Por Agustín Pérez-Rubio
Prefácio
Boicote à entrada triunfal:
A pintura como transmissora da colonialidade
Por Agustin Pérez Rubio “Cuando los museos olvidaron ser Jardines”. En: “Pinacoteca Migrante”. Sandra Gamarra Heshiki. 60ª esposizione internazionale D’arte. La Biennale di Venezia. Aecid, Madrid – Walther Und Franz König, Köln. (excerto do texto pp. 11-31). Tradução do original em espanhol para o português: Hélio Campos Mello
Em 25 de abril de 1716, o vice-rei interino do Peru, arcebispo Dom Diego Morcillo y Auñón fez sua entrada triunfal na cidade de Potosí, cidade onde os espanhóis extraíram a prata de seu morro durante mais de um século. A data da referida entrada é de mais de dois séculos depois da chegada de Cristóvão Colombo às costas do continente e a consequente conquista dos territórios de Abya Yala, deixando um rastro de exploração de recursos, degradação da paisagem, escravização da população local e da afrodescendente trazida pelo comércio ultramarino, além da consequente imposição cultural e religiosa. Ao chegar, o vice-rei certamente foi recebido com toda pompa pela população crioula, especialmente pelos azogueros (os capatazes da extração da prata), que queriam recuperar o pacto com a Coroa espanhola que lhes permitia empregar até 20 mil índios na exploração mineira, número que havia sido reduzido anteriormente e que desejavam aumentá-lo novamente¹.
Tudo isso se refletiu na pintura que hoje está guardada no Museu da América, em Madri², e que tem uma particularidade, por ser a história tão confiável, que mostra como os vizinhos usaram pinturas, tecidos e tapeçarias para enfeitar as varandas e celebrar a passagem da referida figura política e religiosa. Se observarmos a iconografia das pinturas que estão penduradas no exterior, são personagens mitológicos em cenas pagãs: de Eros a Hermes, passando à fábula de Endimião, o colosso de Rodes, a Eneias e Anquises fugindo de Tróia. Esta galeria de arte suspensa, em vez de destacar os méritos do vice-rei interino, o que fez foi aconselhá-lo e colocá-lo em alerta, pois neste complexo aparato discursivo se vislumbrava toda uma série de críticas e advertências ao vice-rei que assumem um novo significado nas mãos do pintor, já que não conseguiram obter seu propósito, pois apenas seis meses depois de sua chegada o vice-rei morreu de causas naturais.
Três séculos separam esta pintura da pintura Pinacoteca Migrante (Quando as ruas falam), 2024, que serve de introdução ao projeto Pinacoteca Migrante de Sandra Gamarra Heshiki – a primeira artista migrante a representar a Espanha na Bienal de Veneza – esta última é apresentada como forma de compreender a perpetuidade do discurso colonial vigente sob a cronologia do tempo linear ocidental. Além disso, podemos transferir o seu conteúdo e imaginá-lo na contemporaneidade deste momento, protagonizado por políticos com agendas extrativistas, negociadores do extermínio natural, corretores de almas acorrentadas ao capitalismo juntamente com vendedores da supremacia branca ou colonos bombardeando impiedosamente territórios que não pertencem a eles: Trump, Putin, Bolsonaro, Netanyahu ou Musk, mas também a Monsanto, a First Quantum Minerals, o extrativismo verde da União Europeia, a HP Enterprise e o seu patrocínio ao genocídio palestino.
Desta vez as criadas, indígenas e negras, ou os serviçais homens, que hoje, como faziam há mais de três séculos, seguem a mesma trilha de expropriação e desigualdade, não saem à varanda em silêncio, porque não podem mais ficar calados. Suas vozes e suas histórias – de resistência e resiliência – são aquelas que ficam penduradas nas varandas que Sandra Gamarra Heshiki pinta. Ela captura o empoderamento de uma sociedade que tira as garras da colonialidade – perpetuada nas formas e meios de transmitir, educar, narrar, até pintar e exibir –, que grita e vaia os políticos, que processa Estados criminosos, que impede a construção de barragens e a derrubada de florestas, diz não ao racismo estrutural e se recusa a dar sementes às empresas transgênicas, expulsa garimpeiros³ dos territórios da Amazônia e até boicota as indústrias mais poderosas do planeta, que se recusam a ter seu gênero binarizado ou quem diz stop com a aporofobia, o ódio em relação aos despossuídos, do novo capitalismo das it girls e sua compulsão por fazer compras.
Sandra Gamarra Heshiki questiona o mundo, o seu mundo. Como migrante peruana que chegou à Espanha, como mulher que condensa na própria pele três culturas diferentes, como mãe que quer deixar um mundo mais justo, solidário e sustentável para seu filho, e como artista que questiona as formas hegemônicas de representação no capital simbólico não só da Europa, mas das antigas colônias a que ela mesmo pertence. É por isso que a sua prática torna visível a domesticação do nosso olhar colonial eurocêntrico, o que implica estruturas de racismo estrutural, machismo implícito e que põe em causa os nossos privilégios de classe e o acesso aos mal chamados “recursos”. Tudo isto aliado à forma como a hegemonia histórica e artística moldou os modelos de representação, tanto na pintura como posteriormente na fotografia, incluindo as formas de classificação e domesticação das culturas baseadas em esquemas e práticas como a museografia, a museologia ou a edição de repertórios de representação⁴. Não em vão, a entrada do pavilhão, e por sua vez todo o projeto, leva aquela ideia de encenação herdada dos teatros do Renascimento europeu, já que os arquitetos viram as salas e galerias como um teatro pensado para a contemplação fixa, regulando rigorosamente o leque de movimentos do espectador e do objeto de atenção⁵. A Pinacoteca Migrante, ao contrário, põe em xeque o tempo de unidade curatorial que se estabelece nos museus, onde as obras são penduradas de acordo com as normas, iluminação e umidade do ar e atendem aos requisitos de conservação. Os visitantes – ao entrar – aceitam sem hesitação este ambiente guardado, que fixa e regula a sua percepção⁶. Nesse sentido, parte dessa direcionalidade do espaço é transmitida na forma como Gamarra Heshiki nos leva, como um trompe l’oeil barroco, numa espécie de mise-en-scène para que possamos desempenhar o nosso papel como público turístico na arte ocidental. Observaremos que as próprias pinturas revelam essa mesma lógica ou conformidade, aquelas paisagens idílicas, aquelas visões romantizadas da natureza, aqueles corpos exotizados, objetificados e sexualizados, mas rebelam-se em serem oferendas como naturezas mortas. Não são os frutos à disposição de todos, como algo que era para servir aos cavaleiros que chegavam, ou a serviço de…, da mesma forma que a pompa, o desperdício e a ostentação que se ofereceu em Potosí ao referido vice-rei Morcillo.
A apresentação de Sandra Gamarra Heshiki, Pinacoteca Migrante, é a sequência natural de um trabalho de fundo que a artista vem desenvolvendo ao longo de mais de 15 anos de pesquisa e implementação. Quanto mais caminhos percorre, mais coerência tem seu trabalho, desde os seus primórdios até o atual projeto para a Bienal de Veneza. Embora por vezes a artista tenha se colocado no interstício de outras instituições que estão à margem ou que pertencem a outros contextos – refiro-me ao LiMac⁷, entre outros – Pinacoteca Migrante tem muita consciência do território e lugar que lhe corresponde. Posto que a apresentação deste pavilhão, que não deixa de ser “nacional”, é imediatamente deslocado pela presença híbrida da artista, que nacionalmente pertence a dois lugares. Por sua vez, a proposta mergulha nas referências da construção nacional de um país como a Espanha – não sem uma certa autocrítica – ao pensar como os modos de re/apresentação herdados na formação do imaginário da nossa sociedade em vários níveis, sendo agravada e comprometida pelo ressurgimento de certos postulados conservadores, com tintas fascistas em alguns dos outros países europeus, incluindo Espanha, além das crises derivadas dos processos de hiperprodução e superexploração do planeta e os consequentes ecocídios resultantes.
Embora acreditássemos que a pandemia serviria como autocrítica ou como um abrandamento, infelizmente temos experimentado ao longo destes quatro longos anos que os países europeus continuaram a inventar esta chamada colonialidade extractiva. Se não, vejamos quantas empresas europeias, juntamente com americanas, canadenses, etc., circulam livremente nas “ex-colônias” através da compra de políticos e financistas, realizando projetos de elevado risco ambiental e humano – que em seus países de origem não seriam permitidos – abrigadas atrás de palavras como apoio ou solidariedade, quando a realidade se baseia na simples e flagrante exploração dos “recursos” humanos e materiais dos territórios em desvantagem relativamente à sua soberania.
Mas hoje a Europa e as suas noções de hegemonia sucumbem à miragem narcisista do eurocentrismo. Não sem o esforço e a potência que vem de fora das suas fronteiras, também pela reivindicação de forças internas.Talvez porque alguns de nós na Europa começamos a compreender esse reflexo e essa influência do “continente da neurose monoteísta”. O continente do controle e do julgamento moral do mundo”, como o chama a antropóloga argentina Rita Segato⁸. No meio desta neurose observamos, mais do que nunca, como as noções hegemônicas criaram o museu no qual se baseia o nosso patrimônio. Não apenas com um desejo de extrativismo cultural mas, em muitos casos, como dispositivos que normalizam culturalmente a violência destas pilhagens de identidade.
Pinacoteca Migrante quer evidenciar esta violência e ao mesmo tempo procurar formas de reparação histórica. Esta nova instituição criada pela artista transforma o Pavilhão Espanhol numa galeria histórica de arte ocidental, onde a noção de “migração”, nas suas múltiplas facetas, também é protagonista. O conceito ocidental de pinacoteca, que também foi exportado para as ex-colônias, é invertido ao expor uma série de narrativas que foram historicamente silenciadas. Dessa forma, a Pinacoteca Migrante revê os protocolos de acessibilidade, diversidade e sustentabilidade, para atualizar um quadro institucional que assuma contextos contemporâneos em relação ao racismo, à migração ou ao extrativismo nos museus. Os protagonistas são os migrantes, humanos e não humanos: organismos vivos, plantas e matérias-primas que muitas vezes faziam a viagem de ida e volta à força. No seu título, a nova instituição mostra como a migração, tal como a colonialidade, não é apenas um fenómeno humano e ambas continuam a ser extirpadas dos seus ecossistemas em benefício de poucos.
A extensa investigação realizada por Gamarra Heshiki reflete-se em mais de uma centena de novas pinturas que têm como ponto de partida pinturas pertencentes ao patrimônio de coleções de arte e museus de toda a Espanha, desde a época do Império até o Iluminismo. Cada obra interfere na falta de narrativas decoloniais nos museus e analisa as representações tendenciosas entre colonizadores e oprimidos. Entrelaça sociologia, política, história da arte e biologia para fornecer uma reinterpretação na qual as consequências históricas frequentemente ignoradas estão ligadas ao nosso contexto contemporâneo.
Embora o eixo central desta Pinacoteca Migrante assuma o museu como narrador de grandes histórias em forma de galeria de pintura, ela tem suas raízes nas formas de representar diversos gêneros pictóricos dentro de nossas coleções em museus e galerias de arte na Espanha. A construção monolítica dos Estados Nação baseou-se na destruição de outras formas de organização social. Para isso, foram criadas histórias de civilização e de evangelização, numa troca injusta em que a dívida por esse “progresso inicial” cresce incessantemente. Paradoxalmente, são os bens do chamado terceiro mundo que mantêm o progresso do primeiro, que mais tarde serão devolvidos, seja como mercadoria ou como desperdício.
Estas histórias de civilização foram escritas e imaginadas, criando modelos reconhecíveis daquilo que se aspira e, a este nível, a pintura tem sido uma das mais fortes criadoras de histórias, não só por se impor a outras formas de visualidade, mas também por criar um passado único, um lugar fixo ao qual se pode retornar para projetar o futuro toda vez que o presente sacode essas construções. Todo o capital simbólico que a representação pictórica destila é capturado a nível nacional naquilo que representam as galerias de arte europeias, também à escala regional ou local, todas elas devedoras do mesmo roteiro hegemónico.
Podemos rastrear esses mecanismos nos gêneros de pintura – paisagem, retrato, natureza morta – que naturalizamos como verdadeiros e que carregam consigo critérios de superioridade e individualidade ligados à nossa forma de organizar o mundo. Os processos de colonização importaram e impuseram essas formas de “ver”, e nesses outros territórios essas imagens foram retrabalhadas e voltam ao seu lugar de origem, criando agora interferências e lugares críticos de onde podemos sair dessa “normalidade” para compreendermos como uma peculiaridade.
…
I
Terra Virgem/Paraíso Perdido
Tierra Virgen é o título da primeira sala que esta pinacoteca, esta galeria de arte, apresenta. Ao entrar, parece que este início foi conectado pela artista com o espaço com que encerrou sua exposição Buen Gobierno, em Madri, em 2021. Naquela ocasião, depois de percorrer os corredores superiores do espaço encarnado pelo Gabinete de Incomodidades Coloniales, se mostravam imagens pintadas de fragmentos de huacos pré-colombianos, cerâmicas que dormem nos depósitos do Museo de América, em Madri, de onde raramente saem à luz. A exposição terminava com a inclusão de uma nova pintura da artista que restituía a primeira da série das chamadas pinturas de castas do vice-rei Amat⁹, já que esta nunca é mostrada publicamente devido ao seu mau estado de conservação. Nesta pintura intitulada Yndios infieles de Montaña, um missionário com uma longa barba, uma bengala na mão e um hábito estende a mão a um casal com um filho. Junto a estes protagonistas, a artista acrescentou na parede o texto que acompanhava os fac-símiles das placas de Flora de la Real Expedición Botánica del Nuevo Reino de Granada (1783-1816), publicados no mesmo ano da inauguração do Museo de América, 1954, auge da era ditatorial do General Franco, com o título de Paraíso perdido. Podemos nos perguntar: perdido? Para quem? O regime fascista, através da defesa do passado imperial das colônias, sempre se interessou em suscitar esta ideia de perda, retomando inclusive aquela horrível expressão quando se quer manifestar resignação ou minimizar a importância de um problema ou retrocesso: “mas se perdeu em Cuba”. A verdade é que o casal parece que vai entrar nesta sala da Tierra Virgen para defender a sua terra, aquela que os conquistadores fizeram parecer que não pertencia a ninguém. Aquela terra nullius da qual parecia que poderiam extrair, liquidar sem limites ou nela empreender o que o imperialismo, o eurocentrismo e o capitalismo levaram a cabo até hoje. Apenas uma informação para ser mais objetivo: dos estimados 61 milhões de habitantes que estavam na América antes da chegada de Colombo, cerca de 55 milhões morreram durante as primeiras décadas da colonização européia. Isto produziu uma regeneração geral das florestas americanas, à medida que os ameríndios deixaram de cultivá-las, reduzindo assim a presença de carbono na atmosfera. O ano de 1610 é, portanto, a referência como limite inferior de concentração de carbono, marco zero do Antropoceno¹⁰. Por isso, a homogeneização das culturas e, portanto, dos ecossistemas, modificação que a colônia impôs à paisagem americana, em muitos lugares é, nem mais nem menos, a causa da quebra da biodiversidade do local.
Tierra Virgen mostra uma série de pinturas realizadas por Gamarra Heshiki e fazem referência ao atual território espanhol retomando uma série de obras pictóricas de paisagens que pertencem a diferentes museus espanhóis e remetem ao território espanhol atual, bem como as antigas colônias da América Latina, das Filipinas e do norte da África. Da mesma forma que acontecerá nas próximas quatro salas desta pinacoteca, a narrativa deste projeto elabora um ciclo contínuo entre a construção e a deterioração. Por isso, muitas das pinturas são apresentadas como esboços, poucas como obras acabadas e algumas em estado de permanente restauro. A História continua a ser construída, ela não é uma entidade fechada, e os processos de investigação, visibilização e reparação ajudam a modificar as noções monolíticas de uma história. A materialidade de cada uma das obras é uma metáfora das responsabilidades institucionais, que na história do Ocidente são inseparáveis da ferida colonial. Em cada pintura a artista combina diferentes temporalidades, passando do passado para o presente e vice-versa, inclusive aponta para uma certa futuridade ficcional que impulsiona uma mudança de consciência no espectador, em busca da sustentabilidade que nos impele na vivência contemporânea sob o prisma da ecologia.
Em todas estas pinturas observaremos como a colonização europeia das Américas produziu uma forma violenta de habitar a terra que rejeita a possibilidade de um mundo com um outro não europeu, em definitivo, um habitar colonial como altericídio, adotando a tese de Malcom Ferdinand que também afirma: “Longe de ter como único objetivo a ‘manutenção da vida humana’, o habitar colonial tinha como finalidade a exploração comercial da terra. Foi a possibilidade de extrair produtos para fins de enriquecimento que ‘deu origem à ideia’ de ‘habitar’. Pressupõe esta relação de exploração intensiva da natureza e dos não-humanos”¹¹.
É por isso que Gamarra Heshiki retira estas visões romantizadas de pintores como Frans Janszoon Post, o primeiro artista europeu a pintar as paisagens das Américas durante a colônia holandesa no Brasil. Ou as cenas idílicas como Paisage Tropical ou Paisage sudamericano (1855 e 1856) – ambas no acervo do Museu Nacional Thyssen-Bornemisza – do estadunidense Frederic Edwin Church, que também idealizou essas paisagens através da tradição das cenas pastorais como herdeira do Romantismo. Em alguns destes casos as imagens são repetidas, espelhadas, até triplicadas, para mostrar o próprio artifício da criação e exotização destas paisagens, muitas delas não pintadas in situ.
Para contemporanizar estas visões e trazê-las criticamente para o presente, a artista sobrepõe a estas pinturas citações de escritores, pensadoras ecofeministas ou intelectuais de diversas latitudes que, defendendo a Mãe Terra, nos convidam a destacar os matricídios da sociedade capitalista, para percebermos as consequências atuais relacionadas com a gestão dos recursos primários, a crise ecológica e o cuidado indígena da terra. Do filósofo indígena e ativista ecológico Ailton Krenak às acadêmicas que se interessaram pela saúde e ecologia da América Latina como Nancy Leys Stepan. O contraste dessas imagens idealizadas e o conteúdo desses textos nos faz imediatamente vê-los com outros olhos. Afasta-nos dos óculos do romanticismo e do academicismo pictórico como se fossem símbolos da verdade e inevitavelmente nos deixa nos rastros erosivos que o homem deixou desde a colônia até os dias de hoje, maltratando de uma forma ou de outra esta paisagem e seus mal chamados de “recursos”, na tentativa de engolir vorazmente a realidade e o contexto de diversas comunidades e habitats humanos e não-humanos, como evidenciado pelo texto de Krenak na tela, ao expor o estado de orfandade em que nos está deixando a terra devido aos resíduos da atividade industrial e extrativista¹².
Noutras ocasiões, a artista mostra a perpetuidade da deterioração colonial não com palavras, mas através da sobreposição de imagens ou da sua ocultação, e convida-nos a confrontar as causas da destruição acelerada pelas mãos da modernidade. Como acontece tanto na El Marco del Paisaje IV (Vista de um aterro de plástico na costa de Almería) como em El Marco del Paisaje V (Vista de um aterro de roupas usadas no deserto do Atacama), ambas de 2024, onde pratica uma mise en abisme do que aconteceu. Nestas pinturas a artista cria uma espécie de abismo – algo que nos intriga e ao mesmo tempo nos assusta. Para isso, utiliza camadas sobrepostas de imagens de outras pinturas, entre as quais uma paisagem de Church, um desenho de um sepultamento nas Ilhas Vanuatu – atribuído a Fernando Brambila, que faz parte dos desenhos da expedição Malaspina realizada em finais do século XVIII –, uma imagem do famoso Códice de Trujillo sobre a província homónima do sul da Espanha, e uma paisagem norte-africana de Fortuny do século XIX. Termina na superfície com uma imagem contemporânea tirada dos meios de comunicação em que os plásticos das plantações de Almeria, na Espanha, inundam e contaminam a paisagem. Serão necessários séculos para que esta massa de lixo fotografado seja absorvida pela terra, com o consequente veneno que produz para os alimentos que mais tarde crescerão. Estas imagens sobrepostas apresentam-se como extratos de colonialidade, camadas de erosão e representação, em muitas vezes como modo de apropriação, uma forma de apropriar-se infinitamente daquele território, até chegar ao resultado, que em muitas ocasiões, como em El Marco del Paisaje V, retorna após a imagem distópica da imprensa do Deserto do Atacama à imagem da La Villa Imperial de Potosí, de 1755, pertencente à grande tela que se encontra no Museu do Exército de Toledo (sintomático que se encontre uma imagem deste tipo num museu militar), o que mais uma vez levanta a questão da pilhagem, do abuso que desde os tempos coloniais permaneceu entre o ambiente europeu e o contexto latino-americano. Uma imagem que se repete nesta sala, pois a importância da mesma demonstra toda a própria continuidade extrativista.
Em Tierra Virgen VII (Sequía y saqueo, mina de Potosí), 2024, a artista pinta novamente este mapa, mas desta vez para destacar os problemas da extração de lítio na mineração contemporânea por estar ligado ao urânio em sua extração, além de ser material radioativo, o método de evaporação utilizado implica uma enorme perda de água e um risco de salinização do solo, o que ameaça as frágeis zonas húmidas da Puna e dos Altos Andes. Assim é como as pinturas de Gamarra Heshiki condensam o sentimento coletivo em defesa do território; já que a artista relaciona a riqueza da prata extraída com o que a água significa hoje. Além disso, o Cerro de Potosí – perfil da cidade que está a seus pés – é coroado por uma representação dos pontos cardeais da pintura original, mas agora está coberto por uma espécie de manto de fios de prata, navegando entre a ideia fantasmagórica do que foi projetado e do que foi esta cidade e a proteção da Virgen del Cerro como representação da pachamama que os primeiros pintores da escola cuzquenha representaram de forma sincrética entre as duas crenças e cosmogonias (cristã e indígena). Mas o mais interessante desta nova pintura é que ela inclui as proclamações das manifestações contra a extração de recursos naturais nos Andes, nas quais o escudo da cidade é substituído pelo slogan “Lítio para hoje”. Fome para amanhã” e no qual podemos observar as atrocidades que a sociedade capitalista tem cometido em relação ao direito à água e às reivindicações de ativistas e manifestantes, que aqui se refletem nos lagos ou espaços aquíferos que a pintura original possui. Todas essas reivindicações estão diretamente relacionadas com o que Félix Guattari chama em sua ecosofia de “Capitalismo Mundial Integrado”¹³, que revela os processos pelos quais os interesses financeiros de algumas empresas – da Monsanto à Bayer, passando por muitas empresas mineradoras ou petrolíferas – ditam ao resto do mundo as formas violentas e desiguais de habitar a terra¹⁴. ✱
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¹Número restringido por Decreto Real de 1697 devido aos danos que a sua utilização nas minas causou à atividade agrícola na zona de Charcas. Ver Mariana C. Zinni (2021), “Poder y representación en las fiestas efímeras: la entrada triunfal en Potosí del Virrey – Arzobispo Morcillo”, Revista Razón Crítica, n0 10.
²Não esqueçamos que o Museu da América, de Madri, foi fundado em 1954 sob a ditadura do General Franco, que através da sua criação tentou combinar o seu regime nacional fascista com o esplendor do imperialismo espanhol como parte de uma enriquecedora missão cultural, econômica e evangelizadora imposta que, infelizmente, continua até hoje.
³No contexto brasileiro, os garimpeiros são garimpeiros ilegais que utilizam máquinas como monitores hidráulicos em busca de aluvião e mercúrio como substância para amalgamar ouro. Ambos os usos prejudicam gravemente o meio ambiente e a saúde de muitas comunidades indígenas. Às vezes, grandes empresas transnacionais esperam isso. eles conseguem uma grande veia para comprar ações em concessões mineiras de legalidade duvidosa, como as concedidas em áreas protegidas. O impacto ambiental do desmatamento e dos movimentos de terra que provoca são imensos: uma tonelada de terra e sedimentos removidos chega a cinco gramas de ouro. Se usam cianeto em vez de mercúrio, a situação agrava-se ainda mais.
⁴Agustín Pérez Rubio (2021), Copiar a história sem véus. Notas sobre a decolonialidade no Buen Gobierno, de Sandra Gamarra Heshiki, em Agustín Pérez Rubio, Buen Gobierno, Madrid, Comunidade de Madrid. Serviço de Documentação e Publicações.
⁵Diana Fuss e Joel Sanders (2012), An Aesthetic Headache: Notes from the Museum Bench, em Johanna Burton, Lynne Cooke e Josiah McElheny (eds), Interiors, Nova York/Berlim, Center for Curatorial Studies, Bard College/Sternberg Imprensa.
⁶Clémentine Deliss (2023), O museu metabólico, Bilbao, Caniche Editorial, p. 17.
⁷Refiro-me tanto ao LiMac como a algumas de suas instalações, como Chakana, 2015-2021, como museu arqueológico andino simulando uma huaca, conforme realizado na exposição Buen Gobierno. Para mais informações sobre o LiMac, consulte o site: li-mac.org/es/about-2/about-limac/ e a entrevista com o artista nesta publicação.
⁸Rita Laura Segato (2005), Santos e Daimones. O politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetípica, Brasília, Editora UnB.
⁹Série de vinte pinturas encomendadas pelo vice-rei Manuel Amat y Junyent (1761-1776) para dar a conhecer na Europa as misturas raciais existentes no Vice-Reino do Peru; representação formal e patente do racismo estrutural que o Império Espanhol promoveu nas colônias, pois, dependendo da cor da pele e da pureza do sangue, os indivíduos tinham maiores benefícios, tanto sociais quanto econômicos, na escala piramidal, no que o sangue cristão e a pele branca estavam à frente. Este conjunto de pinturas integrou inicialmente as coleções do Real Gabinete de História Natural (1776) e posteriormente do Museu Nacional de Ciências Naturais, até que a sua secção de Antropologia, Etnologia e Pré-história foi desmembrada para formar o atual Museu Nacional. de Antropologia em Madri.
¹⁰Simon L. Lewis, Mark A. Maslin (2018), O Planeta Humano: Como Criamos o Antropoceno, New Haven, Yale University Press, pp. 147-187.¹¹Malcom Ferdinand (2022), Uma ecologia decolonial: pensando a partir do mundo caribenho, São Paulo, Ubu Editora, p. 50.
¹²Palavras extraídas da citação de Ailton Krenak encontrada na pintura Terra Virgem IV (Reverso do Rio Magdalena), 2024.
¹³Félix Guattari (1990), Las tres ecologías, Valencia, PRE-TEXTOS.
¹⁴Parafraseando o já acima citado no (11), Malcom Ferdinand.