em sua cidade natal.

Martins de Melo, aos 43 anos, é um artista que se formou em um momento particular do País, quando havia muito apoio à produção por meio de editais, na primeira década do século 21, o que permitiu que toda sua fase inicial de criação fosse independente do mercado, possibilitando assim uma experimentação radical, que se mantém em suas obras com caráter fortemente político, sensual e de grandes dimensões.

O próprio artista lembra uma frase famosa do curador Paulo Herkenhoff que reflete bem esse período: “Quer saber o que é arte brasileira de verdade? Vai para o Nordeste ou para o Norte, vai para Recife ou para Belém”.

A Rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes, uma das pinturas que compõe a mostra, é um ótimo exemplo da fala inicial do artista aqui neste texto. Uma imensa escadaria que leva a Brasília, como se fosse uma estrada, é povoada por cerca de 30 personagens, policiais violentos, indígenas resistentes, trabalhadores sem terra, serralheiros, mulheres, crianças, seres de duas casas. 

“Quando criei a Rebis mestiça, associei ao pensamento sincrético brasileiro. Existe um Exu pouco conhecido, chamado Exu de Duas Cabeças. É uma entidade misteriosa, que na cultura popular abraça artistas e casais homossexuais, lésbicas, gays — porque tem os dois sexos. Ele não é o mesmo que Exu Pombagira, mas compartilha a complexidade de gênero. Essa entidade lembra também figuras mitológicas de outras culturas: meio homem, meio mulher, com traços híbridos — seio e pênis, corpo dividido”, explica o artista.

E ele ainda completa: “Para mim, essa figura representa o brasileiro como o mestiço total. Quando coloco isso na obra, penso num bebê sincrético que poderia simbolizar o ‘novo mundo’. Um bebê de duas cabeças, um corpo ambíguo, que nasce como metáfora de uma espiritualidade brasileira”.

A pintura é um misto de narrativas, em cores vibrantes, camadas espessas de tintas, que ecoam realidade e desejo, em um ambiente de revolução. Boa parte das obras na mostra, tanto no Convento, como no CHÃO, compartilham essa pulsão de cores e imagens recheadas de símbolos.

Brasil 2023 gobelin, Thiago Martins de Melo. Obra exposta no espaço CHÃO SLZ

Território

Todo esse excesso multicolorido, de uma cena muito vibrante, tem tudo a ver com o próprio local de formação de Thiago, que é o Maranhão, berço da festa do Bumba Meu Boi, recentemente considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. A festa do boi costuma acontecer da véspera do dia de São João, em 23 de junho, quando ocorre o batismo, seguindo até o fim de julho e, em alguns casos, até agosto. Há mais de 400 grupos em atividade nas zonas rural e urbana de São Luís, e em pelo menos 75 municípios. Foi em meio à essa festa que o artista cresceu.

O grupo de jornalistas convidados a acompanhar a abertura da mostra de Martins de Melo foi até o bairro da Liberdade, na capital do Maranhão, onde conheceu as lideranças do Bumba Meu Boi da Floresta, com suas vestimentas típicas e coreografias. É como se essas pessoas tivessem saído de uma pintura do artista. Há uma busca pelo transe no Boi, que se espelha nas pinturas de Martins de Melo.

Desde o início de sua pesquisa, ele já dialogava com a cultura popular. “Na Faculdade de Arte, eu vivia para todas as festas do Divino Espírito Santo, ajudava a fazer bandeirinhas, a desenhar, ia para Alcântara. Então o meu interesse sempre foi muito antropológico”, conta no catálogo da mostra.

Além dessa relação física com seu território, as obras do artista também se inspiram em aspectos mítico-religiosos, na espiritualidade. Há anos ele estabeleceu uma relação com Dona Tereza Légua, uma entidade que apareceu de forma muito forte em sua vida. “Dona Tereza foi fundamental: pintei muito inspirado nela. Tínhamos discussões sobre pintura, sobre mutualidade. Ela falava de um museu espiritual que frequentava, mostrava imagens, descrevia até um quadro meu, com um boi, que era o Touro de São Sebastião que eu tinha pintado. Essa relação de magia e encantamento sempre me atravessou. O Maranhão é assim, o Nordeste é assim”.

Há alguns anos, Martins de Melo estabeleceu-se em São Paulo, onde mantém seu ateliê. Mas a entidade não gostou. “Ela se ressentiu, mandou recados. Retomei a relação mais tarde, agora dentro da quimbanda. Hoje continuo cultuando, tenho entidades que me acompanham, é uma espiritualidade de família, feita de mortos, com quem tenho relação de carinho”.

O crânio, símbolo da morte, está presente em muitas de suas obras, seja na mostra, seja em sua carreira, um tema que de fato é observado pelo artista. “Hoje a morte é meu signo de existência. Eu sei que, quando morrer, meu crânio pode estar num assentamento, servindo de sabedoria, de continuidade. É assim na quimbanda: você não morre para desaparecer, você entra nos trabalhos, nas legiões. Se eu for espírito, provavelmente vou trabalhar na região de manguezal, de rio. Isso é pensar a vida já em função da vida depois. Por isso, para mim, o crânio é a imagem mais sábia de todas. É o que fica”.

Esse vínculo com a espiritualidade é algo conquistado recentemente na arte brasileira. “Hoje já se entende que vida, cultura e espiritualidade não podem ser dissociadas da arte. Mas, quando comecei a expor fora, entre 2011 e 2013, isso não era bem compreendido”, explica. Poucos são os artistas que conseguem retratar a espiritualidade de forma tão física e material quanto Martins de Melo e, em São Luís do Maranhão, isso tudo parece fazer muito mais sentido.

 

Quando a arte diz coisas que a história não pode

Vista da obra: Decoração de interiores, (1981) / Foto: Fabio Cypriano

“O estilo não existe, o estilo é uma forma de cair na repetição. Para mim, cada quadro precisa ser feito com uma técnica diferente. Cada exposição tem que ser diferente, é uma exigência interna que me imponho; não posso me repetir”, disse a artista colombiana Beatriz González. Sua versatilidade pode ser de fato comprovada nos mais de cem trabalhos na mostra Beatriz González: A imagem em trânsito, em cartaz na Pinacoteca do Estado até fevereiro de 2026.

Com curadoria de Pollyana Quintella e Natalia Gutiérrez, a mostra da artista nonagenária — ela nasceu em 1932 — faz um panorama de seus mais de 60 anos de carreira. Ao utilizar suportes inusitados como móveis ou cortinas, González levou algumas características da arte pop, especialmente pela apropriação de imagens de jornais impressos, a uma alta voltagem de crítica política.

É o caso de Decoración de interiores (Decoração de interiores), obra de 1981, que está na primeira das sete salas ocupadas pela artista na Pinacoteca. Trata-se de uma cortina de tecido onde está impressa uma imagem que se repete várias vezes, a do então presidente da Colômbia, entre 1978 e 1982, Julio César Turbay Ayala, com uma gestão marcada pela repressão a movimentos sociais. A foto original tem o estadista sorrindo com um copo de uísque na mão circundado por mulheres com vestidos elegantes, imagem um tanto típica de autocratas latino-americanos.

Assim como Andy Warhol se apropriava de fotografias de jornal para compor suas pinturas e serigrafias, González usa do mesmo procedimento em um material muito mais ousado e, ao mesmo tempo, leve, como as cortinas. Já na ironia do nome ela aponta para os poderes públicos exercidos em espaços privados. “O político se dissolve no doméstico e a representação oficial do chefe de Estado torna-se parte do repertório visual banalizado da cultura de massa”, diz Quintella no catálogo da mostra. Essas cortinas foram apresentadas na Documenta de Kassel, em 2017 e, desde então, multiplicaram-se mostras e retrospectivas da artista em diversos continentes. 

Já na Pinacoteca, após as cortinas, são apresentados os móveis sobre os quais González pintava. Em entrevista à crítica Marta Traba, em 1973, ela conta que “os móveis que faço são pinturas totalmente em sintonia com a arte tradicional, ou seja, faço-os com pigmentos coloridos e pincéis e represento algo que, embora já esteja dado através de fotografias ou reproduções de obras de arte, é, afinal, uma representação — uma representação de uma representação”.

Aí está outra faceta importante da poética da artista que é a reflexão sobre a linguagem e a história da arte. Entre os móveis exibidos, uma série de fato esplêndida, está uma cama com uma pintura de Cristo caindo ao carregar a cruz, denominada Natureza quase morta (1970), uma ironia em muitas camadas: o Cristo prestes a morrer, pintado em uma cama como a repousar, tudo isso realizado a partir de uma imagem religiosa, com um nome que subverte o gênero da natureza morta. Móveis com pinturas estiveram presentes na 11ª Bienal de São Paulo, em 1971, e, desde então, a obra de González cresceu muito na temperatura política.

As décadas seguintes, na Colômbia, foram um período de extrema violência, com muitos sequestros, assassinatos e, por consequência, exílio da classe média. González permaneceu em seu país, abordando todas essas questões. A cortina Decoración de interiores faz parte deste contexto. 

Em entrevista à curadora Maria Inês Rodrigues, González chegou a afirmar que “a arte diz coisas que a história não pode”. Quintella confirma ao constatar que o trabalho da artista “adquire um caráter memorial não institucionalizado”. Para ela, “suas pinturas, objetos e instalações funcionam como contra-arquivos: são peças que se colocam à margem dos relatos oficiais e expõem os vazios da história contada pelas instituições”.

Um caso exemplar desses contra-arquivos são as placas de sinalização na última sala da mostra que compõem a instalação Pictografias Particulares, criada para a 8ª Bienal de Berlim, em 2014. Inspirada em placas de trânsito da Alemanha, que indicam animais silvestres nas estradas, ela cria sinais de alerta para “o drama vivenciado por habitantes das zonas rurais da Colômbia, constantemente afetados pelo conflito armado”, afirma Quintella. São placas com pictogramas de cenas fúnebres.

A sala ocupada por esta instalação tem o Papel de parede pregadores, de 2002, onde estão representados corpos de vítimas da violência social colombiana, de maneira tão sutil e colorida que até parece um quarto infantil. É quando se conhece a história por trás, o chamado contra-arquivo, que se tem noção do drama.

Como diz a curadora e ex-diretora da Pinacoteca, Aracy Amaral, a mostra apresenta “excelência de percurso e coerência de postura através de décadas de produção iluminada”.

 

Contexto e Cosmogonia

Este período concentrou inúmeras iniciativas no mundo das artes plásticas. Coincidiram as aberturas da Bienal de São Paulo e da  Bienal das Amazônias, várias exposições nacionais e itinerâncias pelo país, as tradicionais Ocupações do Itaú Cultural e as comemorações dos 120 anos da Pinacoteca de São Paulo.

Patricia Rousseaux

A arte tem compromissos com as contradições do seu tempo e as cobranças que dele surgem, ela ajuda a nos interrogarmos o que significa tanta novidade e, ao mesmo tempo, busca lembrar das vozes eclipsadas e apagadas  durante séculos. Há uma mudança significativa desse quadro nos últimos 50 anos, e um clamor mais intenso nesses últimos 20 anos. Mas a inclusão ainda é uma meta a se cumprir, não apenas do ponto da visibilidade, mas da sincera e verdadeira ocupação dos centros de poder nas instituições culturais. Inclusão por modismo é apenas marketing, sabemos.

Sem dúvida, a produção afrodescendente e indígena vem crescendo em visibilidade, graças às suas próprias lutas. E aqui vemos a importância do contexto para arte, afinal as pautas por representatividade crescem cada vez mais e isso se reflete no mundo da arte. Dessa forma, o  Brasil de mais de  500 anos de colonização,  que possui uma tangencia com países do sul Global, está se reencontrando com seu passado e com suas raízes. 

Finalmente, entendeu -se, que não há futuro sem compreender profundamente quem somos, onde estamos, nossos países limítrofes, nossos biomas, a natureza, os animais, as florestas, os rios e aqueles que de anos para cá estão imaginando como protegê-las. O contexto é essencial.

As exposições, cada vez mais , são fruto de pesquisas e  estudos dignos de especialistas que , na maioria das instituições nacionais contam com o auxílio     de professores, acadêmicos, historiadores. Os e as  artistas não estão sozinho/as. Cada um explora sua realidade e trabalha com sua materialidade, seja qual for para expressar melhor o que tiver em mente. De diferentes idades, de diferentes gêneros, extrações sociais, artistas escrevem, falam, pintam, costuram, talham, se debruçam no estudo das origens e de fenômenos universais.  

Esta edição apresenta uma série de mostras que trazem essa complexidade na produção, a começar por duas ocupações no Itaú Cultural, frutos de extensa pesquisa, dedicadas a duas lideranças incontestes: Ailton Krenak e Paulo Herkenhoff. Ambas são abordadas aqui a partir de amplas entrevistas conduzidas pelo jornalista Jotabê Medeiros.

A 36ª. Bienal de São Paulo é analisada em dois textos, um escrito pelo crítico Fabio Cypriano e outro pela jornalista Maria Hirszman. Evento central no calendário das artes não só no Brasil, mas também no exterior, como se viu com a grande presença de colecionadores, curadores e artistas estrangeiros em sua abertura, essas visões buscam apontar como os conceitos desenvolvidos por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e sua equipe se concretizaram – ou não – no pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer.

Já a mostra de Beatriz González coroa os 120 anos da Pinacoteca a partir de uma artista latino-americana com uma produção original e coerente, política e ousada, em um intenso diálogo com outras exposições ali apresentadas, como a dedicada à arte pop e a coleção Roger Wright. A programação da Pina se consolida ao criar pontes entre acervo e mostras temporárias.

Esta edição traz ainda mostras de um circuito fora de São Paulo, um esforço que temos feito ao constatar a vitalidade e a particularidade de outros centros como Vitória, no Espírito Santo, São Luís, no Maranhão, Belém, no Pará, e Foz do Iguaçu, no Paraná. Dedicamos ainda dois textos à Temporada França-Brasil 2025.

Nem tudo vai perdurar, mas hoje, isso não importa. Importa a experiencia do olhar, do encontro com a obra, o quanto disso diz respeito de quem olha e o contexto em que ela se insere. 

Dedicamos esta edição ao nosso editor e amigo Eduardo Simões. 

Um encontro oportuno

: Louvre-Lens SANAA

Em maio de 2025, a Arte!Brasileiros teve a oportunidade de conferir, junto a um grupo de jornalistas de importantes e diferentes meios de comunicação brasileiros, o conjunto de iniciativas que o Instituto Guimarães Rosa e o Institut Français, sob a responsabilidade dos Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores de ambos os países, organizaram para a participação especial da França no Brasil neste ano. 

Foi no encontro de junho de 2023, em Paris, que Emmanuel Macron e Luiz Inácio Lula da Silva acertaram a realização da Temporada Brasil-França 2025, concebida para dar novo fôlego à parceria entre os dois países.

Lá na França, conseguimos acompanhar a exposição do artista Roméo Mivekannin, meses antes de sua vinda para o Brasil, na Galeria do Tempo, no Pavilhão de Vidro no Louvre-Lens, construído há dez anos em Lens, a 200km de Paris. 

Construído pelo escritório de arquitetura japonês SANAA, dos arquitetos Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa,  ganhador do Prêmio Pritzker de 2010, como parte de um projeto de reativação dos  centros urbanos fora de Paris, a extensão do Louvre em Lens é uma leve estrutura de aço parcialmente coberta por painéis de vidro, um espaço que reflete a iluminação natural criando um clima de luz difusa internamente, uma espécie de aura própria. São mais de 360 metros de comprimento de fachada implantada em um terreno de mais de 20 hectares, onde até os anos de 1960 operava uma mina de carvão. 

A segunda parte da iniciativa está sendo celebrada no Brasil  desde o mês de agosto, a temporada comemora 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países. Este acabou sendo um momento oportuno para a confraternização e exposição de iniciativas culturais de ambos os povos, dada a hostilidade que o mundo assiste aos avanços de setores de ultra-direita preconizando uma volta às trevas, e de alguma forma o ataque à cultura. 

Conseguimos acompanhar um trabalho impecável de pesquisa e organização que, capitaneado pela comissária francesa Anne Louyot, mostrou para a imprensa brasileira o cuidado com que os franceses pensaram esta parceria em território brasileiro. Várias das cidades brasileiras estão sendo impactadas por esse projeto que deve terminar em dezembro de 2025.

Os eixos temáticos que orientam os projetos dialogam diretamente com debates centrais da atualidade. Entre eles estão o clima e a transição ecológica, como a Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos que ocorreu em Nice em junho deste ano, e a COP 30, que acontece em novembro em Belém. Outro eixo é a diversidade das sociedades, marcada pelo diálogo com a África e o reconhecimento dos povos indígenas no Brasil e dos povos autóctones da França — como os da Guiana Francesa, Martinica e outros territórios ultramarinos. Por fim, a democracia e a globalização equitativa, capaz de se construir de forma mais justa, inclusiva e baseada em valores democráticos.

A exposição do Roméo Mivekannin, um dos artistas escolhidos para representar a França na parceria e que teve sua abertura no Brasil, em Salvador, na Bahia nos dias 28 e 29 de agosto e está exposta até 15 de novembro, é significativa por representar conexões entre o passado e nosso contemporâneo. 

Roméo, nascido em 1986 em Bouaké, na Costa do Marfim, explora suas memórias, especialmente as que existem entre Europa e África. Há vários anos ele revisita grandes momentos da história da pintura e nesta sua primeira mostra para Lens, escolheu principalmente algumas obras das coleções do Museu do Louvre, como a Jangada da Medusa (1818-1819), de Théodore Géricault,  inserindo seu autorretrato à maneira de uma figura negra esquecida. Com este gesto de homenagem e intervenção, o artista desafia com o olhar: Quem pinta? Quem é pintado? Ele questiona a história do retrato e de mulheres negras em particular.  E questiona a presença e ausência na história da arte, incluindo as das representações negras. 

Assim em Salvador, a exposição O Avesso do Tempo foi inaugurada em cerimônia oficial no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) com a presença do governador do estado, Jerônimo Rodrigues, do embaixador da França no Brasil, Emmanuel Lenain, e de representantes da comunidade cultural. A exposição foi especialmente organizada com 11 obras de Roméo Mivekannin no MAM-BA que revisitam a tradição da pintura ocidental com um olhar crítico e decolonial, inserindo a presença negra em narrativas históricas. 

Nas mesmas datas foram mostradas fotografias de Pierre Verger no Museu de Arte da Bahia (MAB), e a Coleção FRAC, Pedra e Mar entrelaçados no Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC_BAHIA).

A fúria e as batalhas de Niki de Saint Phalle

Exposição de Niki de Saint Phalle. Foto: Leo Lara/Studio Cerri

Visionária, explosiva e revolucionária, Niki de Saint Phalle (1930–2002) virou do avesso a arte do século XX. Suas obras marcadas por explosões de cor e gesto desafiaram preconceitos, romperam silêncios e abriram caminhos para que a liberdade feminina pudesse ser celebrada sem pedir licença. Com esta força que chega ao Brasil a exposição Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade, na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte.

Inédita no país, a mostra reúne 67 obras da artista franco-americana, quase todas nunca foram vistas por aqui, entre esculturas, assemblages e as icônicas Nanas (figuras femininas deliberadamente exageradas), vindas em sua maioria do acervo do Museu de Arte Moderna e Arte Contemporânea de Nice (MAMAC), além de uma obra rara da Pinacoteca de São Paulo, que sai do museu pela primeira vez desde 1997, quando foi adquirida. 

Pouco antes de sua morte, em 2001, Saint Phalle doou um conjunto extraordinário de obras ao MAMAC, cuidadosamente selecionadas por ela. Segundo os curadores da exposição no Brasil, Hélène Guenin e Olivier Bergesi, “o acervo reflete não apenas seu lugar essencial na história da arte das últimas seis décadas, mas também suas convicções, sua fúria, suas batalhas e a maneira como ela se posicionou em sua época”.

A partir de uma rede de parcerias internacionais — entre a Prefeitura de Nice, o MAMAC, a Niki Charitable Art Foundation e o grupo 24 Ore Cultura, de Milão — foi que nasceu a ideia da Sonhos de liberdade, unindo forças e visibilizando a potência transformadora de uma artista que nunca se acomodou. 

Em Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade, o público é convidado a percorrer diferentes momentos da vida e da obra da artista, desde seus primeiros experimentos artísticos até suas esculturas de grande porte, passando por fases marcadas pela dor, experimentação, cura, celebração e engajamento social. A mostra combina obras históricas, registros audiovisuais e ambientações, que dialogam com a vibrante linguagem visual da artista. A mostra acontece até dia 2 de novembro e integra a programação da Temporada França-Brasil 2025. 

Roubando o fogo

Niki de Saint Phalle não aceitava ser mera espectadora da vida — preferiu explodir, detonar, atirar contra ela. Feminista quando ainda era perigoso, ela ousou ocupar espaços dominados por homens e deu corpo a um imaginário exuberante, povoado por deusas gigantes, monstros coloridos e criaturas que riam da moral burguesa. Sua fúria se converteu em forma, a batalha incessante contra as convenções do patriarcado revolucionou o mundo da arte.

“Compreendi muito cedo que os homens detinham o poder, e eu queria esse poder. Sim, eu lhes roubaria o fogo. Não aceitaria os limites que minha mãe tentava impor à minha vida só porque eu era mulher. Ultrapassaria esses limites para alcançar o mundo dos homens, que me parecia aventureiro, misterioso e excitante. Decidi que eu mesma me tornaria uma heroína”, escreveu Saint Phalle em carta ao colecionador Pontus Hultèn, em outubro de 1991.

Durante muito tempo, Niki de Saint Phalle foi mal compreendida e até reduzida a caricaturas de si mesma: as Nanas exuberantes, as declarações inflamadas, o gosto assumido pelo ornamento. Parte da crítica masculina descartava sua produção como “feminina demais” e desqualificava seu discurso sobre o matriarcado. Ao mesmo tempo, algumas historiadoras feministas da arte também viam em suas criações uma armadilha — a suspeita de que, ao lidar com corpos fartos e coloridos, ela pudesse estar reforçando estereótipos que queria combater.

Presentemente, a sua  obra tem passado por uma releitura necessária em diversas partes do mundo. “Hoje, sua produção é finalmente reconsiderada em toda a sua riqueza e complexidade; reconhecida por sua contribuição única e incontestável à história das formas e dos gestos; e reavaliada à luz de seu engajamento profundo e de sua sensibilidade frente aos conflitos e causas de seu tempo”, declaram os curadores.

O caminho de uma heroína

Em 1953, Saint Phalle começou a fazer colagens com gravetos e pedrinhas, após ser hospitalizada por problemas de saúde mental, causados pelo estereótipo sexista do pós-guerra. A família havia chegado de volta à França, fugindo do clima repressivo dos Estados Unidos.

Depois, passou a fazer pinturas com mundos imaginários, uma mescla de fantasias e inquietações — e quando percebeu, a prática artística seria sua própria cura. “No fim das contas, minha depressão nervosa acabou sendo algo bom, porque minha estadia na clínica fez de mim uma pintora”, declarou ela em seu livro Harry and Me, 1950-1960: The Familiy Years.

Nos anos seguintes viria a criar as assemblages, uma espécie de colagens em que combinava pequenos brinquedos com materiais descartados e utensílios domésticos. Em um segundo momento passou a incorporar objetos mais agressivos e perigosos, como lâminas, tesouras, armas de brinquedo e objetos pontiagudos. Os primeiros indícios de uma expressão artística marcada pela revolta.

Pintora, escultora, cineasta, ela transformou traumas em munição e, com balas de rifle calibre .22, atirava contra suas próprias telas para ver nascer dali outra expressão de arte insubmissa. Assim, ainda em 1961, surgiram os Tirs (pinturas-tiro), que revolucionaram por completo o mundo da arte. Tiros que refletiam o mundo dilacerado pela violência num contexto de Guerra Fria. Obras complexas e repletas de significados que expressavam a fúria da artista contra o patriarcado e suas instituições.

“Nunca experimentei uma criatividade tão intensa quanto a que vivi com os Tiros. Foi emocionante ver aquelas obras se tornarem algo real diante dos meus olhos; meus sentimentos de agressividade encontraram uma forma de sublimação”, declarou a artista.

A partir de 1963, surgem as Nanas — figuras femininas deliberadamente exageradas, que transformam em escultura a ironia dos estereótipos. Entre noivas, feiticeiras, mães devoradoras ou mulheres em pleno parto, Saint Phalle expôs com ironia os papéis que a sociedade insistia em impor ao feminino. 

Para ela, as Nanas representam as mulheres no poder. “Temos o Black Power, então por que não o Nana Power? O comunismo e o capitalismo fracassaram. Acho que chegou o momento de uma nova sociedade matriarcal”, declarou ao Huston Post.

Já no final dos anos 1970, Saint Phalle começou elaborar o que, vinte anos depois, se tornaria o Jardim dos Tarôs, um projeto público faraônico localizado na Toscana, Itália.

Uma experiência imersiva em que vida, morte, alegria e medo convivem lado a lado. Um diálogo com a arte popular que busca sair dos museus e democratizar o acesso a todos. 

Ao longo de sua carreira, Saint Phalle lutou por causas libertárias e por um mundo mais justo, promovendo respeito e inclusão para todas formas de vida. Especialmente entre os anos 1980 e 2000, ela usou sua arte como ferramenta de transformação social.

Durante a epidemia de AIDS, combateu a estigmatização de pessoas que conviviam com HIV, utilizando diferentes mídias em suas obras, como a escrita e a ilustração de dois livros voltados à juventude. Para ela, tratava-se de defender o amor e a solidariedade aos afetados pela doença.

Neste período duro e sofrido, novas esculturas com figuras masculinas surgiram, até então ausentes em sua obra. Obeliscos fálicos, como totens, multicoloridos e adornados, em um desafio do medo e da rejeição que a doença impunha.

Sempre promovendo uma visão igualitária e atenta aos sentimentos do mundo, ela também denunciou a caça de animais selvagens e criou uma série de obras que alertavam sobre as mudanças climáticas — e a sua consequente perda de biodiversidade.

Em 1993, Saint Phalle, já na casa dos 60 anos de idade, se mudou de Nova York para La Jolla, na Califórnia, por motivos de saúde. “Já não consigo mais respirar na França, nem em Nova York, nem na Suíça, nem na Itália, nem na Espanha, nem em nenhum outro lugar. Respirar ou não respirar, essa se tornou a questão”, disse ela.

A Costa Oeste foi de fato um respiro para sua vida e sua produção artística, onde ela redescobriu costumes de seu próprio País e passou a documentar inspirações, sonhos e inquietações em seu Diário Californiano, escrevendo, desenhando e serigrafando retratos ilustrados, que se tornaram um registro visual precioso de seus trabalhos e pensamentos.

Niki de Saint Phalle disse uma vez que queria se tornar uma heroína — e de fato, ela conseguiu. Sua produção potente e imaginativa continua a inspirar novas gerações, não apenas por sua estética ousada, mas pela capacidade de transformar sofrimento em beleza, denúncia em esperança, exclusão em potência. Suas obras são um hino à liberdade, à alegria e à diversidade, e, por isso, seguem tão atuais.

Na segunda edição, Bienal das Amazônias reverbera a floresta

Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), Alessandro Fracta. Foto: Ana Dias
Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), Alessandro Fracta. Foto: Ana Dias

Porta de entrada da Amazônia, cidade portuária marcada pela confluência de povos e culturas, Belém, no Pará, se abre para a arte. É nesse contexto que se realiza a 2ª Bienal das Amazônias, no CCBA — o centro cultural instalado desde 2023 em um prédio de comércio popular no bairro central da cidade.

São 74 artistas e coletivos de oito países pan-amazônicos e caribenhos que mostram seus trabalhos até 30 de novembro. O fio condutor é o conceito “Verde-distância”, inspirado no romance Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, escritor e político paraense silenciado por dez anos pela ditadura militar brasileira. A ideia de “distância verde”, tão poética quanto política, abre espaço para múltiplos olhares sobre a floresta, seus povos, memórias e futuros possíveis. O evento foi incorporado aos festejos França-Brasil 2025, que acolhe a 2ª Bienal das Amazônias, em uma iniciativa que busca estreitar e atualizar as relações entre os dois países.

Sob a curadoria geral da equatoriana Manuela Moscoso, a Bienal se estrutura de forma colaborativa, com a colombiana Sara Garzón como curadora-adjunta, o paraense Jean da Silva na programação pública e a mexicana Mónica Amieva na curadoria pedagógica. Juntos, formam uma equipe internacional que amplia os diálogos e a dimensão experimental do evento.

Nascida no Equador, a 2.800 metros de altitude e hoje radicada no Brasil, Manuela Moscoso encarou o desafio de fazer a 2ª edição da Bienal em plena planície amazônica. O contraste não passa despercebido: “Outro clima, outro tempo, outro horizonte”, resume. Trabalhar no calor úmido da floresta virou quase metáfora da tarefa de articular tantas narrativas distintas em uma mesma plataforma. Esse multiculturalismo se traduz na exposição, com obras que acionam memórias coletivas, histórias de resistência e imaginários transfronteiriços.

Como grande homenageado, o amazonense Roberto Evangelista (1947-2019) ocupa lugar de destaque na 2ª Bienal das Amazônias. É uma justa reverência a um artista preocupado com a ecologia e em como pensar o futuro da Amazônia e do planeta. Entre suas obras em exibição está Nike Uiikana (1989), instalação em que penas e cuias formam triângulos, celebrando a união dos povos indígenas e a resistência do líder ambiental e seringalista Chico Mendes. Em Happening da Praia da Ponta Negra (1992), o artista transformou a orla de Manaus em palco para um gesto de arte efêmera, aproximando público, rio e cidade numa experiência comunitária que foi reencenada nesta edição, com a participação da viúva, Ana Evangelista, e da filha Sâmara.

Já em Ritos de Passagem (1996), reuniu mil caixas de sapato vazias, dois mil sapatos gastos e pedras de lioz retiradas de uma calçada de Manaus. A remontagem das obras foi realizada por Regina Vater, artista, amiga e parceira de Evangelista, que contribuiu para manter viva a integridade de suas criações. Essa presença dupla, da memória de Evangelista e do gesto cuidadoso de Vater, reforça a dimensão afetiva e política da homenagem.

Mosaico abrangente

A Bienal também devolve visibilidade a narrativas silenciadas. Um exemplo vem do coletivo Tawna, do Equador, que ocupa a floresta como espaço de escuta, ritual e insurgência. Composto por pessoas de diferentes etnias, seu cinema anticolonial aproxima ativismo e política, rejeitando enquadramentos ocidentais de gênero, sexualidade e justiça. O antropólogo indígena Enoc Merino, um dos integrantes do coletivo, afirma que a colonização europeia, com sua catequese, silenciou os povos originais. Seu curta-metragem mostra a diversidade e a liberdade de expressão dentro do povo Kichwa Canelos. “A questão de gênero é escolha ancestral no universo indígena, a homossexualidade sempre existiu e as escolhas fazem parte da cultura desses povos”, afirma ele.

A obra do artista Jaider Esbell, do povo Makuxi, originário da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, também reverbera na mostra, com pinturas feitas com jenipapo. Os trabalhos de Esbell, falecido em 2021 aos 42 anos, reafirmam a vivacidade que norteia o pensamento dos povos originários e a vitalidade espiritual de seus símbolos ancestrais. Considerada uma voz importante da arte indígena contemporânea no Brasil, sua presença na Bienal das Amazônias colabora para o reconhecimento da produção feita por integrantes dessa matriz. 

Dayro Carrasquilla chega à Bienal das Amazônias com a instalação Barrio Abajo, construída a partir de paletes — tão comuns no transporte marítimo — e de um vídeo que atravessa o espaço como narrativa visual. No piso térreo, sua obra recebe o público recriando os becos estreitos das comunidades populares, onde o íntimo se cruza com o coletivo. “O bairro é memória, afeto e resistência”, afirma o artista, ao mostrar como a arte pode devolver dignidade a territórios historicamente silenciados. 

Aqui, o urbano não se apresenta como dureza, mas como corpo poroso, cheio de frestas por onde emergem histórias ocultas. É nesses interstícios que Carrasquilla encontra poesia. A cidade que convoca não cabe em cartografias oficiais: é feita de resistências, afetos e lembranças que insistem em permanecer.

Barrio Abajo, de Dayro Carrasquilla. Foto: Leonor Amarante

De origem Kokama, a artista Wira Tini é pintora autodidata. Ela mescla modernismo, cosmologia indígena e paisagem urbana amazônica em uma poética de ancestralidade, território e memória familiar. Em obras como Rodó, Beira da Amazônia e Amazônia Urbana, ela reflete a modernidade imposta, os caminhos das águas e as presenças invisibilizadas em Manaus. “Meu pai conduzia barcos que até hoje transportam a população ribeirinha. Eu mesma aprendi a manejá-los e naveguei bastante pelo rio”, diz.

Nesse mosaico, a matriz africana também se faz presente, entre criação e ativismo. “A matriz afro-diaspórica é algo importante a se destacar nesta Bienal, dando mais presença ao legado, à memória e à história dos povos afrodescendentes na Amazônia”, ressalta a curadora-adjunta, Sara Garzón.

Há trabalhos empoderados que fazem a Bienal pulsar em diferentes registros. Entre eles, se destaca a produção da caribenha Keisha Scarville, filha de guianeses, que mergulha na diáspora e na experiência do corpo negro. Suas fotografias transitam entre presença e ausência, memória e apagamento. Tecidos, sombras e sobreposições dão corpo a um território poético em constante deslocamento, onde a identidade nunca se fixa, está sempre em construção. A potência de certas obras está justamente neste “não lugar”, elas não explicam, mas ativam sentidos. Ao reunir vozes tão diversas, a Bienal mostra que a Pan-Amazônia não é apenas um espaço geográfico, mas um campo vivo de relações, em disputa e em transformação.

Com sotaques e idiomas que vão do português ao espanhol, passando pelo “portunhol” e por diferentes troncos linguísticos indígenas, a Bienal se torna um grande território de pensamentos e trocas. Da Bolívia chega River Claure, fotógrafo indígena que vem conquistando espaço ao tensionar a identidade andina diante da contemporaneidade ocidental. Seu trabalho mistura moda, fotografia e crítica social em imagens vibrantes, cheias de frescor e impacto.

Em suas séries, jovens indígenas aparecem em diálogo direto com a cultura pop global, desmontando o olhar exótico que tantas vezes se projeta sobre os Andes. Suas fotografias atravessam estereótipos, dão corpo ao que foi silenciado e abrem espaço para imaginar a modernidade a partir da força e da criatividade dos povos andinos.

Em um ritual solitário, o peruano Antonio Paucar apresenta, em La Purga con las Madres Plantas, uma prática arraigada em que corpo e natureza se fundem como um mesmo território de resistência e entrega.

Entre fumaças que curam, gestos que invocam e silêncios que atravessam, sua obra desperta estados de transe, purificação e reconexão. Inspirado nos saberes indígenas e nas alianças ancestrais com a terra, Paucar transforma o corpo em portal, espaço de passagem entre mundos visíveis e invisíveis. Sua arte convida o espectador a atravessar essa experiência e a intuir outras formas de existir, de sentir e de pertencer ao cosmos natural. 

La Purga con las Madres Plantas (2016), Antonio Paucar. Foto: Leonor Amarante

Com forte carga poética, Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), do brasileiro Alessandro Fracta, transforma a travessia em metáfora da experiência amazônica como território de deslocamento, resistência e invenção. Sobre o rio de dimensões oceânicas, ergue-se uma figura solitária: de pé na embarcação, envolta por um pano vermelho. Cor de ambiguidade simbólica, sangue e ferida, mas também fogo e vitalidade, funciona como eixo de tensão entre vida e risco, permanência e transformação. Ao situar-se no limite entre fragilidade e resistência, a obra aponta para as condições contemporâneas da Amazônia, onde práticas de destruição e modos de vida tradicionais coexistem em embate constante.

Curadoria

Ao assumir a curadoria da 2ª Bienal das Amazônias, Manuela Moscoso encontrou uma instituição jovem, em busca de identidade, mas ousada o bastante em sua proposta de articular uma cartografia artística da região Pan-Amazônica. Isto, segundo ela, é o que torna a experiência especial: “Se não fosse assim, estaríamos sempre nos encontrando em outros lugares, sob as mesmas lógicas centrais. O que me atraiu aqui foi a possibilidade de construir desde a Amazônia para a Amazônia”. 

No entender de Moscoso, a região carrega histórias coloniais muito distintas, que afastam os habitantes uns dos outros. “Somos países vizinhos, mas muitas vezes não nos conhecemos”. A curadora recorda, em tom de anedota, ter se surpreendido ao lembrar da existência de um território francês cravado na América do Sul: a Guiana Francesa. “É curioso pensar como esse detalhe, que deveria estar presente em nossa consciência continental, às vezes nos escapa. Isso mostra como a herança colonial ainda organiza a percepção de quem somos”. O confronto entre familiar e desconhecido, paisagem andina e vastidão da planície amazônica, também a fez refletir sobre as formas de relação com o meio ambiente. No Equador, a questão ambiental está inscrita em leis. “Há um esforço de proteção legal que, mesmo com todos os percalços, nos lembra de que a natureza é um sujeito de direitos e não apenas um recurso a ser explorado”. Essa vivência molda sua visão curatorial, que entende a floresta não como cenário, mas como protagonista.

Do ponto de vista da arte e do ativismo ambiental, vale lembrar as palavras do crítico francês Pierre Restany em seu Manifesto do Rio Negro (1978), escrito após navegar pelo rio ao lado dos artistas Sepp Baendereck e Frans Krajcberg: “A Amazônia é hoje o último reservatório, o último refúgio da natureza em nosso planeta”.

Ela deve ser celebrada como higiene da percepção e oxigênio mental — um naturalismo integral, gigantesco, capaz de catalisar nossas faculdades de sentir, pensar e agir”, escreveu.

A diferença

À frente da Bienal das Amazônias está Lívia Condurú, uma mulher que sabe articular forças diversas — empresários, coletivos, poder público — em torno de um mesmo objetivo. Foi assim que conseguiu restaurar um antigo prédio no coração de Belém, alugá-lo e transformá-lo na casa da Bienal das Amazônias desde 2023. O que a distingue das demais? Lívia Condurú não hesita: “A coletividade”. Para ela, não se trata de criar um simulacro da Amazônia para atender ao mercado, mas de falar da vida real, dos territórios habitados, das experiências compartilhadas. A Bienal, para ela é plataforma viva, o barco que desliza pelos rios levando e trazendo arte, é um centro cultural pulsante, com exposições que circulam. “É resistência, provocação, mas também festa”.

Com tranquilidade aparente, ela encara o maior desafio de qualquer iniciativa artístico-cultural no Sul Global, a sustentação financeira. “Fizemos uma das maiores captações do Brasil, mas os custos são altíssimos, aluguel do prédio, manutenção do barco, energia, equipe. Não dá para depender só da Lei Rouanet”. Ela afirma que trabalharam com plano plurianual e buscaram novas fontes. “Com o mesmo orçamento que em outras instituições renderia quatro exposições, realizamos sete, além de encontros e circulação internacional. Isso mostra como o dinheiro público pode ser mais bem investido quando há compromisso”.

Essa mesma disposição amplia o alcance da Bienal além do Brasil. Em Medellín, na Colômbia, por exemplo, a obra Quintino, de Éder Oliveira — retrato de um matador de aluguel transformado em anti-herói popular — encontrou identificação imediata. “Isso mostra como territórios distantes compartilham feridas parecidas”, diz a presidente. Pesquisas na Guiana Francesa e no Suriname confirmam essa dimensão plural da Pan-Amazônia, revelando uma região negra, caribenha, asiática, múltipla, justamente por ter sido atravessada pela colonização.

Ainda pesa a ideia de “arte regional”? Lívia Condurú não tem dúvida. “Pesa, mas é uma escolha política. Por que o artesanato não seria arte? Por que a crítica só existe no eixo Rio-São Paulo? O mesmo avião que me leva para lá traz críticos até aqui. Precisamos romper essa barreira”. O que move de verdade essa gestora? “Territorialidade e dignidade coletiva. Quero poder andar na rua à noite com segurança, quero um território respeitado. A arte é trabalho, com boletos e responsabilidades, mas também um instrumento de transformação. Seguimos porque acreditamos que fortalecer o território é fortalecer o mundo”.

Lívia Condurú vê a Bienal das Amazônias como voz ativa neste momento em que a COP 30, a Conferência do Clima que será em novembro, em Belém, se aproxima. Para ela, a Amazônia não pode ser tratada apenas como pano de fundo para debates climáticos, mas precisa ser vista como território vivo, político e cultural. “Aqui discutimos mineração, petróleo, extrativismo, mas também inventamos saídas. Acreditamos nas micropolíticas, em pequenas ações coletivas que, somadas, viram armas de resistência. A Bienal dá visibilidade a isso”. Assim, a mostra vai bem. Além de uma exposição de arte: é um chamado para olhar e escutar de outra maneira tudo o que está em jogo quando se fala da Amazônia.