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Uma trajetória entre a produção artística e gestão cultural

Nicolas Soares
Nicolas Soares, diretor e curador do MAES, na inauguração da instalação Wi-Fi Grátis. Foto: Divulgação

ARTE!✱ – Nicolas, conta um pouco da sua trajetória. É raro encontrar gestores de instituições tão jovens. Quantos anos você tem?
Nasci em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo, em 1987, e sempre vivi fora do estado. Morei no estado do Rio, em Goiânia e em Salvador. Ingressei na Escola de Belas Artes da UFBA, em 2006, com o entendimento de que queria ser artista. Me identifiquei com a fotografia e, logo no início, entendi que esta seria a minha principal pesquisa.

Produzi muito durante o período da universidade. Na época, tínhamos um grupo de amigos artistas, todos da Escola de Belas Artes. Nós propúnhamos diversos projetos e montávamos exposições, muitas delas independentes, em espaços institucionais como Galeria do Conselho, Instituto Cervantes, Aliança Francesa, Galeria de Arte do ACBEU, entre outros. Individualmente, por meio de seleção em chamadas públicas: os Salões Regionais da Bahia (Funceb), Bienal do Recôncavo e Salão da Bahia, no Museu de Arte Moderna (MAM Bahia). Ocupei, entre os anos de 2008 a 2011, diversos espaços expositivos em Salvador, e essas atividades me colocaram em alguns circuitos.

Minha pesquisa como artista está centrada na imagem, em pensar as questões relacionadas à imagem-cultura e imagem-arte. O corpo sempre foi uma atenção à qual me dediquei (e continuo me dedicando): o corpo do outro, as relações de desejo, as relações de poder que o corpo exerce e às quais se sujeita também na cultura. Em um momento, também fui entendendo o meu lugar como um artista negro munido de uma câmera. Tendo o poder de definir imagens – quais imagens e como! Os discursos e as narrativas. Porque o embate, na verdade, parece indissociável e definitivo: que a existência e a ação do meu corpo – pessoalmente – atravessem o trabalho e as imagens que produzo.

A partir daí, dando um salto histórico nesta narrativa, retorno ao Espírito Santo. Vim para Vitória em 2012, e fiz o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES. No meu percurso acadêmico, fui professor substituto, assim como orientador de TCC do Ensino à Distância em Artes, na mesma Universidade, entre 2016 e 2018. Neste momento, exercendo atividades no Departamento de Artes Visuais e inserido numa vivência da academia, entendi que o ensino – dar aula – era um trabalho de arte, de certa forma, como um arranjo curatorial: a possibilidade de organizar conceitos, textos, imagens e artistas. De estender meu trabalho no espaço discursivo que é a Universidade, e por muito, o melhor lugar para ser artista.

ARTE!✱ – E quando você passou a gerenciar espaços culturais?
Fui convidado, em 2019, para entrar na Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo e assumir a coordenação da Galeria Homero Massena, que é um espaço de artes visuais tradicional no nosso cenário. Um fato curioso é que a Galeria foi o primeiro lugar que visitei quando cheguei em Vitória, em 2012. Em 2015, expus na Galeria uma pesquisa que estava desenvolvendo desde 2011, em Salvador, por meio do Edital de Artes Visuais do Funcultura (Secult). A exposição Esta Aporia: Uma Liturgia do Desejo compreendia uma reunião de fotografias em preto e branco, entre paisagens e gestos simbólicos de corpos nus masculinos na paisagem (que é a linguagem e estética com a qual trabalho há 20 anos), tentando entender como o desejo é uma força que, ao mesmo tempo em que nos impulsiona, também pode nos fragilizar como sujeitos, e, principalmente, forçando a imagem fotográfica em seu lugar devocional. Ainda ao fim da exposição, propus uma ação/videoinstalação no interior da Capela Santa Luzia – capela de arquitetura colonial, datada de 1537, que nos anos 1970 foi a Galeria Arte e Pesquisa da UFES e presenciou diversas manifestações experimentais. Esta pesquisa se desenrolou ainda em Esta Aporia: AMENSAL, apresentada na Casa Porto das Artes Plásticas, em 2016, também selecionada pelos Editais do Funcultura.

Discorri tudo isso para dizer que tenho uma relação afetiva com a Galeria Homero Massena. E ter a oportunidade de contribuir, durante a gestão, para o pensamento deste espaço, para mim, foi um privilégio! Porque uma das relevâncias, em quase 50 anos de Galeria, é que muitos artistas capixabas hoje reconhecidos em suas trajetórias expuseram na Homero Massena. Sempre foi um espaço de experimentações artísticas, respondendo e atravessando estas cinco décadas. De alguma forma, ela nos conta uma história da arte a partir daqui.

ARTE!✱ – Para além das exposições que a galeria produz por meio do Edital de Artes Visuais do Funcultura do Estado, quais foram os projetos que a própria galeria propôs que fortaleceram essa personalidade?
Durante a minha gestão na Homero, em sua missão principal como espaço de arte pública e sua posição na cena artística em todos esses anos de funcionamento, reforcei seu caráter de abertura à nova produção artística. Dessa forma, paralelamente às produções das exposições selecionadas pelos Editais do Funcultura, ativamos uma programação que pudesse estreitar esses diálogos: três edições da Mostra Videografias (2019–2021), Ciclo de Pesquisa e Formação (2019) e duas edições do Fórum da Imagem (2020–2021), todos com abrangência nacional.

As mostras de vídeo tiveram três recortes com artistas não só do Espírito Santo: Videografias do Corpo, Videografias do Meio e Videografias do Convívio — as duas últimas durante a pandemia, sendo umas das primeiras ações da Secretaria de Cultura com apoio de transmissão da TVE. Ainda durante a pandemia, realizamos os dois Fóruns da Imagem: Construção de Imagens Urgentes e Imagens em Trânsito. Foram ações discursivas articulando pesquisadores, artistas e ações educativas – resultando em duas publicações impressas e exposições, com mais de 50 artistas de todo o país. Essas atividades, por meio de chamadas públicas nacionais, me possibilitaram acessar jovens artistas de outros lugares e me trouxeram uma atenção maior a um exercício de curadoria que estava começando a fazer.

Pensar uma articulação para fora do estado é uma preocupação. Logo no início da minha coordenação na Galeria, propusemos um ciclo de palestras que acompanhava as exposições previstas no calendário. O Ciclo de Pesquisa e Formação convidou artistas da cena do Espírito Santo, como Hilal Sami Hilal, e pesquisadoras como Tatiana Rosa, em torno de alguns debates propostos. Como também apresentou e trouxe para Vitória nomes importantes da arte contemporânea nacional, como o pesquisador Guilherme Marcondes, os artistas Ayrson Heráclito e Paulo Nazareth, e a curadora fundadora da Associação Cultural Videobrasil, Solange Farkas. Acredito que este momento tenha sido importante para nos reposicionar também frente a um circuito nacional, além do fortalecimento da própria Galeria como um espaço de discussão da arte contemporânea.
O isolamento histórico do Espírito Santo é quase um trauma, porém nossa pulsante produção nas artes visuais tem vazado as fronteiras e se desvinculado desses apagamentos. Devemos considerar que o incentivo público, a exemplo dos 16 anos ininterruptos do Funcultura, e principalmente na atual gestão do Governo e da Secretaria de Cultura (desde 2019), tem investido no aumento dos recursos e repasses, e contribui de forma significativa para a produção, articulação e intercâmbio da nossa produção em artes visuais, que cada vez mais tem se mostrado nas cenas nacionais e internacionais. Realmente, a produção artística tem conseguido transpor fisicamente o território, e, obviamente, é mérito de cada artista em seus percursos e “corres”, nas frentes de batalha que todos nós, na arte, enfrentamos insistentemente. Tenho muito respeito e orgulho pelo que todos nós estamos contribuindo por esta história.

ARTE!✱ – E quem foi Homero Massena?
Homero Massena foi um dos grandes nomes da arte capixaba – mesmo sendo mineiro –, radicado no Espírito Santo, representou a paisagem do Estado no repertório de seu trabalho. Morou na Prainha, um dos primeiros bairros de Vila Velha, aos pés do morro que abriga o Convento da Penha – que, por sinal, sua subida de pedras foi retratada diversas vezes por ele. Embora esteja ligado ao modernismo, o estilo dele tem muito de impressionismo.

Homero Massena é uma figura fundamental no repertório artístico daqui, e suas pinturas atravessam gerações, como também merecem ser revistas discursivamente, a partir dos debates de agora.
Hoje, a casa em que ele morou é o Museu Homero Massena, com gestão da Prefeitura de Vila Velha. A Galeria Homero Massena, com gestão da Secretaria de Cultura do Estado, inaugurada em 1977, homenageia e, de alguma maneira, fortalece o elo entre a história e a continuidade da arte contemporânea a partir daqui.

ARTE!✱ – Quando você assume a direção do MAES? E como tem percebido sua atuação?
Em fevereiro de 2022, assumi a Direção do Museu de Arte do Espírito Santo, o MAES. O Museu estava fechado há alguns anos, por conta de um processo de reforma que reestruturou fisicamente os espaços internos, tanto administrativos quanto o espaço expositivo. Esse processo ocorreu entre 2016 e 2019; em 2020, o Museu foi reinaugurado em meio à pandemia (na primeira brecha de circulação de pessoas e reabertura dos espaços), com a exposição VIX – Estórias Capixabas, articulando dois artistas do acervo, Dionísio Del Santo e Elpídio Malaquias, com artistas contemporâneos capixabas e de fora do estado.

A pandemia foi um momento muito frágil para os espaços. E em 2022, quando assumi a Direção, a instabilidade provocada pela pandemia contribuía para o afastamento do público do Museu, e ainda não haviam sido ativadas todas as suas potências em sua nova configuração pós-reforma. O desafio que tomei pessoalmente foi – e tem sido – movimentar o MAES e expandir suas atividades com a cena cultural local, além de articular com outras instituições de representação nacional.

O MAES completa 27 anos em dezembro de 2025. Sua missão inicial de ser o grande museu do Estado foi desenhada entre os anos de 1980 e 1990 pelo crítico e curador – também capixaba de Cachoeiro de Itapemirim – Paulo Herkenhoff, em parceria com a gestão do Departamento Estadual de Cultura (DEC) na época. A reivindicação transformou o MAES em um equipamento de interlocução com grandes exposições “de bilheteria” que circulavam nacionalmente pelas capitais do país – exposições que vinham formatadas para ocupar os espaços expositivos aqui do Museu.

Com o passar do tempo, o Museu se desvinculou desses pacotes de exposições e, principalmente a partir de sua entrada como uma linha de fomento para compor a agenda, pelos Editais do Funcultura, em 2016, estreitou de forma significativa suas atividades e pensamentos com a nova produção artística local. Essa virada é o fôlego que estamos articulando agora com a minha gestão. São três exposições selecionadas pelo Edital, porém outras frentes foram demarcadas a partir de 2022, como a abertura de uma sala de exibição permanente do acervo e a ativação da biblioteca, além de parcerias institucionais, tanto com agentes do Espírito Santo quanto de outros Estados e importâncias no cenário da arte contemporânea nacional e internacional.

O programa Acervo em Diálogo, da sala de exibição permanente, aproxima recortes curatoriais a partir das nossas coleções com outros acervos e artistas, como já aconteceu com o Arquivo Público do Estado, a Galeria de Arte Espaço Universitário – UFES e até mesmo com o Grupo de Experimentação Sonora da UFES. Expor o acervo de forma sistemática me parece ser uma oportunidade não só de rever, como também de atualizar o pensamento e as perspectivas do nosso acervo e do próprio Museu.

Entre as parcerias interinstitucionais, podemos destacar a exposição inédita da Associação Cultural Videobrasil, em 2022, REVIRAVOLTA, que aconteceu no MAES e na Galeria Homero Massena simultaneamente. Também tivemos a retrospectiva do artista expoente da videoarte Éder Santos, em 2023, além da itinerância da 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível, também com extensão até o Palácio Anchieta, em 2024, e a exposição Favela é Giro, do Museu das Favelas, em 2024. Todas elas reforçam o papel institucional do Museu em âmbito nacional – não apenas recebemos as exposições, como também pensamos e produzimos junto, acionando a cena e os profissionais da área no Espírito Santo. Inclusive, podemos destacar o papel do MAES na articulação do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros, pela primeira vez fora do Estado de São Paulo.
Além disso, quanto ao acervo, nosso olhar e revisitas às coleções também nos impulsionaram em novas incorporações durante esses três anos: pelo menos 30 novos trabalhos e artistas entraram em nosso acervo. Recentemente, lançamos um programa de aquisição que vinha sendo desenhado desde 2022 com a minha entrada: o Edital Diálogo com Acervo faz o exercício de olhar para dentro e propor conexões com a arte contemporânea nacional. Nesta primeira edição, a proposta curatorial se volta para uma artista do nosso acervo, Nice Avanza. E, dessa forma, é 100% direcionado a artistas negros, negras e indígenas – uma inserção direta de dez artistas, que se mostra fundamental na história do MAES e na tentativa de reparação e pluralidade para o acervo. O acervo está sendo composto desde a inauguração do Museu, hoje com mais de 600 obras, e tem cinco principais coleções: Dionísio Del Santo, Nice Avanza, Elpídio Malaquias, Raphael Samú e Maurício Salgueiro. Outros artistas e obras orbitam e compõem o acervo como um todo.

Podemos também destacar uma outra ativação que temos provocado dentro do Museu, com a cena musical. A programação MAES TONS aproxima a produção de artes visuais com a produção musical, e também aproxima e cria interlocuções entre os públicos. Já tivemos três edições com contribuições curatoriais da Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES) e dos Centros de Referência das Juventudes (CRJs).

ARTE!✱ – Conte-nos um pouco da trajetória do MAES…
O MAES foi inaugurado em 1998 com uma exposição dedicada à trajetória e à produção de Dionísio Del Santo, reconhecido como um dos nomes fundamentais do modernismo brasileiro. Dionísio era um artista minucioso nas técnicas gráficas, além de dedicado à pintura, investindo em uma precisão geométrica em suas composições. Nascido em Colatina, aqui no Espírito Santo, viveu e produziu no Rio de Janeiro, mas sempre foi identificado como um artista capixaba.

Inclusive, tem um detalhe curioso e muito interessante: foi ele quem auxiliou na gravação em silk das garrafas de Coca-Cola no projeto Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles. Apesar de trabalhar com linguagens tradicionais, Dionísio também contribuiu para um momento histórico da arte experimental. Considerado por muitos um artista concretista, Dionísio, no entanto, não se via assim.

Acredito que seja muito simbólico que a exposição de Dionísio tenha marcado o início do Museu, fruto de uma longa negociação e trocas com a Secretaria de Cultura, como podemos ver em alguns documentos e manuscritos nos arquivos do MAES. Dionísio faleceu logo após a abertura da exposição e nem chegou a participar do evento de inauguração. A partir desse momento, o MAES passou a se chamar Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo, em sua homenagem. Foi também o início do nosso acervo, com a incorporação de trabalhos após a exposição. Costumamos dizer que o acervo do MAES começa com Dionísio.

ARTE!✱ – Hoje, quem são os artistas do Estado a serem expostos no MAES?
Em todos esses anos de exercício, o MAES já produziu cerca de 120 exposições. Só na nossa gestão, a partir de 2022, foram mais de 20 mostras. Quando consideramos esse histórico ao longo do tempo, vemos que artistas importantes do circuito capixaba passaram por aqui: como já dito, Dionísio Del Santo (1998), a exposição retrospectiva da Nice Avanza em 2000 (que merece um parêntese – desde 2019 tenho me dedicado a revisitar e repropor discursivamente o trabalho da Nice, e faremos essa exposição 25 anos depois da última ocorrida no Museu).

Também podemos destacar Meditações Extravagantes (2012), do artista capixaba Nenna, hoje radicado em Paris. Essa exposição, por exemplo, ocupou desde a calçada do Museu até toda a área expositiva e se estendeu até a Galeria Homero Massena – estratégia que temos repetido com recorrência.

Com a entrada do MAES nas linhas de fomento do Edital de Artes Visuais do Funcultura, o Museu passou a acompanhar mais de perto a produção artística contemporânea local, já que os editais são destinados a proponentes residentes no Estado. Os projetos são selecionados prevendo arranjos expográficos adaptados ao novo espaço após a reforma: amplo, iluminado por luz natural, com janelas que permitem negociações com a paisagem urbana em torno do prédio (prédio este que, agora em 2025, completa 100 anos).

Os projetos recebem recursos do Fundo de Cultura do Estado (Funcultura), hoje com um repasse de R$ 150 mil – o dobro do executado no início da gestão, em 2019. Esse aumento acompanha a inflação e os valores de serviços no mercado, mas também reflete a reivindicação de profissionais da classe artística e nossa atenção no acompanhamento do desenvolvimento de cada exposição.

Nossa expectativa com as três exposições anuais selecionadas é que o Museu amplie sua conexão com a nova produção artística, assim como seja palco para o desenvolvimento de pesquisas de artistas com maior tempo de carreira e reflexões sobre seus percursos. Atualmente, as diferentes gerações da produção artística do Espírito Santo têm se encontrado no MAES.

Importante lembrar que, entre os editais da Secult, o de ocupação dos espaços (MAES e GHM) foi um dos primeiros a ter reserva de vagas destinadas às pessoas negras e indígenas, em 2021 – o que reflete diretamente na produção, nas exposições e no nosso público.

ARTE!✱ – Então, nesse sentido, com foco nas exposições de artistas do Estado, você conseguiria elencar algumas delas?
Desde 2022 até hoje, foram sete exposições projetadas especialmente para o MAES e selecionadas por meio do Edital. Até o fim de 2026, teremos mais sete. De modo geral, as exposições têm explorado as trajetórias dos artistas, refletindo sobre seus processos e pesquisas, a partir de uma elaboração espacial dos trabalhos em novas perspectivas.

Em 2023, tivemos ANTICORPOS, de Luciano Feijão e Juliana Pessoa – dois artistas do desenho que desenvolvem reestruturações sobre a representação dos corpos, considerando entendimentos de gênero e racialidade. Também em 2023, a exposição Sete Caminhos, de Rafael Segatto, em parceria com Welington Santos e Renan Bono, articulou uma relação expandida entre o MAES e o Quintal Bantu – espaço de aquilombamento, resistência e encontros artísticos no alto da Fonte Grande (região no entorno do Museu). A mostra contou com trabalhos instalativos manejando elementos da paisagem marinha, pinturas, trabalhos sonoros e a provocação de andar pelo centro da cidade, traçando sete caminhos e despertando outras percepções.

No mesmo ano, Descarrilho reuniu nove artistas (Alessa Felix & Jessica Sampaio, Filipe Borba, Jaíne Muniz, Jessica Maria, Maria Menezes, Thiago Sobreiro e Yurie Yaginuma), sob curadoria de Clara Pignaton, em residência artística pela estrada ferroviária Vitória–Minas, reelaborando narrativas sobre a exploração de minério e o trânsito entre os dois Estados.
Seguindo essa linha do tempo, destacamos também FIAR, de Rick Rodrigues (2023); O Inquilino, de Júlio Tigre (2024); A Persistência da Palavra, de Fernando Augusto (2024); e Pele Abissal, de Marcos Martins (2025).

ARTE!✱ – Hoje você tem atuado e circulado em diversas frentes na arte; como entende essas relações?
O percurso que tenho traçado nas artes atravessa meu fazer como artista, gestor e curador. Todas essas atuações acontecem em paralelo, mas com interseções. Em quase vinte anos de carreira, meu trabalho artístico tem sido a base e o meio pelo qual chego a outros espaços. Ser o “artista-tudo”, em uma expansão do “artista-etc.”, cunhado por Ricardo Basbaum, tem me feito compreender o exercício do fazer artístico para além da concepção de uma obra, mas como um conjunto de ações múltiplas.

Em 2023, organizei uma exposição em comemoração aos 15 anos da minha produção: POR UMA CRISE DA IMAGEM, que aconteceu na Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU), na UFES. A mostra apresentava quatro trabalhos desenvolvidos entre 2017 e 2023 e refletia sobre a relação entre imagem, cultura e identidade, elaborando as formas pelas quais a imagem influencia a construção de imaginários sociais e como pode sustentar ou se opor às estruturas de poder.

Desde 2015, me debruço sobre um projeto permanente chamado Oretratista. Em 2024, lancei o livro fotográfico e o filme LARGO, resultados da ação que empreendi na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, com um estúdio fotográfico montado, aberto a quem quisesse ser retratado.

Recentemente, participo de uma exposição coletiva de larga escala, Afro-brasilidade (2025), no espaço de arte da Fundação Getúlio Vargas (FGV Arte, Rio de Janeiro), com curadoria de Paulo Herkenhoff e João Victor Guimarães. A exposição propõe abarcar e relacionar a produção histórica da arte afro-brasileira.

Já entre as ações de curadoria, tanto pelas que tenho exercido dentro da gestão da Secretaria de Cultura – como as propostas na Galeria Homero Massena e, atualmente, no MAES – quanto por outras oportunidades, também se expandiram. Destaco, por exemplo, ter sido responsável pela proposta curatorial e implementação do parque de esculturas no Parque Cultural Casa do Governador (2021–2023), em Vila Velha, sob gestão compartilhada da Secult e da Secretaria de Governo do Espírito Santo.

Por essas iniciativas curatoriais, também posso apontar a participação na curadoria das Novas Aquisições para o Acervo do Banco do Nordeste (2023), atualmente em itinerância com a exposição Nordeste Expandido, que tem circulado por todas as capitais da região e chegará a Vitória em 2026.

Ainda, a curadoria da exposição Transitar o Tempo (2024-2025), com curadoria adjunta de Clara Pignaton, a convite do Museu Vale. Esta mostra reúne trinta artistas capixabas de diversas gerações, com atenção aos saberes e fazeres tradicionais, a artistas que não estão necessariamente inseridos no sistema da arte e a artistas de outras linguagens, como música e dança. É uma exposição que recupera a atenção sobre nós mesmos e, sobretudo, sobre histórias que não estão contadas.

Por fim, também ressalto a oportunidade de contribuir com o VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros – Narrativas Contra-Hegemônicas, pela primeira vez realizado fora de São Paulo, aqui em Vitória.

Digo tudo isso para organizar meu entendimento sobre estar em trânsito, de certa forma, entre os diferentes lugares da arte, e que permitem exercitar constantemente a criação e o pensamento. ✱

Análises e propostas para o debate de uma cultura decolonial

Abertura oficial do seminário

O alerta do educador José Eduardo dos Santos, em sua fala final no VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros, sobre um iminente encerramento das atividades do Acervo da Laje (Salvador), é, a um só tempo, exemplar da precariedade com que atuam as iniciativas culturais na periferia da institucionalldade oficial, como também um eco de resistência das narrativas e práticas contra-hegemônicas, tema dos encontros que aconteceram nos dias 20 e 21 de março, em Vitória, no Espírito Santo.

Com patrocínio da EDP, empresa que atua em todos os segmentos do setor elétrico, o Seminário, em parceria com o Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), foi uma realização da Atmo e da Arte!Brasileiros, por meio da Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC) e do Governo do Estado do Espírito Santo / Secretaria de Estado da Cultura, que entende o papel e a importância da esfera pública de incentivar e investir em debates sobre temas emergentes, como a decolonialidade e a crise climática.

Para o Acervo da Laje, iniciativa concebida e liderada há quase 15 anos por José Eduardo Santos e Vilma Santos, assim como o Sertão Negro (Goiânia), a sobrevivência de suas propostas passa, não sem certa ironia, por uma inserção em parâmetros institucionais, a exemplo da criação de um CNPJ, como apontou Luciara Ribeiro, representante do projeto goiano criado pelo artista Dalton de Paula, que, não à toa, cogita ter Luciara como sua diretora, novamente num movimento de institucionalização nos moldes de entidades museais e de centros culturais inseridos em estruturas hegemônicas. O nó górdio dessa complexa equação? A obtenção ou captação de verbas que viabilizem e mantenham suas atividades, mesmo quando anti-majoritárias em suas essências artística e ideológica.
Em entrevista à Arte!Brasileiros após a sua fala, Santos ressaltou que é preciso haver uma discussão sobre a redistribuição de recursos e editais, “para que esse dinheiro da cultura chegue aonde tem que chegar: aos artistas, agentes de culturas, às populações mais vulneráveis, porque isso vai possibilitar que a arte brasileira conheça uma diversidade maior de expressões e vai favorecer outros circuitos de existência.”

Pertinente e urgente, a fala de Santos sintetiza parte das discussões que permearam tanto os workshops, que aconteceram no auditório do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), quanto as mesas do Seminário em si, realizado no teatro da Casa da Música Sônia Cabral. Houve também o compartilhamento de experiências e um tom propositivo.
Vale ressaltar que, ainda que compreendam o papel social, de acolhimento e proteção das comunidades em seus entornos, estas iniciativas e os agentes culturais à frente delas reivindicam o reconhecimento – e, claro, a remuneração – da produção de pensamento e das experimentações artísticas que ensejam e promovem.

A APRESENTAÇÃO

Com curadoria de Nicolas Soares, Fabio Cypriano (jornalista e crítico de arte, diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Arte da PUC-SP e membro do conselho editorial de Arte!brasileiros), e de Patricia Rousseaux, fundadora e diretora editorial da Arte!Brasileiros, as mesas do Seminário tiveram início na tarde do dia 20/3.

Fabricio Noronha, Secretário da Cultura do Espírito Santo e Presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, abriu a primeira noite do Seminário ressaltando a importância da parceria do Governo do Estado com a Arte!Brasileiros, com Nicolas Soares, curador e diretor do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) e de gestores de demais equipamentos culturais envolvidos no projeto, assim como da produtora Atmo, em nome ds curadora Clara Sampaio.

Soares relembrou um ciclo de debates realizado em 2019, quando ele estava à frente da galeria capixaba Homero Massena, que ele considera como uma gestação, ainda não assim imaginada, do Seminário, quando houve uma aproximação com a Arte!Brasileiros, que à época já demonstrava seu interesse pela produção artística do Espírito Santo.

Fundadora e diretora-editorial da Arte!Brasileiros, Patricia Rousseaux destacou em sua fala inicial que, durante o governo obscurantista de Bolsonaro, empreendeu um mapeamento de iniciativas culturais que resistiam ao ataque sistemático do poder vigente. Encontrou, em estados como o Ceará e o Espírito Santo, uma “intenção pública e política”, que não se via no eixo Rio-São Paulo, de continuar investindo em nas artes e na educação.
Foi nesse mapeamento que foram identificadas iniciativas como a Casa do Governador e o trabalho que vinha sendo realizado pelo MAES. O resultado foi o desejo de realizar o Seminário em Vitória, abrindo espaço para de discutir os retrocessos que estamos vivenciando em escala global, na educação, na cultura, na ciência, na luta ambientalista e no respeito pelo outro. Para Patricia, são consequências das marcas indeléveis deixadas pelo colonialismo, perpetradas e agravadas pelo neoliberalismo.

Em seguida, houve uma performance de Glicéria Tupinambá, tendo como pano de fundo vídeos, propositalmente sem som, para falar do silenciamento histórico do Manto Tupinambá, uma vestimenta sagrada utilizada em rituais e cerimônias de seu povo. Um exemplar que estava em um museu da Dinamarca foi devolvido em 2022? ao Brasil e sua reinvidicação pelos tupinambás contraria uma narrativa, até pouco tempo tida como verdade histórica, sobre a extinção desse povo. Há um território no sul da Bahia que atualmente luta por sua demarcação.

Durante sua participação, Glicéria falou da importância da arte como um espaço para o debate com a sociedade, abrindo diálogos. Ao fim, ponderou que as pessoas que ocuparam o país aqui deixaram canhões e fortalezas, ao passo que os tupinambás legaram, ao mundo, o que há “de mais belo, precioso e frágil”, que é o Manto Tupinambá de 400 anos, hoje de volta a um território tupinambá, a uma terra dos povos originários, que é o Rio de Janeiro.

“E eu falo que a gente depois ocupou o Velho Mundo. A marca disso são os outros mantos, que estão ainda na Itália, na França, na Suíça, na Bélgica, E trazer tudo de volta não resolve. Eu penso para além do museu. Quero entender a nossa história, que não passa apenas pelo roubo, mas pela diplomacia. È preciso ter cuidado com o que falamos, porque podemos cometer alguns erros. Mas é possível reverter algumas narrativas. Todas podem coexistir. Existe mais uma, além de roubo”, disse.

O SEMINÁRIO, DIA 1, MESA 1
Retina colonial

Com o título Experiências da luta anticolonial no sistema das artes: por uma contraofensiva saudável, radical e com amor, e mediação de Fabio Cypriano, a primeira mesa teve como participantes Lia D Castro (artista, São Paulo), Marcus Vinicius Sant’Ana (historiador, pesquisador do ES) , Guilherme Marcondes (sociólogo, antropólogo, UFRJ, SP).

Cypriano apresentou a artista paulista Lia D Castro e ressaltou que ela atua de maneira transversal no terreno das artes visuais. Destacou que Lia lança mão da prostituição, com garotos na faixa etária de 18 a 25 anos, brancos e auto-declarados heterossexuais, como ferramenta de trabalho e investigação sobre raça, gênero e sexualidade. Lia então citou o que teria sido uma fala de cliente: “A prostituição é fundamental para manter a ordem social que é o padrão de família”. Para ela, essa premissa coloca o trabalho da prostituta como uma proposta colonial para que essa manutenção ocorra.

“Como uma mulher trans e prostituta, percebi que poderia trazer outras narrativas em relação à prática sexual. O meu interesse era usar a prostituição como forma de diálogo para poder entender quem são esses homens. Parto da pergunta que nomeia o projeto – Seus filhos também praticam? – em que eu satisfazia o desejo sexual deles em troca de informação da maioria deles – homens cisgêneros, brancos, das Forças Armadas e das policia – sobre como a criminologia ou a Justiça via as pessoas pretas e as pessoas transexuais.

Lia também citou um texto intitulado “Ignorância branca”, do jamaicano Charles Mills, em que o filósofo e escritor, segundo a artista, critica como a cultura pensada pelos brancos é marcada pela ausência da informação e da verdade, o que criaria uma memória de caráter colonial. “Ou seja, também o branco passar por um processo colonizador”, disse. Por conta disso, o interesse de Lia não era mudar a relação de seus clientes quanto a ela, mas entre si mesmos. E mais: a inclusão e a representatividade em diversos setores da sociedade não são suficientes. Elas se tornaram uma armadilha para pessoas pretas, por exemplo.

“Não queremos ser inclusas em ambientes racistas. Nem assimiladas pelas pessoas brancas. Eu comecei então a entender que via o mundo com o olhar do homem branco. Uma retina colonial que impacta culturalmente a todos nós, pessoas pretas, trans, da periferia etc.”, afirmou, Para Lia, a branquitude, assim como a cisgeneridade, são sistemas. Para ela, quando falamos de narrativas decoloniais e anti-hegemônicas é necessário quebrar os pactos daqueles sistemas. Não se trata apenas de discursos, mas de práticas que devem ultrapassar a fronteiras dos museus, por exemplo, e alcançar outros espaços da sociedade.

Histórias invisibilizadas

O segundo participante da Mesa 1 foi o historiador e professor Marcus Vinicius Sant’Ana que, por meio de vídeos publicados no Instagram (@santanamarcusvinicius), entre outras iniciativas, em que relata fatos e recupera personagens históricos invisibilizados, de modo similar ao projeto Tá na História, do petropolitano Thiago Simão Gomide e inspirado no “movimento liderado por Luiz Antônio Simas de ver a rua como uma vertente importante da cidade”, como escreveu Maria Hirszman na edição 70 da Arte!Brasileiros.

Também mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela Universidade Federal dos Espírito Santo (UFES), Sant’Ana iniciou sua fala ponderando que a academia não dá a mesma dimensão – ou ainda propriedade e hierarquia – sobre manifestações populares, objeto de seus estudos e ensino, quanto a vivência delas. “Antes de ser historiador e pesquisador de cultura popular, eu sou sambista, que desfilou na Unidos de Jucutuquara pela primeira vez aos 9 anos de idade”, pontuou.

Em vez de falar a respeito dos assuntos que estuda, o historiador afirmou que iria se debruçar sobre o processo de suas pesquisas. Em um slide, Sant’Ana mostrou reportagens sobre o desconhecimento que o capixaba tem de sua própria história. E questionou: “Isso quer dizer que o capixaba não gosta da própria história?” e “quais são os meios que o capixaba tem de conhecer a sua própria história?”. Comentou que o estudo da história oficial do estado se limitava em geral a decorar quais foram seus governadores após o período colonial e quais as respectivas realizações.

Isso teria sido o ensejo para ele desenvolver seu projeto, ressaltou que, na Casa da Música Sônia Cabral o público estava num lugar privilegiado, o centro histórico da cidade. “Quando a gente por este lugar, mesmo que seja em nosso cotidiano, a gente tem contato com essa história? Ela é contada, é convidativa?, perguntou. A resposta veio na forma de outro slide: uma estrada de pedras, de 200 anos, na Gruta da Onça havia sido coberta por cimento, levando a uma investigação do Ministério Público do Espírito Santo. “Essa estrada foi feita por escravizados da Fazenda de Jucutuquara, que a usavam, por exemplo, para quaisquer tipos de atividades comerciais e ela foi acimentada numa reforma”, explicou. Em tempo: a trilha é registrada como sítio arqueológico no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Noutro slide, Sant’Ana mostrou a estátua de bronze de Dona Domingas, “uma mulher negra, escravizada, que vagava pela cidade catando papel e madeira, dizia-se à sua época que tinha mais de 100 anos”, contou. “O que ela catava, vendia para seu sustento. O que sobrava, ela usava para encomendar uma missa pelas almas do escravizados”.
Instalado próxima ao Palácio Anchieta, sede do poder executivo do estado do Espírito Santo, o monumento não tinha qualquer identificação há mais de 30 anos, segundo o historiador. “Quem passa por ali, não têm ideia de quem ela foi. E não sei se vocês sabem, mas ela está numa praça, que se chama Franklin Delano Roosevelt, que foi presidente dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial”, disse. “Isso é uma sintoma de que, mesmo que a pessoa tenha interesse de conhecer a história capixaba, ela não vai ter facilidade para poder aprender”.

Sant’Ana listou a seguir “atos amenizadores” desta invisibilização – ou, por vezes, distorção – da história, que ele aplica a seu projeto: vídeos que trazem a história do Espírito Santo; citação de fontes; fomento à cultura; curta duração; referências visuais do cotidiano”. E salientou que essa história do estado é, sim, desbravada, com pesquisas e artigo maravilhosos no departamento de História da UFES. “Mas eu sentia a necessidade de ter contato com o público. Foi então que ele começou a gravar os vídeos que veicula em rede social.

Aos vídeos, o historiador passou a promover uma “imersão” por meio de “caminhadas que contam a história e a história preta” de Vitória, assim como a “passagem por pontos que expressam ou rememoram fatos e personagens históricos”. “Eu não poderia simplesmente tentar passar informações sobre uma igreja do século 18 [Igreja de Nossa Senhora do Rosário] em dois minutos, sem destrinchar tudo que ela tinha de conhecimento histórico”, ponderou.
“Mas, no caso da caminhada sobre história negra, se temos 20 pontos de interesse em mente, em mais de 15 deles eu terei que lidar com a imaginação porque esse lugares já não existem mais e são pouquíssimas a referências históricas”.

Interseccionalidades

Em sua participação na Mesa 1, o sociólogo e antropólogo Guilherme Marcondes compartilhou reflexões sobre sua trajetória acadêmica e profissional, destacando os desafios enfrentados como artista e pesquisador negro no Brasil. Ele abordou a interseccionalidade das opressões — racismo, machismo, classismo e homofobia — e como essas experiências moldaram sua perspectiva e atuação no campo da arte contemporânea.
Marcondes discutiu sua pesquisa de doutorado em sociologia na UFRJ, na qual investigou os caminhos de inserção e consagração de jovens artistas no circuito artístico. Enfatizou a importância da legitimidade, visibilidade e do reconhecimento para esses artistas, e como as estruturas de poder e dominação influenciam suas trajetórias.

Além disso, destacou a necessidade de desmistificar a ideia de que “na arte tudo pode”, apontando para as regras implícitas que regem o mundo da arte e a importância de compreendê-las para uma inserção bem-sucedida. Ao longo de sua fala, Marcondes também compartilhou experiências pessoais de discriminação e violência, ressaltando a resiliência necessária para superar tais obstáculos e alcançar seus objetivos acadêmicos e profissionais.

Ele concluiu sua fala incentivando os jovens artistas a se conectarem com suas pesquisas estéticas e a buscarem reconhecimento sem se submeterem aos desejos de galerias ou curadores, valorizando sua autonomia e autenticidade artística.
Proposições

Em seguida, houve um debate mediado por Fabio Cypriano, que lançou algumas questões aos participantes. Cypriano indagou como as instituições culturais podem incorporar práticas decoloniais de forma efetiva, indo além de ações simbólicas. Perguntou de que maneira a arte pode ser utilizada como ferramenta de resistência e transformação social e, por fim, quais são os desafios enfrentados por artistas e pesquisadores na promoção de narrativas contra-hegemônicas no panorama artístico atual.

Marcus Vinicius Sant’Ana abordou a relevância de repensar os currículos acadêmicos e os programas de formação artística, propondo a inclusão de perspectivas afro-brasileiras e indígenas como forma de combater a hegemonia eurocêntrica. E sugeriu que as instituições culturais adotem políticas afirmativas e criem espaços de escuta ativa para artistas e pesquisadores de diferentes origens.

Já Guilherme Marcondes enfatizou a importância de compreender as estruturas de poder que permeiam o sistema artístico, destacando que a transformação só será possível com a desconstrução dessas hierarquias. Incentivou a criação de redes de apoio e colaboração entre artistas, pesquisadores e instituições comprometidas com práticas decoloniais, visando a construção de um ecossistema artístico mais justo e representativo.
Do público, vieram perguntas, por exemplo, acerca da inclusão de artistas periféricos e de suas narrativas nas grandes instituições culturais. E também sobre a forma como o ensino de arte pode contribuir para a desconstrução de paradigmas eurocêntricos. Para Lia D Castro, é importante reconhecer e valorizar as práticas artísticas que emergem das periferias, enfatizando que essas expressões são fundamentais para a construção de uma cultura verdadeiramente inclusiva.

Lia ressaltou ainda a necessidade de as instituições culturais se abrirem para diálogos horizontais, permitindo que vozes historicamente marginalizadas tenham espaço e protagonismo.

DIA 1, MESA 2
O desafio da luta decolonial nas instituições

A segunda mesa do primeiro dia do Seminário teve como palestrantes Deri Andrade (pesquisador e curador, Inhotim, BH); Luciara Ribeiro (pesquisadora, Sertão Negro, Goiás); José Eduardo Santos (pedagogo, doutor em Saúde Pública, Acervo da Laje, Salvador), com mediação de Nicolas Soares.

Soares iniciou a mesa destacando a importância de repensar as estruturas institucionais para acolher narrativas historicamente marginalizadas. Ele enfatiza a necessidade de ações concretas que vão além de iniciativas simbólicas, afirmando que “não basta abrir espaço; é preciso transformar as estruturas que perpetuam exclusões”.
Deri Andrade compartilhou sua experiência na promoção de artistas negros e indígenas. Ele ressaltou a importância de políticas institucionais que garantam a presença contínua desses artistas nos espaços culturais, afirmando, em consonância com a falar de Soares, que “a inclusão precisa ser estruturada, não episódica”.

Já Luciara Ribeiro abordou a necessidade de descolonizar os currículos acadêmicos e as práticas curatoriais. Ela destacou que “a decolonialidade não é uma tendência, mas uma urgência”, enfatizando a importância de reconhecer e valorizar os saberes tradicionais e ancestrais nas instituições culturais.
Por fim, José Eduardo Santos falou de sua experiência na construção de espaços culturais comunitários. Ele enfatizou que “a cultura é um direito, não um favor”, e que as instituições devem atuar como facilitadoras, não como gatekeepers, para garantir o acesso equitativo à produção cultural.

O debate da Mesa 2 reforçou a necessidade de uma transformação estrutural nas instituições culturais brasileiras, promovendo práticas decoloniais que reconheçam e valorizem a diversidade de narrativas e saberes presentes no país.

O primeiro dia do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros foi encerrado com um show de Fabriccio. Natural de Vitória (ES), ele é multi-instrumentista, compositor e produtor musical. Suas canções exploram temas como afetividade, sensibilidade masculina e espiritualidade, com influências da literatura, do cinema e da magia presente no cotidiano.

O SEMINÁRIO, DIA 2 – ABERTURA
a dupla fratura da modernidade

Na tarde do dia 21/3, na Casa da Música Sônia Cabral, teve início, as 17h, o segundo dia do VIII Seminário. Após breve apresentação de Patricia Rousseaux, a abertura dos trabalhos ficou a cargo do escritor e pensador martinicano Malcom Ferdinand, autor de Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho (Ubu Editora).

Em seu livro, Ferdinand faz. Ele também introduz o conceito de “dupla fratura da modernidade”, referindo-se à separação entre natureza e cultura e à desconexão entre lutas antirracistas e ambientais. Essa fratura, Ferdinan defende, impede uma compreensão abrangente das injustiças ecológicas, pois desconsidera a exploração da natureza e a opressão de povos colonizados.

Em sua apresentação, que durou cerca de 40 minutos, Ferdinand ressaltou que era um homem negro pertencente à “academia francesa branca, uma mistura rara, que pode explicar o contexto” a partir do qual ele produz seu trabalho. Ele defendeu a própria noção de planeta Terra e meio ambiente é um “constructo colonial” e que a forma como damos significados as coisas não está separada de um imaginário que temos delas, algo que demanda o que ele chama de “decolonização ecológica”.

Como exemplo, citou que, do “choque entre o Velho e o Novo Mundo”, com a “descoberta” das Américas, por Cristóvão Colombo, teria sido imposta uma perspectiva de “habitar colonial”, baseada na dominação e exploração, para além da “conquista de terras, do estupro, do genocídio de povos”, que inclui ainda a prática de nomear coisas e seres vivos.

O escritor trouxe à tona o conceito-chave de sua pesquisa – a dupla fratura da modernidade – que faz uma crítica ao modelo dominante de ambientalismo, que muitas vezes ignora as dimensões coloniais e raciais da crise ecológica. O movimento ambiental e sua ideia de preservação partem de uma noção de refúgio para o homem branco, ligada ainda à ideia de remoção de povos originários.

Também o conceito de pesquisa – em meio a corpos não brancos – foi criticado por Ferdinand por seu caráter “extrativista”, que implica em um pesquisador investigar determinando assunto em uma comunidade, por exemplo, colher os fruto e nada dar em troca. “Quem determina o que é pesquisa, que decide o que é ou não ciência?”, indagou.
A proposta de Ferdinand é desenvolver uma ecologia decolonial que reconheça e valorize os saberes e práticas dos povos originários e afrodescendentes, com modos de vida que promovem uma convivência mais harmoniosa com o meio ambiente. O autor enfatiza a importância de integrar as lutas antirracistas, anticoloniais e ecológicas para enfrentar efetivamente a crise ambiental contemporânea.

Ao fim de sua apresentação, Ferdinand abriu espaço para perguntas da plateia. Guilherme Marcondes, que havia participado do Seminário na noite anterior, pediu que Ferdinand elaborasse mais a sua crítica ao conceito de Antropoceno, termo usado para descrever uma nova época geológica proposta, caracterizada pelo impacto significativo e duradouro da humanidade na Terra.

“O antropoceno não é apenas um conceito, mas uma história do mundo e da Terra, que tem a sua gramática, sua linguagem e sua hierarquia de valores. Um conceito romovido por uma pessoa em particular, um cientista holandês, que ganhou um Nobel. Mas o que é importante é o fato de ele ser de um país colonizador. Então ele está elencando os países que horam colonizados pela Holanda. E todo mundo aceita essa narrativa de um homem branco. Eu proponho outra palavra, o negroceno. Seria bom para todos. A tarefa decolonial é tornar possível uma pluralidade”, argumentou Ferdinand, em sua fala final.
Em seguida, aconteceu a Mesa 3, intitulada A deseducação potencial, mediada por Gabriela Leandro Pereira (Gaia) e com a participação de Horrana de Kassia, Gleyce Heitor e Napê Rocha.

Como mediadora, Gabriela, arquiteta capixaba que leciona na Univeridade Federa da Bahia, propôs uma reflexão sobre o conceito de “deseducação potencial”, questionando as estruturas tradicionais de ensino e aprendizagem. Ela destacou a importância de práticas educativas que valorizem saberes ancestrais e experiências comunitárias, desafiando os modelos eurocêntricos de conhecimento. Em seguida, Gaia passou a palavra para as participantes da mesa, “muito interessada no olhar crítico, cuidadoso, que elas têm desenvolvido nos seus trabalhos, nas suas atuações.

DIA 2, MESA 3
Recusa e reapropriação

A educadora e curadora Horrana de Kassia compartilhou sua experiência no Instituto Moreira Salles, enfatizando a necessidade de repensar as instituições culturais a partir de uma perspectiva antirracista e decolonial. Ela discutiu estratégias para tornar os espaços culturais mais inclusivos, promovendo a participação ativa de comunidades historicamente marginalizadas.

Para Horrana, a palavra “desaprender”, presente no título da mesa, encerra uma ideia de uma prática de transformação e indagou aos colegas e público: “O que precisamos desaprender para construir justiça, em especial no campo das artes, da educação e da cultura de modo mais amplo? Questiou ainda como conceber mudar os instituições culturais e espaços de aprendizado para que não sejam mais espaços de manutenção de violência e desmemória.

Recordou um monólogo de Elisa Lucinda em que a poeta, cantora e atriz parte de sua relação com o filho. Horrana então “tomou emprestado” um trecho de reportagem sobre Elisa:

“Para Elisa, a poesia é como construtora da cidadania. ‘Criei meu filho Juliano à base de poesia, e o resultado é avassalador, no sentido da delicadeza, de humanidade, altruísmo, solidariedade e ética. Os poetas levantam a bandeira da paz. Dificilmente o poeta é da cultura da guerra. Juliano é talvez responsável por um dos versos mais bonitos dentro da minha obra. Ele tinha 4 aninhos e disse: mãe, sabe por que eu gosto de você ser negra? Porque combina com a escuridão. Então, quando é de noite, eu não tenho medo. Tudo é mãe, tudo é escuridão’”.

A passagem da reportagem faz com que Horrana não considere desaprender apenas um gesto político, de resistência, mas também de afeto, uma prática sensível de reeinvenção das relações. “E a palavra poética muitas vezes é excluída dos espaços institucionais. Mas tenho acreditado que ela pode e é uma ferramenta fundamental de reconstrução das formas de pertencimento e de reconhecimento”, ponderou.

Para Horrana, desaprender é um processo contínuo. Sua prática profissional , no Espírito Santo e outros estados, atravessa “múltiplos espaços” em sua trajetória, como o MAES, Palácio Anchieta, Galeria Homero Massena etc. Antes de passar por demais instituições, como a Pinacoteca de São Paulo e, hoje, o IMS, ela “já experimentava o museu, e o museu como espaço de aprendizado, mas também de confronto”.

“Os desafios institucionais não são isolados. Estão hiperconectados por processos históricos e políticos ainda mais amplos dos quais sou parte e participante”, afirmou. “Então, desaprender, de partida, no meu entender, tem a ver com reconhecer a minha trajetória, que não se inicia no eixo Rio-São Paulo, mas é constituída por todas essas experiências, memórias, aprendizados que trago aqui”.

Horrana então relembrou sua atuação, como curadora de pesquisa e ação transdisciplinar, numa parceria entre a Pinacoteca de São Paulo e a coleção Ivani e Jorge Yunes, de 2021 e 2022, e em que ela buscou implementar processos curatorias que “desafiaram os modelos rígidos dessas instituições” e propuseram outras narrativas de atuação e mediação com esses espaços. Para ela, a experiência foi como uma “metodologia de ocupação”, no sentido de provocar e promover uma revisão dos espaços a partir dos trabalhos criados pelos artistas envolvidos na exposição resultantes, Atos modernos, entre eles Castiel Vitorino Brasileiro e Misty Queiroz.

Para ela, partindo do contexto do projeto, a ideia de “desaprender” é um gesto político de recusa e reapropriação daquilo que nos foi tirado pela colonialidade”, disse. “Talvez para a [escritora israelense Ariella Aïsha] Azoulay, desaprender não seja apenas um processo de individual, mas uma prática coletiva que nos permite acessar saberes silenciados e reencontrar modos de existir que foram apagados pelo sistema de poder. Desaprender talvez signifique substituir um saber por outro”, sem apagar, eliminar o outro, afirmou.

Crítica e cautela

Gleyce Heitor Gleyce abordou sua atuação como curadora no Inhotim, destacando projetos que buscam integrar arte contemporânea e saberes tradicionais. Ela ressaltou a importância de curadorias que dialoguem com as realidades locais e que promovam a valorização de práticas culturais diversas.

A educadora e pesquisadora ponderou que, na manhã daquele diz, havia levado a seu workshop “metodologias e modos de fazer” ligados à sua expertise e trajetória, mas que naquela noite iria se ater ao tema da mesa, como algo que une as participantes, a proposta de “desaprender”, segundo Azoulay, para a contrução de novos olhares e novas narrativas, assim como o pensamento do educador pernambucano Paulo Freire.

Gleyce então disse que queria fazer uma convite para “termos cautela com a ideia deseducação”, lembrando que aquele era o Dia Internacional Contra a Descriminação Racial, apresentando em seguida um slide em que uma faixa celebrava a entrada de um rapaz de uma comunidade quilombola (Arturos) num curso de medicina.

“A imagem indica a importância da educação, embora a gente venha a passar por aqui por uma crítica às estruturas, aos modelos institucionais de educação”, pontuou. “A educação é, sim, no Brasil, um dispositivo de mobilidade social, principalmente para as pessoas negras, pobres, indígenas.

E, embora sejam espaços de manutenção da violência e reprodução da ordem, é importante ler nossos processos de resistência história com muita nuance, com cuidado para não generalizar, porque, por vezes em alguns espaços subjazem também processos de resistência. A escola também pode ser o espaço de segurança alimentar ou onde as crianças ficam enquanto as mães precisam trabalhar”, salientou.

Encruzilhadas

Natural de Vila Velha (ES), Napê Rocha mora no Rio de Janeiro. Ela trouxe reflexões sobre sua pesquisa no Espírito Santo, discutindo como as práticas artísticas podem servir como ferramentas de resistência e afirmação identitária. Em sua fala inicial, propôs partir da noção de encruzilhada “ como perspectiva crítica para as artes visuais”, como signo de transgressão ou “fenômeno cosmológico, filosófico ou intelectual”. E, ainda, partindo da ideia de, como nos terreiros, conhecimento não se aprende, incorpora-se.

Napê apresentou uma obra sem título, e de autoria compartilhada, da série Procedimentos para desenhar uma encruzilhada, produzida com riscaduras de giz de pemba branca sobre tecido preto em 2023, no Solar dos Abacaxis, no Rio, no contexto de seu programa público.
“A encruzilhada é este lugar da semântica, da sintaxe, onde todos os atos de fala vão acontecer”, disse. “E Exu é o dono do verbo e da palavra falada. No contexto da diáspora, existe uma língua imposta pelo colonizador e a que a gente utiliza para manter os atos de aproximação com a terra de origem”.

Em síntese, Napê enfatizou, a partir, por exemplo, da proposição do pretuguês – segundo Lélia Gonzalez, uma africanização da língua portuguesa brasileira – e do paxubá – dialeto usado pela comunidade LGBTQIA+ no Brasil, com raízes na cultura africana e no candomblé –, assim como na figura de Madame Satã – uma das personagens mais representativas da vida noturna e da Lapa carioca na primeira metade do século XX, que traz em seu nome o cruzamento do feminino (madame) e masculino (satã) – a relevância de narrativas que venham a emergir das periferias e comunidades tradicionais, propondo uma escuta atenta e respeitosa a esses saberes.

“A encruzilhada ousa talvez nos ensinar que esses territórios são lugares da habitalidade, onde todo tipo de criação e recriação acontece, ligadas a transfigurações e transgressões, simultaneamente o centro e a periferia, o verso e o avesso”, afirmou. “Encruzilhadas são um gesto político, que nos coloca a pensar quais posições a gente ocupa ao longo desses caminhos coletivos e individuais, posições transitórias e dinâmicas. E como a gente performa as possibilidades de transgressão diante das políticas de controle dos corpos e subjetividades”.

Em conjunto, as falas das participantes da Mesa 3 convergiram para a ideia de que a “deseducação potencial” reside na capacidade de desaprender modelos opressivos e abrir espaço para formas de conhecimento mais inclusivas e plurais. As três participantes defenderam a construção de práticas educativas e culturais que reconheçam e valorizem a diversidade de experiências e saberes presentes na sociedade

brasileira.

DIA 2, MESA 4
Reconfigurações

Logo após teve início a Mesa 4, com o nome Arte é conversa das almas, a arte alimenta a vida. Com mediação de Patricia Rousseaux, participaram Sandra Gamarra (artista, Peru) – que representou a Espanha na 60ª Bienal de Veneza, em 2024, com o projeto Pinacoteca Migrante, sob curadoria do historiador Agustín Pérez Rubio –e Luciano Feijão (artista, ES).

Em seu projeto em Veneza, Sandra se debruçou sobre o conceito de “migração”, invertendo narrativas tradicionais, trazendo à tona histórias apagadas e abordando temas como racismo, extrativismo e migração. Nesse contexto, migrantes humanos e não-humanos, como plantas e matérias-primas, tornam-se protagonistas.

A artista fez uma apresentação de seu trabalho, contextualizando cada obra. Ela destacou sua crítica à forma como os museus, especialmente os de arte ocidental, representam as narrativas coloniais e eurocêntricas.

Em seu projeto LiMAC Museo Imaginado de Arte Contemporáneo, realizado no Museu Reina Sofía (Madri, 2023), ela propõs a criação de um museu imaginário que confrontava essas estruturas dominantes. “É um museu que não existe, mas que poderia existir. Um museu construído com obras que vêm de diferentes coleções, como se estivéssemos fazendo uma ficção de museu”, afirmou.
Sandra reconfigurou obras clássicas da arte europeia, inserindo personagens indígenas, elementos da natureza das Américas e símbolos coloniais, para questionar a exclusão de histórias latino-americanas e indígenas na arte canônica. “A ficção do museu é a da neutralidade. Essa suposta objetividade constrói um olhar que exclui outras formas de ver e de contar”, ponderou.

A artista utiliza a pintura – “pinto como uma forma de me aproximar da história da arte, mas também como uma forma de fazer uma crítica a ela” – como meio principal, incorporando textos e elementos museográficos que evocam arquivos, etiquetas e vitrines, desconstruindo a ideia de neutralidade dos museus.

Desse modo, propõe uma reinterpretação crítica das instituições culturais e suas formas de construção da memória, convidando o público a imaginar novos modos de representação que incluam outras vozes e narrativas. Em suma, sua produção tem forte base política e histórica, abordando temas como colonialismo, apropriação cultural e apagamento histórico.

“O que me interessa é como a arte constrói uma memória visual que, muitas vezes, apaga, silencia ou deforma outras memórias”, argumentou. “Quero que o público se pergunte por que olha do jeito que olha, por que uma obra está ali e não em outro lugar, por que algo é considerado arte e outra coisa não.”

O encerramento da mesa ficou a cargo do artista capixaba Luciano Feijão. O artista mencionou um projeto que vem elaborando nos últimos tempos: “Minha pesquisa atual tem como foco uma espécie de anti-anatomia, uma tentativa de criar uma imagem do corpo negro que não seja baseada nos regimes tradicionais de saber, como o científico, o artístico e o pedagógico”, disse.

Feijão criticou a maneira como os corpos negros historicamente foram submetidos a olhares classificatórios, exóticos ou utilitários, tanto na arte quanto na ciência e na educação:

“A história da representação do corpo negro é uma história de dissecação — literal e simbólica. Foi preciso abrir, catalogar, estudar, classificar. Meu trabalho tenta fugir disso, propor outra forma de ver.”
Luciano propõe, então, uma abordagem sensível e ética da imagem, que subverta o olhar objetificador: “Quero uma imagem que se afaste da lógica da exposição e se aproxime da presença. Que não seja sobre mostrar o corpo negro, mas sobre escutá-lo, acompanhá-lo, estar com ele.”

Feijão busca criar um novo vocabulário visual e conceitual que não reproduza o apagamento ou a espetacularização da corporalidade negra: “Não quero oferecer respostas visuais prontas. Talvez meu trabalho seja sobre o que não se vê, ou sobre o que se recusa a ser visto da maneira esperada”, concluiu Feijão, que em seguida apresentou um vídeo que já se debruça sobre sua pesquisa.

ROSANA PAULINO

A artista Rosana Paulino (SP), que não pôde participar do Seminário por incompatibilidade de agenda, gravou um vídeo para Arte!Brasileiros, que foi exibido após o encerramento da última mesa.

Em sua fala, ponderou que, desde que se iniciou nas artes visuais, há cerca de 30 anos, não compreendeu seu pensamento e sua práticas como propriamente contra-hegemônicas.
Seu envolvimento com o ofício partira, ela disse, de “uma necessidade absolutamente gigantesca” de falar quem ela era, discutir de onde vinham e questionar por que “a gente não percebe pessoas negras, ou não percebia, nesse ambiente da arte brasileira, sendo que esse é um país em que oficialmente 58% da população já se coloca com negra”, argumentou.

Rosana também questionou por que a arte feita por pessoas minorizadas sempre foi colocada como uma arte naïf, folclórica, “vamos dizer assim, de menor estatura”. Só depois de muito tempo, prosseguiu a artista, ela percebeu “esse local de contra-hegemonia”.
“Para mim, o que importava menos era pensar uma estrutura política nesse sentido. Na minha época, eu diria que foi por desespero. O modo como eu iniciei as minhas pesquisas vem muito do fato de eu não me encontrar, no início da carreira, dentro das técnicas clássicas, como a gente aprende na universidade”.

Representação

Rosana ponderou que sempre quis olhar para as suas raízes e que, desde criança, tinha paixão por um álbum de fotografias de sua família e queria “usar aquelas pessoas, aquelas imagens que não via dentro da história da arte”.

“Nunca fui muito de pintura. Até hoje as pessoas falam que eu pinto, mas eu acho que mais no campo do desenho. Eu sei costurar, aprendi desde criança”, prosseguiu. “Juntando essa questão técnica a uma observação do ambiente ao meu redor, vai surgir, por exemplo, um trabalho que eu considero que é o primeiro da minha carreira, o Parede da Memória”.
Nessa obra, Rosana reuúne fragmentos de fotografias antigas de sua família colados sobre tecido para produzir uma série de patuás, amuletos iguais ao que ela via no alto da porta de entrada da casa de seus pais. “Ninguém passava debaixo de um elemento desses sem ser tocado, sem ter a sua curiosidade despertada”, lembra. Tecido e costuras também apareceram anos depois em obras de Rosana como a instalação Assentamento e Atlântico Vermelho.

Rosana argumentou também que, como artista, sempre buscou práticas do cotidiano que foram relegadas, que foram “tidas como menores”, como a cerâmica, tratada com queima primitiva, “como indígenas faziam, como os negros faziam, e fui buscar lá atrás essa tradição”. Já em séries mais recentes, como Senhora das Plantas, a artista partiu de uma “investigação sobre o feminino, esse psicológico feminino que a gente não encontra. Olhando questões como o eterno, o sagrado, vemos que tem deus até do Ártico, né? Mas não tinha [uma deusa] negra. E resolvi pensar essa psicologia para o Brasil através do meu entorno, das plantas, que eu adoro”.
A educação

Rosana também ressaltou o papel da educação, em especial de professores e professoras que têm usado o trabalho de artistas afro-brasileiros. “A partir disso, as crianças vão crescendo com outra referência. Na luta antirracista, anti-colonial, anti-hegemônica é absolutamente fundamental, porque você só desrespeita os direitos daqueles que não são considerados humanos”, argumentou.

Por fim, a artista acredita que avanços aconteceram, que não se pode pensar apenas a contemporaneidade, pois no passado muitos ajudaram a esses caminhos, trazendo essas questões antes mesmo que elas fossem colocadas como anti-colonizadoras ou contra-hegemônicas. E ela ressaltou: ainda falta muito.

“O principal é nós termos pessoas desses grupos subalternizados dentro dos espaços de poder. Precisamos de pessoas nos museus, nas instituições culturais, pessoas negras, mulheres, indígenas, pessoas que foram subalternizadas. Nós precisamos ter essas pessoas também nos espaços de decisão”.

O VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros foi encerrado com uma apresentação, também no palco da Casa da Música Sônia Cabral, de Douglas Germano (SP), compositor, violonista, que atua na cena musical desde a década de 1980. Com cinco álbuns lançados — Duo Moviola (2009), Orí (2011), Golpe de Vista (2016), Escumalha (2019) e Partido Alto (2021) —, sua obra transita pelo samba e suas vertentes. Foi diretor musical da Cia. Teatro X, assinando trilhas para nove espetáculos, incluindo Calígula (2002), que lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Trilha Original (2003).

WORKSHOPS

Parte da programação do Seminário, os workshops aconteceram nas manhãs dos dias 20 e 21/3, no auditório do Museu de Arte do Espírito Santo, onde também se deram as inaugurações da instalação Wifi Grátis (ou Intromisssão), de Carlo Schiavini & Elvys Chaves, no Museu de Arte do Espírito Santo, com curadoria de Clara Sampaio e Nicolas Soares, curador e diretor do MAES, e da exposição Abstrações, com obras do acervo da instituição.

Deri Andrade, criador e responsável pelo Projeto Afro – plataforma de mapeamento e difusão de artistas negros-, e curador do Instituto Inhotim Brumadinho, MG), fez uma apresentação intitulada “Estratégias em curadorias decoloniais”.
Com mediação de Ananda Carvalho, curadora e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo, Andrade discorreu sobre a maneira como projetos de pesquisa e exposições vêm se transformando a partir do letramento contra o racismo estrutural e da luta pela diversidade.

Andrade relembrou o projeto expositivo “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”, que o Inhotim realizou entre 2021 e 2024, em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro). Dividido em quatros, o programa de mostras foi uma ação de curadoria compartilhada, um modelo inédito na história da instituição.
Um caso de estudo de institucionalização de uma iniciativa independentente, trazido à tona por Andrade, foi a mostra Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, desdobramento do Projeto Afro que reuniu, entre dezembro de 2023 e março de 2024, no CCBB SP, trabalhos de artistas como Arthur Timótheo da Costa, Maria Auxiliadora, Rubem Valentim e Mestre Didi e Lita Cerqueira.

No dia 21/3, foi a fez de Gleyce Heitor, diretora de educação do Inhotim, comandar o workshop “Por uma articulação interdisciplinar em arte e educação”, com mediação da professora Margarete Sacht Góes, curadora do programa educativo da Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU/UFES).

Cada vez é mais imperativo um diálogo interdisciplinar entre a cultura e a educação. A arte tem sido um elo fundamental na construção de reflexões sobre o sujeito, seu desenvolvimento e sua relação com o meio ambiente. O workshop discutiu dois casos de implementação destas estrategias. ✱

Nice, contemporânea

Cacau, Óleo sobre tela, 1988. Fotos: Acervo MAES, Secult

Por Nicolas Soares

Existe um entendimento equivocado que faz com que uma pintura atribuída como primitivista seja exercício de uma tentativa disruptiva do academicismo erudito. A propósito, os primitivos são todos aqueles, todas aquelas, que já ocupavam na cadeia social a borda da racialidade – em que se foram organizados os povos não-europeus – operada pela dedicação eurocêntrica ao colonialismo. A medida civilizatória está amparada na cultura como reguladora dos corpos e subjetividades: as “tribos primitivas” sobrechegam da esfera do “outro lá, e eu cá” que sustentou as disciplinas antropológicas e etnográficas, as quais desenharam, entre muitas coisas, a anatomia normativa, e desta forma também o escopo da representação clássica ocidental. Tudo que está fora deste campo foi atribuído como selvagem e mais tarde catalogado como alegorias exóticas da não-civilização, do não-humano e do não-sujeito e, principalmente da não-cultura.

Os modernismos de avant-garde se dedicaram a olhar para o mundo recém-conhecido com certa curiosidade anedótica, cultivando a ambiguidade de retratar seu tempo e defender o fetiche da dessemelhança, amparados pelo estatuto do “ter”, que diz respeito a todo ato de colecionar. Colecionar imagens do além-mundo selvagem. Porém, o modernismo de terceiro-mundo brasileiro se empenhou na construção simbólica e imagética da identidade nacional, provocando o ânimo das narrativas, lendas e figuras que poderiam se despertar e corroborar para uma arte desvinculada dos academicismos das escolas e movimentos tradicionais, fazendo frente a uma brasilidade cultuada pelos herdeiros do colonialismo. Com efeito, negligenciou-se a estrutura pela qual a própria elite das artes se constituiu.

Art naïf e outras vertentes, que se movimentaram contra determinados regimentos da arte, não dizem necessariamente respeito ao que depois a arte denominaria como primitivo: este que se alinha ao agreste, ao indomesticado, ao inculto, ao ignorante; porque aqui “primitivista” são aqueles filhos e aquelas filhas da colônia em que seus saberes, fazeres e modos de elaborar a representação estão afastados da norma sociocultural em imagem, conduta e importância. Porque o primitivismo foi [ou, porventura, ainda é] a inteligência pela qual os arquétipos coloniais justificaram a dominação e a subordinação de um outro – seu modo de vida, seus artefatos, suas imagens e seus territórios. À semelhança, maneirismos em termos pictóricos e formais ramificaram um estilo destituído de qualquer origem, forçando a apropriação deste outro pelo núcleo da cultura e pelo sistema da arte.
Aqui faremos o exercício de rever a produção da artista capixaba Nice Nascimento Avanza: a “artista do cacau”, a “grande artista primitivista”, a “artista naïf” da “exuberância das cores”, largamente identificada como tal pelo contexto das artes e imprensa. Nice, mulher negra, que se entendeu artista autodidata por intermédio de amigos que a incentivaram.

Esta artista que teve uma produção extensa entre as décadas de 1960 a 1990, com projeção do seu trabalho nacional e internacionalmente, que viveu de arte e circulou pelo mundo, que se apaixonou pelo cacau, pelo campo e pelo cultivo; viveu de arte.
Nice, considerada uma das principais artistas pictóricas do Espírito Santo, esteve encoberta pelo estigma do primitivismo, menos como forma e linguagem, e sim, mais, ao que parece, como reforço da folclorização de estrutura colonial. Quando nos deparamos com o repertório apresentado pela artista, e no contexto em que estamos, somos capazes de articular questões outras que fogem do exotismo e ingenuidade atribuídos ao seu fazer como pintora. Emergem de maneira contundente expressões da cultura tradicional popular capixaba, as iconografias das religiões de matriz africana e judaico-cristã – a favor da crença dos sujeitos da roça, a cultura sertaneja, a lavoura e seus cuidados, os frutos, as flores e os animais…

Se trouxermos à tona algumas dessas articulações, perceberemos que, por trás de um trabalho que delineia as iconografias das religiões de origem afro e cristã, por exemplo, há discussões que se aprofundam no sincretismo dessas manifestações como estratégias de sobrevivência de um povo. À frente, temos uma vasta produção de artistas contemporâneos que trazem, a partir dos rituais, elaborações de campo performativo na arte; e de seus objetos, deslocamentos das padronizações do artesanato para os estatutos da arte de uma cultura.

Da mesma forma, a pintura da plantação cacaueira apresentada em Nice nos provoca emergências de discussões como o agronegócio, a monocultura, o desmatamento, a desapropriação de terra, o genocídio indígena, a agricultura familiar, a descolonização do alimentar-se e sua moeda de elitização… O cacau pintado em óleo sobre tela, em cores fortes, iluminado, vivaz, não está mais passível de uma leitura ingênua.

Neste ano de 2025, o Museu de Arte do Espírito Santo – MAES organiza o projeto NICE CONTEMPORÂNEA (com previsão de exibição para 2026) que consiste numa revisão discursiva do trabalho da artista Nice Nascimento Avanza – que faz parte de seu acervo – 25 anos depois da sua última exposição no MAES, Nice Retrospectiva, em 2000, por ocasião de seu falecimento.
Nice Nascimento Avanza (1938, Vitória-ES – 1999, São Paulo-SP) ✱


*Nicolas Soares – Artista, curador e Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo

Prefeitura de SP ordena despejo do Teatro de Contêiner

Teatro de Contêiner

A Companhia Mungunzá de Teatro, um dos coletivos mais inovadores do cenário paulistano, foi surpreendida nesta quarta-feira (28) com uma ordem de despejo emitida pela Prefeitura de São Paulo. O documento, datado de 26 de maio, concede apenas 15 dias para a desocupação completa do Teatro de Contêiner, espaço que se tornou um marco cultural e social no centro da cidade.

A justificativa oficial da prefeitura aponta o local como um “ponto estratégico para habitação”. Para a companhia, no entanto, a decisão soa como um descaso com um trabalho de quase uma década que transformou a região.

Criado em 2008, o grupo Mungunzá desenvolve há 16 anos uma pesquisa cênica continuada, buscando alinhar arte e vida. Em 2017, essa busca resultou na criação do Teatro de Contêiner. Mais que uma sede, tornou-se uma ocupação artística pulsante, reconhecida por sua gestão cultural de impacto em áreas de vulnerabilidade e por sua arquitetura sustentável e comunitária.

Marcos Felipe, ator e produtor da Cia. Mungunzá, relembra como o espaço, há 9 anos fincado no coração de São Paulo, “mudou radicalmente a geografia afetiva do território”. Ele conta que o teatro foi pioneiro ao focar seu trabalho na própria territorialidade, na população do entorno. Uma diferença crucial, pois, embora cercados por outros equipamentos culturais, nenhum deles tinha, até então, “essa promoção com a própria população do centro de São Paulo, todos trabalhavam numa dinâmica de uma população que vinha de fora”.

O impacto é traduzido em números: ao longo desses nove anos, o Teatro de Contêiner “ofertou mais de 4.000 ações artístico sociais, sendo 83% delas todas gratuitas à população e atingimos um total de meio milhão de pessoas”. Um trabalho reconhecido nacional e internacionalmente, agraciado com prêmios e que se tornou referência, balizando políticas públicas replicadas em outros municípios.

Diante dessa trajetória, a ordem de despejo chega com um peso ainda maior. “Nos causa um imenso espanto o tamanho da violência de receber um mandado judicial de despejo pelo prazo de 15 dias”, conta Marcos Felipe.

A sensação é de que a história construída ali está sendo ignorada: “A gente achava que a cidade de São Paulo deveria regularizar, chancelar o espaço e levantar esse espaço como um emblema da própria cidade e não desativar e destruir esse equipamento para construção de mais um prédio numa cidade que só tem prédio”. Marcos Felipe aponta que ao longo dos últimos anos foram erguidos muitos edifícios no centro de São Paulo e nenhum deles serviu, de fato, para a população vulnerável: “Há um processo de gentrificação do centro de São Paulo e a desativação do Teatro de Contêiner para a construção de um prédio faz parte do processo de elitização, de trazer pessoas da classe média para o centro e expulsar os moradores mais pobres para as bordas da cidade”. 

Sobre alternativas, a prefeitura teria mencionado a possibilidade de outros terrenos, mas sem apresentar propostas concretas. A Cia. Mungunzá questiona a lógica: “Se existem outras alternativas para o Teatro de Contêiner, por que esses edifícios não podem ser construídos nelas?”

Agora, a companhia se mobiliza. O caminho é “fazer com que a sociedade civil se engaje nessa luta”, buscando apoio para que essa “força pública freie esse ímpeto extrativista do governo e do prefeito”.

Sem o olhar de Sebastião Salgado

Sebastião Salgado
Foto: Sebastião Salgado

Perdemos um olhar especial, refinado e educado, que durante 50 anos vislumbrou o mundo. Faleceu, na sexta-feira, 23, em Paris, o fotógrafo documentarista Sebastião Salgado, mineiro de Aimorés, (1944-2025).

Sebastião seguiu e retratou a passagem do ser humano pelo planeta. Em suas fotos em preto e branco, a profundidade de um olhar que tentava traduzir a humanidade com generosidade e crítica. Certeira. De formação econômica, foi com este viés e um sólido embasamento cultural que ele documentou o século XX e o século XXI.

Quando Sebastião Salgado decidiu tornar-se fotógrafo, em 1973, o mundo era bem diferente. Analógico. A Guerra Fria ainda ocupava as páginas da imprensa, o muro de Berlim permanecia em pé, o Brasil estava mergulhado no pior período da ditadura militar. Foi neste cenário que Sebastião, que já carregava consigo uma bagagem como economista, com mestrado em São Paulo e nos Estados Unidos e, por questões políticas havia se mudado para Paris no final dos anos 1960, se aproximou da fotografia, abandonando completamente números e planilhas econômicas, e se voltou para câmeras e lentes fotográficas. Ele trabalhava para a Organização Internacional de Café e foi enviado para Angola para coordenar um projeto sobre a cultura do café naquele país. Além de lápis e calculadora levou a câmera – que, na verdade, era de sua esposa Lélia – e vários filmes. Foi lá que nasceu o Sebastião Salgado fotógrafo.

Desde as suas primeiras imagens e por sua visão de mundo forjada na economia e no humanismo, escolheu como tema de seu trabalho registrar a vida de pessoas que viviam à margem da sociedade. Suas fotos nos trouxeram as vítimas da fome na África, os mineradores de ouro na Serra Pelada, os camponeses e povos originários das Américas, os mutilados de guerra do Camboja, as vítimas das guerras, os sem-terra do Brasil e os lugares do mundo ainda preservados da destruição do ser humano. 

Apesar de também ter sido muito criticado pela escolha estética de sua temática, também percebemos sua generosidade e dignidade com a qual olhava para seus retratados. Se fotografou a tristeza, também apresentou a esperança.

Se uma fotografia não muda o mundo, ela pode, sim, servir de gatilho para uma reflexão, para um bom debate. Como afirma a pesquisadora e historiadora Susie Linfield “uma fotografia não está ali para dizer ‘olha o que está acontecendo’, mas para nos advertir: ‘isso não pode acontecer’”.  Talvez por isso as imagens de Sebastião Salgado criaram tantas polêmicas. 

Ele, herdeiro da fotografia documental tradicional, nascida no começo do século XX, como uma fotografia de rua, do cotidiano de apresentar uma denúncia social ou,  ainda citando a Susie Linfield, “depois da fotografia, ninguém mais pode alegar ignorância”, trouxe sua visão bem demarcada para nosso olhar. Suas fotografias apresentadas em exposições pelo mundo permanecem vivas em seus livros, elaborados e editados em parceria com sua esposa Lélia Wanick Salgado, e por que não, coautora de suas obras. Ela mesma, produtora gráfica, autora e ambientalista brasileira, formada em arquitetura pela Universidade Paris VIII, foi a responsável por emprestar sua câmera para o Sebastião, nos anos 1970, e por desenhar e editar suas fotografias e exposições, ao longo destes mais de 50 anos de profissão: Outras Américas, Trabalhadores, Terra, Êxodos, Gênesis, Amazonia, Gold (Serra Pelada). Este é o seu legado, que esperamos permanecerá.

Com a morte de Sebastião Salgado, perdemos todos, inclusive seus detratores. 

A vertigem do popular na obra de Luiz Braga, por Henry Burnett

Luiz Braga, Oleiro (1979)

Minha opção pela Amazônia é simples e natural, passo ao largo dos estereótipos e modismos que anulam quem nela vive e faz sua história. Uma história comum feita de gente anônima, conhecedora da natureza, criativa na sua essência e alegre no seu cotidiano feito de viagens de canoa, banhos de rio, trabalho duro e muita esperança

(Luiz Braga, Arquipélago imaginário, catálogo, IMS, 2025, p. 23)

Por Henry Burnett

Uma exposição que põe em perspectiva a obra de um artista costuma ser um espaço privilegiado de contemplação, mas também de reflexão. Este é o grande acontecimento de Luiz Braga – Arquipélago imaginário no Instituto Moreira Salles (IMS Paulista), que, com a curadoria de Bitu Cassundé, percorre 50 anos de carreira do fotógrafo belenense através de 258 fotos. Tendo assistido uma ou outra exposição em Belém, visto algumas fotos em momentos distintos ao longo dos anos, seguindo o generoso Instagram do artista, nada se compara ao que uma visita a esta exposição revela em panorama. É como penetrar em um filme mudo, ora em PB, ora em tecnicolor. Fantasia e realidade se contrapõem sem cessar durantes as horas que passamos absortos entre as fotos.

Para muitas pessoas que chegaram na adolescência na década de 1980, Belém era uma cidade bloqueada. Os poucos acessos que davam vista para o Rio Guamá ou para a Baía do Guajará eram locais de turismo. Madeireiras, indústrias, bares, estaleiros e afins cercavam algo em torno de 90% da orla. A “escadinha” – lugar simbólico que dava acesso ao rio para os pescadores – era como uma janela, ou uma lente através da qual se via a floresta, os barcos e as pessoas que neles viajavam. A cidade e a floresta pouco se misturavam. Era possível sentir-se em uma urbe total, numa segunda natureza, hoje expandida no limite do absurdo.

Apesar disso, o que as fotos revelam a pessoas mais ou menos privilegiadas talvez não seja algo invisível, mas simplesmente ignorado por elas. Um dos espantos de estar diante da obra de Luiz Braga é a sensação de perenidade dos contrastes econômicos da cidade. Mas dizer isso não é tocar no fundo. Suas fotos (re)atualizam tudo em nossa fraca memória coletiva. Mas é aqui, justamente diante do assombro que causam, que a dimensão ética e política de seu trabalho se revela em conexão estreita com suas escolhas estéticas.

São 50 anos de carreira e milhares de fotos. Escolho seis, uma de cada década, de 1970 até 2020, comentadas em ordem cronológica.

 

Luiz Braga, Oleiro (1979)

Oleiro (1979)

A foto faz parte de um conjunto coeso de imagens dedicadas aos trabalhadores e trabalhadoras do Pará. Neste caso o retratado é um oleiro, ou seja, um homem que faz ou vende objetos de cerâmica. Ele não olha para o fotógrafo, parece ocupado em seu ofício. O torso e o pescoço retesados dão a impressão de estar imprimindo força intensa em algo, mas seu rosto é tranquilo, o olhar concentrado, se há esforço em seu afazer não se pode notar. A foto se irmana com as do fotógrafo alemão August Sander, que também retratou trabalhadores braçais em atividade, sobretudo em Semblante da época (Antlitz der Zeit, Schirmer/Mosel, 2003), uma de suas obras de maior repercussão, e que fazia parte de um projeto maior chamado Os homens do século 20 (Menschendes 20. Jahrhunderts). Gostaria de sugerir que esta irmandade não é apenas estética – sobretudo porque a identidade autoral de cada fotógrafo está preservada em sua singularidade, como não poderia deixar de ser –, ela é nomeadamente ética. Como August Sander, Luiz Braga se ocupou em registrar seu povo e, apesar das diferenças abissais entre as circunstâncias alemãs do período entreguerras e a vulnerabilidade social de muitas pessoas que vivem na Amazônia, ambos salvaguardaram a beleza, a leveza, a graça e, acima de tudo, a luta diária das pessoas anônimas. Este homem belo, representado num contraste entre a prata e o negro, com sua tez brônzea, é dono da sua arte, de sua vida e do seu destino. Nada deve ao progresso que assola o mundo, permanece íntegro em sua função manual. Seu trabalho com o barro e a água em nada o apequena. Basta olhar para ele por alguns instantes para ter certeza que estamos diante de um homem de todos os tempos, que havia no princípio e precisa continuar a existir.

Luiz Braga, Plateia no Ver-o-Peso (1985)

Plateia no Ver-o-Peso (1985) 

Esta foto faz parte da primeira fase da obra do fotógrafo, quando, em suas palavras, “não tinha o hábito de refletir sobre o meu fotografar” (Arquipélago imaginário, op. cit., p. 23). Pode ter sido uma das que permaneceu por décadas no arquivo, como grande parte do que produziu em preto e branco naquele início de carreira. Para Luiz Braga também foi uma “revelação” a sensação de ter visto as fotos ampliadas pela primeira vez a partir dos negativos revelados no laboratório do IMS no Rio de Janeiro – o primoroso trabalho de impressão é um capítulo à parte na exposição. Detalhes de um barco de médio porte aparecem em pano de fundo, cordas, escadas, o mastro; mais ao fundo vemos a borda da floresta e entre eles a Baía do Guajará. A floresta e o rio não têm foco, sequer emolduram a cena, chegam a ser encobertos por algumas cabeças, parecem estar ali apenas para que saibamos estar diante do rio, nas proximidades do mercado do Ver-o-Peso. Nesta foto da primeira década de sua produção, Luiz Braga já havia feito uma escolha decisiva: toda a exuberância amazônica que revelaria vida afora seria humana, e não apenas isso, também escolheria personagens à margem da vida social e economicamente privilegiada de Belém e arredores. Vemos apenas duas meninas na foto, em primeiro plano, e meio rosto de um menino no canto inferior direito. Tudo indica que são trabalhadores da feira, talvez alguns clientes, metade negros, metade caboclos, em um momento de distração. Olham para o chão, com exceção do adolescente negro com a camiseta envolvendo o pescoço, o único que mira o fotógrafo. Não sabemos o que estão contemplando, estão sérios, alguns franzem a testa compenetrados. No centro da imagem um homem com cabelo Black Power quase se destaca, mas todos os rostos tem expressividade singular, não há protagonistas. Nesta foto, Luiz Braga registra duas representações étnicas fundamentais da formação do povo paraense, os negros e os caboclos – estes com fortes traços indígenas. São os excluídos de ontem e de hoje. Não há ninguém que possa ser chamado de branco. Também não há fregueses, só serventes e seus filhos. A foto tem exatos 40 anos. Quase nada mudou do ponto de vista socioeconômico, mas não parece ser tão-somente isso o que os olhos do fotógrafo viram na cena. A pessoas guardam profunda austeridade. A menina no centro da foto, que parece segurar um isopor embaixo do braço esquerdo, mantém o direito na cintura, tem o semblante rígido como se a atração à sua frente precisasse entregar mais para justificar a interrupção nas suas vendas. Ao seu lado, com uma caixa de madeira na mão, a de cabelos longos está menos sisuda que enfadada, tampouco parece convencida. Todos os homens adultos resguardam em suas expressões rigor e severidade. Há um grande mistério no que não podemos ver e essas personagens podem; é o que mantém a perenidade da foto. O que veem nos perturba e incomoda, da mesma forma como nos confunde olharmos seus rostos impassíveis imaginando o que pensam, o que esperam daquilo que lhes era oferecido então, o que resta de seus desejos hoje.

Luiz Braga, Mulher na Transamazônica (1996)

Mulher na Transamazônica (1996)

Não há emblema mais forte do impacto da chegada da modernidade na Amazônia que a abertura da Rodovia Transamazônica pelo Regime Militar em 1972, cuja intenção declarada era integrar a região Norte ao resto do Brasil através de sua ocupação, de seu povoamento, ignorando com sordidez as pessoas que viviam na região há milênios. O desastre desse processo desordenado se faz sentir ainda hoje, sobretudo em relação à degradação do ambiente antes ocupado predominantemente pelos indígenas e seus descendentes mestiços. Em Bye Bye Brasil, de 1980, Cacá Diegues já mostrava um processo irreversível de destruição e decadência nas margens da monumental rodovia, mas também deixava ver belezas inauditas; Luiz Braga leva aquele impulso cinematográfico ao extremo. Na foto uma mulher de baixa estatura, negra, de cabelos ondulados, caminha em direção ao nada. Estamos em um dos muitos trechos sem pavimentação de uma rodovia que nunca foi finalizada, um emblema do próprio país que deveria interligar. Sua bolsa poderia indicar que não se trata de uma mulher indígena, “aculturada”, seu vestido elegante e suas sandálias de couro permitem imaginar uma migrante nordestina; no fundo, não é tão mal desconhecer sua origem e seu destino, porque ela é muitas, representa as mulheres que lá nasceram e vivem ou que foram obrigadas a se deslocar para aqueles ermos em busca de uma vida melhor; ela vai aonde quer. Se por um lado a foto expõe a pequenez desse corpo em meio à mata densa e ao sem-fim da estrada, por outro expressa a fibra de uma mulher de idade indefinida, que precisa caminhar muitos quilômetros todos os dias. Enfrentar a temida BR-230 sozinha, comendo a poeira dos caminhões que a atravessam, diz tudo sobre sua força e seu destemor. Ao seu redor, a floresta parece querer reocupar o espaço rasgado através dela. Esta convivência do humano e da natureza é um dos grandes desafios quando se quer pensar a ocupação da Amazônia. Deixá-la existir em sua complexidade ou ocupá-la, produzindo através dela; que destino lhes resta é a pergunta que devemos responder urgentemente.

Luiz Braga, Promesseiros (2006)

Promesseiros (2006)

Luiz Braga fotografou o Círio de Nazaré incontáveis vezes. Nesta foto vemos um recorte de uma das formas de devoção mais impactantes da procissão, a corda, símbolo máximo da fé dos romeiros. Muitas camadas de sentido atravessam este registro. A primeira e mais impactante delas é erótica. Homens jovens apoiam-se uns nos outros segurando seus bíceps, tão próximos que nada se interpõe entre eles. Raro momento em que a masculinidade cede espaço ao contato entre indivíduos sem que seu orgulho seja ferido, como num efusivo abraço depois de um gol. Os pés descalços, a mistura de suores, a exaustão de horas que parecem não passar iguala todos diante da padroeira. Quando a corda passa o pânico se instala na multidão, não há controle sobre a força e o sofrimento que arrasta. Por outro lado, temos uma segunda camada importante representada neste instantâneo: a revelação da fé na sua integralidade, sem clichês, adornos e subterfúgios. O Círio, como parte da “identidade paraense” juntamente com a comida, a música, a linguagem e seus sotaques não escaparam aos estereótipos do que hoje é reivindicado como “autêntico”, “único” e “simbólico”, sobretudo pelos manipuladores da opinião pública e comunicadores dos mais variados espectros; como não faltam oportunistas nos seus camarotes, chorando em público quando a santa passa, enquanto transmitem ao vivo para o Instagram. Neste e nos demais registros do Círio, Luiz Braga revela um momento de alta representatividade, e consegue a proeza de contornar todas as representações oficiais, embora muitas vezes tentem cooptar seu trabalho; sem sucesso. Homens debruçados uns nos ombros dos outros, prostrados, conduzidos de arrasto, promesseiros ou não, que esperam mais do mundo e da vida.

Luiz Braga, Cavaleiro marajoara (2018)

Cavaleiro marajoara (2018)

Das fotos comentadas aqui, esta é propositalmente a única que nos desloca, que suspende a realidade por um instante ilusório e etéreo. É uma das fotos que arrastam o espectador para um espaço mítico. O cavaleiro e seu animal estão fora do tempo, o espaço em torno deles é uma continuação dos seus corpos. A figura deste homem remete a muitas lendas e mitologias, não só locais, mas transnacionais, não só regionais, mas também seculares. Duas em especial falam mais alto: o mito de Narciso e o sedutor boto, que nas narrativas populares engravida mulheres incautas. Seu chapéu oculta suavemente o rosto, parece contemplar a própria imagem refletida no fio de igarapé sob os pés do animal. A técnica tem aqui um papel decisivo. Seriam outras as impressões se estivéssemos diante de uma foto em cores vivas. O verde abundante da mata possivelmente faria nosso personagem e sua montaria desaparecerem. Compondo a série “Night Vision”, a foto suspende os laços que separam nós e eles, local e universal, até mesmo a “identidade” amazônica é obstruída e anulada propositalmente. O herói é um ser além do mundo. Nesta foto, em especial, Luiz Braga sugere uma integração total do homem com a natureza, elimina suas abissais diferenças, cria um Éden atemporal, agnóstico e fantástico. A frondosa árvore arqueada protege e acolhe, mas é um instante em que não há nenhum temor, porque as coisas só existem como parte do todo do universo. Nesta foto extraordinária, o homem não é nada.

Luiz Braga, Guardiãs no templo (2023)

Guardiãs no templo (2023)

A fé católica não é exclusiva nas comunidades amazônicas, e não é de hoje. Na Ilha do Marajó a presença dos pajés é secular, e predominante. Não causa estranheza que religiões cristãs evangélicas também tomassem seu quinhão. Esta foto mais recente mostra um pequeno templo construído de costas para uma área de floresta. Ao lado, nos fundos, um pequeno banheiro sem reboco parece ter sido construído para outro uso que não o dos fiéis, destoa do prédio, quase o ofende. O azul da tintura misturada à cal faz do pequeno templo uma anomalia entre o chão de terra e a mata. O zelo é total. A forma de captar a intensidade de cores que marca o trabalho do fotógrafo está presente aqui, sob luz natural. Um casal ladeia a porta central, posaram para a foto com orgulho, empunham cabos de vassoura como carabinas. O que resguardam? Sua fé? Seu templo? Sua escolha pentecostal? Comportam-se como o personagem de Dino Buzzati em O deserto dos tártaros, Giovanni Drogo, isto é, cumprem sua função vigilante com grande senso de responsabilidade. Estão ali em frente ao monumental espaço que lhes cerca, a floresta que lhes parece desconhecida, temem que sua fé simplória seja vilipendiada, creem, como todos, que a salvação virá, que nada pode interromper seus laços com essa espiritualidade de empréstimo. Esperam a redenção, e creem piamente que ela chegará.

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Henry Burnett é compositor e professor titular do departamento de filosofia da EFLCH/Unifesp. Publicou Cinco prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche (Tessitura, 2008), Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: ensaios de filosofia e música (Editora Unifesp, 2011), Para ler O Nascimento da Tragédia de Nietzsche (Edições Loyola, 2012), Para ler O caso Wagner de Nietzsche (Edições Loyola, 2018) e Espelho musical do mundo (Editora PHI, 2021), além de vários álbuns musicais, entre eles Não para magoar (2006), Canções da infância inteira (2020) – em duo com Julia Burnett – e o álbum duplo antologia_50_solo e antologia_50_parceria (2021). Meio-dia (7letras, 2021) foi sua estreia na prosa literária. Seu livro mais recente reúne uma seleção de ensaios e artigos publicados nos últimos 20 anos em torno do seu tema mais frequente, Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil (Edusp, 2024).

Ao celebrar 120 anos, Pinacoteca aposta na diversidade e nas narrativas silenciadas

Jochen Volz
Jochen Volz. Foto: Levi Fanan

Em 1905, a partir da transferência de 20 obras do Museu Paulista da USP e da aquisição de seis pinturas de artistas paulistas – como Almeida Júnior e Pedro Alexandrino –, foi criada a Pinacoteca de São Paulo, primeiro museu da cidade dedicado exclusivamente às artes. Hoje, 120 anos depois, com cerca de 12 mil obras no acervo – nas mais variadas linguagens e suportes, das mais variadas origens regionais e até estrangeiras –, a Pinacoteca se apresenta cada vez mais diversa e conectada aos debates contemporâneos.

Os responsáveis pelas transformações e expansões vividas pelo museu ao longo das décadas são muitos, entre diretores, funcionários, governos e, claro, os próprios artistas, mas é notável o foco especial dado pela atual gestão, de Jochen Volz, na construção de uma nova identidade para a Pinacoteca. Uma cara menos paulista, menos acadêmica e mais atenta às diversas vozes que foram silenciadas ao longo da história, seja de artistas negros, indígenas, periféricos ou LGBTQIA+. 

“Mais ou menos 60% do público que chega aqui está visitando um museu pela primeira vez na vida”, conta Volz. “Aí já fica evidente como nossa obrigação é, sim, refletir sobre dívidas históricas, refletir sobre representatividade e visibilidade de artistas que foram invisibilizados ao longo de séculos.”

Ocupando três edifícios (Pina Luz, Pina Estação e Pina Contemporânea, a última inaugurada há dois anos), além de responsável pela administração do Memorial da Resistência, a instituição do governo do Estado de São Paulo é um dos museus com maior público do país, ultrapassando os 800 mil visitantes por ano em 2023 e 2024. 

Com orçamento de R$ 66 milhões (2024), a Pinacoteca celebra suas doze décadas de existência com 18 exposições realizadas ao longo de 2025, com destaque para as coletivas “Pop Brasil” (com abertura em 31 de maio) e “Trabalho de Carnaval” (em novembro), que enfocam tanto a produção pop dos anos 1960 e 1970 quanto a riqueza cultural popular em nosso país.  

Em entrevista à arte!brasileiros, Volz fala de seus oito anos como diretor-geral da Pinacoteca, dos planos para tornar o museu cada vez mais aberto para a cidade e da importância da cultura para a transformação da sociedade. Leia abaixo.  

Pinacoteca de São Paulo
Pinacoteca de São Paulo. Foto: Beto Assem
arte!brasileiros – Antes de falarmos dos 120 anos da Pinacoteca, eu gostaria de focar um pouco na sua gestão como diretor-geral da instituição. O fato de você estar completando oito anos à frente da Pinacoteca parece mostrar que o trabalho tem dado resultados e recebido uma avaliação positiva. A que você atribui isso?

Acho que uma coisa importante foi que quando eu cheguei já existia uma estrutura muito boa, equipes muito bem estruturadas. E isso resulta especialmente de um processo que vem desde 2005, quando começa o trabalho de gestão via Organização Social – no caso da Pinacoteca, foi a Associação de Amigos que se qualificou como OS de Cultura – que permitiu uma administração com mais liberdade e um pouco mais de flexibilidade deste equipamento que é do governo do Estado. Esse é hoje o modelo de gestão de quase todos os equipamentos culturais do Estado de São Paulo. Ele favorece um processo de profissionalização da instituição, já que nos permite criar relações de trabalho um pouco mais longevas. Você não fica tão diretamente ligado à gestão direta da Secretaria de Cultura. Obviamente, a Secretaria dá as diretrizes, indica quais são as missões, mas você consegue criar equipes próprias muito profissionais – desde educativo, curadoria, conservação e restauro até financeiro e infraestrutura, por exemplo. Foi um privilégio, para mim, assumir a gestão da Pinacoteca em um momento em que todo mundo estava já em trilhas muito claras. 

Um dos primeiros trabalhos que fizemos, em 2017 e 2018, foi uma revisão do plano museológico, que é uma espécie de plano diretor da Pinacoteca. Isso foi muito importante porque é um trabalho coletivo, no qual você chama todas as equipes e tenta organizar as prioridades para os próximos anos, para refletir sobre a missão, sobre a visão, sobre valores, linhas de atuação e assim por diante. Para ficar claro o que a Pinacoteca quer ser e o que ela não precisa ser. E esse processo coletivo ajuda também a construir uma identificação de todos os colaboradores e colaboradoras com a instituição. Neste momento, portanto – e isso está em sintonia com o contexto no qual o Conselho me convidou para assumir a direção –, nós compreendemos com mais clareza que queremos ser um museu de arte brasileira em diálogo com as culturas do mundo. Isso hoje virou nossa missão: somos um museu de arte brasileira, voltada para a produção do século 19 até a contemporaneidade, em diálogo com as culturas do mundo, promovendo esses encontros, além de termos um grande projeto de educação museal.

E se queremos ser um museu de arte brasileira, não podemos mais ser só esse museu paulistano e paulista. Isso significa ampliar a linha de atuação programática e a coleção, olhar para além do Sudeste, além de São Paulo, e olhar também para além de uma formação mais acadêmica. Até porque em muitas regiões do Brasil tornar-se artista, em modo geral, não decorre de uma formação acadêmica. É aquela pessoa que começa copiando o pai ou a mãe, ou copiando o vizinho, ou fazendo parte de uma escola no bairro… Uma enorme produção que antigamente, de modo bastante problemático, chamávamos de arte popular.  

arte!brasileiros – Arte naif, arte vernacular…

Sim, algo que não se sustenta. A partir desse momento de revisão do plano museológico também ficou evidente que precisamos olhar para todas as histórias da arte brasileira que não foram contadas até agora e trazê-las para dentro da Pinacoteca. A produção de artistas mulheres, de artistas negros, indígenas, de artistas periféricos, de artistas de outras regiões e por aí vai. 

Ainda há muito para fazer, como por exemplo diminuir as lacunas do acervo, que é algo que já começamos, mas é um trabalho longo; trabalhar mais na interface com outras linguagens artísticas; e aprender e estudar mais sobre outras regiões do Brasil que talvez ainda não tenhamos alcançado. 

arte!brasileiros – A exposição de longa duração do acervo, totalmente reformulada e inaugurada em 2020, também é um marco significativo neste processo todo…

Sim. Porque, de certo modo, a Pinacoteca sempre teve esse cheirinho paulistano, com um pouquinho de cheiro do século 19. Então eu acho que quando nós reformatamos todo o acervo e abandonamos a ideia de uma história cronológica, passando a organizar mais tematicamente em uma mostra onde a produção do final do século 19 e a contemporânea estão misturadas e colocadas em diálogo, eu acho que isso mudou um pouco essa imagem de um museu paulista e que traz um pouco do passado de uma elite paulistana. Enfim, claro que esse passado existe, mas eu acho que a percepção mudou, assim como o público mudou radicalmente ao longo dos últimos anos. 

arte!brasileiros – Dentro destes oito anos de gestão, você esteve à frente da Pinacoteca durante toda a pandemia, em um dos períodos mais difíceis para qualquer instituição cultural na história brasileira. Para além das iniciativas realizadas, que acompanhamos à época, eu queria saber: tudo voltou a ser como era antes? Ou houve aprendizados e transformações que vieram para ficar? 

Respondendo de modo muito pragmático, a pandemia chegou no momento em que estávamos formatando o projeto da Pina Contemporânea, que foi a grande expansão da instituição. Era um desejo desde 2005, mas foi trabalhado sistematicamente a partir da minha chegada, com a cessão daquele espaço para a Pinacoteca em 2018. Em 2020, na pandemia, já tínhamos iniciado o projeto executivo do novo prédio. E, nesse momento, tanto dentro da equipe do museu quanto com os arquitetos, chegamos à conclusão que o museu pós-pandemia não podia ser igual ao planejado antes da pandemia. Então o projeto foi quase inteiro para a gaveta e se transformou em um outro projeto, que é o que foi construído. Alguns elementos sobre como usar as edificações já existentes permaneceram – como a reserva técnica –, mas em vez de criar muitas galerias novas para expor o acervo, criamos uma grande praça aberta. 

Pinacoteca Contemporânea
Pina Contemporânea. Foto: Manuel Sá
arte!brasileiros – Tornou-se um museu mais arejado?

Sim. No projeto original já havia uma rua passando pelo prédio, um pouco parecida com a rua central do Sesc Pompeia, mas a ideia de ser ainda mais arejado, mais aberto, com espaços de estar junto ao ar livre, isso tudo é um reflexo da pandemia. Então temos hoje um museu que busca promover para o público experiências com arte e cultura de uma forma mais direta. Atualmente, quando temos um evento na praça da Pina Contemporânea, com música por exemplo, as pessoas vêm e nem percebem que estão entrando no museu. Elas passam pelo parque (Jardim da Luz), de repente estão na praça da Pina, aí estão no meio do evento, se deparam com uma obra do Tunga, têm uma programação educativa ou cultural, uma biblioteca aberta para entrar e pegar um livro, ler uma revista… e ainda podem visitar as galerias expositivas. Então não é um museu com um monte de barreiras, escadaria grande, controles etc. 

arte!brasileiros – A ideia de um museu sem catracas, digamos assim…

Exato. Porque acho que a pandemia foi um momento em que nós todos percebemos o quão importante é ter esses espaços abertos e de convivência ao ar livre, que são raros em São Paulo. 

Para além disso, a pandemia trouxe outros debates à tona. Debates sobre qual é o papel da cultura dentro da sociedade, qual é o papel da arte na sociedade, qual é o papel das questões de representatividade. Ou seja, para pensarmos sobre quem fala e quem escuta, quem tem o poder de falar e quem está sendo ouvido, isso mudou radicalmente durante a pandemia. Não é uma questão da Pinacoteca, mas da cultura em si – que é urgente e a pandemia reforçou isso. A pandemia ou, talvez, a gestão política no período de 2019 a 2022 [governo Jair Bolsonaro] foi um momento de grande ataque à cultura que teve como reação um grande fortalecimento da cultura. E, aqui para nós, é preciso ressaltar que houve um investimento muito grande do governo do Estado de São Paulo, que não seguiu essa linha do governo federal de cortar todo o dinheiro da área.

arte!brasileiros – Falando de política, lembrei de uma afirmação sua de que o lugar da arte, neste mundo em crise, é também o lugar de pensar outras formas de se viver em comunidade, mais democráticas, e de conceber outros mundos possíveis. Recentemente o diretor do Museu Afro, Hélio Meneses, falando sobre a dívida histórica que o país tem com as populações minorizadas, disse: “Eu acho que essa dívida que é social, econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora ele seja fundamental para a elaboração de novas visões. Devemos cobrar de uma engrenagem socioeconômica uma maior responsividade, responsabilidade, equidade e justiça, e não pedir que o campo das artes resolva o que lhe escapa de possibilidade de resolução”. Não me parecem que suas visões são conflitantes, mas, ainda assim, queria te perguntar como enxerga essa questão do papel transformador da cultura na sociedade atualmente. 

Olha, eu concordo 100% com o Hélio, é inquestionável. Acho que o meu ponto, nas afirmações que você citou, é o de não subestimar o papel da cultura dentro da sociedade. Porque se existe um campo que atua entre a esfera privada e a esfera pública, provavelmente é a cultura. E se queremos que um debate seja levado para dentro das casas, escolas e administração pública, a cultura tem um papel importante. Não dá para apostar que ela vai resolver o problema da sociedade, porque não vai, mas ela forma opiniões, ela tem papel educativo fundamental. Por exemplo, um assunto como o racismo estrutural, se você não aprender na escola, no trabalho, ou na imprensa – e hoje é difícil saber quais as fontes de informação utilizadas e se são confiáveis –, possivelmente serão os lugares de cultura que vão poder difundir essa pauta. E falo de algo muito mais amplo do que os museus. O debate que uma série audiovisual levanta, o debate em livros de literatura, no teatro, enfim, em diversas linguagens.

E aí, voltando um pouco para a Pinacoteca, temos esse estudo que mostra que mais ou menos 60% do público que chega aqui está visitando um museu pela primeira vez na vida, porque nunca teve acesso. Aí já fica evidente como nossa obrigação é, sim, refletir sobre dívidas históricas, refletir sobre representatividade e visibilidade de artistas que foram silenciados e invisibilizados ao longo de décadas, séculos. Concluindo, concordo 100% com a fala do Hélio, mas acho importante pensar que o campo em que operamos é muito influente. Quer dizer, não estamos falando de coisas opostas.

arte!brasileiros – Nesse sentido, em sua gestão houve um enfoque crescente na arte produzida por grupos minorizados e marginalizados. Desde “Véxoa”, em 2020, que foi um marco ao mostrar a produção indígena contemporânea, até “Enciclopédia negra”, “Mulheres radicais”, entre outras. Esse é um grande foco da sua gestão? E como fazer com que isso não seja algo meramente protocolar – uma resposta ao que se espera – em um momento em que até mesmo o mercado está voltado para essas pautas? 

Olha, uma forma de atuar que eu acho importante é primeiro fazer e depois falar. Falar menos, escutar mais e pensar mais formas de integrar isso à programação de forma profunda. E quando nós começamos a refletir sobre a reformatação do acervo, em um seminário em 2018, convidamos vários palestrantes, entre eles a Naine Terena – que depois se tornou a curadora de “Véxoa”. E ela fez uma pergunta que provocou uma reflexão grande dentro na instituição, que foi: “Vocês, Pinacoteca, sendo uma instituição paulistana e majoritariamente branca no seu acervo e na sua gestão, qual lugar que vocês querem dar para os artistas indígenas?”. Ela não veio com respostas simples, mas nos questionou: “Vocês querem fazer uma exposição de álbum de figurinhas ou estão abertos a realmente abrir espaços, repensar formas de atuar como instituição?”. Não é por acaso que “Véxoa” é uma exposição tão importante, que não apenas foi uma das primeiras mostras de produção contemporânea de artistas indígenas, mas também teve curadoria de uma pesquisadora indígena. 

arte!brasileiros – E aí a importância de pensar em quem você convida, quem você escuta, quem você traz para o time…

Sim, pensar em como você constrói. Veja bem, quando a Naine nos fez a pergunta, em 2018, a Pinacoteca não tinha nenhuma obra de artistas indígenas contemporâneas no seu acervo. E hoje, depois de seis anos, são cerca de 40 artistas presentes. Então é preciso realmente repensar as formas de se criar um acervo: pensar o que que importa, qual é a nossa responsabilidade. E isso não é algo para se fazer uma vez e depois se virar para outros temas, mas deve virar uma linha de atuação contínua, um compromisso contínuo.

arte!brasileiros – Não é fazer uma exposição, “dar um check” e achar que já está bom…

Não pode ser isso, senão é justamente aquela coisa protocolar. Enfim, e já que você mencionou o mercado de arte, é interessante pensar que possivelmente as coleções particulares da cidade também mudaram após “Véxoa”, após “Enciclopédia Negra” e após “Histórias Afro-Atlânticas” [MASP], entre outras. Porque são momentos em que as instituições inserem debates que mudam tudo.

arte!brasileiros – Já falamos da Pina Contemporânea, um espaço mais aberto para a cidade, mas eu gostaria de aprofundar nessa questão da região tão complexa da cidade na qual a Pinacoteca está localizada. Uma área tão rica culturalmente, com equipamentos importantes, mas também muito degradada, com problemas de violência, desigualdade, com a questão da Cracolândia etc. Como é o trabalho da Pinacoteca para dialogar com essa região, com a cidade real, sem se tornar um bunker, digamos assim, protegido e isolado?

É sempre um desafio, obviamente. Eu acho que tem uma coisa muito importante, vamos dizer, que são as relações de parceria que a gente constrói ao longo dos anos. Então, por exemplo, o educativo tem uma atuação muito forte para além dos nossos muros. E acho que são parcerias com mais ou menos 23 coletivos aqui do entorno. Não todos simultaneamente, mas ao longo dos últimos anos, é uma grande rede de colaboradores, alguns mais distantes, outros mais próximos, mas que ajudam a criar laços que vão para além do próprio museu. Que criam laços afetivos com moradores de rua, com trabalhadores aqui do Jardim da Luz, com as mulheres do parque. Outra coisa é a relação com as outras instituições da região, como o Museu da Língua Portuguesa, o Teatro de Contêiner, com a Casa do Povo, o Museu de Arte Sacra etc. Então, essas colaborações, a compreensão de que nós não somos uma ilha, mas, na verdade, somos um hub muito forte de instituições culturais, também ajuda para pensar em circuitos e possibilidades de parcerias.

E, é claro, quanto mais vivo fica o centro, mais seguro ele fica. Então, optar por um museu sem muro, assim como a Pina Contemporânea, com suas três entradas, é parte disso. E nos últimos dois anos percebemos que a vivência naquele espaço, oferecer uma vivência para quem é morador de rua, ou público do museu, ou passageiro, ou alguém que só quer cortar um caminho para chegar mais rápido na Luz, essas são formas de promover a convivência. Em sentido parecido, fizemos em 2017, ainda antes do prédio novo, uma reforma da entrada na Pina Estação, abrindo mais portas. Nunca é fácil, mas sabemos que menos muros, mais convivência, isso gera também mais segurança.

arte!brasileiros – Falando em diálogo com a cidade e com o público, a Pinacoteca apresentou um aumento expressivo nos números de visitação de antes da pandemia [538 mil pessoas em 2019] para depois [880 mil em 2023]. Isso tem a ver com a inauguração da Pina Contemporânea, claro, mas não só. Pode explicar?  

Sim, houve um aumento, e isso não é só na Pinacoteca, mas em vários equipamentos. Essa percepção de que a visitação pré-pandemia e pós-pandemia tem um salto para cima significa que as pessoas estavam precisando de algo, de vivências, de espaços públicos, de contato com cultura, de contato com a imaginação. Mas, claro, isso também traz grande responsabilidade, porque é um público muito expressivo. Gera expectativas, desejos, o desafio de pensar como podemos ser cada vez mais um museu de todas e todos. E, é claro, existe ainda um potencial gigante de milhões de pessoas que passam por aqui pertinho todos os dias – na Estação da Luz, por exemplo –, mas não entram. Então, acho que o grande desafio da Pinacoteca e de todos os museus é o de criar linguagens e laços com um público que talvez hoje ache que o museu não é para ele. Porque eu acredito muito que o museu não é um lugar que você precisa de conhecimento para poder entrar. Todo mundo é bem-vindo. Mas existem barreiras sociais, históricas, estruturais…

Para nós, por exemplo, o sábado gratuito, que já existe faz tempo, é fundamental. É importantíssimo oferecer a gratuidade para o grande público nesse dia específico, porque ninguém vai, por exemplo, numa terça-feira sair da Cidade Tiradentes para visitar o museu só porque é gratuito. Mas no sábado você consegue combinar talvez com algum compromisso no centro, ou com um desejo de passear em alguma outra região da cidade e, deste modo, pode aproveitar e visitar o museu. E isso de fato acontece. Se um dia normal tem entre mil e três mil visitantes por dia, um sábado tem entre cinco e dez mil. E, ao todo, cerca de 78% do público da Pinacoteca usufrui de algum programa de gratuidade, seja o sábado, seja escolar, para professor, taxista, policial… enfim, todas as gratuidades que nós temos. É muito expressivo.

Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893
Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893
arte!brasileiros – Bom, chegamos então aos 120 anos da Pinacoteca. É muita história, nem faz sentido ficar repassando tudo. Mas tem uma fala sua que me chamou atenção, na qual você disse que, por mais que muitas vezes a gente relacione a Pinacoteca ao passado, ela sempre foi um tanto contemporânea ao seu tempo, por estar ligada à produção de artistas de sua época. Que quando foi criada, por exemplo, no início do século 20, serviu para ensinar jovens artistas e adquiriu obras atuais para a época. Pode falar sobre isso? 

Acho que tem muitos marcos ao longo da história. Quando foi fundada, em 1905, ela foi criada como uma Pinacoteca, ao lado de uma biblioteca, dentro de uma escola, basicamente – o Liceu de Arte e Ofícios. Mas, já em 1911, há um decreto que separa a Pinacoteca do Liceu e funda o museu independente, diretamente ligado à gestão pública. Isso é interessante porque, já nesse momento, se definiu que a instituição tem uma missão educativa e pedagógica. 

E por que é que eu sempre digo que desde a sua fundação é mais ou menos um museu de arte contemporânea? Porque as mais expressivas aquisições das primeiras décadas foram de trabalhos feitos no período. Quer dizer, havia duas maneiras pelas quais, na época, entraram obras no acervo. Uma era pelo programa de bolsas de estudos. Artistas ganhavam bolsas para estudar fora e no retorno deixavam obras. Ao mesmo tempo, houve momentos em que o próprio governo do Estado adquiriu trabalhos de artistas. A famosa “São Paulo”, da Tarsila do Amaral, de 1924, foi adquirida em 1929. O “Mestiço”, do Portinari, é de 1934, foi adquirido em 1935. Então, foram comprados quase que de dentro do ateliê, num período em que esses artistas ainda eram, digamos, a “nova produção”. E a partir daí, isso continua. Claro que teve momentos com um olhar mais vanguardista do que outros, mas eu entendo que a Pinacoteca sempre colecionava a produção do seu período. Até mesmo o Almeida Júnior (1850-1899) tinha acabado de falecer quando a Pinacoteca foi criada, não era “histórico” ainda. Aquilo era o mais novo de alguém que foi, talvez, um dos mais expressivos artistas do fim do século 19 no país. 

Depois teve um momento muito importante de participação da sociedade. Lá nos anos 1930 criou-se o Conselho de Orientação Artística, onde intelectuais, artistas e críticos participaram para garantir a qualidade e o bem-estar do acervo. Esse conselho existe até hoje, nesse momento sob a presidência da artista Cinthia Marcelle. Nos anos 1970, por exemplo, na gestão da Aracy Amaral, o educativo se tornou novamente uma linha muito preciosa e importante. Na época, a educação museal ainda era diferente do que se entende hoje, eram mais oficinas, espaços de experimentação, mas isso foi um momento muito importante de entender que o museu é mais do que simplesmente uma coleção de obras. É uma programação, uma atuação e um olhar para a sociedade. 

Nos anos 1990, na gestão do Emanoel Araújo, é um pouco um momento de internacionalização, quando ele trouxe Auguste Rodin, Niki de Saint Phalle e vários outros artistas internacionais. Ele claramente entendeu que, sim, é um acervo de arte brasileira, mas que é importante olhar a produção nacional à luz ou em diálogo com a produção de fora. Isso depois começou a se intensificar. Outro marco super importante é, em 2003, pós-reforma do Paulo Mendes da Rocha, a criação do octógono e do Projeto Octógono, que foi um projeto fundamental e que está hoje na edição 77 ou 78. Essa ideia de criar programas de comissionamento dentro de um museu que tem acervo é um fenômeno que acontece mais ou menos a partir de 2000, com a Tate Modern (Londres), e aqui já vem logo depois, ao mesmo tempo em que começa o Roof Garden Commission do Metropolitan Museum of Art (Nova York). Então, a Pinacoteca é uma das pioneiras nas instituições que sistematicamente trabalham com o comissionamento para inserir diálogos com produções contemporâneas e com o acervo. 

Arte!brasileiros – Bom, sobre as exposições deste ano, propriamente ditas, acho que são 18 aberturas. Seria muito assunto para falar, mas eu queria saber um pouco dos eixos que percorrem boa parte delas, algo que tem a ver tanto com o chamado popular quanto com o Pop no Brasil, que estarão, por exemplo, nas exposições “Pop Brasil” e “Trabalho de Carnaval”…

Eu acho que dá para entender isso, talvez, a partir da exposição que atualmente está em cartaz, “Caipiras: das derrubadas à saudade”, que parte de algumas pedras fundamentais que deram início à coleção da Pinacoteca: “O caipira picando fumo” e “Amolação interrompida”, que são duas pinturas do Almeida Júnior que entraram na primeira transferência do Museu Paulista para iniciar a Pinacoteca, em 1905. E eles são, de certa forma, obras em que o artista acadêmico olha para a pessoa popular. É o caipira, o campestre, o trabalhador do campo, a pessoa anônima, a pessoa comum… Esse naturalismo da época. A produção artística desse período olha para o trabalhador do campo para achar nele o verdadeiro brasileiro. Então já tem uma primeira relação entre o popular e o erudito.

Aí, pensando ao longo das décadas, tem aquela questão que já falamos, de como no Brasil a maioria dos artistas não teve acesso a uma formação acadêmica. Então, olhar para o popular, o chamado popular, é muito lógico e, na verdade, a ideia de separar as categorias entre erudito, acadêmico e popular não se sustenta. A exposição “Tecendo a manhã” fala disso explicitamente. Ela fala de uma experiência de uma vida moderna e mistura produções de autodidatas – ou chamados artistas populares – com Di Cavalcanti, Tomie Ohtake e muitos outros que tiveram acesso a uma formação. 

Na questão da arte Pop, acontece de novo. Porque, para mim, “Caipiras” o “Pop Brasil” e o “Trabalho de Carnaval”, eles todas fazem parte de uma discussão que tem muitas facetas. Nos anos 1960, muitos artistas olham para uma estética popular da rua. Isso não só no Brasil, mas no Brasil abre-se assim a possibilidade de falar de assuntos vivos da sociedade [em período de repressão] de forma um pouco escondida. Então, esse pop não é um pop. Quer dizer, a chamada Nova Figuração olha para as figuras da sua época, para a vida popular – seja do ônibus, seja do bar, seja o jogador de futebol etc. São todas imagens da sociedade, imagens populares que são incorporadas, e muitas mensagens são passadas de modo um pouco mais subliminar.

Então, resumindo, não quisemos fazer uma grande exposição sobre os 120 anos da Pinacoteca. Quisemos, de certa forma, abranger tudo entre “Caipiras”, até o Gabriel Massan, até os anos 1960, até a produção mais recente… Por exemplo, o filme da Bárbara Wagner e do Benjamin de Burca [Estás vendo coisas] é uma representação de um movimento popular pernambucano, pop brega, tecno brega, que é um fenômeno mundial maravilhoso, com uma existência um pouco apartada do mundo da música pop. E isso nos interessa.

arte!brasileiros – Me chamou atenção, nas exposições individuais deste ano, que a grande maioria é de artistas mulheres. Mônica Ventura, Marga Ledora, Ad Minoliti, Dominique Gonzalez-Foerster, Beatriz González, Neide Sá, Juliana dos Santos, Olinda Tupinambá, Lucy Citti Ferreira, Renata Lucas… Isso foi algo pensado, digamos, como uma proposta curatorial, ou apenas aconteceu assim?

Se você olha ao longo dos últimos anos, desde “Mulheres Radicais” é um pouco assim. Faz parte de uma preocupação que é contínua, não é um statement, não é uma retórica, é um processo de como queremos pensar o museu para os próximos 120 anos. Que todas essas narrativas naturalmente tenham espaço, e assim tenhamos a presença de artistas mulheres, artistas homens, artistas negros, artistas brancos, artistas indígenas… todos de forma natural, configurando uma programação. E, como eu disse, tem muita trilha ainda para andar.

arte!brasileiros – Por fim, queria te perguntar sobre o Jardim de Esculturas, situado no Jardim da Luz, que passará por uma reformulação. Como isso está sendo pensado? 

A maioria das coisas que estão vão ficar. Algumas saem apenas para restauro e preservação, afinal muitas das obras estão lá há 25 anos, mas voltam. Grande parte das obras foi instalada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, na gestão do Emanoel Araújo, em um momento bonito de tentar levar o museu para fora de seus muros e, basicamente, criar uma coleção de esculturas que seria impossível de mostrar dentro.

Mas ela ainda é uma exposição predominantemente masculina, branca e paulistana. Então, a ideia é, ao longo do ano, pelo menos acrescentar algumas obras que possam já diversificar um pouco a discussão sobre esculturas. E também entendo que essa é uma missão para os próximos anos, mas é um começo. O nosso atual projeto é para adicionar cinco esculturas, reformar algumas e criar uma outra forma de apresenta-las. A escultura, principalmente em grande escala ao ar livre, é um suporte que por muito tempo tem sido mais masculino… ou em geral mais ligado aos artistas que tiveram um pouco mais de privilégio. Porque não é fácil produzir. Quem tem, por exemplo, acesso a uma fundição para fazer uma escultura em bronze, ou para fazer uma grande escultura? Então eu vejo que isso é um cuidado que queremos ter, para ter um debate sobre a escultura e sobre as várias linguagens artísticas de uma forma um pouco mais diversa. 

Galeria Claudia Andujar Maxita Yano recebe parentes indígenas

Claudia Andujar
Claudia Andujar com artistas na Galeria Claudia Andujar Maxita Yano

Para os povos indígenas, parente é a expressão como eles designam outros membros das comunidades originárias, independentes de sua localização territorial e étnica. Por isso, faz todo sentido que a galeria no Instituto Inhotim dedicada à Claudia Andujar, considerada mãe do povo Yanomami, como diz Davi Kopenawa, receba agora 22 artistas indígenas da América do Sul, incluindo povos da Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru.

Andujar é detentora de uma carreira muito particular ao unir uma expressão estética refinada e experimental com engajamento político radical. Suas fotografias do povo Yanomami, realizadas desde 1971, expressam tanto uma visão paradisíaca, quando o contato com os brancos ainda era praticamente inexistente, quanto os genocídios provocados pela construção de estradas, da invasão de garimpeiros e da extração de madeiras. 

Em 1989, o genocídio Yanomami já era denunciado por Andujar em mostra no Museu de Arte de São Paulo (Masp), situação que segue ocorrendo. Só em 2020, segundo texto de Dario Vitório Kopenawa Yanomami no pavilhão, 20 mil garimpeiros invadiram suas terras e 570 crianças de seu povo morreram.

Vista da galeria com retratos de Cláudia Andujar e Paulo Desana. Foto: Fabio Cypriano

“Eu fiz o que pude”, me sussurrou Andujar, aos 94 anos, presente na reabertura de sua galeria, como um suspiro de quem gostaria de fazer mais. Seu pavilhão em Inhotim foi inaugurado há dez anos, com 426 fotografias, tornando-se logo uma referência mundial para o trabalho da artista, nascida na Suíça e naturalizada brasileira desde 1976, ela chegou aqui em 1955, portanto há 70 anos.

“Nosso trabalho foi contextualizar e potencializar a obra de Claudia Andujar”, explica Beatriz Lemos, curadora da mostra e de Inhotim. Quando inaugurada, há 10 anos, a galeria foi definida permanente, seguindo os exemplos de outras lá existentes, como as dedicadas à Miguel Rio Branco, Adriana Varejão e Tunga. 

Contudo, para Julia Rebouças, diretora artística de Inhotim, a reformulação da galeria de Andujar representa um novo momento no maior museu a céu aberto da América Latina. “É impossível imaginar continuar expandindo e não levar em conta a sustentabilidade. Por isso precisamos repensar as próprias galerias”, conta a diretora. Para ela, a nova configuração aponta ainda como “não se pode mais considerar a cultura sem a inclusão da produção indígena autorrepresentada”.

Claudia Andujar Maxita Yano

O começo dessa nova política com Andujar não poderia ser mais adequada. Se por um lado a galeria, que foi inaugurada com curadoria de Rodrigo Moura, já era impressionante seja pela arquitetura do espaço, seja pela seleção primorosa, a presença de uma nova geração de artistas indígenas atualiza estética e politicamente a luta dos povos originários. Com isso, o espaço passa a se chamar Galeria Claudia Andujar Maxita Yano, que na língua yanomami quer dizer Casa de Terra.

A curadoria seguiu a sequência e expografia original do espaço, que tinha na primeira sala fotos aéreas e de plantas do território yanomami, seguia com sua população retratada em harmonia com a floresta até as invasões e as formas de luta e resistência, que culminaram com a demarcação do território, em 1992, totalizando uma área similar a duas vezes o tamanho da Bélgica. Andujar ainda chegou a realizar uma nova série comissionada para local, de uma assembleia dos povos indígenas em 2014, com fotos coloridas. 

Na nova disposição, cada sala recebe a inserção de artistas em diálogo com a obra de Andujar. Com isso a galeria reúne agora cerca de 300 trabalhos: 200 da própria Andujar e outros 100 dos demais artistas. Uma preocupação importante foi manter o nível estético das imagens. “Imprimimos as fotografias aqui em Belo Horizonte, no melhor estúdio, para garantir a qualidade dos trabalhos”, conta Beatriz Lemos. As obras de artistas indígenas recebem um fundo acinzentado, para que sejam mais facilmente identificáveis.

As obras dos artistas indígenas não foram compradas por Inhotim, estão na galeria em regime de comodato – a mostra deve durar ao menos três anos. Mas é importante o registro que cinco trabalhos, envolvendo seis artistas, foram comissionados para a exposição, apontando aí o apoio ao fomento: financiar novas obras de artistas deve ser missão central de qualquer instituição da área. Entre elas está o painel de grandes dimensões de Olinda Silvana, artista do povo Shipibo-Konibo, do Peru.

Nessa nova configuração, há três eixos que marcam a galeria: a luta e o ativismo indígenas; as redes de aliados e suas conquistas comunitárias; e um debate mais próximo à história da arte que diz respeito à representação, imagem e identidade indígena.

Nesse último eixo estão alguns retratos inéditos de Andujar no pavilhão – Inhotim possui em sua coleção cerca de 500 fotografias dela, portanto 100 não tinham sido exibidas ainda – em diálogo com Paulo Desana, um dos artistas com obras comissionadas. Em “Os Espíritos da Floresta”, ele parte do resgate de memórias comunitárias de pintura corporal de duas aldeias localizadas em Brumadinho, cidade onde está localizado Inhotim. Aqui vê-se uma legítima preocupação da curadoria, com assistência de Varusa, em se aproximar do território onde se localiza o próprio Inhotim e onde vivem comunidades indígenas. Desana fez os registros usando tintas fluorescentes e luz negra, que dá ao conjunto um caráter lisérgico aos retratos.

Outro diálogo está na primeira sala, que conta com uma séria de UÝRA, artista de Manaus, no Amazonas, com uma séria de fotografias onde ela usa seu corpo como suporte para se mimetizar à natureza, colocando em prática o que Davi Kopenawa afirma quando ele diz que “sou floresta”. 

Vista de autorretratos da artista amazonense UÝRA. Foto: Fabio Cypriano

A galeria abriga ainda uma sala documental, que conta a história do envolvimento de Andujar, desde quando ela faz seu primeiro encontro com os Yanomami, em 1971, para a revista Realidade, até seu trabalho de assistência à saúde para vacinação, que resulta em sua série Marcados, passando pela criação da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), em 1978, que conquista a demarcação em 1992.

No total, são mais de 50 anos dedicados ao povo Yanomami, que variam de denuncias em órgãos internacionais importantes, como a ONU, à participação em mostras nos museus mais relevantes. Sua série Marcados, por exemplo, foi recentemente adquirida pelo MoMA, de Nova York. Toda fotografia realizada neste contexto é vendida com 33% do valor revertidos para eles, por meio da Hutukara Associação Yanomami, que também possui uma sala no pavilhão, com desenhos e vídeos de artistas do território. “Eu fiz o que pude” reflete uma fala humilde que contrasta com a grandeza de seu compromisso e de sua obra, agora residentes na Casa de Terra.

Secretários de Cultura do país defendem taxação do streaming em 12%

SECRETÁRIOS DE CULTURA DO PAÍS DEFENDEM TAXAÇÃO DO STREAMING EM 12%
Foto: Marcelo Maximo

O Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, reunido na semana passada em João Pessoa, Paraíba, divulgou na sexta-feira, 25, uma moção a respeito da regulação do streaming no País, declarando a necessidade de urgência na aprovação de um marco regulatório para o mercado de Vídeo sob Demanda (VOD) no Brasil. Para os secretários de cultura brasileiros, a alíquota mínima sobre o faturamento bruto das plataformas (Netflix, Amazon Prime e outras) deve ser de 12%.

Para o Fórum, o audiovisual é uma indústria estratégica para o desenvolvimento e seu futuro depender de uma regulação não apenas urgente, mas “justa, moderna e efetiva, capaz de garantir o acesso do público brasileiro à sua própria produção cultural e assegurar a sustentabilidade econômica à cadeia produtiva”. O Fórum Nacional é presidido por Fabrício Noronha, secretário de Cultura do Espírito Santo.

Além dos 12% de taxação, os secretários pedem garantia da titularidade da propriedade intelectual e patrimonial aos produtores independentes brasileiros, assegurando sua autonomia econômica e criativa e centralidade da regulação na garantia do fortalecimento da produção independente brasileira.

A posição dos secretários de cultura brasileiros segue a da ampla maioria do setor audiovisual nacional, já expressa em documento do Conselho Superior de Cultura e em manifesto assinado por mais de 60 artistas (cineastas, produtores, atores, técnicos). A ampla maioria da área audiovisual apoia o Projeto de Lei do senador Eduardo Gomes, do Tocantins, com relatoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB do Rio), em trâmite no Congresso – há ainda outros dois projetos de lei em tramitação que são considerados frágeis pelo setor.

A regulação encontra empecilhos para se materializar no Congresso Nacional, no qual os lobbies das big techs tem prevalecido – o Brasil tenta determinar a regulamentação do setor há 12 anos. As plataformas de streaming operam atualmente em um cenário de total assimetria no País, usufruindo do segundo maior do mundo sem recolher impostos e taxas proporcionais à sua operação no País. O catálogo de obras brasileiras nas plataformas internacionais representa menos de 10% do total. Igualmente, o setor também não distribui direitos autorais de forma justa e equilibrada, gerando uma concorrência desleal e provocando uma perda expressiva de receitas para o governo, estimada em bilhões de reais.

Para o evento Marché du Film, que vai ter lugar em Paris, França, entre 13 e 21 de maio, com o Brasil como País de Honra, produtores, cineastas e profissionais do audiovisual brasileiro irão debater questões relativas ao desenvolvimento do setor. Esperam-se discussões acaloradas. No Marché du Film, a expectativa é que o tema do VoD monopolize os debates. Comentários no painel Producers Under the Spotlight já mostram uma militância forte em prol da regulação urgente. Os participantes estão convergindo na ideia de exigir nesse ato internacional um posicionamento claro e empenho do governo brasileiro em relação à questão do streaming. Recentemente, o Ministério da Cultura chegou a expressar seu apoio a uma alíquota mínima de 6% para as plataformas estrangeiras (mas, em reuniões privadas com lobistas, chegou a concordar com 3%).

O Fórum Nacional de Secretários de Cultura decidiu sua posição durante o 2º Encontro Nacional de Gestores de Cultura em João Pessoa. “Sem regulação, os produtores brasileiros têm sido cada vez mais relegados à condição de prestadores de serviço, perdendo protagonismo criativo e econômico sobre suas obras e direitos de propriedade intelectual e patrimonial. A ausência de regras claras aprofunda um processo de desindustrialização do setor, com impactos diretos na geração de empregos qualificados e na soberania cultural do país”, diz o documento do Fórum.

“Uma política industrial sólida requer mecanismos de fomento e planejamento eficazes. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal instrumento de financiamento do setor e base das parcerias com estados e municípios por meio dos arranjos regionais, precisa ser fortalecido — e não enfraquecido. Reconhecemos a importância de diferentes modelos de fomento, mas ressaltamos que a futura regulação não deve privilegiar a renúncia fiscal em detrimento dos recursos destinados ao FSA. É com recursos robustos no fundo que será possível planejar e implementar políticas industriais e federativas para o audiovisual brasileiro”.

Lívia Condurú: uma amazona brasileira

Livia Conduru
Lívia Condurú. Foto: Ana Dias

A primeira Bienal das Amazônias transformou o cenário cultural de Belém, no Pará, entre agosto e novembro de 2023, às margens do Rio Guamá. Fruto da visão da produtora cultural Lívia Condurú em colaboração com as curadoras Sandra Benites, Keyna Eleison e Vânia Leal, o evento contou ainda com a assistência curatorial de Ana Clara Simões Lopes e Débora Oliveira.

Seis meses após o encerramento desta edição inaugural, o Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA) abriu suas portas, consolidando a presença permanente da iniciativa na região. Em entrevista exclusiva à arte!brasileiros, Lívia Condurú, que preside tanto a Bienal quanto o Centro Cultural, compartilha reflexões sobre os desafios superados, o impacto alcançado e as promissoras perspectivas para o futuro deste projeto que reposiciona a Amazônia no mapa cultural contemporâneo.

Como foi transformar um projeto ambicioso como a Bienal das Amazônias em realidade?

Lançar a Bienal das Amazônias em 2023 foi como construir uma instituição no vazio — do zero absoluto. Sem sede, com equipe reduzida, com orçamento muito abaixo do necessário e, ainda assim, com a ambição de fazer uma Bienal internacional a partir do território amazônico.

O plano inicial previa a ocupação de espaços museais do Estado do Pará e do Município de Belém. Quando perdemos esses espaços, sete meses antes da inauguração, tivemos que reformular tudo. Em 43 dias, reformamos um prédio de 8 mil metros quadrados no centro comercial de Belém e montamos a primeira edição da Bienal das Amazônias.

Foi um esforço coletivo imenso. Realizamos uma exposição com mais de 120 artistas de todos os estados da Amazônia brasileira e de todos os países da Panamazônia. O maior desafio foi simbólico: conquistar a confiança do território — mostrar que não estávamos chegando de fora, mas falando a partir da Amazônia, com suas vozes, saberes e corpos.

Estar aqui hoje, com a segunda edição a caminho, prova que boa parte dos entraves foi vencida — com gigantescos desafios, mas com coerência, persistência e escuta ativa.

Após essa primeira edição, que balanço você faz do impacto cultural, institucional e social da Bienal? Quais foram os principais aprendizados e que desafios ainda precisam ser superados para garantir a sustentabilidade do projeto?

O resultado é tangível e simbólico. Em pouco mais de um ano, transformamos um prédio há muito desativado em um espaço cultural ativo, que apenas em 2024 recebeu sete exposições, onde mobilizamos 167 artistas e exibimos mais de 570 obras. Dessas, seis foram totalmente pensadas pela nossa diretoria artística em diálogo com curadores convidados. Atendemos mais de 21 mil pessoas só em Belém, por meio das nossas apresentações musicais, teatrais, oficinas, rodas de conversa e pelo programa educativo gratuito. 

A Bienal também virou plataforma de articulação institucional. Promovemos o 1º Encontro de Gestores Sul-Sul, em novembro de 2024, em Belém, com representantes de instituições culturais do Hemisfério Sul, criando redes entre América Latina, Caribe, África, Índia.

A partir dessa primeira edição, estruturamos uma itinerância potente, que passou por Marabá, Canaã dos Carajás, ambas no Pará; São Luís (MA), Boa Vista (RR) e agora percorre Manaus (AM) e Macapá (AP). Em julho deste ano, chegaremos a Medellín, na Colômbia, com a primeira mostra internacional da Bienal das Amazônias.

Nosso maior aprendizado é que, enquanto trabalhadores da cultura, nada se constrói sozinho, a Bienal das Amazônias só é o que é, graças ao árduo trabalho coletivo de profissionais que acreditam no que, juntos, estão realizando. E o maior desafio que enfrentamos é o financiamento. Hoje estamos finalizando a estruturação do nosso endowment, um fundo patrimonial que nos permitirá alcançar sustentabilidade institucional de longo prazo. Estamos em negociação com investidores e parceiros estratégicos para garantir que o projeto não dependa exclusivamente de leis de incentivo, que são fundamentais, mas insuficientes quando se busca continuidade, independência e planejamento duradouro.

A mobilidade parece ser um aspecto fundamental da Bienal. Como essa estratégia de circulação tem ampliado o alcance e o significado do projeto para diferentes comunidades amazônicas?

A itinerância é um dos pilares da Bienal. Não queremos que o acesso ao que estamos realizando se limite a um ponto fixo. A Bienal das Amazônias precisa circular no território que a constitui, encontrar diferentes comunidades e dialogar com realidades diversas das Amazônias e além.

Entre agosto de 2023 e abril de 2025, somando primeira edição, ações realizadas no Centro Cultural Bienal das Amazônias, itinerâncias e atividades no barco, já fomos visitados por cerca de 80 mil pessoas. Isso é muito significativo para um projeto independente, realizado por trabalhadores da cultura, sediado na Amazônia, em um país de desigualdades tão marcantes.

O barco — uma balsa com quase mil metros quadrados — é uma obra arquitetônica do artista boliviano Freddy Mamani. Mas é também um símbolo institucional: um centro cultural flutuante que deseja ir ao encontro de diversas cidades às margens dos rios amazônicos, por meio da arte e da cultura.

Neste momento, ele inicia sua navegação pelos rios Pará, Tocantins e Amazonas, com paradas em mais de 10 cidades. Retornando a Belém em agosto com programação cultural aberta ao público. Lembrando que toda a nossa programação é absolutamente gratuita.

Não sei se podemos falar em sucesso, o importante para nós é que tenhamos adesão das pessoas que fazem as Amazônias serem o que são, e acredito que, aos poucos, estamos conseguindo isso. 

O que podemos esperar da segunda edição da Bienal das Amazônias? Como a nova curadoria internacional dialoga com os princípios fundadores do projeto?
A segunda edição da Bienal das Amazônias amplia suas fronteiras. A curadoria-chefe está com a equatoriana Manuela Moscoso, que traz sua experiência internacional com instituições da América Latina e da Europa.

Ao lado dela está, enquanto curadora adjunta, a colombiana Sara Garzón, que tem uma pesquisa focada no Sul Global e nas epistemologias decoloniais; a mexicana Mônica Amieva que é pedagoga, pesquisadora e historiadora da arte, e assinará a  curadoria pedagógica; e o paraense Jean da Silva, pensador e importante articulador climático que assina a co-curadoria do programa público. A identidade visual é assinada pela designer argentina Priscila Clementti e pelo artista paraense Caio Aguiar, vulgo Bonikta.

A edição se expande para além da Panamazônia: vamos nos conectar com o Caribe.

Mas o mais importante é que seguimos com o princípio da coletividade. A Bienal não é construída apenas pelos nomes que assinam a curadoria. Ela é feita por um corpo de profissionais comprometidos — pesquisadores, produtores, montadores, educadores — que constroem junto a materialidade desse sonho.

O que se pode esperar da segunda edição da Bienal das Amazônias? Uma bienal vibrante, crítica, sensível. Uma edição que reafirma a potência cultural e política das Amazônias no presente.