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Um show telúrico

Tabatinga
Tabatinga, no litoral sul do Estado da Paraíba, Brasil, preserva a bela toponímia de origem indígena que significa argila branca. Imagem de arenito com matriz de caulim e migração de ferro das suas falésias vivas
Tabatinga
Tabatinga, no litoral sul do Estado da Paraíba, Brasil, preserva a bela toponímia de origem indígena que significa argila branca. Imagem de arenito com matriz de caulim e migração de ferro das suas falésias vivas

Na Paraíba, um espetáculo geológico revela-se fascinante com as argilas coloridas que afloram no litoral. Nascidas com texturas especiais e jogos tonais, as cores vão de um vermelho intenso, passando por amarelos, azuis, rosas. Elas seduzem. As falésias brasileiras deixam os estrangeiros extasiados, porque em alguns países, como a Inglaterra, elas são totalmente cinza, pela presença do chumbo. Definitivamente, o Brasil é colorido desde suas entranhas.

O território brasileiro tem grande reserva de utopias, e o paraibano abrange visões heterogêneas de saberes geológicos, artísticos e institucionais. Marlene Costa de Almeida, artista plástica e pesquisadora, conviveu com essa paisagem desde criança e nunca se cansou de admirá-la. Ao contrário, quando já formada em filosofia decidiu dedicar-se ao estudo e à pesquisa das argilas que afloram nas falésias vivas no leste do estado, e que o mar vai dragando muito lentamente. O Cabo Branco, o ponto mais setentrional do Brasil, já perdeu de 20 a 30 quilômetros desses paredões durante milhões de anos. Com ventos, sol a pino, calor excessivo e até chuviscos, Marlene já caminhou por vales, planícies, morros e até mesmo em beiras de estradas, sempre na busca de uma nova cor, do tom impossível, de um novo estudo sobre o território escolhido.

Seu trabalho pode ser entendido como sistemas provisórios que se transformam a cada expedição a campo. A artista plástica/pesquisadora começou atuando diretamente no litoral paraibano, na chamada Formação Barreiras, depósito sedimentar mais importante de sua pesquisa. “Com o passar do tempo, meu trabalho expandiu-se para o interior e depois para outros estados brasileiros”. Muitas áreas foram visitadas com a sua equipe, composta por José Rufino, geólogo e artista plástico (filho de Marlene) e por Antonio Augusto de Almeida, engenheiro, ex-professor de geologia na Escola Técnica (seu marido). Com esse grupo afinado ela vem pesquisando dezenas de locais, guiada pela riqueza policrômica de falésias coloridas que formam a unidade geológica que se estende desde o estado do Pará até o Rio de Janeiro. Sobre ela estão assentadas, entre outras cidades, João Pessoa, Olinda, Natal.

À maneira de um diário de viagem, Marlene, aos 80 anos, continua em campo, estudando cada vez mais e muito tranquila. Parece seguir a Internacional Situacionista, movimento de crítica social, cultural e política de esquerda, ativo na década de 1960, que aconselha seus adeptos a produzirem coisas que lhes deem prazer e não as que podem escravizá-los. Suas férias e as de José Rufino, muitas vezes, foram passadas nas expedições que resultaram em obras que problematizam a natureza e a condição física dos materiais encontrados. “Meu trabalho envolve geologia, química, cartografia porque, para se chegar a um resultado positivo, é preciso conhecer não só profundamente os materiais, mas também saber como devem ser manipulados, afinal cada um tem as suas especificidades”. Todo elemento coletado é classificado, manipulado e guardado em pequenos vidros em seu ateliê em João Pessoa que logo fará parte do museu Terras Brasileiras, que está sendo idealizado. Essa longa pesquisa conta com o apoio da Universidade Federal da Paraíba e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), e, ainda neste ano, será transformada em livro.

Em seu ateliê, Marlene faz uma série de pinturas, algumas registram terras em erosão e vegetações locais, que se transformam em paisagens leves, mas críticas. Tais registros nascem a partir de um fluxo de imagens que mudam a partir de outras, até mesmo de galhos e folhagens presentes no ateliê. Nas esculturas seu trabalho diversifica-se, e vale citar a instalação Varas de sombra, composta de tubos de tecido de algodão cru, costurados e enchidos com argila. Como Marlene mesmo define, “essa instalação se reporta à primitiva forma de medir o tempo, com as sombras, modo anterior às clepsidras (relógio de água, um dos primeiros sistemas criados para medir o tempo) e às ampulhetas”. A areia colocada nos tubos fechados não escorrega pelas ampulhetas e alude a uma das vontades mais antigas do homem: parar o tempo. De caráter serialista, os tubos, que se repetem, podem ser produzidos com vários metros, o que impacta quando são instalados em grandes espaços, como aconteceu na Alemanha.

No campo da escultura há peças de grande porte realizadas com celulose e pigmentos naturais que ganham formas orgânicas. Uma série de placas de celulose circulares obtém protagonismo pela materialidade pictórica das densas camadas de pigmentos. Neste ano ela abriu uma galeria, o Escritório de Arte Costa e Almeida, localizada em Bananeiras, em um dos lugares históricos da cidade, onde ela nasceu, com uma exposição de seus últimos trabalhos. Sob o título Copaóba, reuniu obras de grandes dimensões com pinturas em têmpera. Ao visitar a mostra, o crítico Marcos Lontra escreveu: “Todas as paisagens construídas por Marlene têm por objetivo apresentar a cada um de nós a fisicalidade e a transcendência das terras do mundo e com isso dar sentido e beleza a esse sopro, a esse encantado e pequeno lapso de tempo que constitui a vida humana nesse planeta, nessa terra”.

Olhando pelo retrovisor, a artista não sabe precisar em que momento decidiu viver para essas empreitadas. “Não sei se eu estava no ateliê, olhando para uma tela em branco e pensei: eu não quero mais essas tintas, eu preciso ir a uma barreira buscar terra para fazer uma tinta especial. Ou se estava no Cabo Branco, onde vi uma terra linda e decidi levar para o ateliê e fazer uma tinta”. De qualquer maneira, o Cabo Branco, esse ponto mais setentrional do mapa brasileiro, é o marco afetivo de sua obra. Marlene não leu Lucy Lippard, a crítica de arte estadunidense, mas, como ela, enfatiza a necessidade de estabelecer relação singular com o entorno, para dar conta da imaginação geográfica.

O desejo insaciável de descobertas foi a força motriz para ampliar sua pesquisa, que ela só foi entender muito tempo depois. “Além de pesquisadora, esse trabalho me tornou colecionadora de terras”. Marlene fala do estudo das cores como algo muito amplo, e que começou com os filósofos da antiguidade. “Eles ao mesmo tempo estudavam medicina, farmácia, geologia, geografia. Esses cientistas anotavam não só uma cor no códice, mas também a receita de como prepará-la e, com o mesmo material, ainda registravam como fazer um remédio”. Essa mistura de ciência e cultura está no começo do estudo das cores que se move num campo muito vasto. “A química tem importância decisiva, porque temos que saber o que é o material e como aquele material se transforma”. Para ela a alquimia também tem seus encantos porque a ideia de transmutar as coisas, de transformá-las de um modo mais poético, é mágico. “Aristóteles falou das cores, assim como Vitrúvio, Plinio, o Velho, muito antes de Cristo. Para mim, a filosofia estrutura tudo na vida de uma pessoa.

Se hoje eu fosse recomeçar tudo, escolheria de novo a filosofia para poder ser artista e pesquisadora”. Marlene revela que sua estrutura ideológica também vem da filosofia. Ela sempre foi uma notória militante política de esquerda.

A sabedoria ancestral dos indígenas é exaltada por ela ao lembrar que alguns povos originários trabalham com a argila onde estão assentados e nomeiam seu território pela cor do solo. “A argila da região de Tabatinga, que é um nome indígena, quer dizer terra branca. A de Tauá significa terra colorida e apresenta uma gama infinita de cores. Há muitos nomes de territórios decorrentes da coloração do solo”.

O museu que ela pretende criar em João Pessoa, com todos seus achados e estudos, será uma extensão do seu trabalho que agora se conecta com o resto do mundo. “Desde o início de minha pesquisa, contei com fontes maravilhosas. Hoje a internet potencializa ainda mais as minhas buscas”. Marlene cita grupos de estudos no Chile que fazem um estudo importante sobre as argilas. “Em Portugal também há pesquisadores com bons estudos de pigmentos. Atualmente temos a possibilidade de discutir o trabalho com um olhar muito mais amplo”.

Com todas as mudanças climáticas violentas, pergunto se as cores também foram modificadas nesses mais de 50 anos. “Não, porque 50 anos em geologia é um tempo muito curto. No início da década de 1980, na Chapada do Araripe, no Ceará, encontrei argilas verdes, muito difíceis de serem localizadas. Muito tempo depois voltei depois ao mesmo local e encontrei a mesma formação ainda com as argilas verdes que eu havia coletado 40 anos antes. O tempo geológico é lento, um tempo diferente”.

O ateliê de Marlene causa espanto a qualquer pessoa não familiarizada com a geologia e acostumada a pensar a terra com a cor marrom. Eu mesma conheci a coleção nos anos de 1980 e me impactei. Seu acervo de pigmentos colocados em frascos já passa dos milhares e ela não pretende parar. Cada vidro é uma janela para o mundo fascinante da geologia e da história da terra. As argilas que compõem a coleção foram formadas ao longo de milhões de anos pela ação do vento e das chuvas sobre as falésias e formações rochosas da Paraíba. Com o passar do tempo, os minerais presentes nas rochas foram se depositando na argila, conferindo a cada camada uma cor e textura únicas. Os gregos chamam de paradoxo o que nós chamamos de coisas que maravilham, os materiais coletados e classificados são, na maior parte, do Nordeste, mas há exemplares de argilas de todo o Brasil. O conjunto é fundamental não só pelo valor estético, mas pela fonte de conhecimento científico, uma vez que guardam em seu interior amostras únicas de argilas com tonalidades buscadas incessantemente, com muita pesquisa e paciência.

A ideia de Marlene é, futuramente, deixar esse material, que também tem caráter pedagógico, em algum espaço público, para ter finalidade mais coletiva. “Também para que as pessoas que o visitem, conheçam e imaginem uma terra. Uma terra diferente, para a gente olhar, sentir e, sobretudo amar, e assim estaremos livres para sonhar”. ✱

Re-Nação

Na definição simples de “nação”, o Dicionário Houaiss fala em agrupamento político autônomo, que ocupa território com limites definidos, e cujos membros respeitam instituições compartidas (leis, constituição, governo). E, mais do que isso, que compartilha um mesmo idioma, raízes culturais, costumes, passado histórico.
No Brasil, estamos longe de poder ter uma definição de nação que alcance os indivíduos ou os cidadãos que nele convivem territorialmente. Para muitos, definitivamente, a ideia de nação está ligada à ideia de um patriotismo desenvolvido por uns, para si mesmos.

A nação dos brancos é fundamentalmente dos brancos, que acumularam dinheiro e poder baseados no capital predador. Tudo que veio à tona, nestes últimos meses – sobre as práticas do garimpo ilegal em comunidades indígenas, o ataque brutal às terras e aos rios amazônicos, assim como o resgate de inúmeros trabalhadores em condições análogas à escravidão, em fazendas agrícolas de várias regiões do país – desmente, definitivamente, que possamos definir o Brasil como nação.

É como se houvesse uma impossibilidade estrutural de nação. A Constituição Brasileira, que, por si só, também não seria uma salvaguarda dos cidadãos, é literalmente atirada ao fogo, e a realidade mostra o quão são frágeis as estruturas que a defendem.

Recorramos às palavras de Tadeu Chiarelli, no brilhante artigo desta edição O samba do branquelo doido (pág. 10): “Parte da classe média ‘branca’ brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina, como se fosse alemão, em São Paulo; como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que ‘deu certo’.

[…] Por essa necessidade de viver aqui, como se lá estivesse, é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o ‘nosso’ Marc Chagall; Portinari o ‘nosso’ Picasso, Fabio Assunção, ‘nosso’ Brad Pitt. A Avenida Paulista como a ‘nossa’ Quinta Avenida, e assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o ‘nosso’ Donald Trump.”

Por outro lado, aqueles entre nós que entendemos a necessidade de refundar a nação, pensando-a como inclusiva, desenvolvida e solidária, começamos por onde podemos.

A ideia de defender a criação de políticas públicas inclusivas, respeitosas ao outro, e a construção de ambientes capazes de proporcionar a liberdade, são comentados em texto de Fabio Cypriano, mostrando o quanto é possível fazer acenos a uma refundação dessas políticas no âmbito da cultura.

Alguns exemplos já estão acontecendo e, assim como Sandra Benites, curadora indígena, foi nomeada para a direção de artes visuais da Funarte, Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília, foi empossada como Diretora Geral do Arquivo Nacional. Trata-se da primeira mulher negra que assume o cargo de direção do órgão, em 185 anos. Um passo enorme no apoio à pesquisa, gestão e democratização de documentos e do acesso ao conhecimento.

Em São Paulo, a inauguração da Pinacoteca Contemporânea, um projeto desejado desde 2005, longe de meramente agregar mais um equipamento cultural à cidade, trouxe um ganho exponencial para sua cultura. Foi um sopro de ar, reconhecido por todos os presentes. Maria Hirszman conta, nesta edição, todos os detalhes do projeto.

O prédio, pensado como um museu aberto, ressignificou o Parque da Luz, no Bom Retiro, o mais antigo parque público do município, construído em 1825, e tombado pelo CONDEPHAAT em 1981. O novo espaço expositivo se coloca num diálogo amoroso com a Pinacoteca de São Paulo, a Pina Luz, propiciando um novo passeio para a cidade.

Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo desde 2017, ressaltou, em seu discurso de recepção aos convidados: “Como dizem os arquitetos Paula Zasnicoff e Carlos Alberto Maciel, responsáveis pelo projeto, o museu deve ser um ‘oásis’.

[…] A Pina Contemporânea não é apenas uma ampliação de área expositiva, mas a oferta de outras maneiras – contemporâneas – de contato do público com a arte e com a cultura. A biblioteca da Pinacoteca, uma das maiores especializadas em arte brasileira do país, está instalada ao nível do parque, com acesso direto para todas e todos.”

Na capa desta arte!brasileiros, os dragões do acreano Chico da Silva nos lembram que temos uma luta permanente a perseguir, e a arte nos ajuda nessa peleja. ✱

O samba do branquelo doido

Jacob A. Chansley
Jacob A. Chansley, o “viking” da invasão ao Capitólio, nos EUA, em 6 de janeiro de 2021.

O que ocorreu no dia 8 de janeiro deste ano na Praça dos Três Poderes, em Brasília – a ação em si e seus performers – já produziu várias reflexões, e estou certo de que muitas outras ainda serão realizadas. Afinal, aquele evento pode ser interpretado e adjetivado por vários pontos de vista que, mesmo somados, dificilmente darão a verdadeira dimensão do ocorrido.

O que se verificou no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal naquele dia pode (e deve) ser analisado em seu viés social e político como uma ação estratégica para criar condições para um novo golpe antidemocrático contra a sociedade brasileira, felizmente malogrado. Poder ser também um objeto de análises sociológicas e antropológicas, que busquem entender como e por que grupos aparentemente pacíficos da classe média brasileira – fundamentalmente “brancos” –, invadiram os Palácios da democracia do país como vândalos e como terroristas. [1]

Mas eu gostaria de atentar para aquele ocorrido por outra perspectiva. Gostaria de entendê-lo, e a seus atores, como um tipo de ópera bufa, uma paródia canhestra e cínica do que aconteceu em Washington, Estados Unidos, no dia 6 de janeiro de 2021, durante a invasão do Capitólio.

Homem travestido de ‘viking do Capitólio’
Homem travestido de ‘viking do Capitólio’, em Niterói (RJ), durante comemorações do 7 de Setembro, em 2021. Foto: Isabella Finholdt /Fotoarena/Folhapress

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Parte da classe média “branca” brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina como se fosse alemão; em São Paulo, como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que “deu certo”.

Por essa necessidade de viver aqui como se lá estivesse é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o “nosso” Marc Chagall; Portinari o “nosso” Picasso, Fabio Assunção, “nosso” Brad Pitt. A Avenida Paulista como a “nossa” Quinta Avenida, e, assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o “nosso” Donald Trump.

É neste sentido que o dia 8 de janeiro de 2023 foi o “nosso” 6 de janeiro de 2021; é neste sentido que a invasão dos palácios da Praça dos Três Poderes em Brasília, foi a “nossa” invasão do Capitólio.

Guardando a contundência de como a dimensão paródica daquele ato de 8 de janeiro de 2023 e entendendo tal dimensão como um drama, talvez possamos perceber que a conhecida frase proferida por Karl Marx pode assumir outros sentidos: se, para o filósofo alemão, a história acontece como tragédia e se repete como farsa, aqui na periferia, a farsa – e sua dimensão risível – é sempre trágica também, pois, afinal, a cópia – quando acompanhada da tentativa de apagamento simbólico do tempo e da história, (como veremos) – pode ser também profundamente dramática.

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Antes de entrar nas considerações sobre determinadas imagens da invasão propagadas pelas mídias, destaco alguns fatos ocorridos em janeiro de 2023 em Brasília para que não nos esqueçamos – e que fique bem gravado em nossas mentes – que aquilo tudo foi, em grande medida, um arremedo do ocorrido em Washington em 2021:

1 – O Capitólio – sede do Congresso norte-americano – foi concebido ainda no século 18 como um complexo de edifícios que, se por um lado faz referência a um passado greco-romano, ele se comporta como uma fortaleza, um bunker branco e inexpugnável. Já os palácios da Praça dos Três Poderes, criados no final dos anos 1950, embora tenham tido a arquitetura grega clássica como protótipo, comportam-se, antes de tudo, como locais vulneráveis, pensados a partir dos conceitos de acolhimento, integração e passagem.

2 – O Capitólio foi invadido e os palácios da Praça dos Três Poderes também. Porém, se o primeiro sofreu a invasão durante um dia de semana (sexta-feira), para tentar impedir a diplomação de John Biden (portanto, antes de ele assumir a presidência), os palácios brasileiros foram invadidos em um domingo à tarde, quando estavam vazios, alguns dias após Lula ter assumido a presidência.

3 – Donald Trump, antes da invasão do Capitólio, conclamou pública e pessoalmente seus correligionários a se dirigirem para aquela casa do Congresso, para rechaçar e impedir o ato que estava prestes a ocorrer. Jair Bolsonaro, por sua vez, sai do Brasil antes do término do seu mandato, parecendo ter delegado a seus apaniguados e sectários mais próximos o comando da operação do dia 8 de janeiro.

4 – Se após o pronunciamento de Donald Trump, seus partidários se dirigiram por livre e espontânea vontade rumo ao Capitólio, aqueles de Jair Bolsonaro foram conduzidos até a Esplanada dos Ministérios pela polícia local.

Assim, o que ocorreu em Washington tinha uma dimensão dramática, em grande parte orquestrada no calor da hora e da circunstância de um momento determinado da história norte-americana. Já o que ocorreu em Brasília, dois anos depois, foi um arremedo orquestrado para que o já ex-presidente Bolsonaro se tornasse o “nosso” Trump, um Trump de segunda ordem, é claro, mas tornado herói, o salvador da pátria.

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Uma figura que chamou a atenção durante a invasão do Capitólio foi um sujeito fantasiado de viking, pintado com as cores e as estrelas da bandeira norte-americana, como se estivesse pronto para a guerra. Por mais patético que aquele sujeito parecesse, algo em sua atitude precisa ser levado em consideração: fantasiado de viking, ele invocava – apenas para alguns norte-americanos, é claro – uma ascendência norte-europeia, um passado com um pé na origem etnográfica de alguns dos habitantes daquele país.

Pois nós também tivemos o “nosso” viking, surgido nas comemorações do 7 de setembro de 2021 em São Paulo, oito meses após o aparecimento do viking “original”, em Washington. Como uma espécie de prólogo do que ocorreria dois anos depois – ou como uma espécie de “abre-alas” de uma escola de samba que deu ruim –, nas comemorações bolsonaristas daquele dia 7 de setembro, o “nosso” viking refletia como um espelho distorcido o protótipo “deles”.

Porém, não podendo ser um viking, nem verdadeiro, e nem fake, (como o norte-americano), o viking canarinho optou por se transformar em um falso indígena. Um indígena com direito a pintura corporal verde e amarela, segurando uma placa com o nome do ex-deputado federal Daniel Silveira [2] e – pasmem! – um cocar branco, verde e amarelo nos moldes dos indígenas… apache! Sim dos apaches, aqueles dos bangue-bangues do cinema norte-americano.

Essa figura bizarra, o “nosso” viking – um falso indígena de pantomima –, ao encenar aquele episódio grotesco, simbolicamente anunciava o que viria a ocorrer na capital do país dois anos depois: o simulacro tupiniquim, a “nossa” invasão do Capitólio.

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É certo que o homem que destruiu o relógio do século XVII que D. João VI trouxe para o Brasil em 1808, realizou essa ação da mesma maneira que destruiu o móvel que sustentava a peça, a mesa e a cadeira que estavam ali por perto. No enredo de destruição geral que parecia governá-lo, nem o caráter precioso do relógio, tão raro, o fez parar ou o incentivou a destruí-lo especificamente. Não: ele acabava com tudo o que lhe aparecia à frente de forma “democrática”, nada parecia salvar-se de sua fúria.

No entanto, parece que existia naquele sujeito um vislumbre de consciência de que, de fato, aquele relógio não era – ou não deveria ser –, um objeto qualquer. E talvez tenha sido essa percepção que o levou a querer destruir a câmera de vigilância.

De qualquer maneira, ao arremessar o relógio de D. João VI ao chão, aquele homem buscou parar o tempo, transformando aquela invasão numa quebra, numa espécie de hiato.

Se os invasores do Capitólio visavam impedir a diplomação de Biden, conquistando de novo o poder para seguir em frente, os “nossos” invasores tinham outra meta. O interesse ali não era dar continuidade ao processo histórico, invertendo seu rumo (como os invasores “deles”), o propósito era detê-lo. Era instituir um final, um grau zero para que, na sequência, a elite reacionária tomasse conta do país. Daí a importância simbólica do relógio que pertencera a D. João 6º.

Daí também a importância simbólica da destruição das peças da galeria de imagens dos presidentes e da presidenta que ornava uma área do Palácio do Planalto. Arruinar aquelas imagens complementava a alegoria em que se transformou aquela invasão: deter o tempo, mas, igualmente, romper e destruir a história, o passado brasileiro – sempre o maior desejo bolsonarista.

A questão não era destruir a imagem de todos os ex-presidentes e da presidenta, a questão era retirar, dessa espécie de cronologia iconográfica, a imagem do “mito”. Uma iconoclastia seletiva. A imagem do sujeito meio atônito, meio parvo, segurando a fotografia de Jair Bolsonaro em frente às outras imagens, destruídas, diz muito sobre o que desejava aquela turba quando invadiu os palácios de Brasília.

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Não me interessa expressar aqui meu lamento pelo vandalismo cometido contra as obras de Emiliano Di Cavalcanti e outros artistas tão significativos. Não me interessa porque não consegui perceber, nesses atos de ataque às obras de arte, nenhuma diferença com que os arruaceiros e arruaceiras do 8 de janeiro destruíram cadeiras, vitrines e outros equipamentos. Parece não ter havido, entre eles, a capacidade de distinguir um bem precioso e raro de outro mais trivial. O que parece ter imperado ali foi a fúria destrutiva, preservando apenas a imagem do “mito”.

Se os “nossos” vândalos destruíram objetos de arte e objetos comezinhos, se defecaram e urinaram nos palácios da democracia brasileira, os vândalos “deles” foram menos destruidores dos símbolos e, ao que se sabe, nem um pouco escatológicos. Não se trata aqui, é claro, de estabelecer uma hierarquia, afirmando que os manifestantes “deles” foram mais civilizados do que os nossos. Trata-se apenas de chamar a atenção para o fato de que a farsa pode ser ainda mais nefasta e dramática, quando tentam repetir (e calar) a história. ✱


Referências
[1] Sim, terroristas. Quem toca o terror com rojões, barras de metal etc., e, ainda por cima, rouba armas do Gabinete de Segurança Institucional, é terrorista.
[2] Sim, Daniel Silveira, aquele que, em público, ajudou a destruir uma placa em homenagem a Marielle Franco, vereadora executada com seu motorista na cidade do Rio de Janeiro já faz anos, sendo que até hoje não se sabe quem foi o mandante do crime.

Ibram mira a participação social

De todas as instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, uma das que vão recomeçar sua atuação sob a gestão de uma educadora de carreira é o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). A escolhida para a presidência do Ibram, no dia 7 de fevereiro, é Fernanda Santana Rabello de Castro, que atuou na área educacional do Museu da Chácara do Céu desde 2010. Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com experiência na rede de educação básica do município de Teresópolis e do estado do Rio desde 2006, Fernanda estava exercendo o cargo de diretora substituta do Museu Histórico Nacional. Ela é especialista em História e Cultura da África e do Negro no Brasil pela Universidade Candido Mendes (UCAM), mestranda em Políticas e Instituições Educacionais na Universidade do Rio e Coordenadora do Grupo de Trabalho de publicações da Rede de Educadores de Museus do Rio. Fernanda terá um orçamento com R$ 21 milhões a mais do que aquele executado no ano passado para conduzir a política nacional de museus. Ela conversou com a reportagem da arte!brasileiros.

arte!✱ – O Ibram acaba de passar por uma gestão que chegou a impor notória ingerência de interesses religiosos, ideológicos, de aparelhamento político, em vez de priorização técnica. Houve inclusive a presença de grupos monarquistas em ação nos museus. Uma historiadora do Rio Grande do Sul chegou a recusar convite para assumir o Museu Histórico Nacional, por enxergar vícios no processo de nomeação para o cargo. Qual foi o prejuízo que a museologia nacional sofreu nesse período (inclusive com substancial perda de recursos) e o que está sendo feito para reconquistar o tempo e os esforços perdidos. Haverá um incremento no orçamento do Ibram (de quanto foi a perda progressiva nos últimos anos)?

Fernanda Santana Rabello de Castro – Em primeiro lugar, é importante considerar que essas afirmações poderiam ser feitas a respeito do governo anterior, mas não há evidências de que possam ser relacionadas diretamente à gestão do Ibram. A recusa da historiadora Doris Couto em assumir o cargo da direção do Museu Histórico Nacional se deu em consideração ao desrespeito ao processo seletivo e às normas que o regulavam. Assim como no caso das políticas culturais e das demais vinculadas ao então extinto Ministério da Cultura, o Ibram e o setor museal sofreram com cortes e contingenciamentos de recursos, reduzidos em até um terço se comparados a momentos anteriores, além de ter passado por desestruturação institucional no que diz respeito a sua estrutura organizacional, à realização de políticas públicas já consolidadas e à composição do quadro de servidores. O Ibram tem em 2023 um orçamento recorde, que chega a cerca de R$ 146 milhões. Esses recursos serão utilizados para a recomposição das políticas, para a reestruturação dos museus geridos pelo instituto, na perspectiva da participação e do cumprimento social do Ibram e dos museus brasileiros na retomada da democracia.

Qual é a principal orientação do novo Ministério da Cultura para a condução da política nacional nos museus da estrutura do Ibram?

O Ibram tem autonomia para gerir suas 30 unidades museológicas. No dia 2 de março) foi realizado o primeiro Seminário de Planejamento Estratégico do MinC, em que foram desenhados desafios e prioridades das políticas públicas de cultura, tendo em vista que a atuação de secretarias e vinculadas vai se dar num sentido comum. A principal orientação articulada neste Seminário foi a retomada da democracia, do diálogo e da participação social na construção das políticas públicas e da valorização da cultura.

Há museus em fase de reconstrução no país, como o Museu Nacional, cuja reabertura só está prevista para 2027. Como o Ibram vai atuar para entrar na coordenação dos esforços de reconstrução daquela instituição?

O Ibram não tem ingerência sobre museus que possuem gestão própria, como o caso do Museu Nacional, que é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuaremos como parceiros, atendendo às demandas apresentadas pela instituição, dentro das possibilidades institucionais.

Quais são as prioridades da nova gestão do Ibram – a atualização tecnológica, a reestruturação e modernização dos acervos, a inserção na nova ordem global: quais são suas prioridades?

Atuaremos em duas frentes principais: a reestruturação do Instituto e a retomada da participação social nas políticas públicas. Alguns dos desafios da reestruturação são a valorização do quadro de profissionais, a revisão da estrutura organizacional e do regimento interno do órgão, a estruturação tecnológica e a realização de obras e a implementação de planos de gestão de risco no patrimônio musealizado. No contexto da participação social, serão retomados mecanismos existentes de participação e ampliadas as possibilidades de atuação da sociedade civil na elaboração, implementação e no monitoramento das políticas setoriais.

Recentemente, a estrutura do Ibram transferiu um dos seus museus vinculados, o Museu de Biologia Professor Mello Leitão (MNPML), para a gestão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, na abrangência do Instituto Nacional da Mata Atlântica. Essa compreensão do escopo de cada instituição vai persistir em sua gestão ou haverá uma revisão da abrangência de cada museu com essas características (de biologia, por exemplo)?

Essa transferência foi realizada em 2014, tendo em vista tratativas políticas da época, considerando o perfil do museu e de sua gestão. O escopo do acervo e perfil dos museus do Ibram foi definido em gestões passadas. Quaisquer alterações que possam surgir no contexto atual serão alvo de debate entre as instituições, a gestão e sociedade, considerando aspectos técnicos e sociais. ✱

Força-tarefa feminina

Margareth Menezes
A Ministra da Cultura, Margareth Menezes, durante ato simbólico na reabertura da sede do MinC, em 24 de janeiro Foto: Filipe Araújo

A artista e curadora Naine Terena, que assinou a curadoria da pioneira mostra de arte indígena Véxoa: Nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (em 2020, reunindo 23 artistas e coletivos), é a nova diretora de Educação e Formação Artística da Secretaria Nacional de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura. A cientista política Layanne Lisa coordena a diretoria de Articulação e Governança dos Comitês de Cultura do mesmo ministério. A socióloga Leticia Schwarz é a subsecretária de Gestão Estratégica. A antropóloga Raquel Dias Teixeira é a coordenadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Iphan. A educadora Kelma Ferreira coordena o Apoio Administrativo do Ibram. A doutora em estudos étnicos e africanos Desiree Tozi é a nova diretora de Cooperação e Fomento do Iphan.

No novo Ministério da Cultura do Brasil de 2023, as mulheres não são apenas maioria, elas decidem. Em apenas dois meses e meio, Margareth Menezes mudou completamente os consagrados paradigmas de composição administrativa na cultura do Estado Brasileiro. No dia 3 de março, na Sala Cecília Meirelles, no Rio, Margareth deu posse à baiana Maria Marighella (neta de Carlos Marighella) na presidência da Fundação Nacional de Artes (Funarte) com um grande ato público no Rio de Janeiro, sonorizado pelo batuque ao vivo do grupo percussivo Tambores de Olokun, um rito que incorporou o antigo movimento #OcupaMinC, nascido em 2016, na resistência ao golpe de Estado contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ao anunciar a nova diretoria colegiada da Funarte, Maria Marighella comunicou que estava priorizando a paridade de gênero e montando “uma Funarte com mulheres no centro das decisões, incidindo no modo como vemos e fazemos as políticas”.

As mudanças, que poderiam se situar predominantemente no território da representatividade, vão muito além do simbólico: no último dia 7, por meio de uma portaria, Margareth Menezes criou o novíssimo Comitê de Gênero, Raça e Diversidade no ministério, com o intuito de produzir diagnósticos de ações que possam potencializar políticas de transversalidade afirmativa (e criar ferramentas e mecanismos a serem incorporadas definitivamente pelo Estado brasileiro). Quatro outros ministérios do governo Lula já integram o Comitê de Margareth. “O Brasil será um país melhor na medida em que respeitar, acolher e incentivar o desenvolvimento de todas as mulheres”, afirmou a ministra.

No plano prático, o novo MinC está mantendo seu foco principal no destravamento da ação cultural no plano federal. Na metade de abril, acaba o prazo que a ministra deu para um grupo de trabalho regulamentar a nova Lei Paulo Gustavo, que vai destinar R$ 3,8 bilhões para estímulo à cultura nos Estados e Municípios. A transferência, a maior em volume de recursos da História do país, já poderá começar ainda em abril.

Para fazer frente a essa demanda, que será de controle e fiscalização, além de acompanhamento, o Ministério da Cultura começou a recompor sua equipe de experts em incentivo e legislação. O retorno de servidores experientes, com largo conhecimento histórico e técnico das regras e normas que dão segurança jurídica ao setor de incentivo, está sendo minucioso.

Há alguns dias, Margareth recontratou o primeiro servidor que tinha sido demitido na gestão Mario Frias por questões ideológicas, Odecir Luiz Prata da Costa, um dos maiores experts em leis de incentivo do país. Costa fora exonerado por Frias assim que este assumiu a Secretaria Especial de Cultura do governo federal, em julho de 2020, a mando da chamada “ala olavista” daquela gestão, para que o antigo governo mantivesse centralizada a decisão sobre fomento, com regras não raras de exceção ideológica e censura. Servidor desde 1988, de perfil técnico, Costa se opôs à sanha persecutória, extremista e negacionista na condução das leis de incentivo e foi afastado.

Outra servidora reposta em suas funções foi Teresa Cristina Rocha Azevedo de Oliveira, nomeada como Diretora do Departamento de Fomento Direto da Secretaria de Economia Criativa. Essa reestruturação é considerada essencial para o acionamento não apenas da Lei Rouanet, que se encontra atrofiada (e soterrada por prestações de contas antigas), mas também das novíssimas legislações de incentivo que estão a caminho, a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc II, que destinarão cerca de R$ 7 bilhões para o setor.

Segundo o MinC, cinco milhões de pessoas trabalham na área cultural do país e geram cerca de 3% do PIB nacional. Um estímulo do tamanho do que se anuncia para 2023 e 2024 pode gerar milhares de empregos e acionar uma área econômica fundamental, que se encaixa na chamada soft economy (baseada na criatividade, no acesso, compartilhamento, na colaboração e confiança), sem os efeitos colaterais das indústrias pesadas e ambientalmente daninhas.

A Lei Rouanet será alvo de um novo decreto governamental, que deve sair até o final deste mês de março, com o intuito de fazer ajustes pontuais no texto – além do retorno dos planos plurianuais e anuais para instituições culturais, das ações continuadas e do fomento aos grupos artísticos estáveis, novos limites de valores para captação, gestão e cachês, será reativada a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).

Parte do mapeamento do potencial brasileiro de cultura estará a cargo da mais recente inovação do governo: a Secretaria dos Comitês de Cultura. A escolhida para pilotar essa experiência foi a socióloga e educadora Roberta Martins, ex-diretora de diversidade cultural da Fundação de Arte de Niterói (FAN). A gestora, que já teve sob sua administração no município de Niterói o Theatro Municipal João Caetano, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e a Companhia de Ballet de Niterói, tem agora por responsabilidade articular o provável sucessor dos Pontos de Cultura na vanguarda das ações governamentais.

O conceito dos Comitês pressupõe a existência de um núcleo em cada unidade da federação, formado por artistas, intelectuais, trabalhadores e trabalhadoras da cultura locais, sem vínculo com o governo. Será a própria comunidade refletindo e propondo estratégias de enfrentamento para grandes temas da contemporaneidade brasileira e global. Esses comitês, acredita o governo, permitirão um conhecimento mais profundo das demandas e necessidades de cada rincão do país, driblando a tendência centralista histórica do governo. ✱

Iphan vai resgatar atuação técnica

Leandro Grass assumiu a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Leandro Grass. Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

Leandro Grass, professor, sociólogo e mestre em desenvolvimento sustentável, gestor cultural e ativista ligado ao Partido Verde (PV) assumiu a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no dia 10 de janeiro. Grass tinha integrado o Grupo de Transição do presidente Lula, coordenando o Grupo Técnico de Desenvolvimento Regional.
A missão de Grass é complexa: restaurar a capacidade da ação do Estado brasileiro na proteção do patrimônio histórico nacional, tarefa que foi vilipendiada de todas as maneiras possíveis no governo de Jair Bolsonaro durante os últimos quatro anos. Bolsonaro chegou a exonerar em 2020 a então presidente do Iphan, Kátia Bogéa, a pedido de um empresário aliado. Grass concedeu a seguinte entrevista à arte!brasileiros:

arte!✱ – Recentemente, o Iphan exonerou 18 superintendentes de quase todos os Estados do país. Essa mega-exoneração mostra que havia uma contaminação generalizada no patrimônio histórico, não?

Leandro Grass – A gente tinha um conjunto de superintendentes que não estava nem um pouco em sintonia com a formação técnica requerida, com os princípios de republicanismo do patrimônio, com referências muito desconectadas das políticas nacionais. Para você ter uma ideia, havia pessoas de perfil monarquista, ou seja, antirrepublicanas, assim como alheias totalmente ao setor, influenciadores digitais, além de outras ligadas a igrejas locais. Essas estavam lá por um arranjo político dessas igrejas. Estavam desconectados do corpo técnico e da formação relativa ao patrimônio. Essa primeira leva de exonerações foi para dar um primeiro ajuste substancial, trocar por técnicos, especialistas. Agora, haverá uma segunda leva da área de gestão. Trocamos praticamente todos os superintendentes, faltam apenas dois.

E de quais estados são esses dois?

Alagoas e Paraná.

Outro aspecto visível da deterioração do serviço federal do patrimônio foi a perda substancial de recursos. É possível dizer qual foi o tamanho da perda nos últimos quatro anos?

Em despesas discricionárias a perda foi de algo em torno de R$ 70 a 80 milhões nos últimos quatro anos. Na transição de governo, o novo governo recompôs os valores que eram praticados em 2016.

Quais serão as prioridades de investimento em sua gestão?

Há um conjunto grande de planos de ação que estão sendo preparados em cada estado, cada região, e essas ações definidas em seus próprios locais é que serão prioridade de destinação de recursos.

O senhor falou que o patrimônio recuperou o orçamento que tinha em 2016. Mas, desde aquela época, muita coisa nova foi incorporada, tombada, o Iphan cresceu bastante.

Sim, são mais de 1,2 mil bens tombados, fora os tombamentos imateriais. Estamos buscando parcerias junto à iniciativa privada, assim como nos municípios e estados, para aumentar os recursos, as ações. E, claro, também recompor nossa capacidade de execução orçamentária.

Houve alguns casos em que o antigo governo colocou à venda o patrimônio tombado, caso de alguns parques estaduais como Jericoacoara, no Ceará.

A gestão dos patrimônios naturais está a cargo do IMCBio, muito embora alguns sejam tombados, como é o caso do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Como bem tombado, a gente tem a responsabilidade de acompanhar. Boa parte desse patrimônio está a cargo de universidades, por exemplo, que definem o plano de uso e a forma de gestão. O que a gente teve de forma mais aguda foi descuido, paralisação de análises, abandono. Houve algumas tentativas de destombamento, mas que (o antigo governo) não chegou a concluir por conta da ação do Ministério Público.

Houve um caso, notório, de uma interferência direta do ex-presidente, no caso daquele empresário de Santa Catarina, o dono da Havan, Luciano Hang, que teve os planos de construção de uma sede barrados pelo Iphan, e ele conseguiu que fosse demitida a presidente do Instituto. Como dar publicidade ao que aconteceu nesses casos, durante esse período, para fins de conhecimento público?

Olha, a gente pediu relatórios situacionais para todas as superintendências. Processos que porventura tenham se chocado com as normativas internas, com a legislação e as normas, nós vamos encaminhar para a procuradoria, para que sejam tomadas as medidas adequadas de responsabilização.
No caso do patrimônio imaterial, o governo anterior chegou a nomear um pastor evangélico no setor justamente para atingir o conceito de imaterial.
A gente buscou sanar isso colocando um técnico da área no lugar. É sempre a melhor atitude: devolver aos especialistas a condução da área.

Um dos atos desse servidor foi tentar boicotar o acervo de arte de matriz africana que foi destinada ao Museu da República, no Rio. Como sua gestão está tratando desse assunto?

É a Coleção Nosso Sagrado. Nos próximos dias, nós vamos publicar uma portaria rebatizando essa coleção, que era chamada de Coleção de Magia Negra, rebatizando oficialmente como Acervo Nosso Sagrado.

Quando ocorreu sua nomeação para a presidência do Iphan, houve críticas. Muita gente dizia que o senhor estava preenchendo um cargo de indicação política.

É natural que, depois de todos os traumas por que passou o serviço do patrimônio histórico, os servidores quisessem para a presidência um quadro interno. Mas eu não sou alheio ao setor, tenho informação na área das políticas públicas, acompanho há muito tempo as questões relativas ao patrimônio. A gente já sanou isso. Indicamos uma diretoria formada por servidores, colocamos servidores de carreira em superintendências. A questão já foi 100% superada. ✱

Em defesa do Patrimônio em risco

Urna funerária marajoara. Red List Brasil: Em defesa do Patrimônio em risco
Urna funerária marajoara (Pará, séc. 5-15). Foto: Cortesia Museu da Língua Portuguesa

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) divulgou em fevereiro a Red List Brasil, um documento que elenca as tipologias de bens culturais do país mais suscetíveis à comercialização ilegal. Criada em parceria com especialistas brasileiros, a Lista Vermelha traz exemplos de fósseis, arte sacra, mapas, livros e peças etnográficas e arqueológicas sob ameaça de tráfico internacional. O lançamento aconteceu no Museu da Língua Portuguesa, com a presença de Emma Nardi, presidente global do ICOM; da ministra da Cultura, Margareth Menezes, e de Renata Motta, presidente do ICOM Brasil e diretora-executiva do museu paulistano, entre outros.

As Red Lists são publicadas desde 2000 pelo ICOM. Hoje, 57 países estão cobertos pelos 20 documentos editados pela instituição. Alguns deles foram criados em caráter de emergência, como é o caso da recém-lançada lista que contempla objetos em risco da Ucrânia, país em guerra contra a Rússia. Roberta Saraiva, diretora do ICOM Brasil, destaca que, segundo levantamento feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de um total 1.974 objetos brasileiros desaparecidos, apenas 48 foram recuperados. Ainda segundo Roberta, a Interpol (The International Criminal Police Organization) aponta o Brasil como o 26º país com maior número de bens traficados no mundo.

“Desde os anos 1940, o Brasil tem uma legislação de proteção ao patrimônio robusta. Mas é um país com dimensões continentais e fronteiras muito porosas. Portanto, é sempre um grande desafio exercer o controle da saída desses objetos do território nacional”, avalia Roberta. “Um documento como a Red List é muito estruturante porque, além de seu uso prático, junto à Receita Federal e Polícia Federal, por exemplo, ele articula diferentes instâncias governamentais, especialistas na área do país, como o Iphan, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o MinC”.

A Red List Brasil, ressalte-se, não mostra objetos já comercializados ilegalmente. Mas aponta as tipologias mais em risco, por meio de fotografias e identificações fornecidas pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), pelo Iphan (MG e RJ), pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), pelo Museu de Ciências da Terra (MCT), pelas universidades Federal e do estado do Rio de Janeiro (UFRJ e UERJ), pelo Museu Nacional (MN) e o Museu Regional Casa dos Ottoni (MRCO). A arte!brasileiros conversou também com Sophie Delepierre, coordenadora do Departamento de Patrimônio do ICOM. Leia a seguir:

arte!✱ – O que motivou a criação da Red List Brasil?

Sophie Delepierre – Às vezes, há um equívoco de que o tráfico ilícito é apenas uma preocupação para regiões em crise e, embora seja verdade que o ICOM preparou Listas Vermelhas de emergência para países em situações de desastre, a comercialização ilegal de bens culturais afeta todos os países, e nenhuma região é poupada desse problema. Como em muitos países do mundo, o patrimônio cultural brasileiro também corre o risco de dispersão, destruição, roubo, saque e tráfico. O Brasil é um país vasto, com um rico patrimônio que representa suas diversas tradições culturais e históricas. Apesar das fortes leis de proteção, tanto em nível nacional quanto internacional, o patrimônio nacional continua em risco de roubo e exportação ilegal, com baixa taxa de recuperação.

Quando teve início o processo de elaboração da lista, e ele envolveu quantas pessoas, dentro e fora do país?

A ideia deste projeto remonta a vários anos, mas a preparação da Lista Vermelha de Bens Culturais Brasileiros em Risco começou em 2021 com a seleção de especialistas de todo o Brasil. Eles identificaram as principais categorias de patrimônio cultural em maior risco de acordo com três critérios: os bens culturais incluídos na Lista Vermelha devem ser protegidos pela legislação nacional; vulneráveis (ou seja, em risco de roubo e exportação ilegal) e em grande demanda do mercado de arte. Como muitos países, o patrimônio arqueológico do Brasil corre o risco de roubo de museus e saques de sítios arqueológicos, assim como suas instituições religiosas e seus artefatos de arte e serviços litúrgicos, materiais bibliográficos, itens de comunidades indígenas do Brasil e fósseis, cultural e cientificamente objetos importantes. Para discutir e analisar todos os componentes do patrimônio cultural brasileiro, o Comitê Nacional do ICOM no Brasil reuniu uma grande equipe de especialistas sob a liderança de um coordenador nacional que trabalhou diretamente com o Departamento de Proteção ao Patrimônio da Secretaria do ICOM em Paris.

O que acontece após o lançamento da Lista Vermelha Brasil?

No ICOM, costuma-se dizer que a publicação de uma nova Lista Vermelha representa 50% do trabalho realizado. Os restantes 50% centram-se na comunicação e divulgação para tornar a lista conhecida a nível internacional. O ICOM trabalha com sua rede de 50 mil membros em todo o mundo, bem como com parceiros internacionais como UNESCO, UNIDROIT, Interpol e WCO para distribuir as Listas Vermelhas o mais amplamente possível. Claro que seu principal objetivo é combater o tráfico e ajudar na devolução e restituição de bens culturais brasileiros exportados ilegalmente ou roubados, mas ela é também uma poderosa ferramenta de conscientização, com o objetivo de prevenir esse tráfico, alertando e educando sobre a necessidade de proteger o patrimônio.
O futuro dirá se esses objetivos de prevenção e restituição foram alcançados. Mas também é importante destacar o fato de que as Listas Vermelhas do ICOM são apenas uma ferramenta entre muitas outras. Para combater o tráfico, cada Estado deve ratificar e implementar convenções internacionais, como a Convenção da UNESCO de 1970 e a Convenção UNIDROIT de 1995, bem como estabelecer uma legislação forte e serviços dedicados juntamente com ferramentas operacionais. Somente a conjunção de todos esses esforços protegerá eficientemente o patrimônio cultural.

De todas as categorias listas, qual corre mais risco?

Guiados pelos três critérios de seleção de categorias, os especialistas brasileiros identificaram cinco tipologias em maior risco. Em uma segunda etapa, os especialistas selecionaram as imagens correspondentes que serviram para melhor representar os tipos de objetos. Todas essas categorias estão ameaçadas de extinção. No entanto, é interessante destacar que a arqueologia é uma categoria regularmente presente nas Listas Vermelhas do ICOM, pois a pilhagem de sítios arqueológicos é uma dificuldade compartilhada por muitos países. No Brasil, artefatos arqueológicos do período pré-colonial, principalmente da Amazônia, são os alvos mais frequentes, e incluem cerâmicas decorativas, como urnas funerárias, vasos e estatuetas, e artefatos de pedra, como pontas de flechas, lâminas de machado e pequenos pingentes.

O quão lucrativo é o mercado de comércio ilegal de tais bens culturais?

Nos últimos anos, o tráfico ilícito de arte e antiguidades tornou-se um grave problema de segurança global, que transcende fronteiras e cujo impacto vai muito além da perda de patrimônio material. No entanto, dada a natureza ilícita do tráfico de bens culturais e a falta de regulamentação geral do mercado, é extremamente complicado obter estatísticas confiáveis. O combate ao tráfico tornou-se um grande desafio que envolve monitoramento permanente, ações complementares de cooperação e desenvolvimento de instrumentos e ferramentas eficazes. Entre as soluções defendidas pelos especialistas, medidas de sensibilização e controle são essenciais na proteção do patrimônio móvel. É por isso que o ICOM elabora as Listas Vermelhas. ✱

Artes práticas

Lia-D-Castro
Falta nome da Obra, da série Axs Nossxs Filhxs, 2021

Arte para Lia D Castro é prática e técnica, ela ressalta, a todo momento, em sua conversa com a arte!brasileiros. Em suas criações, trabalha com óleo sobre tela, xilogravura, carvão vegetal, giz pastel seco, caneta e até esparadrapo. Arte, para Lia, também é processo. Na exposição A cumplicidade refletida, que a Galeria Jaqueline Martins apresentou até 18 de março – e que em breve segue para a sua filial em Bruxelas (Bélgica) – a artista mostrou pinturas e fotografias feitas ao longo de sete anos, em programas de sexo pago, com homens cisgêneros, heterossexuais, pretos e brancos, com idades de 18 a 25 anos.

Nesses encontros, a artista discutia transfobia e racismo, a partir da leitura de autores como Angela Davis, Chinua Achebe, Achille Mbembe, Toni Morrison e Lélia Gonzalez, entre outros. Transexual, negra, Lia lançou mão da prostituição como “ferramenta de diálogo”.
“Como mulher transexual, seria muito difícil fazer um chamamento para entrevistas com esses homens. Acabei utilizando aquilo que nos é dado de forma compulsória, que é a prostituição”, conta. “Então, de início, eles chegaram até mim pelo viés da prostituição. Pagaram-me o primeiro, o segundo e o terceiro encontros. A partir do quarto, falei que, ao invés de me pagarem em dinheiro, eles poderiam me pagar com informação, para a gente construir uma narrativa decolonial em que eu questiono como são as relações racistas para esses jovens”.

A artista conta que, dos quase 700 homens que passaram por sua casa, ao longo desses anos, chegou a um conjunto de 50 que aceitaram a sua proposta. Ela cita, como exemplo, um menino chamado Johnny, que ela identificou como racista, e com quem fez leituras de Angela Davis, nos intervalos entre o sexo, “para ele se reconhecer como branco agressor”. Como em todos os programas, Lia fazia anotações, gravava e depois transcrevia algumas conversas, que depois serviram de base para palestras feitas por ela. Uma assessoria de prevenção e combate ao racismo e à transfobia no mercado de trabalho, para empresas como plataformas de streaming.

“Esse foi um primeiro momento do projeto, em 2017, quando fui convidada pela Amazon, depois HBO, Amazon, Netflix, Instituto Goethe e algumas unidades do Sesc, para prestar essa assessoria”, explica a artista. “Depois de dois ou três anos, eu perguntei para eles como gostariam de materializar aquelas discussões e de ser retratados para o mundo, com que cores e tintas, porque sabiam que era artista plástica. Eles também tinham o direito de escolher o resultado final, eliminando, por exemplo, fotografias de que não gostassem”.

A partir daí surgiram as séries apresentadas em A cumplicidade refletida: com os jovens brancos, Seus filhos também praticam; com os pretos, Axs nossxs filhxs. Do projeto saiu ainda a série A travessia do Rubicão, sobre a terapia hormonal para sua transição e de outras mulheres transexuais, cerca de 800, a grande maioria prostitutas, com quem também conversou sobre aqueles temas, ao longo do mesmo período.

Com Davi, presente na série Axs nossxs filhos, Lia conta que falava muito sobre a ideia de construir afeto dentro de um espaço expositivo – a exemplo da própria galeria que expôs seus trabalhos. “Fomos criando novas narrativas, mostrando, por exemplo, que pessoas negras também podem estar dentro de um museu, ou lendo num sofá, numa sala que também tem obras de arte. De modo a gerar empatia, afinal, eles, os pretos, também vão a exposições, também leem”.

Materializadas as narrativas, as obras foram então assinadas pelos próprios rapazes, muitas vezes com seus próprios nomes. Em algumas delas, os jovens também selecionaram e escreveram trechos dos livros lidos nos encontros. Como Apolo, que colocou, na pintura que o retratava, a frase “aquele que é digno de ser amado”, título de um livro do escritor marroquino Abdellah Taïa.

Para falar da violência para o corpo que representa a terapia hormonal, Lia recorreu a naturezas mortas. Pintou jarros de flores, sobre um tecido branco, com um pano de fundo em preto. Nesta série, A travessia do Rubicão, Lia faz uma sequência de flores, que desabrocham e culminam com um buquê, dispostos numa “esquina” da galeria, “porque é nas esquinas que nós, mulheres trans, falamos, coletivamente, da terapia”, diz.

Há também autorretratos, em que Lia pinta seu órgão genital ou parte de seu peito. E torsos nus, em que o esparadrapo, material recorrente em suas criações, faz as vezes de uma camiseta, com que ela termina de se despir. A artista explica que o material simboliza “algo que protege o que já foi machucado um dia, e já está passando por uma reparação”.

Dentro da série Seus filhos também praticam, Lia traz um trabalho que considera romântico, Resíduo da noite anterior, feito com o jovem Bruno, com quem decidiu experimentar outro suporte: um lençol, ainda com os vestígios do sexo entre os dois. Já a série O tríptico do autorretrato, de que poucos aceitaram participar, traz outro experimento: em uma caixa, polaroides dos rapazes – que inicialmente fotografaram o pênis, mas depois passaram a registrar um pé, o peito, uma mão – são ladeados pelas camisinhas usadas na relação. Nos retratos, também estão os livros que os jovens haviam escolhido para discutir.

TRAJETÓRIA
Nascida em 1978, em Martinópolis (SP), Lia morou até os 20 anos em fazendas, no interior de São Paulo e de outros estados, porque seu pai trabalhava como agrônomo autodidata, segundo ela. Lia trabalhava na roça, ordenhava vacas, concluiu o segundo grau.
Em 2010, uma amiga a convidou para morar em São Paulo. Estava abrindo uma loja de artesanato e um ateliê, onde Lia passaria a dar aulas. À época, a artista já usava tela e tinta a óleo. Sempre desenhou e pintou, inspirada nas próprias atividades manuais e artesanais de seus pais. Estimulada a prosseguir seus estudos, desta vez no ensino superior, Lia fez o curso de artes visuais no Centro Universitário Ítalo Brasileiro, onde afirma ter se dado conta de como uma faculdade promove o “embranquecimento intelectual”.

Lia queixa-se que os professores citavam predominantemente artistas europeus e que, quando mencionavam os brasileiros, restringiam-se à Semana de 22. Formou-se quase aos 35, em 2016. Fez estágios na área educativa do Sesc e na 30ª Bienal de São Paulo, com curadoria de Luis Pérez Oramas. Lá, refletiu como seria possível deixar um lugar, com 4 mil obras, o menos opressivo possível para o público, dentro de uma construção, por sua vez, monumental.

Depois de formada, continuou na área educativa, desta vez no Sesc Pompeia. Foi a partir daí que iniciou suas pesquisas com os jovens. Em 2019, antes da pandemia, fez sua primeira individual com a série Axs nossxs filhxs, no Instituto Çarê, em São Paulo. Veio a pandemia e, conta ela, fez “muito dinheiro” ao abrir sua casa para a prostituição. Também foi convidada para fazer assessorias online, em meio às restrições sanitárias.

Lia termina sua passagem pela Galeria Jaqueline Martins com um convite para participar de uma coletiva de 200 artistas negros, no Sesc Belenzinho, em meados do ano. Mas seu projeto – ou processo – não terminou com a exposição finalizada em março. Lia conta que tem mais de 300 fotos, que ela pode transpor para a pintura, ou ainda textos, que também podem ser trabalhados artisticamente. O que já se viu, ela afirma, “é uma pontinha do iceberg do que estou criando para o mundo”.

Dos jovens com trabalhou e trabalha em seu projeto, afirma não cobrar nada a posteriori. “O meu trabalho, como pesquisadora dessa antropologia do ódio, é dar informação. O que eles vão fazer depois com isso, eu já não vou me responsabilizar. Mas eu faço uma prova com alguns”, conta. Ela dá como exemplo o jovem Emerson, que conhecera quando ele estava com 23 anos.

“Emerson era dos meninos mais ricos com que me encontrei. Lembro que ele contou de uma funcionária com quem teve sua iniciação sexual. E sempre falava dela como se fosse um abajur, que estava ali, para ser ligada ou desligada. Combinei com ele que, para voltar para minha casa, não bastava falar que era legal. Tinha de trazer para mim, no mínimo, um holerite anterior e posterior à nossa conversa. Com um aumento, um sinal de reparação histórica financeira, ao menos”, conclui. ✱

A Pina como praça pública

Pátio central da Pinacoteca Contemporânea concebido como um espaço de luz, transparência e convívio. Foto: Helio Campos Mello

O novo prédio da Pinacoteca do Estado, mais novo espaço cultural da cidade de São Paulo, ecoa o momento mais auspicioso para a cultura no país. Ao abrir-se para o Parque da Luz e agregar novas salas de exposição, biblioteca, ateliês educativos, centro de documentação e infraestrutura de lazer, o local inaugurado no início de março pretende incrementar as possibilidades de ação da instituição já centenária – que agora ganha um núcleo vocacionado ao contemporâneo. E reafirma física e simbolicamente a importância de uma ação voltada para o espaço público, incorporando novas formas de pensamento e ação artística e enfrentando o desafio de abrir-se para além do mundo restrito dos conhecedores da arte.

Projetada pelo escritório Arquitetos Associados, a construção é bastante sóbria e integrada com o espaço circundante. A inexistência de catracas, a centralidade de todo o edifício ao redor de uma praça pública acessível a todos os visitantes do parque e uma grade de exposições bastante diversa são alguns dos pilares fundamentais desse projeto, que ambiciona receber até um milhão de visitantes por ano.

Pina contemporânea
A obra “Colar”, de Lygia Reinach, recebe os visitantes na exposição. A obra é uma das esculturas da coleção do museu que ficam espalhadas pelo Parque da Luz e que excepcionalmente foi incorporada à “Chão da Praça”.

Tem por base uma antiga escola, transferida para instalações mais modernas na região. Em termos construtivos, a parte mais ambiciosa é a enorme sala expositiva subterrânea, escavada sob uma praça central. Estratégia que garante ao museu uma maior versatilidade, sem ter que driblar as limitações de suas outras duas unidades, a sede da Luz e o espaço da Estação Pinacoteca, cujas plantas mais antigas são mais fragmentadas e com várias subdivisões internas. Com uma área de mil metros quadrados, essa grande galeria permitiu exibir simultaneamente um conjunto importante de trabalhos que entraram nas últimas décadas no acervo e que – por sua dimensão ou complexidade – acabaram sendo pouco mostrados. Como um grande encontro, mescla-se na exposição inaugural, intitulada Chão da Praça, um conjunto bastante diverso de poéticas, técnicas e experimentações, reafirmando o caráter díspar e experimental da produção contemporânea.

Está sendo exibida pela primeira vez, por exemplo, a instalação Ttéia, uma obra maior de Lygia Pape. A versão que a Pinacoteca possui é diferente daquela mais conhecida, em exposição em Inhotim, e foi agregada ao acervo junto com o comodato da Coleção Roger Wright. Outra obra importante do acervo, que já conta com cerca de 11 mil obras entre históricas e contemporâneas, é Parede da Memória, de Rosana Paulino, um trabalho composto por 1500 patuás, confeccionados um a um pela artista, e que compõem um potente painel sobre a força, tradição e poesia da negritude no país. Sinalizando o interesse em promover uma costura cada vez maior entre exterior e interior, a mostra também trouxe para dentro do espaço museológico uma das esculturas que a Pinacoteca mantém no Parque da Luz, o grande colar de contas agigantadas de cerâmicas, feito especialmente por Lygia Reinach para este projeto de esculturas ao ar livre.

Dentre as muitas camadas trabalhadas pela mostra, cuja curadoria é assinada por Ana Maria Maia e Yuri Quevedo, destaca-se a dimensão do afeto e das relações entre artistas e o museu. De forma mais explicita temos a vizinhança da instituição servindo de tema para trabalhos ali representados, como na série fotográfica de Cristiano Mascaro, na aquarela de Djanira feita no Parque da Luz, ou ainda nas imagens que Hudinilson fez do próprio corpo quando foi laboratorista e operador da máquina de xerox da instituição. Mas há também vizinhanças e afetos mais intangíveis, com toques de memória e conexões do campo afetivo, como o majestoso painel de autoria de Emanoel Araújo, morto ano passado, que foi responsável pela modernização e renovação da instituição na década de 1990, e dos primeiros a sonhar com sua expansão para além dos limites de sua sede, incorporando outros espaços no entorno. Ambição que seguiu acompanhando vários dos diretores subsequentes, como Ivo Mesquita e Tadeu Chiarelli, até tornar-se viável com a desativação e transferência da escola para o museu.

Além da grande e versátil sala subterrânea, que depois de Chão da Praça receberá uma mostra da artista multimídia chinesa Cao Fei, um segundo espaço expositivo foi instalado nas antigas salas da Escola Prudente de Morais. Ambiente menor, mais intimista, e mantendo remissões à arquitetura do passado (com a preservação de delicadas divisórias em ferro trabalhado, que datam da época do primeiro projeto, concebido ainda no século 19 por Ramos de Azevedo), abriga agora uma série de obras da sul-coreana Haegue Yang. A artista, que já esteve na 27ª Bienal de São Paulo, apresenta um trabalho que, na opinião do diretor da Pinacoteca, Jochen Volz, ecoam também na produção nacional, como o uso de materiais industrialmente produzidos ou o deslocamento de significados. “É importante mexer um pouco nas nossas referências”, afirma.

A inauguração do novo prédio permitirá, além de dar maior ênfase às manifestações públicas e colocar em destaque o acervo próprio do museu, reafirmar um dos focos de atenção da gestão de Volz: a necessidade de repensar atentamente sua programação. “Temos que pensar qual história da arte a gente quer contar e qual a gente não contou recentemente”, explica ele, lembrando que até dez anos atrás as mostras que chegavam até nós eram, quase exclusivamente, de homens brancos europeus. Pensar a arte internacional e a produção nacional em sintonia e abrir espaço para poéticas que ainda não encontram espaço igualitário nos museus está entre as balizas que nortearão as ações da instituição, que já prepara uma agenda intensa e diversa para seus três espaços, com nomes que vão de Chico da Silva e Denilson Baniwa (já em cartaz na Pina Luz) a Sônia Gomes e Marta Minujín, programadas para 2024. ✱

Chico da Silva e as rotas do desassossego

Chico da Silva desenhando em uma parede
Chico da Silva desenhando em uma parede, entre 1960 e 1975. Guache sobre tela. Cortesia Galeria Galatea, São Paulo
Por Bitu Cassundé
Chico da Silva desenhando em uma parede
Chico da Silva desenhando em uma parede, entre 1960 e 1975. Guache sobre tela. Cortesia Galeria Galatea, São Paulo

O Nordeste brasileiro foi um grande fornecedor de mão de obra para aventuras econômicas no Norte do Brasil: entre milhares de nordestinos fugidos da seca em direção ao Éden amazônico, a cearense Minervina Félis de Lima migrou para o Acre por volta de 1919 para trabalhar na extração da borracha. Minervina casou-se com um indígena peruano e com ele teve Francisco Domingos da Silva, nascido entre 1922 e 1923.

Ali, por meio das missões religiosas que acolhiam os fluxos migratórios, a “civilização branca” exercia sua violência em um modelo colonial de catequização, exploração e manipulação da fé. Nos primeiros dez anos de vida, o menino Chico da Silva viveu entre esse contexto opressor e a floresta, com suas lendas e liberdade.

Detalhe da obra de Chico da Silva.

Com pouca perspectiva de sobrevivência, Minervina regressa para sua cidade natal, Quixadá, no sertão do Ceará. Nessa paisagem árida, de subsistência castigada pela seca, o pai de Chico é mordido por uma cascavel, cujo veneno lhe é mortal. Após a perda, mãe e filho se assentam, por volta de 1940, em Pirambu, bairro periférico de Fortaleza.

É nos muros da Praia Formosa, em Fortaleza, que Chico da Silva compõe imagens de seres impossíveis e narrativas orais amazônicas. Ele é, então, capturado novamente pelo projeto colonizador quando Jean Pierre Chabloz, enfeitiçado pela poética do artista local, o introduz à tinta guache e ao papel, fazendo-o abandonar o suporte da parede.

Entre 1930 e 1940, o suíço promove a presença de Chico em salões nacionais, como na Galeria Askanasi, no Rio de Janeiro. Já nos anos 1960, Chabloz articula, no recém-inaugurado MAUC/UFC (Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará), um lugar onde o artista criaria um ateliê, receberia um salário e permaneceria durante três anos. A mística construída por Chabloz em torno desse personagem indígena atingira seu ápice em 1966, quando Chico participou da Bienal de Veneza.

Um elemento constante na obra de Chico da Silva é a boca. A boca aberta para o bote, a boca aberta para o alimento, a boca que acolhe e abriga, a boca que come e transforma, a boca que devora, a boca da noite, a boca do estômago. Nas pinturas, são inúmeros os embates, bem como as animalidades que utilizam a boca como arma, como defesa, como prelúdio de perigo.

Chico ativa uma cosmologia particular na qual elementos da vida, do cotidiano, do imaginário amazônico e indígena são protagonistas. Se hoje sua criação de mundos seria classificada como “fabulação especulativa”, o artista em vida nunca foi associado a uma ideia de “futuro”, mas sempre fixado a uma imagem de passado, primitivo e bestializado, e com uma difícil adequação ao presente, ao agora, à ideia torpe de modernidade que se anunciava.

A própria boca de Chico também foi a boca da reinvenção da linguagem, da concepção de novas palavras, das criações dialéticas, que desnorteavam o interlocutor: sua boca com dentes de ouro conferia a seu corpo a mais completa modernidade. A boca de Chico nunca foi a do passado nem a do presente, a sua boca sempre esteve no futuro, e anunciava: até o céu da boca é de ouro.

Outro movimento importante na saga de Chico é a criação da Escola do Pirambu. O lugar reunia artistas colaboradores com os quais Chico compartilhou sua técnica, cuja reprodução logo contaminou a ideia do “gênio” e do “original”, fundamentais ao mercado de arte. Essa diluição da autoria na Escola do Pirambu não passou isenta de punição. Em uma matéria no Jornal do Brasil, o próprio Chabloz acusa o esvaecimento da autenticidade poética do artista. A manchete anuncia: “Suíço decreta a morte artística de Chico da Silva”.

Chico nunca se recuperou artisticamente dessa campanha produzida pelo crítico europeu, que não o respeitava como humano capaz, tratando-o como um primitivo. Chabloz não descobriu Chico da Silva: foram os muros da Praia Formosa que germinaram o visionário artista, e foram seu tino, sua força e coragem de atravessar adversidades na vida e na arte, que o configuraram como um descobridor de si mesmo.

Após o ataque, Chico foi constantemente internado devido ao alcoolismo, a problemas psiquiátricos e aos sinistros de uma sociedade também colonizada que não conseguiu sequer respeitá-lo. Atualmente, sua obra passa por um novo processo comercialmente especulativo, mas Chico morreu pobre em 1985, tornando-se personagem que merece ser desmistificado e humanizado. ✱