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Mostra aborda as possibilidades da palavra em obras de artistas de Argentina, do Brasil e Chile

Gisella Scotta, "Encarnacion", 2022. Foto: Natalia Marcantoni

A exposição Qué cosa, la poesía visual?, em cartaz até 1º de outubro, no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, a apresenta um conjunto de obras históricas e contemporâneas, de artistas da Argentina, Brasil e Chile, que se debruçam sobre as possibilidades da linguagem e da palavra. Na seleção de trabalhos estão presentes textos visuais e sonoros, além de um importante arquivo da poesia visual argentina. A curadoria ficou a cargo de Guillermo Daghero, e a expografia, de Anna Ferrari.

A exposição presta uma homenagem a Edgardo Vigo (1928-1997), poeta, performer e artista plástico argentino. Jorge Santiago Perednik (1952-2011) – poeta, tradutor e ensaísta do país – também é homenageado por Qué cosa, la poesía visual? A mostra reúne mais de 30 artistas que abordam a poesia visual, entre eles outros expoentes argentinos das décadas de 1960 e 1970, como León Ferrari, Mirtha Dermisache e Juan Carlos Romero. Entre os brasileiros, destaque para Augusto de Campos – que apresenta um vídeo feito em colaboração com o cantor e compositor Caetano Veloso – e Lenora de Barros.

A exposição também destaca a produção de poesia experimental feita após a retomada da democracia na Argentina, entre os anos 1980 e 1990, por nomes como Perednik e Carlos Estévez. Também daquele final do século 20, o Archivo Vórtice, dirigido por Fernando García Delgado, surge como um caso paradigmático da consolidação da poesia visual à época, com um reservatório excepcional de poesia visual e arte postal da Argentina e do mundo.

As possibilidades visuais e sonoras da palavra também são vistas por meio de obras produzidas no Chile, por Carlos Soto-Román, ou na Espanha, por Belén Gache, que por sua vez dialogam com artistas atuando em Córdoba, como Lucas Di Pascuale, Rosana Fernández, Huenú Peña ou Gisella Scotta; com os que produzem em Santa Fe, como Hernán Camoletto e Claudia del Río; ou ainda com criadores portenhos, como Ezequiel Alemian, Geraldina Blas, María Gamarra, Magdalena Jitrik, Jorge Macchi, Emiliano Miliyo, Leticia Obeid, Hugo Vidal e Ivana Vollaro.

Segundo Anna Ferrari, seu projeto de expografia propõe uma arquitetura neutra e um percurso fluido, “como se fosse uma poesia visual gigante, em que a gente conectou as diferentes obras, com harmonia. Um caminho em que você vai lendo a mostra ao percorrê-lo”. Quase todo o espaço tem paredes brancas. Anna conta à arte!brasileiros que somente algumas delas foram pintadas de preto porque era algo que dialogaria com trabalhos específicos presentes na seleção. A arquiteta também buscou ter uma quantidade mínima de mobiliários e paredes entre as salas, para que o espaço expositivo ficasse bem integrado.

Para reforçar a abrangência insinuada pela pergunta que intitula a mostra, o comunicado de imprensa do CCK salienta que a poesia visual é “próxima dos termos poesia abstrata, poesia concreta, poesia de invenção, poesia experimental, tipografia, poesia minimalista, poesia semiótica, poesia espacial, entre tantos outros nomes, para designar algo que cabe na palavra poesia, na sua natureza, nos seus caprichos e na sua dispersão”. Também assinala que a poesia pode ser vista, ouvida e sentida “em seus fragmentos, gestos, signos, sons e signos”, e, no caso de Qué cosa, la poesía visual?, como “algo em exibição”.

Leia, a seguir, a entrevista de Guillermo Daghero à arte!brasileiros:

arte!✱ Uma vez que não há efemérides em torno de Edgardo Vigo, por que o artista é o ponto de partida desta exposição?

Guillermo Daghero – Inicialmente, trata-se de um convite curatorial do Centro Cultural Kirchner que pretende dar visibilidade ao espaço da poesia cruzando a área da literatura do CCK com a área das artes visuais, e é justamente isso que dá origem a uma das muitas ideias sobre o tema da poesia visual: uma prática intermediária entre a poesia e as artes visuais. A obra de Edgardo Antonio Vigo é uma referência indiscutível nesta exposição porque, em meados dos anos 1950, ele começou com essas práticas poéticas não convencionais, gerando diferentes ações que marcaram a arte argentina. Uma das referências do passado para a realização desta exposição é a Expo/Internacional de Novísima Poesía/69, que Vigo organizou em março de 1969 no Centro de Artes Visuais do Instituto Torcuato Di Tella (CAV) de Buenos Aires. É oportuno acrescentar o gesto de Haroldo de Campos, que em 1967 sugeriu em carta escrita a Jorge Romero Brest, diretor do CAV, a organização desta exposição, já que Vigo naqueles anos publicava Diagonal Cero, uma revista de vanguarda em que convidou e mostrou o que havia de atual em termos de poesia visual no resto do mundo. Vigo e a sua obra são um ponto de partida, assim como Jorge Santiago Perednik, importante estímulo com as edições da revista Xul nos anos 1980 e 1990, em que difundiu, como dizia na sua capa, a outra poesia, e é também o Vórtice de Poesía Arquivo visual com a ideia e direção de Fernando García Delgado em que, no início de 2000, lançou os encontros de Poesia Visual, Sonora e Experimental juntamente com outras publicações e convocatórias. Contextualizar, citar brevemente e nomear essas referências nada mais é do que destacar e saudar aquele passado quando não havia lugar ou lugares onde o experimental em poesia acontecia, e Vigo foi, sem dúvida, sinônimo desse ponto de partida.

arte!✱ – De um ponto de vista retrospectivo, Qué cosa, la poesía visual? é uma das exposições mais completas sobre essas experimentações com a linguagem na cena artística argentina nos últimos anos? Ou sua principal característica são os diálogos que propõe com o Brasil e o Chile?

Guillermo Daghero – A exposição é apresentada em quatro salas muito amplas, separadas umas das outras. A parte central reúne algumas das referências argentinas que utilizaram essa linguagem visual, mas é uma síntese que mostra um panorama muito limitado e ajustado do passado. De alguma forma, toda curadoria implica em um corte, e é meu costume mostrar pouco ou o suficiente para se ter uma ideia do que foi, do que é e também do que falta. Eu responderia dizendo que a exposição está incompleta em termos de poesia visual, dizendo também que ela preserva e contém o que Mallarmé disse, pensar, isso: de outra forma. Mais do que oferecer um panorama completo carregado de obras que dão conta do passado na poesia visual, a ideia de recorte e seleção curatorial atravessa a questão de por onde passa o visual na poesia. Expor nas quatro salas e, indistintamente, o passado com o presente sob a questão Qué cosa, la poesía visual? deixa em aberto a possibilidade de ver na poesia uma coisa pensante, e não algo estabelecido. Foi dada ênfase e atenção à espacialidade entre as obras nas salas, e este foi um trabalho conjunto com Anna Ferrari, em que cuidamos, acima de tudo, da forma e do conteúdo da obra de cada convidado ou no coletivo da mostra. A exibição de textos exige uma leitura extra por parte do espectador em que o silêncio ou, neste caso, os espaços em branco, também significam. São formatos e técnicas diferentes, o que torna o espetáculo eclético e com significados diversos. Embora haja uma seleção por salas, não há limites precisos entre as obras, há uma espécie de linguagem universal em que tudo se mistura por meio do olhar e da leitura que cada um pode fazer no conjunto daquilo que é exposto.

arte!✱  A propósito, quão próximas e quão distantes estão as produções de poesia visual desses três países?

Guillermo Daghero – Esse é um tema que também surge na exposição? Talvez seja a minha própria proximidade, precoce e deslumbrante, quando encontrei a poesia concreta do Brasil numa revista da Unesco chamada El Correo, e que chegou na casa da minha avó quando eu era adolescente. Neste número especial do Brasil, vejo sob o nome de poemas alguns desenhos textuais despojados, atravessados ​​por signos e sinais que obedeciam a variações gráficas e geométricas de Décio Pignatari e, em outra página, um diagrama tipográfico de Pedro Xisto, e eu disse a mim mesmo, atônito na descoberta, ”o que é isso?”. Mais tarde, no início de 2000, entrei em contato com a poesia chilena e descobri diferentes práticas poéticas ligadas a um certo experimentalismo em relação ao modo de publicar e fazer poesia (estou falando de Huidobro, Parra, Deisler, Zeller, Martínez, Millán, Vicuña e outros), e é nessa época que me aproximo e começo com algumas trocas de idéias e conversas em relação à poesia de Andrés Ajens, Martín Gubbins, Felipe Cussen, Anamaría Briede, Martín Bakero e ultimamente Carlos Soto Román, poeta e performer, a quem convido a participar com a edição de Chile Project (2013), em versão impressa, e o vídeo Borradura (2021). Esses dois episódios significativos fizeram com que eu não perdesse nenhuma relação com essa forma de materialidade poética que os concretistas chamavam de poesia de invenção, termo que adotei para continuar essa prática e essa busca e associá-la a experiências de pares na Argentina e em outros países.

arte!✱ – Há um diálogo entre gerações na exposição? Em caso afirmativo, o que esses diálogos revelam?

Guillermo Daghero – Lenora de Barros, Ivana Vollaro e Augusto de Campos convivem no mesmo espaço, são três gerações diferentes e contemporâneas entre si. A obra de Ivana, Alfaboca (2004), é um vídeo que contém cinco clipes poéticos em que participam Lenora de Barros e Arnaldo Antunes. Numa das extremidades da parede e na mesma sala, vê-se exposta a obra Poema (1989) de Lenora; e na sala seguinte, O Pulsar (1975) de Augusto, em versão vídeo. O Pulsar pertence à série Stelegramas (1975-1978) e é um poema musicado por Caetano Veloso para o livro Caixa Preta (1975) de Augusto de Campos e Júlio Plaza, posteriormente incluído em Viva vaia (poesia 1949-1979 ). A versão em exibição corresponde a uma produção audiovisual de Gonzalo Aguilar (2014).

arte!✱ No caso de León Ferrari, há peculiaridades, distinções, entre a poesia visual por ele concebida entre os anos que em viveu na Argentina e os passados no Brasil?

Guillermo Daghero A obra de León Ferrari é extensa e tem suas épocas e formatos. Foi utilizado material da Fundação Augusto e León Ferrari e feita uma seleção de obras gráficas com Andrea Wain. Algumas Cartas foram incluídas em cópias xerox e um livro de artista, Poemas. Ambas as produções correspondem aos anos de sua residência no Brasil. Acrescentam-se outros textos no estilo de escrita ilegível, que são tintas e aquarelas de 1997, anos em que León participou ativamente dos encontros de poesia experimental organizados pela Vórtice em Buenos Aires. A escrita em si e o desenho como escrita ocupam na obra de León um lugar importante em sua forma de fazer arte, é aí que as grafias se misturam em um componente totalmente visual entre letra e imagem.

arte!✱ Você poderia citar alguns artistas ou obras presentes na exposição que representam as experiências mais ousadas?

Guillermo Daghero – As obras de Roxana Fernández, Huenú Peña e María Gamarra com Geraldine Blas têm uma particularidade que não sei definir nem explicar o porquê, mas há nelas algo que atrai. Associo esta percepção aos seus componentes ópticos e sonoros no caso de Roxana, mas eles geram sensações que não podem ser definidas com precisão, excedem aquela informação e mensagem, então traduzo aquele olhar como poesia ou precisamente como uma coisa… coisas complexas e simples… são obras difíceis de interpretar, que seduzem e causam efeito.

arte!✱ Linguagem, poética e política têm o mesmo peso na produção desses artistas selecionados? Ou um desses aspectos se manifesta mais agudamente em alguns do que em outros?

Guillermo Daghero – Há obras, discursos e trajetórias artísticas mais compromissadas que outras entre o poético e o político. As obras de Romero, Vidal, di Pascuale, Jitrik, Macchi, Soto Román e Scotta, como um todo, são obras de conteúdo gráfico e literário em que aparecem a memória histórica e as denúncias sociais.

SERVIÇO
Qué cosa, la poesía visual?
Até 1/10
Curadoria: Guillermo Daghero
Centro Cultural Kirchner – Sarmiento, 151 – Buenos Aires, Argentina
Visitação: de quarta a domingo, das 14h às 20h
Entrada gratuita

 

Os papéis rebeldes de Miguel Ángel Lens

Miguel Ángel Lens, obra presente na exposição "La poesía está en la calle". Cortesia: Muntref
Miguel Ángel Lens, obra presente na exposição "La poesía está en la calle". Cortesia: Muntref

La Poesía está em la calle (a poesia está na rua), mostra de Miguel Ángel Lens (Buenos Aires, 1951-2011) com curadoria de Francisco Lemus e Mariano López Seoane no MUNTREF, é algo como o coroamento de uma operação de resgate reveladora, dedicada e coletiva. Lens foi poeta, artista visual e ativista. Ele fez parte do grupo San Telmo Gay na década de 1980 e fundou o grupo Poesía Gay de Buenos Aires em 1994. Durante sua vida, publicou livros de poesia e editou a compilação Poesía Gay de Buenos Aires. E embora seus desenhos e colagens chegassem às mãos de muita gente por meio de panfletos, nunca expôs sua obra visual em instituições ou galerias de arte. Após sua morte, e graças aos esforços de Juan Queiroz, o irmão de Lens (José Luis) e seus amigos Néstor Latrónico, Horacio Menú, Alberto Retamar e Marta Muriago doaram as obras e documentos que estão na base da exposição ao arquivo do IIAC (Instituto de Investigaciones en Arte y Cultura).

A mostra reúne versões datilografadas de poemas, desenhos, colagens, panfletos, cartas e fotografias. Algumas (principalmente aquelas em que Lens retrata seres fantásticos e propõe capas para livros imaginários) estão penduradas em duas das paredes da sala; o restante (principalmente o material com maior predominância do que está escrito) em armários e gavetas. E o cardápio se completa com uma instalação sonora em que o poeta Mariano Blatt lê Lens, numa interpretação que a faz soar contemporânea e urgente.

A obra que os curadores escolheram para colocar em primeiro lugar no passeio pelas paredes, Dibujopoema, funciona como um prólogo e sintetiza alguns dos gestos exibidos no resto da exposição. Nela, uma palmeira composta de palavras e linhas desenhadas tem um tronco ziguezagueante que afirma: “As árvores mais feias são as mais bonitas”. E então fica claro que, para Lens, o visual e o poético têm uma origem comum: que a beleza deve ser buscada além das margens; e, sobretudo, que tudo — incluindo El instante de la revolución, como é intitulada outra das peças — cabe numa folha de papel de 30 x 20 cm. Todo o material de La poesía está en la calle (A poesia está na rua) é composto por papéis que a qualquer momento podem ser empilhados novamente em uma pasta para serem facilmente movidos e reapresentados em outro lugar. Ou fotocopiados para multiplicar e atingir ainda mais olhos e mãos.

O que emana de todos eles é a necessidade de sair, de vaguear e de se encontrar com o
outro — e em particular com um outro desconhecido. Como soa em Arolá, um dos poemas cantados por Mariano Blatt: “Estou farto / de mim mesmo / do meu egocentrismo”, sublinhando um axioma fundamental para a lógica de Lens, que se cobra de maior eloquência num presente em que a segmentação cultural e a programação algorítmica atendem pessoas com conexões cada vez mais precisas com preferências pré-estabelecidas.

Lens é capaz de encontrar o fio condutor entre as mais díspares sensibilidades: entre
a simplicidade de Sandro Penna e o sigilo iluminado de Rimbaud; entre o niilismo radical de Artaud e os camafeus de poetas como Juan Gelman e Haroldo Conti, associados à esquerda mais tradicional (que, por sua vez, excluía a dissidência sexual). Sua rebeldia exala uma maldição não isenta de ternura, uma raiva mais associativa do que exclusiva, menos interessada na afirmação de uma identidade com contornos precisos do que na abertura aos outros.

Em suas andanças urbanas, algo do existencialismo torturado e sádico de Carlos Correas, dos anos 1950, parece coexistir com a espontaneidade, os corações e os diminutivos de uma figura dos anos 1990, como Fernanda Laguna. E é tanto o operário cafuçu ou lúmpen (como aquele que enlouquece o narrador de Correas em A narração da história) quanto a pena baudelairiana com que Lens compõe um poema-desenho (Hoje na rua Callao encontrei uma pena de pomba, e com ela escrevi este poema) estão, segundo o título da exposição, na rua.

Esse fio condutor é, por que não, um impulso utópico, o desejo de um futuro radicalmente
diferente, que a recuperação democrática de 1983 não trouxe (Lens é um crítico insistente
dos limites da primavera alfonsinista), e que ressoa naquilo que José Muñoz escreveria em
seu livro Utopia Queer. Uma das peças expostas oferece uma imagem desse futuro. Chama-se La mano que se se viene, uma reviravolta na popular pergunta “como surge a mão?”, e não poderia ser mais misterioso: parece de outro mundo.

SERVIÇO
Miguel Ángel Lens: La Poesía está em la calle
Até 4/6
Curadoria: Francisco Lemus e Mariano López Seoane
Centro de Arte Contemporáneo – Universidad Nacional Tres de Febrero: Av. Antártida Argentina 1335 – Buenos Aires (Argentina)
Visitação: de terça a domingo, das 11h às 18h
Entrada gratuita

Notas em páginas de mármore: Marie Orensanz no Centro de Arte Contemporáneo (Muntref)

Marie Orensanz, obra presente na exposição "El fluir del pensamiento". Cortesia: Muntref
Marie Orensanz, obra presente na exposição "El fluir del pensamiento". Cortesia: Muntref

El fluir del pensamiento (O fluxo do pensamento) é a primeira exposição retrospectiva em grande escala que a artista franco-argentina Marie Orensanz realiza em Buenos Aires em mais de dez anos. Com curadoria de Diana Wechsler (directora artística do Centro de Arte Contemporáneo – Universidad Nacional Tres de Febrero, Muntref, e vice-reitora da universidade que acolhe este Museu), a exposição reúne cerca de 100 peças, desde obras dos anos 1960 a trabalhos feitos para a ocasião, que ocupam cinco salas, um corredor e a entrada do antigo Hotel dos Imigrantes.

Localizado à beira do rio, na orla da cidade, esta construção erguida em 1912 para administrar a crescente onda de migração, com seus corredores de mosaico branco, suas escadas de mármore e suas janelas que permitem ver, de um lado, os edifícios do centro de Buenos Aires, e do outro, o horizonte que recorta o rio de la Prata com seu tons marrons, é um espaço apropriado para uma artista que conta com o deslocamento e em que as fronteiras entre os espaços se apagam, focos de seu trabalho.

O percurso inicial de Marie Orensanz (Mar del Plata, 1936) foi o clássico dos artistas argentinos dos anos 1960: abstrações dramáticas e materiais, pinturas e desenhos com ressonâncias de neofiguração, na primeira metade da década; estruturas primárias e um salto para estratégias conceitualistas com conotações políticas (La Gallareta, de 1969), e a preeminência da linguagem no final da década. Desde então, seu trabalho com a materialização da linguagem tem sido constante.

A exposição apresenta, com esmero, esses períodos e, embora permita um percurso cronológico, também é pontuada por obras muito recentes da artista que indicam recorrências e possibilitam releituras. Assim, por exemplo, a primeira sala é dominada por obras figurativas dos anos 1960: quatro grandes esmaltes sobre tela (La risa, 1965), dois desenhos da série Las máscaras (1966) e um vídeo de 2000 criado a partir da série de Os dominantes (1964).

Mas também há vitrines com cadernos, papéis soltos, croquis, catálogos e cartas de Orensanz de várias épocas, numa irradiação de expressão verbal constante que oferece uma resenha das grandes obras penduradas nas paredes: nas bocas fechadas, fragmentadas e deformadas, o diálogo com a profusão de textos escritos torna a tentativa de comunicação mais tangível.

Numa das vitrines, inclui-se também uma peça de mármore desenhada e anotada, um gesto que antecipa o que veremos mais adiante e que sublinha uma operação-chave para Orensanz: assim como a página e a tela podem adquirir dureza e permanência, pode-se tratar o mármore como um pedaço de papel que abriga uma nota efêmera. Um desenho na sala ao lado diz: O ambiente condiciona as pessoas, com uma tipografia que remete às fantasias de clareza e classificação da diplomacia e da ciência, mas também à famosa zombaria de Magritte. Esta é uma das frases que compõem o manifesto Eros, que Orensanz apresentou em Milão em 1974, e que constitui algo como o texto-base de onde extrairia os axiomas de suas obras mais conhecidas.

Todas as obras deste setor parecem responder à frase dessa frase, procurando desarmar o condicionamento espacial com operações de abertura. A peça central é a que ganhou o Prêmio Braque em 1969, composta por uma fita adesiva preta colada sobre placas de acrílico transparente no chão e na parede, criando a ilusão de um plano imaterial. Mas também inclui alguns desenhos de paisagens. Nelas coexistem grelhas quadrangulares em preto e branco com áreas pintadas com arestas desfocadas que sugerem paisagens naturais. Diante do cálculo e planejamento de formas reticulares, as linhas difusas abrem a possibilidade do indeterminado e do desconhecido.

A ala seguinte está dividida em três partes: uma, centra-se nos seus trabalhos em mármore; outro – o maior –, em objetos de metal; e o terceiro combina obras audiovisuais e fotográficas. A seção dedicada às suas obras de metal inclui versões reduzidas das suas peças mais conhecidas, como Pensar é um facto revolucionário, em exposição permanente no Parque de la Memoria.

Na terceira sala, uma parede que é pura imagem (quatro fotografias) opõe-se a uma instalação que é (quase) puro som (Hablamos, de 2007); unidas por uma terceira parede que combina imagem e som, com três vídeos da artista, entre eles o conhecido Limites (1979). No primeiro, encontramos reproduções fotográficas em grande formato de uma ação realizada em Paris em 1982. Convidada por Julien Blaine para realizar intervenções em rodapés e monumentos, Orensanz experimenta poses lúdicas que sublinham limites e exclusões nos valores grandiosos associados aos monumentos históricos. Em uma delas, a artista traz uma placa que diz Fragmentisme à base do monumento vazio, e ali condensa a chave que percorre sua obra de mais de meio século: nela os fragmentos (de rostos ou paisagens, de papel ou de mármore) não são falhas ou desperdícios, mas aberturas e, portanto, uma plataforma para o ilimitado.

SERVIÇO
Marie Orensanz, el fluir del pensamiento
Curadoria: Diana Wechsler
Até 25/6
Centro de Arte Contemporáneo – Universidad Nacional Tres de Febrero: Av. Antártida Argentina 1335 – Buenos Aires (Argentina)
Visitação: de terça a domingo, das 11h às 18h
Entrada gratuita

Sandra Lapage apresenta ‘Além do manto’, com obras que refletem sobre os hábitos de consumo

Sandra Lapage, "Previsão de visibilidade", 2021. Foto: João Mascaro
Sandra Lapage, "Previsão de visibilidade", 2021. Foto: João Mascaro

A partir deste sábado (20/5), no Complexo Cultural Funarte SP, a artista plástica Sandra Lapage apresenta Além do manto, exposição em que reúne mais de 20 obras, entre tramas escultóricas, peças vestíveis, foto-performances e vídeo-performances, produzidas entre 2019 a 2023, a partir de materiais reciclados, como cápsulas de café, por exemplo. A mostra traz, segundo Sandra, não uma crítica à sociedade de consumo, mas uma “observação”. “Também não sou capaz de oferecer soluções, nem de cortar todos meus excessos. Mas penso que olhar para nossos próprios excessos pode apontar caminhos, sugerir mudanças em hábitos de consumo, que, afinal de contas, urgem”, diz a artista à arte!brasileiros.

Sandra conta que, em conversa com Carollina Lauriano, a artista plástica definiu suas criações como “desafiadoras” e que ela tende a concordar. “Principalmente devido à beleza primeira do material, a suas cores, seus brilhos, sua surpreendente maleabilidade e leveza, todas as características que fazem destes elementos produzidos em série, um feito do design industrial, um objeto de desejo irresistível”, diz. Há também um apelo estético, que, segundo ela, “aparece nos agrupamentos de cor, na criação de uma trama-ritmo, que organiza em vez de entregar um conjunto caótico e de difícil compreensão”.

A artista também ressalta que ela não estabelece uma hierarquia de objetos que vão compor suas obras a partir da origem de cada um. O plástico pet, diz Sandra, convive com o rótulo de champanhe, sem discriminações. “Estou interessada pelos objetos do cotidiano, pelo simples e anódino, e suas possibilidades de reinvenção em assemblagem”, explica a artista, que também traz em suas criações uma grande inspiração na moda.

“Cada vez mais me parece um campo em que de fato se borram os limites entre arte, design, artesanato, engenharia, passarela, rua, museu, carnaval, cotidiano, e eu admiro esta liberdade. Adoraria conquistar este mesmo espaço para meus trabalhos”, afirma Sandra. “De Iris Van Herpen a Fernanda Yamamoto, especialmente na sua coleção inspirada na comunidade Yuba, à exposição Heavenly Bodies, [apresentada em 2018] no Metropolitan Museum, passando pelo legado de Alexander McQueen e Paco Rabane, entre outros, tudo é encantamento e magia”.

Para a criação de suas obras, a artista afirma que evita um tempo longo de preparo ou reflexão, preferindo que “o fluxo de pensamento” acompanhe a costura das estruturas. O resultado seriam “acidentes, caminhos inesperados”.

“Eu evito testes, ou projetos, que me distanciariam da intenção primeira de operar fora das preocupações do ego”, diz, citando como exemplo as obras Amphisbaena e Bahamut. “A materialização destas formas veio quase que como um susto, em Amphisbaena duas asas-pulmão delicadas que se desmaterializam no ar; em Bahamut, curvas azuis do próprio material tramado que saíam da parede e me empurravam para a tridimensionalidade, saindo completamente do meu controle”.

Em exposições como Além do manto, Sandra afirma que sua arte é uma prática xamânica. “Há alguns anos tenho pensado a prática como uma maneira de abrir mão do controle na passagem entre concepção, encontro com a materialidade, e execução. E isto me faz crescer dentro e fora da prática artística, pois entendo este processo como exercício constante de entendimento do mundo à minha volta, de dúvida, de observação, de
procurar entender o mundo e os outros”, explica.

Parte dessa experiência é a colaboração, nesta mostra, com Bruno Gold, que concebeu uma instalação sonora “que joga com noções de gravidade e leveza, incompletude e imperfeição, chance e mistério”, segundo comunicado de imprensa. Ela sugere, por exemplo, “o som que um determinado material poderia fazer caso fosse arrastado no
chão por um longo tempo, ou tremulasse com suas partes arranhando umas às outras”, diz Cadu Riccioppo, que assina o texto crítico de Além do manto. Em entrevista à arte!brasileiros, Cadu observa que os trabalhos de Sandra partem de uma série de premissas que as vanguardas, a arte moderna e contemporânea deixam em aberto.

“A apropriação de objetos ‘já-feitos’; a construção com materiais recolhidos à indústria, ao
consumo e ao descarte; a assemblage; a constatação de que os objetos que se acumulam à nossa volta possuem um valor de artisticidade que lhes é aportado via a quantidade de emprego de raciocínios estéticos do design e da propaganda aos menores produtos e suas embalagens, e que permanecem ali quando o ciclo de consumo desses objetos vai se encerrando e eles passam a se acumular como detritos da cultura urbana”, diz.

Questionado se o título da exposição faria alusão ao Manto da Apresentação, um antigo cobertor transformado por Arthur Bispo do Rosário em vestimenta bordada com aparência majestosa, Riccioppo afirma que não se trata necessariamente de uma referência somente àquele trabalho, mas “a toda uma tradição de compreensão das imagens em grande escala como um tipo de obra que traz à tona a imantação de um elemento ritualístico”.

SERVIÇO
Além do manto, de Sandra Lapage
Até 18/6
Complexo Cultural Funarte SP – Alameda Nothmann, 1058 – Campos Elíseos – São Paulo (SP)
Visitação:
terça a domingo, das 14h às 19h, incluindo feriados
Entrada gratuita

 

León Ferrari ganha ‘espetáculo antológico’ no Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires

O artista plástico argentino León Ferrari (1920-2013), com sua obra "Planeta (Globo terrestre com baratas)", da série "Electronicartes", de 2003. Cortesia: Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires
O artista plástico argentino León Ferrari (1920-2013), com sua obra "Planeta (Globo terrestre com baratas)", da série "Electronicartes", de 2003. Cortesia: Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires

O Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires inaugura nesta terça-feira (16) a exposição Recurrencias, com cerca de 250 obras do artista plástico argentino León Ferrari (1920-2013). Um “espetáculo antológico” – nas palavras dos curadores Andrés Duprat, diretor do museu, e Cecilia Rabossi –, a mostra coroa o reconhecimento de seu legado, que teve um de seus pontos altos em 2007, quando ele recebeu o Leão de Ouro da 52ª Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra. Recurrencias também dá sequência a uma série de miradas retrospectivas sobre sua produção, por meio de duas exposições itinerantes internacionais – O alfabeto enfurecido: León Ferrari e Mira Schendel, com curadoria de Luis Pérez Oramas, e levada entre 2009 e 2010 ao MoMA de Nova York, ao Reina Sofía (Madri) e à Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre); e La bondosa crueldad, individual apresentada entre 2021 e 2022 no Reina Sofía e no Centre Pompidou (Paris), além da mostra Parallel Lives, Parallel Aesthetics, em que o Van Abbemuseum (Eindhoven, Holanda) propôs um diálogo entre os trabalhos de Ferrari e da artista turca Gülsün Karamustafa.

Recurrencias havia sido originalmente programada para 2020, ano do centenário de nascimento de Ferrari. Com a pandemia, teve de ser adiada. No entanto, a realização da exposição coincide com duas efemérides: os 40 anos de retomada da democracia na Argentina – a ditadura militar foi um tema caro à obra e trajetória do artista – e uma década de sua morte. Esta é a primeira individual dedicada pelo museu a Ferrari e, segundo Duprat, salda uma dívida, uma “omissão histórica” da instituição. De acordo com Cecilia Rabossi, diferentemente da mostra curada por Andrea Giunta, em 2004, no Centro Cultural Recoleta, Recurrencias não propõe ser uma retrospectiva. Seu objetivo é abordar, como a mostra já sugere em seu título, “temas recorrentes, como intolerância, violência, política, religião e poder ao longo de sua vasta produção. Traçar leituras cruzadas”, afirma a curadora, em entrevista à arte!brasileiros.

Organizada junto à Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo (FALFAA), Recurrencias é dividida em quatro núcleos, com trabalhos vindos da coleção do Museu, do acervo da família Ferrari e da FALFAA. Abstrações, explica Cecilia, centra-se em trabalhos a que o artista chamou de abstratos, em que a linha, seja na superfície do papel ou na matriz da gravura, por exemplo, remete ao seu interesse pelo desenho. Civilização Ocidental e Cristã, o segundo núcleo, tem como base a emblemática obra homônima de 1965 – um cristo pregado a um caça americano – que, segundo a curadora, “abre sua obra definitivamente política”. Segundo ela, “a Guerra do Vietnã despertou sua preocupação com a intolerância do Ocidente e da Igreja Católica, em particular”. Este núcleo também inclui Manuscritos, Palavras alheias (1967), Nós não sabíamos (1976), Nunca mais, Mimetismos e Infernos.

Já o núcleo Infernos y otras cuestiones devotas se debruça sobre o estudo minucioso feito por Ferrari, a partir da década de 1980, dos textos sagrados e da iconografia cristã. De acordo com os curadores, o artista “investigou a violência na Bíblia, questionou a ideia de inferno e a sua representação pelas figuras mais proeminentes da história da arte, pois desafiou a beleza colocada ao serviço da estetização dos tormentos mais atrozes”. Em 2000, por exemplo, para sua exposição Infernos e idolatrias, Ferrari produziu uma série de objetos como ideias de infernos, em que substituiu as almas condenadas pela Igreja Católica por santos, virgens e Cristos de gesso, os quais o artista submeteu a infernos domésticos.

O último eixo, Cidades e arquiteturas da loucura, expõe plantas e representações urbanísticas que exibem o ilógico e o irracional da sociedade. Essas obras foram produzidas durante o exílio de Ferrari em São Paulo, a partir de 1976. “Ele experimentou novas mídias como heliografia, carimbos, plantas, letraset, videotexto, arte postal, expressões com as quais manifestou a alienação daqueles espaços habitáveis e expôs a opressão dos terríveis anos da ditadura militar argentina”, diz Cecilia.

A curadora lembra que, ao longo dos últimos 20 anos, houve outras exposições em solo argentino, com recortes diversos da obra de León Ferrari. Em 2004, a retrospectiva do Centro Cultural Recoleta foi objeto de grande controvérsia por causa das obras em que Ferrari criticava a igreja. O então arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Jorge Bergoglio, hoje o Papa Francisco, chamou o artista de blasfemo e pediu jejum e orações à população portenha. Houve protestos de grupos religiosos, ameaças de bomba e até mesmo o fechamento da mostra, por decisão judicial, posteriormente revogada. Com a abertura de Recurrencias, tanto Cecilia como Duprat esperam que “a sociedade tenha amadurecido nesses quase 20 anos, e que eventualmente a obra gere uma discussão madura, que é o que o artista buscava no final das contas”.

Cecilia também destaca que o acesso à obra de Ferrari e ao seu arquivo, fomentado ao longo da última década pela Fundação, tem sido essencial para imaginar possíveis recortes curatoriais e novas abordagens à sua vasta produção artística. A curadora ressalta que a experimentação sempre esteve presente na trajetória de Ferrari, tanto em obras por ele consideradas como “abstratas” ou “arte pela arte”, quanto naquelas consideradas críticas. “Ferrari experimentou as mais diversas linguagens artísticas para encontrar a forma mais eficaz de transmitir o que queria dizer ou ‘fazer ver'”, diz. “Ele ingressou no meio artístico com a cerâmica e a talha em madeira, para depois passar a trabalhar com varetas de inox, desenho, objetos, colagens, fotocópias, plantas, entre outras linguagens e técnicas”.

No Brasil, a maior retrospectiva de León Ferrari aconteceu em 2008, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A mais recente, León Ferrari, por um mundo sem inferno, ocorreu em 2018, na galeria Nara Roesler, também na capital paulista. Vale ressaltar que obras de Ferrari estão presentes nos acervos do MAC USP, do Masp e da Pinacoteca, entre outras instituições.

TRAJETÓRIA

Filho do arquiteto italiano Augusto C. Ferrari e de Susana Celia del Pardo, León Ferrari nasceu em 3 de setembro de 1920 e é o terceiro de seis filhos. Em 1946, casou-se com Alicia Barros Castro, com quem teve três filhos: Mariali, Pablo e Ariel. Formou-se em engenharia química e teve uma pequena indústria, de tântalo, metal utilizado em componentes eletrônicos. No início dos anos 1950, mudou-se para a Itália, por questões  familiares. Viveu três anos no país, onde iniciou sua produção como escultor. Em 1955, chegou a fazer uma individual em Milão, antes de voltar à Argentina.

Na década posterior, Ferrari começou a fazer esculturas de arame e aço inoxidável, produziu desenhos caligráficos, como Quadro escrito (1964), e colagens. A partir de 1965, o artista se engajou no movimento cultural e político do Instituto di Tella de Buenos Aires, abandonando a produção abstrata. É nesse período que surge A civilização ocidental e cristã, a mais icônica de suas criações. Em 1976, exilou-se em São Paulo com a família. Apenas seu caçula, Ariel, permaneceu na Argentina, sendo declarado “desaparecido” meses depois da partida de seus pais e irmãos.

No ano seguinte, Ferrari começou a fazer esculturas sonoras com barras metálicas e passou a se interessar por novos meios expressivos. Em texto publicado em 2020 na arte!brasileiros, Andrea Giunta lembra que na capital paulista o artista “se vincula às formações experimentais da cidade com artistas como Regina Silveira, Julio Plaza, Carmela Gross, Alex Fleming, Marcelo Nietsche e Hudinilson”, mas pondera que “o momento paulista não é, tão somente, o momento do retorno à arte, às esculturas soldadas, aos instrumentos abstratos (que Léon chama de Berimbau). É, também, o retorno às escrituras sagradas e ao papel que os escritos bíblicos exercem na história do Ocidente”.

Ferrari voltou no início da década 1990 à Argentina, onde começou a explorar as possibilidades dos meios digitais, caso da série de fotomontagens Electronicartes (2002-2003), em que se debruçou sobre eventos como o atentado de 11 de setembro em Nova York (2001), o bombardeio em Bagdá (2003), a política norte-americana e acontecimentos diversos na Argentina. Em 2008, o artista estabeleceu o estatuto de sua futura fundação. Segundo a arquiteta Anna Ferrari, sua neta e diretora da FALFAA, ao lado de sua prima, Julieta Zamorano, além de cuidar e fomentar o seu acervo e fazer a catalogação de suas obras, a instituição – criada definitivamente em 2013, ano de sua morte – “tinha como propósito prestar um serviço à comunidade, na defesa dos direitos humanos e pela igualdade, entre outras questões”.

Ainda segundo Anna, a Fundação também nasceu com o objetivo de resgatar a obra do pai de Ferrari, Augusto. Um trabalho que o artista tinha iniciado, ainda nos anos 1990, ao fazer um livro com os desenhos de arquitetura do pai e fotografias das igrejas que havia projetado. Ferrari também ampliou fotos feitas por Augusto, de familiares em poses bíblicas, e as apresentou na edição de 2009 da Bienal do Mercosul.

Para Cecilia Rabossi, mais do que uma influência do pai – um homem religioso, que também pintava afrescos para as igrejas que desenhava –, Ferrari ecoou em suas obras a educação religiosa recebida nas escolas. “A visão assustadora do inferno em sua idade escolar serviu para consolidar essas críticas [que o artista fez à Igreja e ao Cristianismo]. León foi um grande estudioso dos textos sagrados e dos estudos sobre eles, o que lhe permitiu fundamentar suas críticas e utilizar essas fontes sempre que necessário”, afirma a curadora.

Um dos primeiros desafios de Anna à frente da Fundação foi a reabertura, em 2018, do ateliê de seu avô em Buenos Aires. “É uma casa de 220 metros quadrados, com mais de 400 trabalhos dele. Algo muito rico, porque a gente tentou manter ao máximo o espírito do León, o jeito que ele mantinha suas coisas”, conta. O projeto teve apoio do governo federal, para a restauração da construção, além de uma lei de mecenato da prefeitura. Também foi fundamental o convênio estabelecido com o Museu de Arte Moderno da capital argentina que ajudou, por exemplo, na seleção dos educadores que trabalham no ateliê. A propósito, ao mesmo tempo em que Recurrencias estiver em cartaz, o espaço vai abrir suas portas para três visitas guiadas, com cerca de 90 minutos de duração, a cada sábado, começando dia 20/5. A ideia é que seja um complemento da visita à exposição.

O convênio com o Museu de Arte Moderno prevê ainda a elaboração do catálogo raisonné de León Ferrari, que conta também com recursos da lei de mecenato de Buenos Aires. Anna acredita que até o fim do ano já esteja disponível online uma plataforma pública de acesso às obras, fotografadas em alta resolução. E, mais para frente, haverá uma publicação impressa. Todo esse processo de retomada do legado de Ferrari envolve ainda, segundo Anna, um “reposicionamento” do artista, não somente comercial como institucional, em parceria com as galerias Gomide&Co e Fortes D’Aloia & Gabriel, uma representação que começou a ser alinhavada em outubro do ano passado.

Em termos mercadológicos, a obra de León Ferrari começou a ganhar tração a partir do Leão de Ouro, de 2007. “É um prêmio muito poderoso, que reverbera bastante no mercado”, avalia o galerista Thiago Gomide. Junto à Fortes D’Aloia & Gabriel, Gomide quer reforçar um lado da produção de Ferrari “mais provocativo, irônico, político e ácido”, algo que, segundo ele, encontra muita interlocução com a nova geração de colecionadores que vem surgindo. “Os jovens piram com uma série como ‘Releitura da Bíblia'”, diz. O galerista ressalta ainda que o apelo comercial dos trabalhos de Ferrari ao menos “triplicou”, em termos de valores, nos últimos dez anos.

Alex Gabriel, da FDAG, salienta, no entanto, que “nunca houve uma estratégia de mercado” ao longo de “uma carreira de 50 anos, de um artista que nunca teve galeria”. Faltava também um posicionamento de Ferrari no cenário artístico. “Nesse sentido, as exposições retrospectivas internacionais que ocorreram, e têm um grande peso institucional, não necessariamente refletem num mercado que é muito ávido por novidade, artistas jovens que vão se valorizar em cinco minutos”, diz.

“Então, o desafio dessa dupla representação é ter, de um lado, um pensamento e uma agilidade no mercado secundário [por parte da Gomide&Co], e por outro, uma estratégia de posicionamento. Quando você observa os quatro núcleos de Recurrencias, vê que se tratam de ideias muito atuais, principalmente sua crítica ao desenvolvimento dessa sociedade ocidental, cristã, que está no meio das discussões pós-coloniais que têm vindo à tona hoje. Há uma necessidade de mostrar o ativismo do León. Nas discussões com a família, também sentimos o desejo de se ter uma fidelidade a seus ideais. E isso é fundamental para o nosso trabalho de posicionamento dele, acima de tudo como artista, que lida com questões prementes no mundo atual. O fascismo está aí, o mundo está dividido. Tomamos essa missão com a certeza da relevância de León”.

SERVIÇO
León Ferrari. Recurrencias
Até 13 de agosto
Curadoria: Andrés Duprat e Cecilia Rabossi
Museo Nacional de Bellas Artes – Av. Del Libertador, 1473 – Buenos Aires, Argentina
Abertura: 16 de maio, às 19h
Visitação: de terça a sexta, das 11h às 20h; sábado e domingo, das 10h às 20h

Nonada ZN abre coletiva ‘fragmento I: vento pórtico’, com curadoria de Clarissa Diniz

Trabalho de Iah Bahia, presente na coletiva ‘fragmento I: vento pórtico’, na galeria Nonada ZN, no Rio
Trabalho de Iah Bahia, presente na coletiva ‘fragmento I: vento pórtico’, na galeria Nonada ZN, no Rio
Neste sábado, a galeria Nonada ZN abre coletiva, na Penha, Rio de Janeiro, com o título fragmento I: vento pórtico, reunindo trabalhos dos artistas Iah Bahia, Loren Minzú, Siwaju Lima, sob curadoria de Clarissa Diniz. Ao todo, serão exibidos cerca de 32 obras, um conjunto de esculturas, instalações, gravuras, vídeos e objetos, parte dele inédita. Como o título sugere, a mostra faz parte de um projeto da curadora, dividido em duas etapas.

Segundo Clarissa, o critério para a seleção de Iah, Loren e Siwaju partiu da vontade de imaginar “como suas poéticas já se cruzavam, como já tinham algum interlocução, e entender que esse diálogo poderia ser aprofundado com a oportunidade desta vivência num ateliê coletivo”, diz, à arte!brasileiros.

“O desejo de reuni-los veio mais do interesse em vê-los trabalhando juntos, criando juntos, compartilhando seus processos. Essa exposição é atualmente uma ocupação dessa antiga fábrica [da marca de lingerie Marilan, onde hoje está instalada a Nonada ZN], mas não começa como uma mostra, e sim uma espécie de ateliê coletivo, para um processo de criação experimental, com os materiais disponíveis aqui no prédio e compartilhado pelos artistas”.

Os encontros começaram em março, quando Clarissa articulou, com os artistas, atividades criativas diversas, para que desenvolvessem seus projetos e explorassem suas poéticas, “realizando investigações site specific e partilhando seus saberes e desejos num processo coletivo de criação, crítica e interlocução”, explica a curadora, em comunicado da galeria.

“Eles três têm um repertório de materiais que é bastante singular. A Siwaju tem um trabalho com ferro bastante expressivo e também com gravuras. A Iah, com tecido e papel. Já Loren, com terra, argila, galhos, materiais orgânicos, naturais. Então o conjunto  de materiais com que já trabalhavam se somou àqueles disponíveis aqui na fábrica, elementos impregnados de muita história”, conta a curadora.

Clarissa e os artistas empreenderam investigações em torno “dos imaginários, políticas e formas do vento, do movimento, do vazio, do oco, do avesso”. Na segunda etapa do projeto, fragmentos II, as pesquisas terão como fio condutor as ideias de armadilha, defesa, feitiço, armadura. Os mesmos artistas participarão da nova fase, novamente tirando partido do lugar que eles ocupam.

Nesta primeira etapa, a artista Iah Bahia (1993 São Gonçalo, RJ) mostrará trabalhos criados a partir de sua prática e pesquisa, que envolve experimentações interdisciplinares com a “matéria-tecido, matéria-lixo e de outros elementos substanciais coletados no território urbanizado”. Nas obras, Iah sublinha as tensões do espaço habitado.

Loren Minzú (1999, São Gonçalo, RJ) vai revelar os frutos de sua investigação acerca da “produção de imagens ligadas a noções temporais, espaciais e corporais”. Vai apresentar um conjunto de obras audiovisuais, instalações e esculturas com vegetais, minerais e artefatos, entre outros. Minzú articula, em suas criações, luminosidade e escuridão, entre outras questões.

Já Siwaju Lima (1997 São Paulo, SP), cuja produção se debruça sobre relação do tempo por meio do reaproveitamento de peças de ferro doadas ou encontradas, irá exibir criações que têm uma relação direta com a escultura fundida. Siwaju explora as “possíveis relações entre a matéria e os símbolos que incorpora, entre o objeto e seu entorno, entre corpo escultórico e o espaço, e entre a obra e nossos corpos”, diz o comunicado da Nonada.

Em seu texto curatorial, Clarissa Diniz destaca que em fragmento I: vento pórtico o público não estará “diante de projetos estéticos extrativistas no seio dos quais as matérias são instrumentalizadas como recursos a serem apropriados por mãos e gestos autoritários”, afirma. “Ao contrário, Vento Pórtico desdobra-se em exercícios poéticos cuja ética implica em dobrar, acariciar, oxidar ou tocar materialidades como a corpos cúmplices com os quais compartilhamos segredos, saberes, desejos e pragas.”

SERVIÇO
fragmento I: vento pórtico
De 11 de maio a 11 de junho de 2023
Curadoria: Clarissa Diniz
Nonada ZN – Rua Conde de Agrolongo, 677 – Penha – Rio de Janeiro (RJ)
Visitação: quinta e sexta, das 12h às 17h; sábado, das 11h às 15h

Bienal das Amazônias quer lançar nova luz sobre a produção simbólica dos vários territórios da região

Da esquerda para a direita, Sandra Benites, Keyna Eleison, Livia Conduru e Vânia Leal, equipe à frente da concepção da primeira Bienal das Amazônias. Foto: Fabricio Sousa
Da esquerda para a direita, Sandra Benites, Keyna Eleison, Livia Conduru e Vânia Leal, equipe à frente da concepção da primeira Bienal das Amazônias. Foto: Fabricio Sousa

Há mais de duas décadas, a produtora cultural paraense Lívia Condurú acalenta o desejo de criar uma Bienal das Amazônias, que finalmente terá sua primeira edição neste ano, entre os dias 3/8 e 5/11, em Belém (PA) e outras cidades da Amazônia brasileira. Era um sonho sonhado a dois, ou melhor, a duas, com a amiga Yasmina Reggad, curadora do Pavilhão da França na 59ª Bienal de Veneza, ocorrida no ano passado, e cofundadora e curadora da ARIA (Artist Residency in Algiers). Yasmina atuará como diretora artística da exposição. Por ora, estima-se que participarão 115 artistas, e que a mostra alcance, até seu encerramento, um público total de cerca de 300 mil pessoas.

Desde sua origem, um dos pontos pacíficos do projeto é que a Bienal extrapolasse o ambiente institucional da arte, assumindo “espaços da rua, da urbanidade, para debater os usos que a gente faz da cidade a partir da arte”, conta Lívia. Para tanto, além de expor 20 obras públicas, em endereços diversos da capital paraense, a Bienal terá, como sede, não um museu ou centro cultural já consolidado no cenário artístico da cidade, mas uma antiga loja de departamentos, um espaço de quase 8 mil metros quadrados, cujo endereço ainda é mantido em segredo.

Lívia destaca que a Bienal estará falando a partir de um território que as pessoas, em geral, não visualizam como ele é de fato. “Há uma dinâmica um tanto exótica, como se na verdade nós nos reduzíssemos ao bioma. Quando pensamos o nome [da Bienal], já partimos de uma lógica de que não somos uma Amazônia, somos diversas. Somos, assim, um emaranhado de identidade, de culturas, que às vezes se encontram na diversidade, na adversidade e no desafio de resistir enquanto território”, pondera.

Lívia havia conhecido Yasmina em 2011, numa oficina que a curadora franco-argelina ministrou, durante o Paraty em Foco. No ano seguinte, Yasmina foi então a Belém, onde juntas delinearam as demais premissas da Bienal. Uma delas era estabelecer que a exposição não se limitaria à Amazônia Legal – que contém nove estados brasileiros –, mas abarcaria todos os oito países e a Guiana Francesa, um território ultramarino, que compõem a região. Outra proposta era reivindicar para os amazônidas as narrativas acerca de sua própria produção simbólica e artística.

“Temos uma produção absolutamente rica e contemporânea, e que ninguém olha, porque a nós parece que, aparentemente, foi legado apenas aquilo que se entende por artesania”, pondera Lívia. “E isso acaba nos tirando um pouco da dinâmica, da inteligência da construção de saberes importantes. Como se a gente tivesse sempre à espera desse salvador e desse salvamento, quando na verdade a gente tem as soluções”.

A primeira edição da Bienal das Amazônias deveria ter acontecido em 2021, mas o projeto enfrentou dois obstáculos: primeiro, sofreu com a demora para homologação de sua execução, com a perseguição à cultura empreendida pela gestão Bolsonaro; segundo, precisou ser adiada por causa do recrudescimento da pandemia, ainda naquele ano. Adiada para 2022, foi novamente cancelada, também devido a entraves relacionados à administração pública federal.

A produtora também ressalta que, outro interesse da Bienal, enquanto espaço e instituição artística, é gerar debate, “permitir que a população amazônida se enxergue e se fortaleça nessas metodologias de sobrevivência e de resistência”, diz. “Então, é importante para nós que esse público, que não é o público de arte propriamente dita – não porque não queira, mas porque às vezes não se sente pertencente a um espaço nacionalizado de arte, como os museus – tenha acesso a esse lugar. Porque ele transita nesse lugar, dia e noite, para trabalhar, para fazer suas compras etc.”.

CURADORIA

Ainda em sua gênese, a Bienal partiu do princípio de que não teria um curador solo, mas um coletivo curatorial. Foi decidido que ele se chamaria sapukai, segundo comunicado da Bienal, uma “palavra derivada da língua tupi que é traduzida em português para canto, clamor, grito”. Em seu recorte, a curadoria deveria ter como proposta incluir “questões como prazer, alegria, desejo, cobiça, violência e invisibilização históricas”.

Num primeiro momento, o coletivo era formado por quatro mulheres. Duas integrantes tiveram de sair do sapukai, entre elas a educadora, pesquisadora e curadora Sandra Benites, que no ano passado participou do VII Seminário Internacional, promovido pela arte!brasileiros em parceria com o Sesc. Sandra se afastou da função após a sua recente nomeação para ser a nova Diretora de Artes Visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Saiu também a artista, pesquisadora e professora Flavya Mutran, que assumiu um cargo em uma instituição superior de ensino, que exigiu dedicação exclusiva. Permaneceram no coletivo a curadora, escritora, pesquisadora Keyna Eleison e a curadora e historiadora da arte Vânia Leal. Mas o arcabouço geral já estava definido pelo quarteto.

Para Lívia, era essencial que o sapukai fosse composto de mulheres. O projeto, afinal, é um projeto de mulheres, foram mulheres que criaram, salienta. “Foi uma escolha consciente, no sentido de que a gente vivencia um mundo muito violento. Se a gente pensar na Amazônia, a partir de uma lógica da invisibilidade, da violência e de uma série de exotismos, ela se parece muito com o corpo feminino ou feminilizado, dentro do fetiche. Partir de uma construção, nesse território, é simbólico e é importante”.

Na elaboração desta primeira edição da Bienal das Amazônias, as curadoras elegeram a palavra “bubuia”, termo comumente usado na região, como título e ponto de partida para sua conceituação curatorial. De origem tupi (bebui), a palavra pode ser entendida como o “ato ou efeito de boiar (bubuiar), flutuar sobre as águas”, ou ainda sobre “rotas movediças” e “marés flutuantes”, como sugere texto curatorial, em que “as noções de lugar, crença, identidade cultural e modelo econômico são fortemente deslocadas”.

Segundo o texto curatorial, o termo é diretamente inspirado “no dibubuísmo defendido por João de Jesus Paes Loureiro”, um “poeta-profeta” que “nos conduz pelos meandros do tempo e da memória do universo amazônico. Flutuar sobre as águas simboliza a conjugação perfeita de movimento e inércia em favor do prazer, da reflexão e da integração com o meio ambiente, e diz muito sobre a perseverança e resistência de quem habita a região”. 

Ainda de acordo com o texto curatorial, Loureiro ressaltava que “a paisagem amazônica é composta de rio, floresta e devaneio, cuja compreensão se dá por meio de uma dupla realidade: imediata e mediata. A imediata seria uma de função lógica e objetiva. A mediata (que aqui nos interessa) de função mágica, encantatória, estética. A primeira edição desta Bienal das Amazônias é, portanto, um convite à mirada para este território a partir da superposição dessas duas realidades, à semelhança do que acontece durante a mirada de um rio em fluxo: ora o olhar se fixa no leito e suas pedras, ora na água em movimento, ora simultaneamente nas duas.”

Keyna foi convidada para o coletivo em 2021. A curadora destaca que a Bienal nasce como proposta de instituição, ou seja, “como algo que quer e, tomara, seja longevo. E num território não centralizado, de certa forma contra-hegemônico. Não só em relação ao Brasil, mas em relação ao continente e ao planeta, também. Dentro do Brasil, por exemplo, não é no norte que está a linha de pensamento. As Amazônias são um lugar de estudo de pesquisa, de desejo de proteção, mas não é dali que está saindo todo o conhecimento oficialmente. Sai do Rio de Janeiro ou de São Paulo”, argumenta.

Para Keyna, seu trabalho em campo trouxe apenas boas surpresas – mas ela lamenta que sejam surpresas. “Enquanto pesquisadora e curadora, é uma pena que a gente não se articule tanto enquanto territórios vizinhos. A gente tem que brigar muito por essa articulação com os países que nos contornam, mesmo com os latinos mais conhecidos ou, nem que seja, apenas os territórios amazônicos latinos. Não vou dizer que a pesquisa tenha sido feita num formato de guerrilha, mas foi preciso ter uma força de vontade muito maior”.

Sobre a escolha do termo bubuia, Keyna afirma que a palavra aponta, também, para uma ideia de estratégia: “Para boiar no rio Amazonas, é importante você ter um corpo, um conhecimento muito forte, tem que estar muito alerta”. Usando-o como título e conceito, continua a curadora, “a gente traz uma ideia de posicionamentos estratégicos em tempos de guerra, para desenvolvimento do prazer, para proteção de desejos, para que a gente siga podendo sorrir”, explica. “Tem uma ligação muito forte com vida, com práticas que trazem vida, mas que não impedem o reconhecimento da estrutura, das violências que podem nos machucar, nos ferir”.

A partir daí, foram desenvolvidos seis eixos que orientam a curadoria: fontes vitais cambiantes, que traz referências a um centro de culto religioso para o povo inca, com particular atenção e dedicação à água; cisão de contrato, “uma tomada de consciência dos pactos e estruturas (sociais, econômicas, raciais e estruturais) que regem nossa existência”; poder de compartilhar, que se debruça sobre políticas de compartilhamento e práticas artísticas coletivas; clima(x) t(r)emor, “eixo que acata a ideia de que é impossível dar conta de um ‘todo'”; vidas linguagens, que “reconhece as distintas verdades, vidas e linguagens propostas por diferentes cosmovisões”; e, por fim, encontros de desejos, “eixo que vai afirmar as escolhas da curadoria como uma finalidade para construção desse corpo–expositivo”. 

“A partir desses eixos, a gente assume formas que já existem de proteção, que a Amazônia tem, que não dependem de iniciativas vindas de fora, de um governo, por exemplo, mas, sim, das populações, de conhecimentos, de práticas que já acontecem desde muito antes, dentro das relações das populações originárias, das nações originárias, e que seguem até hoje”, analisa Keyna.

A curadora conta que a Bienal trará, por exemplo, práticas que normalmente estariam num campo antropológico, mas que são vistas hoje como objetos de arte. “Algumas performances, que são objetos que têm cheiro, que têm som, vão estar sendo colocadas ali como um ritual para a Bienal. Os termos artísticos são bem limitadores, mas a gente pode chamá-los de instalações, além de terem um caráter performático”, explica.

Para Keyna, o mercado das artes vem se apropriando, nos últimos anos, da produção indígena, o que é colocado também como um desafio para as curadoras. “Mas as próprias bienais se colocam nesse desafio, de articular mercado, intelectualidade, posicionamentos geopolíticos de uma forma muito potente. E eu, apesar de ser a gringa aqui, a sudestina, carioquésima, quero trazer a potência política que uma bienal tem. A gente quer atrair colecionadores nacionais e internacionais, a universidade, os políticos etc., para ver essa proposta a que costumamos chamar, como lema, de ‘nada sobre nós, sem nós'”.

Prossegue Keyna: “A gente não está querendo brigar com o mercado, pegar nada de volta. Mas falar ‘beleza, já entendemos, agora venham para cá, ver que também é gostoso’. E não a partir de uma peleja. A gente quer dançar junto. É uma proposta de festa, é uma proposta de prazer”.

Nascida em Macapá, mas moradora de Belém há 30 anos, a curadora Vânia Leal conta que já tinha a experiência de mapear artistas na Amazônia Legal a partir de um projeto feito em 2002, com o Itaú Cultural. A partir desse conhecimento, afirma que, por a Amazônia ser um lugar de violentação – “de que fazem parte o ciclo da madeira, a cobiça pela nossa biodiversidade, a exploração desenfreada de nossos minérios, de nossa fauna e flora, a morte no campo” –, a questão incide significativamente no sistema da arte na região. “Há uma reverberação não-cliché, mas crítica, em todas as linguagens da arte”, diz.

Vânia explica que, a partir de sua pesquisa de campo, está trazendo um núcleo de artistas de uma Amazônia profunda, que está “fincado lá na floresta, não é representado por galeria, não está num salão de arte, mas tem uma experiência artística inquestionável”.

“Não são nomes legitimados por um sistema de galerias, de bienais etc. Eles estão fora desse grande circuito da arte hegemônica. É o mateiro, o indígena, o quilombola, o caiçara, o ribeirinho, o afro-indígena. Todos esses povos que habitam as Amazônias”, diz. “Há uma comunicação planetária, a gente sabe disso. Aproximações que só a arte convoca. Mas tem um modus operandi muito particular aliado à cultura de cada lugar, mesmo. Eles têm um maneirismo tão seguro, tão próprio, que ele é descolado de códigos hegemônicos. Até mesmo os materiais, de que estes fazedores de cultura lançam mão, os diferencia, por causa de sua origem”.

A curadora ressalta que a região vive, ainda, um processo de muita invisibilidade. “Às vezes, a seta vira para cá, mas por conta de uma pauta, por exemplo, de representatividade. É preciso ainda, pedagogicamente, ter uma cota, até que o eixo centro-sul se acostume e nos coloque num pé de igualdade de discussão crítica, de percepção, de conhecimento de um lugar”, argumenta. “Eu vislumbro uma grande abertura de caminho, para apresentar estes artistas, levantar esta discussão ao nível de uma Bienal. E que as pessoas vejam aqui um sistema de arte consolidado.”

SERVIÇO
1ª Bienal das Amazônias
De 3/8 a 5/11 de 2023
Direção executiva: Lívia Condurú
Direção artística: Yasmina Reggad
Curadoria: Flavya Mutran, Keyna Eleison, Sandra Benites e Vânia Leal
Endereços e horários de visitação a serem divulgados

 

35ª Bienal quer explorar novas expressões de temas como decolonialidade, gênero e raça, entre outros

Coletivo de curadores da 35ª Bienal. Da esq. para a dir.: Manuel Borja-Villel, Diane Lima, Grada Kilomba e Hélio Menezes. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo
Coletivo de curadores da 35ª Bienal. Da esq. para a dir.: Manuel Borja-Villel, Diane Lima, Grada Kilomba e Hélio Menezes. Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

A 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível, cuja abertura acontece em 6/9, divulgou em setembro do ano passado seu projeto curatorial, concebido pelos curadores Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Desde que começaram a trabalhar juntos, na virada de 2021 para 2022, eles decidiram que não haveria um curador-chefe. O coletivo propunha o que chamam de “contradança” entre seus membros, numa prática “que tem como princípio a tentativa de romper hierarquias, procedimentos éticos e normativos que encenam estruturas verticais de poder, valor e violência dos dispositivos institucionais – as quais, todas sabemos, o mundo já não sustenta”, de acordo com o projeto.

Uma lista parcial de 43 artistas, duplas e coletivos selecionados foi anunciada oficialmente nesta quinta-feira (27/4). Ainda neste primeiro semestre, sairá a relação completa, com mais de 100 nomes. Em entrevista à arte!brasileiros, os curadores falam de seu processo de trabalho e tentam jogar luz sobre os conceitos desta edição, a partir de alguns dos artistas convidados e suas respectivas práticas. Leia a seguir:

ARTE!✱ – Quatro cabeças pensantes juntas: quando isso facilita e quando  dificulta?

Manuel Borja-Villel – O fato de nos unirmos, que foi algo voluntário, parte em primeiro lugar de um ato de humildade e de anti-heroísmo, de saber que uma vanguarda que siga em só um caminho não faça sentido, portanto, que os quatro juntos criem uma troca epistemológica e de governança. Epistemológico significa que talvez, digamos, as coisas tradicionais de visitar estúdios, mesmo que cada um de nós tenhamos visitado, não seja tão importante. O importante é o que cada um de nós descobriu, que não conhecíamos, e ver coisas, que pensávamos que conhecíamos, de pontos de vista diferentes. Sobre a facilidade ou não facilidade de trabalhar, se você parte de um ponto em que acha que sabe tudo e tem que convencer aos demais, a dificuldade é enorme, quase impossível. Porém, como nós não partíamos do que sabíamos, mas sim do que desconhecemos e do que queríamos aprender, a facilidade foi grande.

ARTE!✱ – Vocês partem de uma ideia de humildade, mas hierarquizar faz parte da natureza humana. Nós hierarquizamos nossa rotina, nosso pensamento etc. E, quando a gente pensa em um coletivo, em que medida essa horizontalidade também não engessa os processos e intimida a expertise individual de cada um?

Manuel – As crianças não se esquecem de praticamente nada do que aprendem em determinada idade. Por quê? Porque aprendem a se relacionar com elementos afetivos. No nosso caso, essa hierarquia não teve qualquer sentido ou papel, não houve esse desejo. Todos partíamos desse elemento afetivo, desse elemento de querer aprender uns com os outros, de saber que, digamos, tínhamos que descolonizar nossa forma de pensar e, por consequência, não há que hierarquizar. Há um elemento afetivo que vai ligado a todo o elemento de conhecimento.

Grada Kilomba – Acho muito interessante a sua definição de que faz parte da natureza humana hierarquizar. E eu acho que esse é o grande cerne do nosso discurso, que não faz parte da natureza humana. É um fruto de uma história colonial e patriarcal que se repete, e é exatamente essa a urgência: desmantelar essas hierarquizações. Então, como nós nos formamos, com essa horizontalidade, os artistas que nós escolhemos, que obras de artes nós escolhemos, vão exatamente nessa manifestação de desmantelar aquilo que nos parece quase normativo e natural que é a hierarquização que está sempre associada com um exercício de poder e violência, mas que não é natural. Tornou-se politicamente exercido, mas não é natural. Isso são as coreografias do impossível.

Diane Lima – A gente olha para a lista de artistas e entende que suas obras não tematizam essas relações, elas tentam trazer, a partir das suas perspectivas, outros modos de ver que não remontam a hierarquia. Isso é apenas um exemplo. A gente tem alguns outros exemplos de obras que frustram uma ideia de arte política, que coloca ou reduz a capacidade de expressão do artista a uma outra posição representativa, ou literal, ou extremamente figurativa, e são obras que trazem perspectivas abstratas, ou que conversam com elementos não humanos, ou que mobilizam materialidades orgânicas, ou que conversam com determinados níveis espirituais e que não necessariamente voltam para tematizar a decolonialidade.

A gente entende que decolonialidade é parte de um conhecimento incorporado. Quando a gente fala sobre humildade, sobre desejo de conversar e de negociar e trocar, é também parte de um entendimento de que a gente precisa fazer um gesto, e que esse gesto ele está na prática desses artistas. Esse é um fator importante pelo qual a gente não traz determinadas questões enquanto tema, mas, sim, enquanto uma performance e uma prática cotidiana que, obviamente, a gente jamais as colocaria em lugar um romântico. Acho que a gente compreende as dificuldades, os ruídos, os atritos, os conflitos [da horizontalidade proposta]. Talvez, a diferença seja o desejo de estar em um conflito, permanecer em um conflito e desfazê-lo a partir dessas perspectivas e de um processo de compreensão que a gente não sabe tudo e que, portanto, o mundo traz uma multiplicidade de conhecimentos, de epistemologias, de cosmologias, e o nosso exercício com as Coreografias do impossível é justamente trazê-los ao espaço e apresentá-los ao público.

ARTE!✱ – O texto curatorial, divulgado em setembro, foi considerado vago por muitas pessoas. Pensando que vocês já haviam começado a trabalhar de 2021 para 2022, ele era exatamente um instantâneo do processo naquele momento? Ou ele revela o quanto todo o trabalho, até o fim, será um processo? Esse caráter movediço vai permanecer até a abertura e mesmo durante o período em que a Bienal estiver em cartaz? 

Hélio Menezes – Essa dimensão processual existe em toda e qualquer criação de Bienal, algumas confessas. Em nosso caso, absolutamente confesso. Nós recebemos diferentes retornos, críticas, comentários, e acreditamos que um evento como a Bienal de São Paulo mobiliza paixões, mobiliza discussões, mobiliza debates, e seria estranho se não houvesse comentários e retornos, inclusive de discordância. De todo modo, acho que a boa crítica é aquela que se baseia em algo acontecido, em algo que se realiza e que se manifesta. Acho que críticas, comentários que, de alguma maneira, tentam especular o que virá, em cima de imaginações do que virá, tem um valor, talvez, menos importante do que uma crítica baseada na realização efetiva. Recebemos também uma série de elogios e comentários, e acho que esse debate faz parte e nos interessa. Não diria que há um instantâneo de absolutamente nada. São veiculação de ideais em uma dimensão absolutamente processual e que se vai acumulando, e que se vai desfazendo, que vai se colapsando e que, para dar dois passos para trás, a velocidade ainda é de uma coreografia, ainda é movimento.

ARTE!✱ – Umas das avaliações acerca da proposta curatorial do coletivo partiu da crítica de arte Sheila Leirner, curadora-geral das 18ª e 19ª Bienais de São Paulo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo. Entre outras observações, ela colocava que a política se sobrepunha à estética no projeto. 

Hélio Menezes – A 35ª Bienal traz e trará novas imaginações possíveis entre arte e política, expandindo portanto um certo campo, sobretudo nos últimos anos, nas últimas décadas talvez, que atrelou, às vezes de maneira muito rígida, arte e política ao campo da representação, da representatividade ou da figuração. Esta Bienal apresenta e apresentará outros modos de relação mais expansivos.

ARTE!✱ – Como isso vai ser materializar nas obras vistas pelo público? Pode dar exemplos?

Hélio – Práticas que vão em linguagens abstratas, práticas que vão em linguagens performativas, que vão buscar em referência a espiritualidade ou da história, seja história de curto prazo ou de longuíssima duração. Referências que não são necessariamente a de eterna confrontação, que não são necessariamente de eterna frontalidade, mas que há um espaço para imaginar outros mundos, que abra espaço para o sensível, pro poético, pro onírico, ou quem sabe acelerar a destruição desse próprio mundo em que estamos a partir de outros modos de engajamento, não necessariamente reduzidos a militância expressiva, não necessariamente reduzidos a uma frontalidade combativa ou mesmo à figuração excessiva como únicos campos possíveis da criação artística. Estamos mais de fato a trazer essas inovações que não vem apenas de uma perspectiva curatorial, mas que vem da prática artística. Esse conjunto de 43 projetos e artistas que divulgamos, que se estenderá nos meses subsequentes, traz em suas próprias práticas outras imaginações da relação entre arte e política, que às vezes perpassa, por exemplo, pela plantação de milhos de semente crioula, como é parte do projeto do Denílson Baniwa, ou que podemos passar pela escultora, pintora, pensadora Torkwase Dyson, que propõe, a partir de um certo pensamento negro, outro modo de pensar aquilo que ela vem chamando de pensamento negro, e esses exemplos aqui podem se multiplicar em absolutamente todos os projetos. São essas novas, inesperadas e mesmo incontáveis maneiras de se pensar arte e política, de se pensar contexto, impactos de contextos impossíveis sobre criação estética e artística, que interessam à 35ª Bienal.

ARTE!✱ – Em alguns desses projetos, vocês se depararam com a surpresa de algo que absoluta e imediatamente traduziu o que vocês tinham em mente? Em caso afirmativo, quais, por exemplo?

Manuel – Seguindo o que dizia sobre a separação entre arte e política, parece que as coisas têm que seguir uma disciplina, e quando você sai dessa disciplina, vira política. Por exemplo, a separação entre uma relação com o lago, com a natureza e a prática artística em certas comunidades maia não existe. Portanto, quer dizer que, quando estão defendendo o lago, estão fazendo política. Quando estão fazendo uma ação poética no lago, estão fazendo arte. Portanto, há uma separação que não existe. A Bienal está aqui, e a decisão da Bienal ser gratuita é política. No primeiro texto, falamos da palavra enigma, que é o contrário dessa visão do político como um elemento literal, como um elemento que não está dado. E, durante o processo, encontramos surpresas, encontramos elementos de autores que, conforme vamos falando e vamos descobrindo, em que traduzir não é a palavra, mas que iam se relacionando e acrescendo ao que estávamos falando nos múltiplos textos que circulavam no começo. Philip Rizk, um artista egípcio que vai trazer uma peça para a Bienal que se chama Awful Sounds, e que tem relação com a ideia que tinham os ingleses quando estavam no Egito, da música popular. Eram literalmente sons horríveis para eles, era algo era horroroso para eles. Curiosamente, nos próprios anos 1930, os egípcios fizeram um grande seminário para estruturar um tipo música que vinha de todos os lugares e que parecia que era totalmente independente, mas que criaram um sistema de anotação, que era britânico, onde há um elemento de auto-colonização, um elemento bastante complexo. Curiosamente, essa era uma ideia que nos estava circulando e Philip, que faz de um modo em que o artista é muito mais completo, muito mais sutil, sente não com as palavras, mas percebe com o corpo, e digamos que essa relação há existido continuamente onde pensávamos que era de uma forma e, conversando com os outros, percebemos que era de outro modo.

ARTE!✱ – À medida que se voltaram para os artistas, para fazer a seleção, sentiram que havia um grande espírito do tempo reunindo as suas ideias e as práticas deles? Havia uma confluência? Ou vocês estavam trazendo um elemento mais surpreendente, uma provocação para eles?

Diane – O resultado nesse momento parcial da lista de artistas vem de um longo processo de pesquisas que a gente reúne para a Bienal, e é difícil precisar em que momento a gente conhece esses artistas, que começamos a acompanhá-los, a conversar, a ter intimidade com a obra e com as práticas, inclusive porque muitos deles já não estão mais entre nós. Há um exercício muito grande de compreensão das urgências do nosso tempo, quais são as necessidades de determinados debates, quais são as possibilidades de imaginação as possibilidades de reorganizar determinados tipos de pensamentos, determinadas práticas de conhecimento e olhar para as coreografias do impossível, qualificando de onde a gente parte sobre o que é o impossível, que determinados contextos se tornam impossíveis por questões econômicas, por questões sociais. Pensando que trabalhamos com um espaço que é internacional, que coloca o Brasil em relação a outros territórios e espaços, então, nesse sentido, é interessante notar essa comunicação e essa expansão temporal, como a gente olha para essa dinâmica do tempo e do espaço, e como isso se reflete massivamente na lista de artistas.

ARTE!✱ – Em trechos do projeto curatorial, vocês falam de “gestos de aprofundar, compactuar, colapsar e aproximar os arcabouços teóricos, as referências simbólicas e repertórios estéticos que conformam a própria coletividade que somos. Esses elementos que sinteticamente chamamos de inter ou multidisciplinaridade”. Também que “buscam coreografias que colapsam as categorias estéticas do pensamento moderno, criando uma imagem fractal onde o político, histórico, orgânico, físico, emocional, espiritual se une”. Isso tudo já não está dado nas práticas da arte contemporânea há alguns anos? Não são pontos pacíficos?

Manuel – De fato, há artistas de outros momentos que, obviamente, coisas que estão em outras épocas, mas que [agora] se interpretam de outra forma, [pois] estavam em outro contexto. [Um exemplo é] Stanley Brouwn, um artista do Suriname que vivia na Holanda. Existe uma série de elementos [em sua obra] em que ele não queria aparecer, não se deixava fotografar, era como uma variante. As urgências do presente, o trabalho que estamos fazendo, os contrastes com artistas mais jovens, mostram que não era assim,  mostram que a sua invisibilidade tem relação com alguém do Suriname que estava na Holanda. Tem relação com a dança, com o corpo, com o performativo, com as medidas dos braços, com a relação com o mundo. E, portanto, sei que estava ali, mas uma coreografia que estava limitada, estava como em uma camisa de força, onde existia, mas somente em uma direção, se via só de um modo, mas não de outro. O que nós queremos é um tipo de coreografia que se relaciona, onde uma coisa te dirige a outra e vemos que esse movimento é importante.

ARTE!✱ – De todos os temas emergentes e urgentes sobre os quais as práticas artísticas vem tentando se debruçar, surgiu algo novo no horizonte à medida que vocês estavam concebendo o projeto e trabalhando com esses artistas?

Hélio – Evidentemente. Todo processo artístico é um processo que traz uma dimensão enigmática, um processo que traz uma dimensão de surpresa, de conhecimento que inclusive se dá através de várias faculdades para além daquela dimensão popularcêntrica e que portanto existem, ou pedem, dos visitantes, uma relação afetiva, emocional, sensível, sônica, olfativa, por vezes. E, portanto, esses elementos e processos artísticos, talvez aí sim, para usar um pouco da sua última pergunta, sempre estiveram em qualquer processo de formação artística. Um elemento que não se encerra em uma dada explicação, que não se reduz ao modo como eu leio, porque certamente o modo como você ou outras pessoas se relacionaram com esses mesmos trabalhos abrem outros campos inimagináveis. Então, evidentemente, e isso é um ponto bem importante, não temos qualquer ambição enciclopédica nas Coreografias do impossível. Não temos qualquer ambição de fazer um mini mapa-mundi ou de uma cobertura generalizada e extensiva do globo. Trata-se de  entender como alguns processos e alguns contextos impossíveis impactam diretamente na produção artística e estética e política de determinados artistas, trata-se de entender como esses artistas vivem em contextos impossíveis, mas também em possibilidades que eles encontram de confrontar, escapar, negar, sonhar esses contextos impossíveis. Se não houvesse um processo de surpresa no meio do caminho, se não houvesse uma ampliação de nossas expectativas, isso seria tudo menos uma Bienal de Arte.

ARTE!✱ – Nesses encontros com os artistas, algum deles levou vocês para outros caminhos que vocês não tinham trilhado ainda?

Manuel – Inclusive, com o que pensávamos que conhecíamos. Mencionei o caso do Stanley Brouwn, e há muitos outros que fizeram com seus estilos distintos. Às vezes com nomes, com ideias, com opiniões, com muitas coisas. Obviamente, isso nos impulsiona a repensar aquilo que nós acreditávamos que conhecíamos e que vimos que, talvez, pudéssemos conhecer de outro modo, e esse espaço em comum que é importante. Os maias e os guatemaltecos têm uma palavra, uma expressão muito boa, que explica o que é estar em comunidade. É o andar parejo, é o andar sempre um com o outro. Não se aprende sozinho. Você pode memorizar sozinho, mas se aprende com os demais e se aprende com os demais à partir da abertura, a partir de entender que, no fundo, todos sabemos pouco e que a ideia de um conhecimento enciclopédico não existe, é um conhecimento que se impõe para que outros acreditem que seja universal, mas esse experimento de humildade, que eu acredito ser fundamental, te faz crescer de forma contínua, por isso dizíamos que esse processo vai seguir depois da Bienal.

ARTE!✱ – Um dos objetivos da Bienal é formar público. Esse público não iniciado vai se surpreender com que tipo de manifestação?

Diante – A gente tem uma infinidade de linguagens artísticas na Bienal. A gente tem desde pinturas, desenhos, gravuras, como também processos coreográficos, obras cênicas, paisagens sonoras. Acho que existe uma multiplicidade de linguagens que pode abrir um espaço interessante no sentido da mediação. A própria mediação em si com o público, falando de um público que talvez não seja tão íntimo das artes visuais, essa é uma preocupação nossa central na Bienal. Não é a toa que nós lançaremos no sábado [29/4] nosso material educativo, é um material que tem essa tentativa. A Bienal é conhecida por sua equipe [do programa educativo] permanente, e, pensando em uma Bienal que é pública e gratuita, nós entendemos que há uma tentativa e um desejo muito forte da Bienal que o educativo tenha um determinado protagonismo durante esses processos de construção, de mediação, de fruição, de recepção e de hospitalidade do público dentro do espaço expositivo. Nesse sentido, é muito interessante que alguns artistas que estão na lista também já apresentam algumas proposições filosóficas, poéticas, a exemplo da Inaicyra Falcão, que é uma pensadora, uma cantora lírica, uma coreógrafa, e traz reflexões sobre o que ela chama dessa coreografia e desse corpo espiralar, sobre essa possibilidade de ter as matrizes africanas como um lugar epistemológico de produção de conhecimento. Do mesmo modo o Hélio comentou brevemente sobre a Torkwase Dyson, que é uma artista que tem pensado através da abstração, tanto esculturas quanto desenhos, o modo como determinadas migrações forçadas ou deslocamentos forçados podem ser traduzidos ou refletidos em composições abstratas através do que a artista chama de um pensamento composicional negro. Há uma série de elementos nessa publicação que nos ajudam a nos aproximar e aproximar o público e retirar essa ideia elitista de que as artes visuais criam esse distanciamento. Estamos apresentando uma série de linguagens e de artistas que estão muito, de fato, felizes ao encontrar com esse público.

Manuel – Antes falamos que a Bienal parte da vontade de dirigir-se e entender as urgências do presente e, como as impossibilidades são muitas – ecológicas, há uma guerra, pandemia, desigualdades, linguagens – não há um único público, são muitos os públicos, e cada um pode encontrar suas próprias coreografias, suas próprias respostas, perguntas. Não há uma única resposta e todos podem vir e, como dizia a Diane, outra coisa é a estrutura de mediação, que pode haver entre determinadas seções e obras.

ARTE!✱ – Ocorre a vocês algum exemplo de uma obra que, aparentemente, seria algo que se debruça sobre uma questão individual ou íntima, mas que justamente ela se vasculariza para o coletivo, para os temas urgentes em pauta?

Hélio – São muitos os exemplos possíveis. Te faço uma pergunta em forma de resposta. Quando uma artista como a Aline Motta, por exemplo, estabelece um processo de pesquisa de sua própria genealogia, entendendo, por exemplo, a sua dimensão do lado paterno, masculino e branco, [isso] a levou a encontrar uma documentação capaz de retraçar a linha genealógica de sua família que remete, com muita rapidez, ao século XVI. Enquanto que, o lado feminino, e de origem negra africana de sua família, não remonta para além da sua avó. Isso exige da artista um processo genealógico, criativo, especulativo e de uma fabulação crítica de reconstrução de uma história absolutamente pessoal, absolutamente familiar, mas que é indissociável de uma história transatlântica de escravização, de deslocamentos forçados, de criação de territórios dentro da diáspora, de perseguição, mas também de afago, de violência, mas também de resiliência. Como separar essa dimensão absolutamente familiar e subjetiva que se origina a partir do trauma da mãe da artista, como dissociar de uma dimensão não só história brasileira, mas de todo o Atlântico? Esse é um exemplo, nós poderíamos levar outros tantos aqui. A Dayanita Singh é uma artista que tem uma longa relação de intimidade com uma amiga, com uma pessoa que lhe era do seu ciclo de amizades, e que gera com essa pessoa uma série de produções de momentos de enorme intimidade, de trocas afetivas entre elas, ou momento de absoluta cotidianidade, e sendo essa pessoa alguém que faz parte de uma dissidência sexual de gênero, como separar a dimensão da relação íntima entre a artista e a amiga de uma dimensão política muito mais ampla que questiona e colapsa categorias de sexualidade, gênero, do que é íntimo, do que é privado, do que é público?

ARTE!✱ Em 2021 e 2022, quando vocês começaram a trabalhar, nós estávamos no Brasil sob um clima político muito tenso. As mudanças que ocorreram, a volta de uma centralidade na cultura para o novo governo, quais eventuais elementos esse câmbio sociopolítico, ainda frágil, trouxe para a curadoria de vocês?

Grada – É interessante, porque, voltando um pouco atrás, essa questão de separar a biografia do político, voltamos um pouco ao início da conversa. À ideia de que nós podemos fragmentar o corpo do coração, da mente, da sexualidade, do espiritual, do ancestral, do político. Eu acho que desmantelar esse mito é grande parte do que nós fazemos nas Coreografias do impossível. Foi nos dado e nós trabalhamos ao longo do tempo e do espaço com a sabedoria que já não nos serve para explicar quem nós somos, assim como não serve para a produção artística, que é muito mais complexa, então todas esses artistas e o que nós temos conversado aqui em conjunto [refletem] a urgência de olhar para nós próprios como humanos, nessa complexidade, e que é impossível separar a biografia da política e do espaço do político. Que é tudo tão mais complexo, exatamente essa fragmentação e essa segmentação dos passos e de tempos em nós próprios é o que serve como uma série de identidades, raciais, de gênero, sexuais, de políticas de clima, de crise, humanas etc. O que serve são essas opções, então como resposta é impossível separar uma coisa da outra. O grande exercício das Coreografias do impossível é exatamente trabalhar com esse conceito de complexidade e sofisticação que é o que esses artistas trazem, e que depois conseguem atravessar uma série de materiais, uma série de narrativas, trazem temas que vão do LGBTQA+ a crise climática, pobreza, migração, e todos eles habitam o mesmo espaço e o mesmo tempo. E é isso que nós achamos tão interessante e tão importante, porque essa pergunta ‘ah mas isso já não foi tratado?’, e muitas dessas coisas são tratadas segmentadas, fragmentadas, separadas, com um núcleo que aparece dentro de uma exposição e que vamos abordar e vamos olhar segmentado e separado, e depois olhar de uma outra forma. Porque é urgente e importante ver essa complexidade que trazemos dentro de nós. Durante muitos anos, eu dei aulas na universidade, eu fazia sempre uma brincadeira com meus estudantes e nós fazíamos, em Berlim, um passeio pela universidade, que era um palácio, com muitas figuras e esculturas históricas. E nós passeávamos para olhar que figuras eram e como eram apresentadas, e as figuras eram apresentadas com uma cabeça com pescoço e o busto. Ou seja, a sua existência era reduzida à intelectualidade a ao cognitivo. Eram intelectuais sem corpo, em que o corpo, a emoção, os gestos, o gênero, a ancestralidade, a história, o político e o contexto não é mencionado. Por isso são bustos, apenas a cabeça conta. E eu acho que tudo o que nós falamos aqui e o que as artistas trazem e o que as Coreografias do impossível trazem é exatamente questionar todos os saberes que nos foram dados e a urgência de criar questões na íntegra, na nossa complexidade.

SERVIÇO
35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do impossível
De 6/9 a 10/12
Curadoria: Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel
Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera – Portão 3
Entrada gratuita

Colaboradores da edição #45

Maria Hirzman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou na editoria de Variedades do Jornal da Tarde e no Caderno 2 d’O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Para este número, escreveu sobre Ai Weiwei na Oca do Ibirapuera.


Fábio Magalhães é museólogo, atual diretor artístico do MACS – Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba e ex-curador-chefe do MASP. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Estado da Cultura de SP e já presidiu a Pinacoteca do Estado. Nesta edição, escreve sobre os 50 anos do edifício do MASP, projetado por Lina Bo Bardi.

Nayani Real é estudante de jornalismo pela PUC-SP. Em 2016 dedicou-se ao curso de Jornalismo e Direitos Humanos, e em 2017 atuou na área de marketing digital. Atualmente, se dedica a sua carreira como ilustradora e estagia como social media e repórter na ARTE!Brasileiros.



Marcos Grinspum Ferraz é jornalista. Formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou entre 2009 e 2012 no jornal Folha de S.Paulo e entre 2012 e 2017 na Editora Brasileiros, escrevendo principalmente sobre artes plásticas, arquitetura, música, literatura e teatro. Assina a matéria de capa desta edição.


Fabio Cypriano é crítico de arte e jornalista, é o atual coordenador do curso de Jornalismo da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da ARTE!Brasileiros. Nesta edição, colaborou com textos sobre a Bienal de Berlim, a exposição AVAF, a performática ação de se votar portando livros, dentre outros.

Fotos: arquivo pessoal

Retomar nossa terra: residência artística aproxima Brasil e Indonésia

Detalhe do painel "Retomar nossa terra"
Detalhe do painel "Retomar nossa terra" com figuras importantes na política do Brasil e da Indonésia.

Durante duas semanas, o coletivo Taring Padi, da Indonésia, hospedou-se na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para uma residência artística. O projeto, realizado em parceria com a Casa do Povo e com a instituição Framer Framed, da Holanda, partiu do desejo de promover trocas entre o grupo indonésio e os militantes do MST. 

Douglas Estevam, coordenador pedagógico da ENFF e integrante da coordenação do Coletivo Nacional de Cultura do MST, fala da relação que foi estabelecida com o coletivo Taring Padi: “Há uma afinidade de história de terceiro mundo, de povos colonizados, de povos oprimidos, que tiveram que lutar contra povos de regimes ditatoriais. Ainda que sejam contextos históricos muito diferentes, temos uma história política que nos aproxima e que possibilita um espaço de conexão e de entendimento muito produtivo”. 

A ENFF fica localizada em Guararema, na região metropolitana de São Paulo, e foi inaugurada em 2005 com o intuito de proporcionar a formação política de militantes de movimentos sociais. 

Dodi Irwandi, Aris Prabawa, Hestu Nugroho e Bayu Widodo, do Taring Padi, durante a residência artística na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Foto: Luiza Lorenzetti.

A ARTE É COLETIVA

Taring Padi foi formado em 1998, um ano após os levantes que levaram ao fim a ditadura militar de Suharto. O ex-presidente Hadji Mohamed Suharto ficou no poder desde a derrubada de seu antecessor, Sukarno, em 1967, até 1998, quando renunciou. No site do coletivo, eles afirmam que um dos princípios do grupo é erradicar noções burguesas do mundo da arte como “obras de arte” e a ideia de um criador individual. Por isso, as obras do Taring Padi são realizadas coletivamente em quatro suportes principais: banners, pôsteres, fantoches e um livreto popular. 

Quatro integrantes do Taring Padi vieram para a residência no Brasil: Aris Prabawa, Hestu Nugroho, Bayu Widodo e Dodi Irwandi. Em entrevista para a arte!brasileiros, o grupo explicou que o conceito de arte está conectado com a justiça social e com a política. Portanto, seus trabalhos sempre se relacionam com as pessoas e com as comunidades que visitam para a produção de suas obras coletivas. 

“Nós tivemos muita sorte, porque pudemos absorver muitas informações das aulas que tivemos aqui. Aprendemos sobre uma parte da sociedade brasileira, sobre o cenário político e o sobre o contexto do movimento [MST], e também sobre a terra e sobre as pessoas, com quem pudemos aprender diretamente no Acampamento Mariele Franco”, explica Hestu Nugroho.

Todos concordam que as similaridades entre Brasil e Indonésia facilitaram o processo de criação e também de conexão entre os grupos. No contexto sociopolítico, Taring Padi mencionou a corrupção, a violência militar, a destruição ambiental e a pobreza como temas em comum, mas também citou que dividem o mesmo senso de humor dos brasileiros, apesar de o idioma ter sido uma barreira inicial, que foi atenuada pela presença de uma tradutora, mas também pela convivência. 

REBUT TANAH KITAA / RETOMAR NOSSA TERRA

Militantes do MST de diferentes localidades – os participantes vieram de São Paulo, Minas Gerais e Paraná – conviveram diariamente com o grupo indonésio ao longo das duas semanas de residência. Todos ficaram no alojamento da ENFF e, além das atividades artísticas, contribuíram para a organização e manutenção da escola. 

Felipe Gemelli faz parte do setor de comunicação do MST pela regional do Vale do Paraíba e foi um dos convidados do movimento para participar do projeto. Gemelli se surpreendeu com a história do grupo bem como com a política da Indonésia.

“Esse contato fez a gente entender mais o propósito do trabalho deles e a importância da retomada da terra. O MST também tem essa proposta de que a terra seja um bem comum. O trabalho de organização popular de denúncia, de crítica que eles fazem é muito pontual ao sistema. E o MST tem esse papel de denunciar os abusos do agronegócio, da especulação imobiliária. Então, a gente trabalhou nesse sentido, tanto que o painel principal se chama ‘Retomar nossa terra'”, comenta. 

O painel mencionado é o resultado da residência artística. Realizado em conjunto, a obra traz referências dos pontos de ligação entre os grupos e homenageia personalidades como Mariele Franco, Cacique Raoni e Olga Benário. O painel também celebra a fauna e a flora dos dois países e tece críticas à exploração da terra e ao agronegócio. “Retomar nossa terra” [rebut tanah kitaa] é o nome da pintura cujo mote aparece ao longo do repertório do Taring Padi. 

Além do painel, na sua passagem pelo Brasil, o coletivo também produziu fantoches, um dos suportes utilizados frequentemente pelo Taring Padi. Os fantoches fazem parte da cultura de Java, onde o grupo foi formado, como uma forma de contar histórias. Feitos com papelão, os fantoches são utilizados para apoiar manifestações populares na luta por justiça social. 

O painel foi apresentado no dia 20 de abril na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e no dia 21 de abril no Armazém do Campo, em São Paulo. Depois, o grupo indonésio viajará com a obra para a Holanda e a Austrália. 

O CONVITE  E A POLÊMICA DA DOCUMENTA QUINZE

A Casa do Povo foi a responsável por fazer a ponte entre o Taring Padi e o MST. O diretor da instituição, Benjamin Seroussi, conheceu o trabalho do coletivo indonésio durante a documenta quinze, na Alemanha, na qual o grupo foi acusado de antissemitismo. 

A documenta é uma exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos em Kassel e, em sua última edição, causou polêmica com o painel People’s Justice (2002), de Taring Padi, por conter imagens consideradas antissemitas. O painel foi coberto e rapidamente retirado da mostra. 

Na época, Fabio Cypriano escreveu para a arte!brasileiros: “O fato gerou um pedido de desculpas formais no site da documenta, tanto por parte do ruangrupa [coletivo que assina a direção artística da documenta quinze], quanto do Taring Padi, além de ter sido organizado um debate sobre antissemitismo na arte, no final de junho. O Taring Padi, aliás, ocupa vários espaços da mostra, um dos mais belos em uma antiga piscina pública, o Hallenbad Ost, com uma diversidade de cartazes e pôsteres de demonstrações políticas, muitos feito como gravuras. A polêmica, no entanto, funcionou como combustível para guerras culturais que gostam de atacar arte contemporânea”.

O banner de 8 x 12 metros foi produzido em Yogyakarta, na Indonésia, em 2002, por diversos membros do coletivo. As ilustrações buscavam criticar a ditadura de Suharto, mas continham dois personagens judeus no qual um tinha um chapéu da SS, a polícia nazista, e o outro estava representado como um militar da Mossad, o serviço secreto do Estado de Israel.

No pedido de desculpas, disponível na íntegra no site da documenta, o grupo afirma: “A imagem que usamos nunca teve a intenção de ser o ódio dirigido a um determinado grupo étnico ou religioso, mas uma crítica ao militarismo e à violência do Estado. Descrevemos o envolvimento do governo do estado de Israel da maneira errada – e pedimos desculpas. O antissemitismo não tem lugar em nossos corações e mentes”.

Para o grupo, a parceria com a Casa do Povo, uma instituição de origem judaica, representa uma virada de página para o que aconteceu: “Esse projeto é a prova de que podemos nos conectar com qualquer pessoa, de qualquer maneira”, conclui Aris Prabawa.