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EXPOSIÇÃO DE LÍNGUAS AFRICANAS NA CULTURA BRASILEIRA CHEGA EM VITÓRIA – ES

Tiganá Santana, curador da mostra, na videoinstalação em 2 canais, Corpo Celeste III e IV, 2020 - 2024, de Aline Motta em colaboração com Rafael Galante. FOTO: FELIPE AMARELO

O Museu Vale é um dos principais espaços culturais do estado do Espírito Santo e, em seu momento extramuros, amplia sua presença no território capixaba, expandindo suas atividades e levando diferentes manifestações artísticas e programas educativos para instituições culturais e de ensino, além de espaços como praças e parques. Dessa forma, conecta-se de maneira ainda mais ativa e direta com os diversos públicos.

Alinhado às diretrizes do Instituto Cultural Vale, o Museu abre espaço para novas vozes, métodos e caminhos, com programações acessíveis, colaborativas e comprometidas com o território e suas demandas. Ao se deslocar pelo Espírito Santo, o Museu Vale assume uma postura de escuta ativa, aproximação e descentralização, não apenas geográfica, mas também simbólica e afetiva.

É nesse contexto que se insere o desdobramento da itinerância da exposição Línguas africanas que fazem o Brasil, do Museu Vale em parceria com o Museu da Língua Portuguesa.

Para Claudia Afonso, diretora do Museu Vale, trazer esta mostra para o público capixaba tem um significado importante: “O Espírito Santo é uma região marcada pela forte presença afro-indígena e por influências linguísticas que se entrelaçam na formação de nossa identidade. Apresentar esta exposição é uma forma de ampliar o acesso do público capixaba a uma experiência cultural única. É uma oportunidade de reconhecer a pluralidade de vozes, palavras e símbolos que compõem a riqueza cultural brasileira, marcada pela força da ancestralidade.”

Para além dos trabalhos apresentados na montagem original, Claudia tinha o desejo de que a produção artística local fosse integrada à itinerância. Com curadoria do músico e filósofo Tiganá Santana, a mostra recebeu o acréscimo de três artistas capixabas: Castiel Vitorino Brasileiro, Natan Dias e Jaíne Muniz. Além disso, os visitantes poderão assistir a um filme inédito sobre as presenças linguísticas e africanas no estado do Espírito Santo. O trabalho foi idealizado e desenvolvido por Claudia, junto com a pesquisadora Isabella Baltazar e com o produtor cultural, Matheus Noronha. O minidocumentário Línguas Africanas no Espírito Santo conta com a participação de Débora Araújo e Osvaldo Martins, professores da Universidade Federal do Espírito Santo, que têm suas pesquisas voltadas à memória da população negra.

Núcleo central – palavras e expografia

Um dos eixos centrais da expografia diz respeito às palavras de origem africana presentes no português do Brasil. De acordo com Tiganá, a escolha dessas palavras possui duas camadas.

Na primeira, estão aquelas cuja origem a maioria das pessoas desconhece, mas que foram amplamente incorporadas pelos brasileiros, como “caçamba”, “fofoca”, “moleque”, “xingar”. Algumas aparecem impressas em estruturas ovais de madeira acompanhadas de suas etimologias; outras podem ser apenas ouvidas por caixas de som espalhadas pelo espaço expositivo.

Na segunda camada estão as palavras que se preservam africanas, como “Axé”, “Pemba”, “Exu”. Estas compõem um espaço interativo: dispostas em um grande painel, se transformam em imagens sempre que o visitante as enuncia em voz alta. Ao dizer “Acarajé”, por exemplo, uma fotografia do alimento aparece na tela.

Linguagem não verbal

A exposição também aponta para outras formas de linguagem. “A leitura dos Búzios é uma leitura textual complexa, como outras leituras textuais que existem no mundo nas experiências culturais diversas”, observa Tiganá, lembrando que assim como a leitura dos búzios, o uso de miçangas ou turbantes nos terreiros de Candomblé constituem sistemas complexos de significação.

Fundamentos curatoriais 

As línguas africanas não são novidade no repertório de Tiganá. Por meio de seu álbum intitulado Maçalê (“você é um com a sua essência”, em iorubá arcaico), lançado em 2009, ele se tornou o primeiro compositor brasileiro a criar canções em línguas africanas. Além disso, sua tese de doutorado “A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil”, é um estudo tradutório, filosófico e intercultural que traz para o português brasileiro a cosmologia bantu-kongo do pensador Bunseki Fu-Kiau.

“Todo processo colonial é um processo de esvaziamento ontológico”, afirma Tiganá. “Esse processo violento de corte, de ruptura entre certos corpos e suas dimensões de linguagem causa prejuízos que são absolutamente profundos”. Para o curador, a colonização enfraqueceu sobretudo a coletividade: “Porque ela mesma não compreende o que seja esse processo de uma certa ideia de coletividade. Essa presença comunitária se faz traduzir pelo que se enuncia e pela forma como se pensa”. Por exemplo, na língua quicongo, que se faz presente no léxico corrente do Brasil, não se diz que alguém cometeu um crime, mas que carrega um crime. “Daí a gente já tem uma dimensão coletiva de algo que é absolutamente profundo numa instância social. Para aquilo de destoante acontecer, situações coletivas concorreram. Então, é interessante pra gente pensar a nossa própria sociedade. Quantos crimes carregamos e achamos que não carregamos, que alguém individualmente cometeu”. 

Segundo ele, o pensador Bunseki Fu-Kiau critica os africanistas que analisam culturas e aspectos do continente africano como meros objetos de estudo, sem estabelecer qualquer vínculo com as línguas que as constituem — línguas que, ao mesmo tempo, moldam e são moldadas por essas culturas. “A  exposição é uma retomada dessas presenças linguísticas em um lugar inclusive expográfico de dignidade e da centralidade que essas presenças africanas ocupam quanto à formação da cultura brasileira”. 

O acréscimo luxuoso de artistas capixabas

Se em São Paulo a mostra contou com obras de Rebeca Carapiá, com suas esculturas em metal em diálogo com grafias afrocentradas, e de Aline Motta, com uma videoinstalação sobre grafias centro-africanas do povo bakongo, em Vitória ela se enriquece com “o acréscimo luxuoso”, nas palavras do curador, dos artistas capixabas Castiel Vitorino Brasileiro, Natan Dias e Jaíne Muniz.

O primeiro contato de Castiel Vitorino Brasileiro com a arte aconteceu ainda na infância, nos barracões de Carnaval de sua comunidade. Foi nesse ambiente coletivo que ela se conectou com a prática escultórica, com a pintura corporal, com os adereços e com a música. Sua trajetória institucional, porém, começou em 2016, com duas residências artísticas sob curadoria de Diane Lima e sua primeira exposição na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Na itinerância de Línguas africanas que fazem o Brasil, Castiel apresenta a série Basta eu olhar pra você para eu me apaixonar novamente, composta por quinze desenhos em giz pastel sobre papel preto. Os primeiros trabalhos desse conjunto surgiram em 2021, quando a artista vivia no Rio de Janeiro e passou a investigar a relação entre desenho e palavra, buscando ultrapassar ou aproximar os diálogos entre representação e abstração. As obras que integram a exposição foram realizadas em 2024, durante uma residência na Cité des Arts, em Paris, em que novas cores, padronagens, palavras e formas se somaram à pesquisa.

Inspirada nos pontos riscados da Umbanda e em práticas cosmológicas da África Central, a série entrelaça elementos ritualísticos como linhas, espirais, círculos, com palavras em diferentes línguas: português, iorubá, quimbundo, espanhol e pajubá — linguagem cifrada utilizada pela comunidade LBTQIA+, mas sobretudo pelas travestis e mulheres trans. “Na Umbanda, a gente compreende que os pontos riscados não são meramente desenhos, mas são formas de comunicar a história de uma alma”, explica Castiel. “Essa encruzilhada entre desenho e palavra é o estudo que desenvolvo com essa série. Trago elementos ritualísticos, mas também palavras cotidianas, não tão sagradas, para misturar essa noção entre sagrado e profano, sagrado e cotidiano no nosso idioma”.

De perto, as obras revelam frases que podem ser lidas inteiras, apesar da disposição que afasta uma palavra da outra. Em um dos trabalhos, lemos “Nunca te esquecerei, mas agora preciso de um tempo para viver o mundo”. Palavras como “sol”, “tempo’’ e “amor”  são algumas consideradas sagradas pela artista, que propõe refletir sobre o que é sagrado para cada um e a importância disso na linguagem. 

A série marca ainda a primeira vez em que Castiel assina como Ayshá, seu nome espiritual. Para ela, exibir esses trabalhos no Palácio Anchieta possui um significado bonito: “Estudei o Ensino Médio numa escola logo atrás do Palácio e vinha a cada semestre com minha professora de artes ver as exposições. Poder estar aqui hoje como artista faz um ‘match’ com a minha adolescência e com a minha comunidade. Minha família é daqui, meus amigos são daqui. É sempre especial mostrar o trabalho na própria casa”.

O segundo artista convidado para integrar a mostra em Vitória, Natan Dias, iniciou sua trajetória artística no teatro, em 2012, antes de se dedicar às artes plásticas. Das experiências com a performance, descobriu a escultura como campo de pesquisa central, em diálogo com o corpo no espaço: “O pensamento escultórico, para mim, ainda é um pensamento do corpo”, afirma.

Sua investigação ganhou fôlego em 2014, quando, em uma residência artística, passou a trabalhar a partir das memórias de sua avó. Ela lhe contava sobre a mudança de sua família da zona rural para urbana em Vitória, em busca de melhores condições de vida, e sobre o período em que, durante uma ocupação, montava o barraco que em seguida era desmontado pela polícia. Essa experiência marcou o artista, que passou a pensar em esculturas que montassem e desmontassem e que também fossem modulares.

Desde então, Natan desenvolve esculturas que podem ser reorganizadas ou ampliadas no futuro. Na mostra Línguas africanas que fazem o Brasil, ele apresenta Movimento à tecnologia, peça de 300 kg em aço, já exibida no Parque Cultural Casa do Governador em escala maior. O trabalho parte da plasticidade do facão, ferramenta presente na vida rural de sua família, para propor um gesto de corte na própria história da arte. “Proponho esse corte para que essa história da arte volte a florescer com uma outra perspectiva. Isso só é possível a partir da poda, que não é um corte. A poda é uma proposição para a árvore crescer de um outro modo”, explica.

“É muito importante que essa exposição esteja no Espírito Santo”, diz o artista. “O estado é um espaço riquíssimo em relação ao pensamento cultural, ao pensamento africano e a população negra do Espírito Santo é uma população muito ativa, altamente inteligente, altamente capacitada no quesito da compreensão de racialidade”.

O ferro, material recorrente em sua produção, é entendido não apenas como suporte, mas como sujeito. “O ferro, para mim, sempre foi um sujeito, um indivíduo, um parente antigo. Então, aquelas memórias que foram ditas para mim pela minha avó, são materializadas no ferro. O ferro é alguém que vai cuidar das memórias da minha família”. 

Atualmente em residência na FAAP, em São Paulo, Natan dá continuidade à pesquisa Paralelo, na qual investiga dualidades históricas — narrativas oficiais amplamente divulgadas em contraste com outras, muitas vezes silenciadas. Na capital paulista, a escala da cidade e sua arquitetura vertical têm influenciado novas formas em suas esculturas, deslocando sua prática para outros formatos e cores.

Por fim, a pesquisa de Jaíne Muniz parte da relação do corpo com elementos naturais e de como essa experiência pode se traduzir em abstração. Em sua obra Ser horizonte, que integra a itinerância, a artista se debruça sobre o horizonte do mar, paisagem cotidiana de Vitória e Vila Velha, onde viveu. “Foi uma investigação para entender o que existiria em uma travessia para encontrar África”, explica.

No entanto, o exercício revelou um limite: não há como refazer esse caminho ou recuperar literalmente um passado perdido. “Entendi que não tinha como atravessar. Voltar a esse passado que muitas vezes a gente procura hoje, não é possível. Então, o movimento foi de retorno, de tentar entender como essa ideia de expansão podia se dar de outras maneiras aqui mesmo, no lugar onde a gente já está”.

O resultado é uma instalação imersiva, que convida o público a interagir com transparências, cores e movimentos, refletindo sobre o que significa “ser horizonte” para cada um. “Lidar com o mar em uma experiência africana é lidar com kalunga, com a ciclicidade da vida. Trazer esse horizonte para dentro da exposição é reconhecer como nos relacionamos com esse território, como reconhecemos nossa herança africana, e com tudo que foi deixado de África e que está aqui”.

Jaíne Muniz em frente à obra Ser-horizonte, da série Espaços para
desmaterialização humana (2025)

Línguas africanas que fazem o Brasil fica em cartaz até 14 de dezembro de 2025 no Palácio Anchieta. “A gente espera que as pessoas do território possam identificar a exposição nas suas vidas e possam reconhecer as suas vidas na exposição”, conclui o curador.

 

Do espiritual na arte

A Rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes, Thiago Martins de Melo. Obra exposta no Convento das Mercês. FOTO: ESPAÇO CHÃO SLZ

“Minhas pinturas são tanto realidade quanto desejo, tanto aprendizado quanto imaginação. São reflexo do ambiente que me formou e, ao mesmo tempo, projeção de um horizonte de revolução”, diz Thiago Martins de Melo em entrevista publicada no catálogo da mostra Cosmogonia Colérica, sua primeira individual em sua cidade natal, São Luís do Maranhão.

Com 21 obras produzidas entre 2013 e 2025, a exposição tem curadoria de Germano Dushá e ocorre em dois espaços da capital maranhense, o Convento das Mercês e o CHÃO SLZ, espaço criado pelo próprio artista com Samantha Moreira, há dez anos. Inaugurada em agosto passado, a mostra segue em cartaz até outubro. O CHÃO é um local independente, dos poucos em São Luís, que ajudou a formar toda uma geração de artistas como Gê Viana, agora na 36ª Bienal de São Paulo. 

“Cada obra reunida aqui é um portal. Seja nas grandes figuras, seja nos pequenos detalhes, nas imagens explícitas ou nos mistérios ocultos, há uma imensidão simbólica a ser experenciada”, diz Dushá, em meio à mostra. Não deixa de ser notável que essa é a primeira vez que uma grande quantidade de trabalhos do artista é vista em sua cidade natal.

Martins de Melo, aos 43 anos, é um artista que se formou em um momento particular do País, quando havia muito apoio à produção por meio de editais, na primeira década do século 21, o que permitiu que toda sua fase inicial de criação fosse independente do mercado, possibilitando assim uma experimentação radical, que se mantém em suas obras com caráter fortemente político, sensual e de grandes dimensões.

O próprio artista lembra uma frase famosa do curador Paulo Herkenhoff que reflete bem esse período: “Quer saber o que é arte brasileira de verdade? Vai para o Nordeste ou para o Norte, vai para Recife ou para Belém”.

A Rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes, uma das pinturas que compõe a mostra, é um ótimo exemplo da fala inicial do artista aqui neste texto. Uma imensa escadaria que leva a Brasília, como se fosse uma estrada, é povoada por cerca de 30 personagens, policiais violentos, indígenas resistentes, trabalhadores sem terra, serralheiros, mulheres, crianças, seres de duas casas. 

“Quando criei a Rebis mestiça, associei ao pensamento sincrético brasileiro. Existe um Exu pouco conhecido, chamado Exu de Duas Cabeças. É uma entidade misteriosa, que na cultura popular abraça artistas e casais homossexuais, lésbicas, gays — porque tem os dois sexos. Ele não é o mesmo que Exu Pombagira, mas compartilha a complexidade de gênero. Essa entidade lembra também figuras mitológicas de outras culturas: meio homem, meio mulher, com traços híbridos — seio e pênis, corpo dividido”, explica o artista.

E ele ainda completa: “Para mim, essa figura representa o brasileiro como o mestiço total. Quando coloco isso na obra, penso num bebê sincrético que poderia simbolizar o ‘novo mundo’. Um bebê de duas cabeças, um corpo ambíguo, que nasce como metáfora de uma espiritualidade brasileira”.

A pintura é um misto de narrativas, em cores vibrantes, camadas espessas de tintas, que ecoam realidade e desejo, em um ambiente de revolução. Boa parte das obras na mostra, tanto no Convento, como no CHÃO, compartilham essa pulsão de cores e imagens recheadas de símbolos.

Brasil 2023 gobelin, Thiago Martins de Melo. Obra exposta no espaço CHÃO SLZ

Território

Todo esse excesso multicolorido, de uma cena muito vibrante, tem tudo a ver com o próprio local de formação de Thiago, que é o Maranhão, berço da festa do Bumba Meu Boi, recentemente considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. A festa do boi costuma acontecer da véspera do dia de São João, em 23 de junho, quando ocorre o batismo, seguindo até o fim de julho e, em alguns casos, até agosto. Há mais de 400 grupos em atividade nas zonas rural e urbana de São Luís, e em pelo menos 75 municípios. Foi em meio à essa festa que o artista cresceu.

O grupo de jornalistas convidados a acompanhar a abertura da mostra de Martins de Melo foi até o bairro da Liberdade, na capital do Maranhão, onde conheceu as lideranças do Bumba Meu Boi da Floresta, com suas vestimentas típicas e coreografias. É como se essas pessoas tivessem saído de uma pintura do artista. Há uma busca pelo transe no Boi, que se espelha nas pinturas de Martins de Melo.

Desde o início de sua pesquisa, ele já dialogava com a cultura popular. “Na Faculdade de Arte, eu vivia para todas as festas do Divino Espírito Santo, ajudava a fazer bandeirinhas, a desenhar, ia para Alcântara. Então o meu interesse sempre foi muito antropológico”, conta no catálogo da mostra.

Além dessa relação física com seu território, as obras do artista também se inspiram em aspectos mítico-religiosos, na espiritualidade. Há anos ele estabeleceu uma relação com Dona Tereza Légua, uma entidade que apareceu de forma muito forte em sua vida. “Dona Tereza foi fundamental: pintei muito inspirado nela. Tínhamos discussões sobre pintura, sobre mutualidade. Ela falava de um museu espiritual que frequentava, mostrava imagens, descrevia até um quadro meu, com um boi, que era o Touro de São Sebastião que eu tinha pintado. Essa relação de magia e encantamento sempre me atravessou. O Maranhão é assim, o Nordeste é assim”.

Há alguns anos, Martins de Melo estabeleceu-se em São Paulo, onde mantém seu ateliê. Mas a entidade não gostou. “Ela se ressentiu, mandou recados. Retomei a relação mais tarde, agora dentro da quimbanda. Hoje continuo cultuando, tenho entidades que me acompanham, é uma espiritualidade de família, feita de mortos, com quem tenho relação de carinho”.

O crânio, símbolo da morte, está presente em muitas de suas obras, seja na mostra, seja em sua carreira, um tema que de fato é observado pelo artista. “Hoje a morte é meu signo de existência. Eu sei que, quando morrer, meu crânio pode estar num assentamento, servindo de sabedoria, de continuidade. É assim na quimbanda: você não morre para desaparecer, você entra nos trabalhos, nas legiões. Se eu for espírito, provavelmente vou trabalhar na região de manguezal, de rio. Isso é pensar a vida já em função da vida depois. Por isso, para mim, o crânio é a imagem mais sábia de todas. É o que fica”.

Esse vínculo com a espiritualidade é algo conquistado recentemente na arte brasileira. “Hoje já se entende que vida, cultura e espiritualidade não podem ser dissociadas da arte. Mas, quando comecei a expor fora, entre 2011 e 2013, isso não era bem compreendido”, explica. Poucos são os artistas que conseguem retratar a espiritualidade de forma tão física e material quanto Martins de Melo e, em São Luís do Maranhão, isso tudo parece fazer muito mais sentido.

 

Quando a arte diz coisas que a história não pode

Vista da obra: Decoração de interiores, (1981) / Foto: Fabio Cypriano

“O estilo não existe, o estilo é uma forma de cair na repetição. Para mim, cada quadro precisa ser feito com uma técnica diferente. Cada exposição tem que ser diferente, é uma exigência interna que me imponho; não posso me repetir”, disse a artista colombiana Beatriz González. Sua versatilidade pode ser de fato comprovada nos mais de cem trabalhos na mostra Beatriz González: A imagem em trânsito, em cartaz na Pinacoteca do Estado até fevereiro de 2026.

Com curadoria de Pollyana Quintella e Natalia Gutiérrez, a mostra da artista nonagenária — ela nasceu em 1932 — faz um panorama de seus mais de 60 anos de carreira. Ao utilizar suportes inusitados como móveis ou cortinas, González levou algumas características da arte pop, especialmente pela apropriação de imagens de jornais impressos, a uma alta voltagem de crítica política.

É o caso de Decoración de interiores (Decoração de interiores), obra de 1981, que está na primeira das sete salas ocupadas pela artista na Pinacoteca. Trata-se de uma cortina de tecido onde está impressa uma imagem que se repete várias vezes, a do então presidente da Colômbia, entre 1978 e 1982, Julio César Turbay Ayala, com uma gestão marcada pela repressão a movimentos sociais. A foto original tem o estadista sorrindo com um copo de uísque na mão circundado por mulheres com vestidos elegantes, imagem um tanto típica de autocratas latino-americanos.

Assim como Andy Warhol se apropriava de fotografias de jornal para compor suas pinturas e serigrafias, González usa do mesmo procedimento em um material muito mais ousado e, ao mesmo tempo, leve, como as cortinas. Já na ironia do nome ela aponta para os poderes públicos exercidos em espaços privados. “O político se dissolve no doméstico e a representação oficial do chefe de Estado torna-se parte do repertório visual banalizado da cultura de massa”, diz Quintella no catálogo da mostra. Essas cortinas foram apresentadas na Documenta de Kassel, em 2017 e, desde então, multiplicaram-se mostras e retrospectivas da artista em diversos continentes. 

Já na Pinacoteca, após as cortinas, são apresentados os móveis sobre os quais González pintava. Em entrevista à crítica Marta Traba, em 1973, ela conta que “os móveis que faço são pinturas totalmente em sintonia com a arte tradicional, ou seja, faço-os com pigmentos coloridos e pincéis e represento algo que, embora já esteja dado através de fotografias ou reproduções de obras de arte, é, afinal, uma representação — uma representação de uma representação”.

Aí está outra faceta importante da poética da artista que é a reflexão sobre a linguagem e a história da arte. Entre os móveis exibidos, uma série de fato esplêndida, está uma cama com uma pintura de Cristo caindo ao carregar a cruz, denominada Natureza quase morta (1970), uma ironia em muitas camadas: o Cristo prestes a morrer, pintado em uma cama como a repousar, tudo isso realizado a partir de uma imagem religiosa, com um nome que subverte o gênero da natureza morta. Móveis com pinturas estiveram presentes na 11ª Bienal de São Paulo, em 1971, e, desde então, a obra de González cresceu muito na temperatura política.

As décadas seguintes, na Colômbia, foram um período de extrema violência, com muitos sequestros, assassinatos e, por consequência, exílio da classe média. González permaneceu em seu país, abordando todas essas questões. A cortina Decoración de interiores faz parte deste contexto. 

Em entrevista à curadora Maria Inês Rodrigues, González chegou a afirmar que “a arte diz coisas que a história não pode”. Quintella confirma ao constatar que o trabalho da artista “adquire um caráter memorial não institucionalizado”. Para ela, “suas pinturas, objetos e instalações funcionam como contra-arquivos: são peças que se colocam à margem dos relatos oficiais e expõem os vazios da história contada pelas instituições”.

Um caso exemplar desses contra-arquivos são as placas de sinalização na última sala da mostra que compõem a instalação Pictografias Particulares, criada para a 8ª Bienal de Berlim, em 2014. Inspirada em placas de trânsito da Alemanha, que indicam animais silvestres nas estradas, ela cria sinais de alerta para “o drama vivenciado por habitantes das zonas rurais da Colômbia, constantemente afetados pelo conflito armado”, afirma Quintella. São placas com pictogramas de cenas fúnebres.

A sala ocupada por esta instalação tem o Papel de parede pregadores, de 2002, onde estão representados corpos de vítimas da violência social colombiana, de maneira tão sutil e colorida que até parece um quarto infantil. É quando se conhece a história por trás, o chamado contra-arquivo, que se tem noção do drama.

Como diz a curadora e ex-diretora da Pinacoteca, Aracy Amaral, a mostra apresenta “excelência de percurso e coerência de postura através de décadas de produção iluminada”.

 

Contexto e Cosmogonia

Este período concentrou inúmeras iniciativas no mundo das artes plásticas. Coincidiram as aberturas da Bienal de São Paulo e da  Bienal das Amazônias, várias exposições nacionais e itinerâncias pelo país, as tradicionais Ocupações do Itaú Cultural e as comemorações dos 120 anos da Pinacoteca de São Paulo.

Patricia Rousseaux

A arte tem compromissos com as contradições do seu tempo e as cobranças que dele surgem, ela ajuda a nos interrogarmos o que significa tanta novidade e, ao mesmo tempo, busca lembrar das vozes eclipsadas e apagadas  durante séculos. Há uma mudança significativa desse quadro nos últimos 50 anos, e um clamor mais intenso nesses últimos 20 anos. Mas a inclusão ainda é uma meta a se cumprir, não apenas do ponto da visibilidade, mas da sincera e verdadeira ocupação dos centros de poder nas instituições culturais. Inclusão por modismo é apenas marketing, sabemos.

Sem dúvida, a produção afrodescendente e indígena vem crescendo em visibilidade, graças às suas próprias lutas. E aqui vemos a importância do contexto para arte, afinal as pautas por representatividade crescem cada vez mais e isso se reflete no mundo da arte. Dessa forma, o  Brasil de mais de  500 anos de colonização,  que possui uma tangencia com países do sul Global, está se reencontrando com seu passado e com suas raízes. 

Finalmente, entendeu -se, que não há futuro sem compreender profundamente quem somos, onde estamos, nossos países limítrofes, nossos biomas, a natureza, os animais, as florestas, os rios e aqueles que de anos para cá estão imaginando como protegê-las. O contexto é essencial.

As exposições, cada vez mais , são fruto de pesquisas e  estudos dignos de especialistas que , na maioria das instituições nacionais contam com o auxílio     de professores, acadêmicos, historiadores. Os e as  artistas não estão sozinho/as. Cada um explora sua realidade e trabalha com sua materialidade, seja qual for para expressar melhor o que tiver em mente. De diferentes idades, de diferentes gêneros, extrações sociais, artistas escrevem, falam, pintam, costuram, talham, se debruçam no estudo das origens e de fenômenos universais.  

Esta edição apresenta uma série de mostras que trazem essa complexidade na produção, a começar por duas ocupações no Itaú Cultural, frutos de extensa pesquisa, dedicadas a duas lideranças incontestes: Ailton Krenak e Paulo Herkenhoff. Ambas são abordadas aqui a partir de amplas entrevistas conduzidas pelo jornalista Jotabê Medeiros.

A 36ª. Bienal de São Paulo é analisada em dois textos, um escrito pelo crítico Fabio Cypriano e outro pela jornalista Maria Hirszman. Evento central no calendário das artes não só no Brasil, mas também no exterior, como se viu com a grande presença de colecionadores, curadores e artistas estrangeiros em sua abertura, essas visões buscam apontar como os conceitos desenvolvidos por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e sua equipe se concretizaram – ou não – no pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer.

Já a mostra de Beatriz González coroa os 120 anos da Pinacoteca a partir de uma artista latino-americana com uma produção original e coerente, política e ousada, em um intenso diálogo com outras exposições ali apresentadas, como a dedicada à arte pop e a coleção Roger Wright. A programação da Pina se consolida ao criar pontes entre acervo e mostras temporárias.

Esta edição traz ainda mostras de um circuito fora de São Paulo, um esforço que temos feito ao constatar a vitalidade e a particularidade de outros centros como Vitória, no Espírito Santo, São Luís, no Maranhão, Belém, no Pará, e Foz do Iguaçu, no Paraná. Dedicamos ainda dois textos à Temporada França-Brasil 2025.

Nem tudo vai perdurar, mas hoje, isso não importa. Importa a experiencia do olhar, do encontro com a obra, o quanto disso diz respeito de quem olha e o contexto em que ela se insere. 

Dedicamos esta edição ao nosso editor e amigo Eduardo Simões. 

Um encontro oportuno

: Louvre-Lens SANAA

Em maio de 2025, a Arte!Brasileiros teve a oportunidade de conferir, junto a um grupo de jornalistas de importantes e diferentes meios de comunicação brasileiros, o conjunto de iniciativas que o Instituto Guimarães Rosa e o Institut Français, sob a responsabilidade dos Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores de ambos os países, organizaram para a participação especial da França no Brasil neste ano. 

Foi no encontro de junho de 2023, em Paris, que Emmanuel Macron e Luiz Inácio Lula da Silva acertaram a realização da Temporada Brasil-França 2025, concebida para dar novo fôlego à parceria entre os dois países.

Lá na França, conseguimos acompanhar a exposição do artista Roméo Mivekannin, meses antes de sua vinda para o Brasil, na Galeria do Tempo, no Pavilhão de Vidro no Louvre-Lens, construído há dez anos em Lens, a 200km de Paris. 

Construído pelo escritório de arquitetura japonês SANAA, dos arquitetos Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa,  ganhador do Prêmio Pritzker de 2010, como parte de um projeto de reativação dos  centros urbanos fora de Paris, a extensão do Louvre em Lens é uma leve estrutura de aço parcialmente coberta por painéis de vidro, um espaço que reflete a iluminação natural criando um clima de luz difusa internamente, uma espécie de aura própria. São mais de 360 metros de comprimento de fachada implantada em um terreno de mais de 20 hectares, onde até os anos de 1960 operava uma mina de carvão. 

A segunda parte da iniciativa está sendo celebrada no Brasil  desde o mês de agosto, a temporada comemora 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países. Este acabou sendo um momento oportuno para a confraternização e exposição de iniciativas culturais de ambos os povos, dada a hostilidade que o mundo assiste aos avanços de setores de ultra-direita preconizando uma volta às trevas, e de alguma forma o ataque à cultura. 

Conseguimos acompanhar um trabalho impecável de pesquisa e organização que, capitaneado pela comissária francesa Anne Louyot, mostrou para a imprensa brasileira o cuidado com que os franceses pensaram esta parceria em território brasileiro. Várias das cidades brasileiras estão sendo impactadas por esse projeto que deve terminar em dezembro de 2025.

Os eixos temáticos que orientam os projetos dialogam diretamente com debates centrais da atualidade. Entre eles estão o clima e a transição ecológica, como a Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos que ocorreu em Nice em junho deste ano, e a COP 30, que acontece em novembro em Belém. Outro eixo é a diversidade das sociedades, marcada pelo diálogo com a África e o reconhecimento dos povos indígenas no Brasil e dos povos autóctones da França — como os da Guiana Francesa, Martinica e outros territórios ultramarinos. Por fim, a democracia e a globalização equitativa, capaz de se construir de forma mais justa, inclusiva e baseada em valores democráticos.

A exposição do Roméo Mivekannin, um dos artistas escolhidos para representar a França na parceria e que teve sua abertura no Brasil, em Salvador, na Bahia nos dias 28 e 29 de agosto e está exposta até 15 de novembro, é significativa por representar conexões entre o passado e nosso contemporâneo. 

Roméo, nascido em 1986 em Bouaké, na Costa do Marfim, explora suas memórias, especialmente as que existem entre Europa e África. Há vários anos ele revisita grandes momentos da história da pintura e nesta sua primeira mostra para Lens, escolheu principalmente algumas obras das coleções do Museu do Louvre, como a Jangada da Medusa (1818-1819), de Théodore Géricault,  inserindo seu autorretrato à maneira de uma figura negra esquecida. Com este gesto de homenagem e intervenção, o artista desafia com o olhar: Quem pinta? Quem é pintado? Ele questiona a história do retrato e de mulheres negras em particular.  E questiona a presença e ausência na história da arte, incluindo as das representações negras. 

Assim em Salvador, a exposição O Avesso do Tempo foi inaugurada em cerimônia oficial no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) com a presença do governador do estado, Jerônimo Rodrigues, do embaixador da França no Brasil, Emmanuel Lenain, e de representantes da comunidade cultural. A exposição foi especialmente organizada com 11 obras de Roméo Mivekannin no MAM-BA que revisitam a tradição da pintura ocidental com um olhar crítico e decolonial, inserindo a presença negra em narrativas históricas. 

Nas mesmas datas foram mostradas fotografias de Pierre Verger no Museu de Arte da Bahia (MAB), e a Coleção FRAC, Pedra e Mar entrelaçados no Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC_BAHIA).

A fúria e as batalhas de Niki de Saint Phalle

Exposição de Niki de Saint Phalle. Foto: Leo Lara/Studio Cerri

Visionária, explosiva e revolucionária, Niki de Saint Phalle (1930–2002) virou do avesso a arte do século XX. Suas obras marcadas por explosões de cor e gesto desafiaram preconceitos, romperam silêncios e abriram caminhos para que a liberdade feminina pudesse ser celebrada sem pedir licença. Com esta força que chega ao Brasil a exposição Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade, na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte.

Inédita no país, a mostra reúne 67 obras da artista franco-americana, quase todas nunca foram vistas por aqui, entre esculturas, assemblages e as icônicas Nanas (figuras femininas deliberadamente exageradas), vindas em sua maioria do acervo do Museu de Arte Moderna e Arte Contemporânea de Nice (MAMAC), além de uma obra rara da Pinacoteca de São Paulo, que sai do museu pela primeira vez desde 1997, quando foi adquirida. 

Pouco antes de sua morte, em 2001, Saint Phalle doou um conjunto extraordinário de obras ao MAMAC, cuidadosamente selecionadas por ela. Segundo os curadores da exposição no Brasil, Hélène Guenin e Olivier Bergesi, “o acervo reflete não apenas seu lugar essencial na história da arte das últimas seis décadas, mas também suas convicções, sua fúria, suas batalhas e a maneira como ela se posicionou em sua época”.

A partir de uma rede de parcerias internacionais — entre a Prefeitura de Nice, o MAMAC, a Niki Charitable Art Foundation e o grupo 24 Ore Cultura, de Milão — foi que nasceu a ideia da Sonhos de liberdade, unindo forças e visibilizando a potência transformadora de uma artista que nunca se acomodou. 

Em Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade, o público é convidado a percorrer diferentes momentos da vida e da obra da artista, desde seus primeiros experimentos artísticos até suas esculturas de grande porte, passando por fases marcadas pela dor, experimentação, cura, celebração e engajamento social. A mostra combina obras históricas, registros audiovisuais e ambientações, que dialogam com a vibrante linguagem visual da artista. A mostra acontece até dia 2 de novembro e integra a programação da Temporada França-Brasil 2025. 

Roubando o fogo

Niki de Saint Phalle não aceitava ser mera espectadora da vida — preferiu explodir, detonar, atirar contra ela. Feminista quando ainda era perigoso, ela ousou ocupar espaços dominados por homens e deu corpo a um imaginário exuberante, povoado por deusas gigantes, monstros coloridos e criaturas que riam da moral burguesa. Sua fúria se converteu em forma, a batalha incessante contra as convenções do patriarcado revolucionou o mundo da arte.

“Compreendi muito cedo que os homens detinham o poder, e eu queria esse poder. Sim, eu lhes roubaria o fogo. Não aceitaria os limites que minha mãe tentava impor à minha vida só porque eu era mulher. Ultrapassaria esses limites para alcançar o mundo dos homens, que me parecia aventureiro, misterioso e excitante. Decidi que eu mesma me tornaria uma heroína”, escreveu Saint Phalle em carta ao colecionador Pontus Hultèn, em outubro de 1991.

Durante muito tempo, Niki de Saint Phalle foi mal compreendida e até reduzida a caricaturas de si mesma: as Nanas exuberantes, as declarações inflamadas, o gosto assumido pelo ornamento. Parte da crítica masculina descartava sua produção como “feminina demais” e desqualificava seu discurso sobre o matriarcado. Ao mesmo tempo, algumas historiadoras feministas da arte também viam em suas criações uma armadilha — a suspeita de que, ao lidar com corpos fartos e coloridos, ela pudesse estar reforçando estereótipos que queria combater.

Presentemente, a sua  obra tem passado por uma releitura necessária em diversas partes do mundo. “Hoje, sua produção é finalmente reconsiderada em toda a sua riqueza e complexidade; reconhecida por sua contribuição única e incontestável à história das formas e dos gestos; e reavaliada à luz de seu engajamento profundo e de sua sensibilidade frente aos conflitos e causas de seu tempo”, declaram os curadores.

O caminho de uma heroína

Em 1953, Saint Phalle começou a fazer colagens com gravetos e pedrinhas, após ser hospitalizada por problemas de saúde mental, causados pelo estereótipo sexista do pós-guerra. A família havia chegado de volta à França, fugindo do clima repressivo dos Estados Unidos.

Depois, passou a fazer pinturas com mundos imaginários, uma mescla de fantasias e inquietações — e quando percebeu, a prática artística seria sua própria cura. “No fim das contas, minha depressão nervosa acabou sendo algo bom, porque minha estadia na clínica fez de mim uma pintora”, declarou ela em seu livro Harry and Me, 1950-1960: The Familiy Years.

Nos anos seguintes viria a criar as assemblages, uma espécie de colagens em que combinava pequenos brinquedos com materiais descartados e utensílios domésticos. Em um segundo momento passou a incorporar objetos mais agressivos e perigosos, como lâminas, tesouras, armas de brinquedo e objetos pontiagudos. Os primeiros indícios de uma expressão artística marcada pela revolta.

Pintora, escultora, cineasta, ela transformou traumas em munição e, com balas de rifle calibre .22, atirava contra suas próprias telas para ver nascer dali outra expressão de arte insubmissa. Assim, ainda em 1961, surgiram os Tirs (pinturas-tiro), que revolucionaram por completo o mundo da arte. Tiros que refletiam o mundo dilacerado pela violência num contexto de Guerra Fria. Obras complexas e repletas de significados que expressavam a fúria da artista contra o patriarcado e suas instituições.

“Nunca experimentei uma criatividade tão intensa quanto a que vivi com os Tiros. Foi emocionante ver aquelas obras se tornarem algo real diante dos meus olhos; meus sentimentos de agressividade encontraram uma forma de sublimação”, declarou a artista.

A partir de 1963, surgem as Nanas — figuras femininas deliberadamente exageradas, que transformam em escultura a ironia dos estereótipos. Entre noivas, feiticeiras, mães devoradoras ou mulheres em pleno parto, Saint Phalle expôs com ironia os papéis que a sociedade insistia em impor ao feminino. 

Para ela, as Nanas representam as mulheres no poder. “Temos o Black Power, então por que não o Nana Power? O comunismo e o capitalismo fracassaram. Acho que chegou o momento de uma nova sociedade matriarcal”, declarou ao Huston Post.

Já no final dos anos 1970, Saint Phalle começou elaborar o que, vinte anos depois, se tornaria o Jardim dos Tarôs, um projeto público faraônico localizado na Toscana, Itália.

Uma experiência imersiva em que vida, morte, alegria e medo convivem lado a lado. Um diálogo com a arte popular que busca sair dos museus e democratizar o acesso a todos. 

Ao longo de sua carreira, Saint Phalle lutou por causas libertárias e por um mundo mais justo, promovendo respeito e inclusão para todas formas de vida. Especialmente entre os anos 1980 e 2000, ela usou sua arte como ferramenta de transformação social.

Durante a epidemia de AIDS, combateu a estigmatização de pessoas que conviviam com HIV, utilizando diferentes mídias em suas obras, como a escrita e a ilustração de dois livros voltados à juventude. Para ela, tratava-se de defender o amor e a solidariedade aos afetados pela doença.

Neste período duro e sofrido, novas esculturas com figuras masculinas surgiram, até então ausentes em sua obra. Obeliscos fálicos, como totens, multicoloridos e adornados, em um desafio do medo e da rejeição que a doença impunha.

Sempre promovendo uma visão igualitária e atenta aos sentimentos do mundo, ela também denunciou a caça de animais selvagens e criou uma série de obras que alertavam sobre as mudanças climáticas — e a sua consequente perda de biodiversidade.

Em 1993, Saint Phalle, já na casa dos 60 anos de idade, se mudou de Nova York para La Jolla, na Califórnia, por motivos de saúde. “Já não consigo mais respirar na França, nem em Nova York, nem na Suíça, nem na Itália, nem na Espanha, nem em nenhum outro lugar. Respirar ou não respirar, essa se tornou a questão”, disse ela.

A Costa Oeste foi de fato um respiro para sua vida e sua produção artística, onde ela redescobriu costumes de seu próprio País e passou a documentar inspirações, sonhos e inquietações em seu Diário Californiano, escrevendo, desenhando e serigrafando retratos ilustrados, que se tornaram um registro visual precioso de seus trabalhos e pensamentos.

Niki de Saint Phalle disse uma vez que queria se tornar uma heroína — e de fato, ela conseguiu. Sua produção potente e imaginativa continua a inspirar novas gerações, não apenas por sua estética ousada, mas pela capacidade de transformar sofrimento em beleza, denúncia em esperança, exclusão em potência. Suas obras são um hino à liberdade, à alegria e à diversidade, e, por isso, seguem tão atuais.

Na segunda edição, Bienal das Amazônias reverbera a floresta

Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), Alessandro Fracta. Foto: Ana Dias
Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), Alessandro Fracta. Foto: Ana Dias

Porta de entrada da Amazônia, cidade portuária marcada pela confluência de povos e culturas, Belém, no Pará, se abre para a arte. É nesse contexto que se realiza a 2ª Bienal das Amazônias, no CCBA — o centro cultural instalado desde 2023 em um prédio de comércio popular no bairro central da cidade.

São 74 artistas e coletivos de oito países pan-amazônicos e caribenhos que mostram seus trabalhos até 30 de novembro. O fio condutor é o conceito “Verde-distância”, inspirado no romance Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, escritor e político paraense silenciado por dez anos pela ditadura militar brasileira. A ideia de “distância verde”, tão poética quanto política, abre espaço para múltiplos olhares sobre a floresta, seus povos, memórias e futuros possíveis. O evento foi incorporado aos festejos França-Brasil 2025, que acolhe a 2ª Bienal das Amazônias, em uma iniciativa que busca estreitar e atualizar as relações entre os dois países.

Sob a curadoria geral da equatoriana Manuela Moscoso, a Bienal se estrutura de forma colaborativa, com a colombiana Sara Garzón como curadora-adjunta, o paraense Jean da Silva na programação pública e a mexicana Mónica Amieva na curadoria pedagógica. Juntos, formam uma equipe internacional que amplia os diálogos e a dimensão experimental do evento.

Nascida no Equador, a 2.800 metros de altitude e hoje radicada no Brasil, Manuela Moscoso encarou o desafio de fazer a 2ª edição da Bienal em plena planície amazônica. O contraste não passa despercebido: “Outro clima, outro tempo, outro horizonte”, resume. Trabalhar no calor úmido da floresta virou quase metáfora da tarefa de articular tantas narrativas distintas em uma mesma plataforma. Esse multiculturalismo se traduz na exposição, com obras que acionam memórias coletivas, histórias de resistência e imaginários transfronteiriços.

Como grande homenageado, o amazonense Roberto Evangelista (1947-2019) ocupa lugar de destaque na 2ª Bienal das Amazônias. É uma justa reverência a um artista preocupado com a ecologia e em como pensar o futuro da Amazônia e do planeta. Entre suas obras em exibição está Nike Uiikana (1989), instalação em que penas e cuias formam triângulos, celebrando a união dos povos indígenas e a resistência do líder ambiental e seringalista Chico Mendes. Em Happening da Praia da Ponta Negra (1992), o artista transformou a orla de Manaus em palco para um gesto de arte efêmera, aproximando público, rio e cidade numa experiência comunitária que foi reencenada nesta edição, com a participação da viúva, Ana Evangelista, e da filha Sâmara.

Já em Ritos de Passagem (1996), reuniu mil caixas de sapato vazias, dois mil sapatos gastos e pedras de lioz retiradas de uma calçada de Manaus. A remontagem das obras foi realizada por Regina Vater, artista, amiga e parceira de Evangelista, que contribuiu para manter viva a integridade de suas criações. Essa presença dupla, da memória de Evangelista e do gesto cuidadoso de Vater, reforça a dimensão afetiva e política da homenagem.

Mosaico abrangente

A Bienal também devolve visibilidade a narrativas silenciadas. Um exemplo vem do coletivo Tawna, do Equador, que ocupa a floresta como espaço de escuta, ritual e insurgência. Composto por pessoas de diferentes etnias, seu cinema anticolonial aproxima ativismo e política, rejeitando enquadramentos ocidentais de gênero, sexualidade e justiça. O antropólogo indígena Enoc Merino, um dos integrantes do coletivo, afirma que a colonização europeia, com sua catequese, silenciou os povos originais. Seu curta-metragem mostra a diversidade e a liberdade de expressão dentro do povo Kichwa Canelos. “A questão de gênero é escolha ancestral no universo indígena, a homossexualidade sempre existiu e as escolhas fazem parte da cultura desses povos”, afirma ele.

A obra do artista Jaider Esbell, do povo Makuxi, originário da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, também reverbera na mostra, com pinturas feitas com jenipapo. Os trabalhos de Esbell, falecido em 2021 aos 42 anos, reafirmam a vivacidade que norteia o pensamento dos povos originários e a vitalidade espiritual de seus símbolos ancestrais. Considerada uma voz importante da arte indígena contemporânea no Brasil, sua presença na Bienal das Amazônias colabora para o reconhecimento da produção feita por integrantes dessa matriz. 

Dayro Carrasquilla chega à Bienal das Amazônias com a instalação Barrio Abajo, construída a partir de paletes — tão comuns no transporte marítimo — e de um vídeo que atravessa o espaço como narrativa visual. No piso térreo, sua obra recebe o público recriando os becos estreitos das comunidades populares, onde o íntimo se cruza com o coletivo. “O bairro é memória, afeto e resistência”, afirma o artista, ao mostrar como a arte pode devolver dignidade a territórios historicamente silenciados. 

Aqui, o urbano não se apresenta como dureza, mas como corpo poroso, cheio de frestas por onde emergem histórias ocultas. É nesses interstícios que Carrasquilla encontra poesia. A cidade que convoca não cabe em cartografias oficiais: é feita de resistências, afetos e lembranças que insistem em permanecer.

Barrio Abajo, de Dayro Carrasquilla. Foto: Leonor Amarante

De origem Kokama, a artista Wira Tini é pintora autodidata. Ela mescla modernismo, cosmologia indígena e paisagem urbana amazônica em uma poética de ancestralidade, território e memória familiar. Em obras como Rodó, Beira da Amazônia e Amazônia Urbana, ela reflete a modernidade imposta, os caminhos das águas e as presenças invisibilizadas em Manaus. “Meu pai conduzia barcos que até hoje transportam a população ribeirinha. Eu mesma aprendi a manejá-los e naveguei bastante pelo rio”, diz.

Nesse mosaico, a matriz africana também se faz presente, entre criação e ativismo. “A matriz afro-diaspórica é algo importante a se destacar nesta Bienal, dando mais presença ao legado, à memória e à história dos povos afrodescendentes na Amazônia”, ressalta a curadora-adjunta, Sara Garzón.

Há trabalhos empoderados que fazem a Bienal pulsar em diferentes registros. Entre eles, se destaca a produção da caribenha Keisha Scarville, filha de guianeses, que mergulha na diáspora e na experiência do corpo negro. Suas fotografias transitam entre presença e ausência, memória e apagamento. Tecidos, sombras e sobreposições dão corpo a um território poético em constante deslocamento, onde a identidade nunca se fixa, está sempre em construção. A potência de certas obras está justamente neste “não lugar”, elas não explicam, mas ativam sentidos. Ao reunir vozes tão diversas, a Bienal mostra que a Pan-Amazônia não é apenas um espaço geográfico, mas um campo vivo de relações, em disputa e em transformação.

Com sotaques e idiomas que vão do português ao espanhol, passando pelo “portunhol” e por diferentes troncos linguísticos indígenas, a Bienal se torna um grande território de pensamentos e trocas. Da Bolívia chega River Claure, fotógrafo indígena que vem conquistando espaço ao tensionar a identidade andina diante da contemporaneidade ocidental. Seu trabalho mistura moda, fotografia e crítica social em imagens vibrantes, cheias de frescor e impacto.

Em suas séries, jovens indígenas aparecem em diálogo direto com a cultura pop global, desmontando o olhar exótico que tantas vezes se projeta sobre os Andes. Suas fotografias atravessam estereótipos, dão corpo ao que foi silenciado e abrem espaço para imaginar a modernidade a partir da força e da criatividade dos povos andinos.

Em um ritual solitário, o peruano Antonio Paucar apresenta, em La Purga con las Madres Plantas, uma prática arraigada em que corpo e natureza se fundem como um mesmo território de resistência e entrega.

Entre fumaças que curam, gestos que invocam e silêncios que atravessam, sua obra desperta estados de transe, purificação e reconexão. Inspirado nos saberes indígenas e nas alianças ancestrais com a terra, Paucar transforma o corpo em portal, espaço de passagem entre mundos visíveis e invisíveis. Sua arte convida o espectador a atravessar essa experiência e a intuir outras formas de existir, de sentir e de pertencer ao cosmos natural. 

La Purga con las Madres Plantas (2016), Antonio Paucar. Foto: Leonor Amarante

Com forte carga poética, Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), do brasileiro Alessandro Fracta, transforma a travessia em metáfora da experiência amazônica como território de deslocamento, resistência e invenção. Sobre o rio de dimensões oceânicas, ergue-se uma figura solitária: de pé na embarcação, envolta por um pano vermelho. Cor de ambiguidade simbólica, sangue e ferida, mas também fogo e vitalidade, funciona como eixo de tensão entre vida e risco, permanência e transformação. Ao situar-se no limite entre fragilidade e resistência, a obra aponta para as condições contemporâneas da Amazônia, onde práticas de destruição e modos de vida tradicionais coexistem em embate constante.

Curadoria

Ao assumir a curadoria da 2ª Bienal das Amazônias, Manuela Moscoso encontrou uma instituição jovem, em busca de identidade, mas ousada o bastante em sua proposta de articular uma cartografia artística da região Pan-Amazônica. Isto, segundo ela, é o que torna a experiência especial: “Se não fosse assim, estaríamos sempre nos encontrando em outros lugares, sob as mesmas lógicas centrais. O que me atraiu aqui foi a possibilidade de construir desde a Amazônia para a Amazônia”. 

No entender de Moscoso, a região carrega histórias coloniais muito distintas, que afastam os habitantes uns dos outros. “Somos países vizinhos, mas muitas vezes não nos conhecemos”. A curadora recorda, em tom de anedota, ter se surpreendido ao lembrar da existência de um território francês cravado na América do Sul: a Guiana Francesa. “É curioso pensar como esse detalhe, que deveria estar presente em nossa consciência continental, às vezes nos escapa. Isso mostra como a herança colonial ainda organiza a percepção de quem somos”. O confronto entre familiar e desconhecido, paisagem andina e vastidão da planície amazônica, também a fez refletir sobre as formas de relação com o meio ambiente. No Equador, a questão ambiental está inscrita em leis. “Há um esforço de proteção legal que, mesmo com todos os percalços, nos lembra de que a natureza é um sujeito de direitos e não apenas um recurso a ser explorado”. Essa vivência molda sua visão curatorial, que entende a floresta não como cenário, mas como protagonista.

Do ponto de vista da arte e do ativismo ambiental, vale lembrar as palavras do crítico francês Pierre Restany em seu Manifesto do Rio Negro (1978), escrito após navegar pelo rio ao lado dos artistas Sepp Baendereck e Frans Krajcberg: “A Amazônia é hoje o último reservatório, o último refúgio da natureza em nosso planeta”.

Ela deve ser celebrada como higiene da percepção e oxigênio mental — um naturalismo integral, gigantesco, capaz de catalisar nossas faculdades de sentir, pensar e agir”, escreveu.

A diferença

À frente da Bienal das Amazônias está Lívia Condurú, uma mulher que sabe articular forças diversas — empresários, coletivos, poder público — em torno de um mesmo objetivo. Foi assim que conseguiu restaurar um antigo prédio no coração de Belém, alugá-lo e transformá-lo na casa da Bienal das Amazônias desde 2023. O que a distingue das demais? Lívia Condurú não hesita: “A coletividade”. Para ela, não se trata de criar um simulacro da Amazônia para atender ao mercado, mas de falar da vida real, dos territórios habitados, das experiências compartilhadas. A Bienal, para ela é plataforma viva, o barco que desliza pelos rios levando e trazendo arte, é um centro cultural pulsante, com exposições que circulam. “É resistência, provocação, mas também festa”.

Com tranquilidade aparente, ela encara o maior desafio de qualquer iniciativa artístico-cultural no Sul Global, a sustentação financeira. “Fizemos uma das maiores captações do Brasil, mas os custos são altíssimos, aluguel do prédio, manutenção do barco, energia, equipe. Não dá para depender só da Lei Rouanet”. Ela afirma que trabalharam com plano plurianual e buscaram novas fontes. “Com o mesmo orçamento que em outras instituições renderia quatro exposições, realizamos sete, além de encontros e circulação internacional. Isso mostra como o dinheiro público pode ser mais bem investido quando há compromisso”.

Essa mesma disposição amplia o alcance da Bienal além do Brasil. Em Medellín, na Colômbia, por exemplo, a obra Quintino, de Éder Oliveira — retrato de um matador de aluguel transformado em anti-herói popular — encontrou identificação imediata. “Isso mostra como territórios distantes compartilham feridas parecidas”, diz a presidente. Pesquisas na Guiana Francesa e no Suriname confirmam essa dimensão plural da Pan-Amazônia, revelando uma região negra, caribenha, asiática, múltipla, justamente por ter sido atravessada pela colonização.

Ainda pesa a ideia de “arte regional”? Lívia Condurú não tem dúvida. “Pesa, mas é uma escolha política. Por que o artesanato não seria arte? Por que a crítica só existe no eixo Rio-São Paulo? O mesmo avião que me leva para lá traz críticos até aqui. Precisamos romper essa barreira”. O que move de verdade essa gestora? “Territorialidade e dignidade coletiva. Quero poder andar na rua à noite com segurança, quero um território respeitado. A arte é trabalho, com boletos e responsabilidades, mas também um instrumento de transformação. Seguimos porque acreditamos que fortalecer o território é fortalecer o mundo”.

Lívia Condurú vê a Bienal das Amazônias como voz ativa neste momento em que a COP 30, a Conferência do Clima que será em novembro, em Belém, se aproxima. Para ela, a Amazônia não pode ser tratada apenas como pano de fundo para debates climáticos, mas precisa ser vista como território vivo, político e cultural. “Aqui discutimos mineração, petróleo, extrativismo, mas também inventamos saídas. Acreditamos nas micropolíticas, em pequenas ações coletivas que, somadas, viram armas de resistência. A Bienal dá visibilidade a isso”. Assim, a mostra vai bem. Além de uma exposição de arte: é um chamado para olhar e escutar de outra maneira tudo o que está em jogo quando se fala da Amazônia.

Poesia em confluência inspira a 7ª Bienal Internacional do Sertão

Com o mesmo espírito nômade que a caracteriza desde a sua criação em 2012, a 7ª Bienal Internacional do Sertão será inaugurada em Diamantina (MG) no dia 1º de outubro com performances na Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, e no dia 3 no Teatro Santa Izabel, com performances e shows de música.

O espírito nômade da Bienal consiste em se instalar em um estado diferente a cada edição, fortalecendo-se como espaço de circulação da arte para além das grandes capitais. O tema deste ano, Poesia em Confluência, nasce do desejo de reunir pesquisas curatoriais que dialogam com questões urgentes como clima, inteligência artificial, ancestralidade e identidades coletivas. Para Denilson Santana, idealizador da Bienal, historiador e curador, essa busca nasce de um hábito: “Nos anos em que não há Bienal, nós  percorremos seminários de arte, filosofia e literatura em busca de ideias inspiradoras, para a próxima empreitada”, explica.

A edição deste ano reúne obras de 50 artistas vindos de diferentes estados brasileiros e do exterior. A curadoria é compartilhada por duas mulheres: Laura Benevides, da Bahia, arquiteta e pesquisadora em arte latino-americana, e Janaína Selva, de Minas Gerais, curadora e pesquisadora em arte e arquitetura. Juntas, elas dividem a responsabilidade de construir diálogos entre artistas, espaços e comunidade, trazendo visões complementares que ampliam as leituras possíveis sobre o Sertão e sua presença no mundo atual.

Denilson Santana, idealizador da Bienal do Sertão, entre as curadoras Janaína Selva e Laura Benevides.

O núcleo contemporâneo da Bienal ocupa o imponente Teatro Santa Izabel, o mais antigo da cidade, cuja arquitetura e história guardam marcas vivas da região. Outro ponto central é a Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, onde acontecem seminários, pesquisas e oficinas que expandem o alcance do evento para além das salas expositivas.

Um dos pontos de destaque é que essa edição expõe obras comissionadas em outras bienais e trabalhos escolhidos a partir de uma convocatória aberta. “As obras estão expostas no Teatro Municipal, no histórico Teatro Santa Izabel, na Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e no Museu do Diamante, transformando espaços simbólicos da cidade em palcos vivos para a arte contemporânea”.

Mantendo a ideia de evento expandido, Denilson comenta que a programação não se limita às mostras, oferece oficinas de arte voltadas a diferentes públicos, de crianças e jovens da rede escolar a artistas em formação, com atividades que vão da escrita criativa às artes plásticas. “Em todas as edições mantemos vivas as conversações e com elas reunimos artistas, curadores, pesquisadores e moradores em rodas de diálogo, sobretudo com enfoque nas práticas culturais do sertão, sustentabilidade e o papel da arte na transformação social.” afirma.  O que ele busca é criar um espaço de encontro e reflexão, onde a arte possa reverberar como prática coletiva e transformadora. 

Para Denilson, o diferencial desta exposição em relação às outras bienais é o caráter educativo e as parcerias que eles estabelecem com universidades e museus. “A Bienal mantém uma forte rede de colaboração com curadores internacionais. Este ano contamos com Hermán Pacurucu, curador da Bienal de Cuenca, no Equador, que apresenta obras de seis artistas, e também teremos a interlocução da Posverso, da Argentina, curada por Silvio de Graça, que expõe obras de três artistas, contribuindo para adensar o traço multidisciplinar desta Bienal”, afirma.

A Bienal do Sertão nasceu em Feira de Santana, na Bahia, a partir de uma inquietação pessoal transformada em movimento coletivo. O idealizador conta que, quando foi convidado para ser monitor na Bienal de São Paulo, percebeu suas próprias limitações: dava aulas no ensino médio e via de perto escolas sem biblioteca, com poucos livros e muitas carências. Foi nesse contraste que surgiu a ideia: criar no sertão uma bienal aberta ao mundo, capaz de reunir artistas de diferentes lugares e, ao mesmo tempo, apostar no educativo, formando novos profissionais e estimulando jovens talentos.

Mais do que um evento, a Bienal do Sertão se tornou um gesto de resistência e descentralização cultural. “Faço a Bienal para a cidade inteira, não apenas para um espaço específico”, afirma. A proposta é ativar lugares históricos, resgatar memórias e, ao mesmo tempo, abrir caminhos para novas experiências contemporâneas.

O sonho de Denilson mira o futuro: criar um ponto de apoio na Bahia, sua terra, não como sede fixa, mas como casa de passagem. “Quero um espaço simples, capaz de acolher pessoas e dar conta das demandas enquanto sigo viajando. A Bienal nasceu nômade e assim deve permanecer”, afirma.

Nesse horizonte aberto e libertário, mas sem romper de vez com o sistema, a 7ª Bienal do Sertão se reforça como travessia. É gesto de resistência e invenção, uma plataforma em movimento que ainda não sabe em qual “porto” a próxima edição vai atracar. O inesperado é parte do jogo, é justamente o elemento surpresa que mantém viva a energia dessa bienal experimental, sempre pronta para reinventar caminhos e lançar o Sertão como marco de integração, conhecimento e direito dentro do mapa da contemporaneidade.

Entre os artistas expostos confirmados estão Alana Barbo / Ambuá / Camila Kahhykwyú Canela / Carlos Mélo / Catarina Dantas / Cicero Costa / Conceição Myllena & Flaw Mendes / Cristiane Martins / Danilo Espinoza Guerra / Derlon / Edith Derdyk / Emika Takaki / Erika Dantas / Estêvão Parreiras Pereira / Fernanda Adamski / Gabriela Loayza / Helena Sofia Klipp / Hernán Illescas / Irmãs Gelli / Iván Zambrano / Janaina Wagner / Jimson Vilela / Joana Amora / João Pedro Ramos / José Guedes / Juniara Albuquerque / Kyria Oliveira / Luanda / Luciana Borre / Luiz O. (Luizhim) / Maria Zegna / Manoel Veiga / Mariana Guardani / Marianna Pizzatto / Nina Miyamoto / Padmateo / Polina Shklovskaya & Briseis Schreibman / Raquel Rodrigues / Ricardo Vilas Freire / Samira Pavesi / Sofia Ramos / Soledad Sánchez Goldar / Taís Koshino / Victor Hugo Bravo.

Absurdo: Prefeitura de São Paulo põe abaixo prédio colado ao Contêiner

Teatro de Contêiner
Teatro de Contêiner

Ignorando uma liminar da Justiça, na manhã desta segunda-feira, 22, uma empresa de demolição entrou nos prédios anexos ao Teatro de Contêiner Mungunzá, na Luz (região central de São Paulo) e começou a derrubar portas, paredes e andares superiores, atendendo a uma determinação da prefeitura municipal. A demolição do prédio anexo, cuja parede é contígua ao espaço cultural, projeta detritos em toda a área, colocando em risco as pessoas que trabalham ali, trabalhadoras do Coletivo Tem Sentimento, além de inviabilizar seu funcionamento.

O funcionamento do Teatro do Contêiner está assegurado pelos próximos 6 meses por determinação da juíza Nandra Martins da Silva Machado, da 5ª Vara da Fazenda Pública, que impede ações de desocupação. Em sua decisão, a juíza justificou que o teatro é composto por 15 estruturas de contêineres marítimos interligados, paredes de vidro, cobertura acústica, iluminação, além de um acervo artístico e cultural e que, por isso, a desocupação do imóvel não seria um processo simples e exigiria um “planejamento técnico e logístico para sua desmontagem, transporte e reestruturação”.

No último dia 19 de agosto, a prefeitura de São Paulo tentou desalojar o teatro à força, com o uso de homens e recursos policiais da Guarda Civil Metropolitana. Foi impedida pela ação dos atores, técnicos, frequentadores e moradores da região. A ação, violenta e fora da legalidade (usaram gás de pimenta e imobilização física em artistas), causou protestos em todo o País e o Ministério da Cultura e a Funarte soltaram notas de indignação, assumindo negociações para cessar as hostilidades do governo municipal. Nesta segunda, a empresa de demolição que começou a derrubar o prédio anexo informou que tinha sido instruída a agir pelos órgãos do governo do município.

A prefeitura diz que o terreno onde está o Contêiner se insere dentro de um plano de revitalização da região e que pretende construir um prédio de habitação de interesse social no terreno. A administração municipal alegou que já havia oferecido três áreas legalizadas para o Teatro de Contêiner Mungunzá, “que não cumpriu três ofícios para saída do terreno municipal ocupado irregularmente”. Entretanto, o teatro tem programação confirmada até dezembro deste ano, “cuja interrupção acarretaria prejuízos não apenas para o Teatro de Contêiner, mas para toda a sociedade e para os inúmeros artistas, educadores e públicos diretamente envolvidos”, segundo a juíza.

O Teatro de Contêiner informou a Arte! Brasileiros que está iniciando uma reação jurídica ao processo de demolição iniciado pela Prefeitura de São Paulo. É a segunda iniciativa desse tipo empreendida na gestão de Ricardo Nunes: ele também foi o responsável por destruir o Teatro Vento Forte e a Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul, no Parque do Povo, em fevereiro. Até hoje, não empreendeu nenhum ato de recuperação do patrimônio demolido, apesar de seu secretário de Cultura, Totó Parente, ter se comprometido com isso publicamente.

Finalista do Prêmio Governador do Estado em 2018, em 7 anos o Teatro de Contêiner Mungunzá tem sido, desde sua fundação, em 2017, uma ilha de acolhimento, delicadeza e excelência cultural no Centro mais complicado de São Paulo. Em 2020, durante a pandemia, o Teatro de Contêiner manteve as portas abertas para moradores em situação de rua, para ajudar com questões de higiene pessoal, além de ter sido ponto logístico da organização de ajuda humanitária Médicos sem Fronteiras (que atuou em dois locais no centro da capital paulista). Abrigou ações de coletivos ativistas do Centro (relacionados à saúde e a assistência social), tornou-se ponto de coleta e distribuição de doações e ajudou a distribuir 40 mil refeições (500 por dia) para a população de rua naquela ocasião. 

Um ano antes, em 2019, o Teatro de Contêiner organizou a mostra O Fluxo Expõe – A Arte da Cracolândia, com trabalhos dos artistas Clayton Dentinho, Ed Peixoto, Fábio Rodrigues, Índio Badarós, Jaick MC, Rogério Roque, Wesley Marciano e Yóri Felipe Ken. Os 8 artistas produziam em situação de grande vulnerabilidade social no Fluxo (fluxo era o nome utilizado para designar a localidade próxima à Estação da Luz na capital, na qual havia então uma grande concentração de usuários de crack e de pessoas em situação de rua).

O amplo ateliê de costura que funciona no espaço dos fundos do Teatro de Contêiner Mungunzá, da Cia. Mungunzá de Teatro, foi instalado após um investimento de 65 mil reais, o espaço (como todo o complexo, foi construído com contêineres marítimos, um de 12 metros e outros dois de seis metros). Ali funciona a sede do Coletivo Tem Sentimento, que desenvolve um projeto de geração de renda com e para mulheres que vivem no Centro de São Paulo.

A arquitetura do teatro, dessa forma, além de se caracterizar como Habitação de Interesse Social, um espectro que deve ser protegido pelo Estado, não significa apenas uma intervenção de um grupo de teatro em uma região urbana, mas tornou-se um caso exemplar de desenvolvimento da própria linguagem do teatro dentro das conformações de uma pulsão urbanística.

“A cultura indígena não se encaixa no pensamento patrimonialista”

Rio Doce, no território Krenak em Resplendor, MG
Rio Doce, no território Krenak em Resplendor, MG

Men am-ním é a tradução aproximada, na língua do povo Krenak, para a palavra portuguesa “Ocupação” – na verdade, o vocábulo indígena é usado para definir um “lugar conquistado, ocupado”, um território “onde quero estar para passar o saber”. O termo originário não poderia ser mais adequado para denominar a Ocupação Ailton Krenak, aberta no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 30 de agosto.

Além da tradicional memorabilia do homenageado (a curadoria, coletiva, reuniu mais de 90 peças que remontam a história do mais destacado intelectual, filósofo, ambientalista, escritor e líder indígena brasileiro da atualidade), a mostra Men am-ním Ailton Krenak apresenta um lote respeitável da produção de artes visuais de Krenak, com cerca de 20 telas (pinturas a óleo, nanquim ou urucum), diversos desenhos e apontamentos visuais do ativista mineiro. Nascido em Itabirinha, Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce, Krenak comemora 72 anos de idade no próximo dia 29 de setembro. A exposição também traz vídeos, fotografias históricas dos Botocudos (ancestrais dos Krenak), cadernos de notas, fotografias de diversas fases de sua trajetória e depoimentos de personalidades.

Krenak, desde que surgiu para o olho público em 1987, durante a Assembleia Constituinte, vestido com um terno branco e com o rosto pintado de tintura preta de jenipapo para fazer um discurso que mudou os rumos das políticas indígenas no País, alcançou uma autoridade de raros paralelos na vida nacional. Autoridade que o libera até para batizar como “Programa de Índio” uma das saletas de sua mostra na Avenida Paulista. ARTE! BRASILEIROS conversou com o filósofo. 

ARTE! BRASILEIROS: Você certamente leu ou conhece o discurso do cacique Seattle, não? De 1855.

AILTON KRENAK: A Carta do Grande Chefe?

ARTE! BRASILEIROS: Sim. De certa forma, nós temos também uma Carta do Grande Chefe, que é o seu discurso de 1988 na Constituinte brasileira. Tornou-se o nosso equivalente, não? Porque estabelece alguns parâmetros de debate sobre a questão indígena que, evidentemente, sempre existiram, mas não tinham sido formulados daquele jeito até então, e foi dentro do Congresso brasileiro. 

KRENAK: É um paralelo que me enche de orgulho. E me sugere, inclusive, que a Carta do Grande Chefe é um documento histórico que pode não ter aparentemente nenhuma relação com o que a gente pensa, aquela fala de um chefe indígena do Norte da América respondendo à pretensão do governo dos Estados Unidos de tomar um território deles, com a conversa de que veio comprar a terra. Mas, ao fazer uma análise do discurso, a gente vai começar a entender muito sobre a origem dessa potência política bélica que se constituiu nos Estados Unidos. Lá no começo, quando eles ainda precisavam de território para existir, eles foram roubar mais um pedaço de terra do povo Duwamish. O chefe Seattle era de um povo que vivia no litoral e que, provavelmente, era tão pacífico quanto os nossos parentes Potiguara ou os Tupinambá daqui do litoral da Costa Atlântica. Eles tinham uma grande área de pesca e eram prósperos, viviam numa boa. Não estavam em conflito com ninguém. E aparece um pelotão comandado por um general, o cara já era general, que vai dizer para ele: “A gente veio aqui te trazer uma proposta do grande chefe de Washington, para comprar a sua terra”. Para aquele povo Duwamish, comprar a terra era uma coisa sem sentido. Seria como alguém chegar e falar assim: “Eu vim comprar sua pele”. Total nonsense, né? O chefe Seattle escutou aquela proposta e começou a fazer uma espécie de manifesto sobre a Terra ser a nossa mãe. E é tão lindo. Se tornou um documento que viajou no tempo. No caso do século XX, foi o primeiro manifesto ecológico a animar os movimentos de libertação, o movimento hippie e a contracultura: tudo se apoiava naquela declaração de que a terra não se vende. A terra, ela vai nos sepultar. O Chefe Seattle falou: “Olha, você vai ser enterrado aqui”. Mas também é profético porque ele diz que, se o homem branco conseguir tomar essa terra, como parece que vai, porque o seu Deus, o Deus branco, é super poderoso e ele vai dar essa terra que vocês querem para vocês, então “ensina seus filhos a pisar suavemente na terra”. Essa recomendação, ela parece mais uma maldição. Porque o Seattle sabia que os brancos seriam incapazes de ensinar isso para os filhos deles. Então, é como se você estivesse entregando um dispositivo para alguém e falar: “Ó, segura bem isso aqui, tá?”. Mas você sabe que aquela coisa vai explodir um dia. Quando eu, numa circunstância imprevisível ou imprevista, fui designado para fazer a fala da defesa dos direitos indígenas no debate da Constituinte, eu não sabia o que ia fazer. Eu não tinha um texto. A gente tinha participado das mobilizações dos anos 1980, 1987, 1986, das Diretas Já, e a gente reclamava a Constituinte também como um direito, que a gente tinha o direito de participar da nova Constituição. Então aquela participação minha nos movimentos, junto com todos os movimentos sociais, ela me animou a acreditar que nós estávamos numa onda favorável para confrontar a ideia de que podiam tomar tudo dos indígenas, podiam submeter o povo indígena a uma lógica progressista, desenvolvimentista, que o Brasil tinha que fazer isso. Assim como lá na carta do Seattle, que os Estados Unidos tinham que tomar a terra daquele povo indígena. Aí eu pensei: “Quer saber? Eu vou radicalizar. Eu vou jogar uma maldição nesse Congresso. Eu vou dizer a eles que o sangue dos nossos ancestrais vai recair sobre a cabeça deles”. E eu fui lá para fazer isso. 

ARTE! BRASILEIROS: Mas você também demarcou, como se fosse uma pedra fundamental, algumas outras coisas, não? 

KRENAK: Eu não sabia que isso ia prevalecer. Eu podia sair preso de lá. 

ARTE! BRASILEIROS: Sim, você fala isso no discurso. Para eles não tomarem aquilo como um insulto. 

KRENAK: Porque eu vi que podia ser (visto assim). Eles podiam falar: “Esse cara tá insultando o Congresso Constituinte, prende ele!”. E, naquele tempo, algumas dessas pessoas golpistas que estão hoje aí andando, já estavam lá. Quer dizer, eu passei por um fio. 

ARTE! BRASILEIROS: Eles sempre estiveram lá, não é?

KRENAK: Eles sempre estiveram lá e nunca perderam tempo, porque a gente teve a promulgação da Constituinte e aí veio a eleição do Collor, que foi substituído depois pelo Itamar. E, na presidência do Fernando Henrique, o ministro (Nelson) Jobim, da Justiça, criou um pretexto para invalidar o princípio que a gente fixou na Constituição, quando criou o Marco Temporal. O pessoal fica falando dessa excrescência jurídica, que é o Marco Temporal, mas eles deveriam dizer quem botou esse ovo. 

ARTE! BRASILEIROS: (Nelson Jobim) Que era um jurista, inclusive. Tinha que ter um verniz jurídico.

KRENAK: Foi um ministro da Justiça, que era considerado assim “O Democrata”. Talvez ele fosse o democrata cristão. Porque eles ainda não tinham inventado o patriota cristão, mas eles já tinham uma versão, já estavam ensaiando. Então, eu creio que essas coisas que nós estamos tendo que ver hoje, que defrontar hoje, elas sempre tiveram por aqui, sempre estiveram aí.

ARTE! BRASILEIROS: No seu discurso de 1988, você diz, uma hora: “Vossas Excelências sabem que os povos indígenas estão muito distantes de poder influenciar a maneira com que estão sugerindo os destinos do Brasil”. Ou seja: você diz que as nações indígenas eram frágeis para ameaçar o poderio político dos brancos. Naquele ponto, essa era a situação. Mas isso mudou um pouco, não? Ou você discorda? 

KRENAK: Nós nunca deixamos de ser uma minoria radical. A gente não chega a ser 0,2% da população do país. Naquela época éramos 130 mil. 130 mil pessoas é dois Maracanã cheios, né? Se você pensar no Século 21, onde o censo diz que nós somos 1.730.000 pessoas, nós ainda somos menos que 1% da população total do país, não somos?

ARTE! BRASILEIROS: Apesar da autodeclaração de hoje, né? Que é uma novidade. Os próprios Tupinambás da Bahia, de Olivença, não “existiam” até pouco tempo. 

KRENAK: É, muitos povos declarados aculturados, integrados, assimilados sem ser consultados, agora estão se autodeclarando e reivindicando suas identidades de origem. Isso é maravilhoso. E é alguma coisa também que não se imaginava, nem os antropólogos imaginavam que fossem ouvir uma numerosa população rural no país, vivendo do Recôncavo até o Maranhão, dizendo que são Tupinambá. Não é só na Bahia, não. Os Tupinambá estão na Costa Atlântica, coincidindo com os mesmos territórios em que eles viviam no século XVII. Quer dizer, aquelas pessoas que ficaram submetidas ao regime dos engenhos de cana de açúcar, depois ao Ciclo do Café, todos esses ciclos econômicos que se transmutaram em trabalhadores de várias épocas, elas estão dizendo que são Tupinambá. Ou que são Xukuru, Cariri ou Pataxó, e Pankararu, ou Potiguara. É um fenômeno que me parece que só pode acontecer num país do tamanho do Brasil e com a história de usurpação que foi a colonização do Brasil. Porque, se a gente tivesse outra perspectiva… Nos Estados Unidos não dá para alguém, numa região qualquer dos Estados Unidos, se autodeclarar indígena. Porque a história dos Estados Unidos não deixou dúvida sobre isso. Ou ela matou todo mundo ou ela… como diz? 

ARTE! BRASILEIROS: Confinou. 

KRENAK: Ou ela confinou. Ela não deixou ninguém para reclamar depois qualquer dúvida sobre a formação daquele país. Então, eu acho maravilhoso o fenômeno que vem acontecendo no nosso país desde o final da década de 90, que independe de o Brasil ser signatário daquela Convenção 169 que reconhece a autodeclaração, da OIT. As pessoas estão tomando essa decisão de livre e soberana vontade. Da mesma maneira que as pessoas podem decidir o gênero, as pessoas também resolveram decidir o pertencimento. Tem uma discussão agora sobre pardos e pretos ou negros, né? A doutora (Carla) Akotirene diz que nós deveríamos considerar, pela história da escravidão no nosso país, que as pessoas pardas e pretas deveriam todas serem reconhecidas como a população negra do Brasil. Eu concordo com quase tudo que a Akotirene fala, mas eu acho que uma boa parte das pessoas que foram registradas pelos bispos, pelos colégios, pelos cartórios no século XIX e século XX como pardos, eram na verdade indígenas. A história pode mostrar que é verdade isso, senão essa população da Costa Atlântica estaria dizendo que era de algum povo africano. 

ARTE! BRASILEIROS: É como você disse: é por livre e soberana vontade.

KRENAK: É por livre e soberana vontade que as pessoas dizem: “Eu sou Tupinambá, eu sou Potiguar, eu sou Guarani, sou Pankararu”. Você não pode chegar e falar: “Ah, não, você é pardo”. Inclusive porque o pardo é uma categoria que se inscreve em cartório. As declarações são de pessoas negras, amarelas, indígenas e pardas. Tem todas essas cartelas (no cartório). Tem todas essas variações. Então a pessoa pode chegar lá e falar assim: Sou pardo. O censo foi melhorando a pergunta nos últimos 20 anos e a resposta foi ficando mais complexa. Antes você ou era preto ou era branco. Teve um período em que nem havia possibilidade de você declarar que fosse indígena. Ou Preto, ou branco. Tem coisa mais óbvia, né? Um país formado por pretos e brancos. Sim. 

ARTE! BRASILEIROS: E, mesmo entre os indígenas, a diversidade é muito grande. São grupos muito distintos.

KRENAK: Não só no sentido de distintos como grupos étnicos, mas são distintos também do ponto da constituição mesmo. Você vai ter pessoas que são fortonas, grandões, campeões, você vai ter pessoas miudinhas. Eu me lembro que, quando teve uma discussão sobre a primeira grande invasão da terra Yanomami, a Polícia Federal fez um debate e eu, como representante do movimento indígena, estava numa mesa onde também estava o chefe da Polícia Federal, o Tuma. O velho (Romeu Tuma). As pessoas tinham medo da presença do sujeito. Aí eu estava na mesa. Mas, em compensação, também tinha juristas de relevância, como Dalmo Dallari, e outros defensores de direitos humanos na mesa. E o sujeito lá na mesa argumentando com relação aos Yanomami. Ele (Romeu Tuma) dizia: “Mas os Yanomami, eles são tão mal formados que eles conseguem viver no meio daquela floresta onde uma pessoa não consegue nem se deslocar”. Eu escutei uma conversa dessas e fiquei pensando: “É assim que eles pensam que são os indígenas. Eles acham que existe um tipo de gente que é aceitável, e tem os outros que não são nem admitidos como ser humano, que não têm uma humanidade”. E a história do Brasil é recente. Eu não estou falando de uma coisa do século 19, não; eu estou falando de coisa de ontem. De 1986. É. Quando essa gente mandava e desmandava aqui, né? Então a mudança foi muito grande, porque eu assisti a ela.

Eu vou fazer 72 anos agora. E a metade da minha vida civil foi escutando gente decidir como eram ou quem eram os indígenas. Mas, agora, as pessoas decidem se são indígenas, declaram isso e fazem valer isso. Então, houve uma mudança. Teve uma mudança grande e, no auge dessa mudança, um antropólogo chamado Eduardo Viveiros de Castro, que é um cara muito corajoso, foi acusado de estar inventando índios quando ele disse que, no Brasil, exceto quem não é, todos são índios. Ou:  “No Brasil todos são índios, exceto quem não é”. Aí virou uma polêmica, todo mundo quebrou o pau, brigaram com ele, o pior é que ele ele apanhou de todo mundo, ele apanhou dos outros colegas antropólogos, de algumas pessoas indígenas que se achavam ofendidas com essa possibilidade de autodeclaração, mas ele tava prenunciando uma coisa que passou a acontecer de fato. Aí, quando pegaram de novo o Viveiros de Castro para esclarecer aquela fala: “Como é que fica a sua afirmação de que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é?”, ele pegou e respondeu assim: “A gente podia atualizar dizendo que no Brasil só é índio quem se garante”. Eu achei genial. Porque ele tá dizendo o seguinte: quem tem a capacidade de defender a sua (identidade), é. Se ele disser que é, é. Se afirmar, né? E sustentar que é e mostrar que é, ele é mesmo. Agora ele (Viveiros) também desnudava uma coisa gravíssima na nossa história colonial: um branco não precisa provar que é branco. Não precisa.

ARTE! BRASILEIROS: Houve mudança também em relação à representatividade. A representatividade é maior hoje também, não é? Você tem o Ministério dos Povos Indígenas, você tem secretaria indígena na Cultura. 

KRENAK: Então, diante do aparelho do Estado, cresceu a representatividade indígena, assim como cresceu também a representatividade negra. Porque, antes, era exclusividade dos brancos ocupar cargos nos ministérios. E vamos dizer que, até o Lula, também era exclusividade dos brancos ocupar a chefia do governo brasileiro. Antes do Lula, você conhece alguém que não era branco? Ocupando a chefia do governo brasileiro? 

ARTE! BRASILEIROS: Mesmo os cargos fundamentais, né? Ministros, ministros da Suprema Corte. 

KRENAK: Sempre foi um lugar de branco. A gente não é África do Sul, mas a gente também tem apartheid. 

ARTE! BRASILEIROS: Tem umas imagens recentes, uma do impeachment da Dilma, outra foto do gabinete do Temer, quando ele forma o seu seu governo pós-golpe, e impressiona como todas as pessoas nas fotos são brancas.

KRENAK: É, também não dava para esperar coisa diferente do Temer. Eu só não sei porque ele não tá sendo julgado junto com esses golpistas aí. Eu não sei onde ele tava escondido no dia da depredação. Eu não sei debaixo de qual cadeira ele tava escondido. Ele tem um dedinho no golpe. Ou um pezinho no golpe, (para lembrar) o Fernando Henrique, que dizia que tinha um “pé na cozinha”. Tem uns que têm um pé na cozinha, outros que têm um pé no golpe e outros que têm o pé na tábua. São aqueles que dão linha, os fujões. 

ARTE! BRASILEIROS: Agora é irônico que o Temer tenha papel duplo no golpe, não? Porque o cara que está confrontando o aparelho do golpe é justamente uma figura que ele indicou para o STF, o Alexandre de Moraes, que foi indicado pelo Temer. 

KRENAK: É que a gente nunca sabe que vozes falam na cabeça dessas pessoas, né? Circunstancialmente, um cara pode assinar uma nomeação. Mas as vozes que falam na cabeça continuam ocultas. 

ARTE! BRASILEIROS: É. Pode ser algum tipo de idiossincrasia. Voltando aqui para a mostra: eu falei com a Daiara Tukano um dia desses, e ela diz que, para os indígenas, não existe a palavra arte.

KRENAK: Na maioria das línguas não tem. Teve uma mostra no MAR (Museu de Arte do Rio) chamada Dja Guatá Porã. Essa mostra, Dja Guatá, foi a primeira que ocupou o espaço inteiro de um museu, no Rio de Janeiro, com obras de autoria indígena. 

ARTE! BRASILEIROS: E essa Véxoa que teve aqui na Pinacoteca? 

KRENAK: Foi antes (Dja Guatá foi em 2017, Véxoa foi em 2020). Era uma ampla mostra, com ampla curadoria coletiva. A daqui, a Véxoa, teve a curadoria da Naine Terena. E a pergunta que a curadoria da Dja Guatá se colocou era: “O que é a arte?”. E a maioria das pessoas indígenas que respondeu essa pergunta dizia que no seu idioma, na sua cosmovisão, na sua visão das coisas, não existia uma palavra para designar isso que o Ocidente chama de arte. Que na verdade foi a Europa que decidiu que tem um campo do fazer que é chamado de arte. Antes da Europa decidir que tem alguma coisa que é arte, outras culturas, outros povos, não tinham ainda feito essa separação. Mas o que aconteceu é que, nessa experiência dos indígenas no Brasil, todos conseguiram buscar um sentido, uma expressão na sua própria cultura, na sua própria tradição, que dava conta de nomear essa experiência sem considerar que era um campo exclusivo da criação.

Eu fui perguntar para as pessoas mais capazes das famílias Krenak, para me instruir sobre isso, e a pessoa que me instruiu – já se encantou, não está mais viva entre nós, mas ela me disse: “Olha, é um gesto”. A mesma palavra para gesto é a palavra para isso que eles chamam de arte. E eu levei para lá essa expressão, que é Hinta. Gesto. E, sabe aquelas inscrições rupestres, essas marcas que tem nas pedras? Os antigos, os ancestrais, quando eles faziam uma incisão daquelas, quando eles faziam uma impressão daquela na pedra, eles sabiam que aquilo ia durar. Então eles chamavam aquele ato, aquela coisa, de “gesto”, que, com o tempo, pode ser chamado de arte, porque coincide com o que a arte faz. Uma tela, um desenho, uma escultura. Então, quem sabe, nas outras culturas, a aproximação com a ideia de arte tenha passado pela mesma viagem. De repente, nem os gregos chamavam de arte as primeiras expressões do que veio a ser a arte grega. Eles nomearam aquilo no caminho. Será que tudo que existe não é nomeado no caminho? Ou será que as coisas precisam de um pressuposto antes para depois existir. Não é? Só na tradição , digamos assim, que a Bíblia transmite, é que alguma coisa surge de um anúncio, né? “Fez-se luz”, aí criou o mundo e tal. Uma palavra criou, uma palavra criadora. Parece que a arte não é isso. A arte é no caminho, é no percurso.

Ailton Krenak a caminho da aldeia Ashaninka, no Acre, 1995 Foto: Hiromi Nagakura

ARTE! BRASILEIROS: E, nesse momento, essas expressões indígenas ocupam, de uns tempos para cá, os espaços convencionais. Você, por exemplo, estava naquela exposição do Jaider Esbell, no MAM de São Paulo. 

KRENAK: Sim. Era um coletivo. Chamava Moquém. 

ARTE! BRASILEIROS: E ele (Jaider Esbell) estava também lá na Bienal como co-curador. Conheci ele lá. 

KRENAK: Uma pessoa impressionante, que marca. Quem teve algum momento de encontro com Jaider, não esquece. Um cometa, né? E eu fico sempre pensando sobre como pessoas com essa intensidade de vida duram pouco. O Torquato, por exemplo. Torquato Neto. A gente podia fazer uma lista grande. São pessoas que vivem com tal intensidade que duram pouco. Até a cabeça dele, né? Ele quando conversava parecia que ele estava… Com 300 coisas para falar ao mesmo tempo. A impressão que dava era essa. Eu era uma geração adiante da turma dele e, quando ele apareceu para mim, eu fiquei pensando: “Caramba!”. Ele não gostava desse papo de movimento indígena. Achava isso uma coisa sem sentido, a ideia de movimento indígena. Então, ele atuava num espaço tão ativo que ele não precisava ficar dando nome para as coisas que estava fazendo.

Muito provavelmente, se perguntasse para o Jaider: o que é isso que você está fazendo, é arte? Ele ia desbaratinar dizendo que o que ele estava fazendo era uma rede, um balaio, um qualquer coisa. Porque ele não ia nessa história de repetir as mesmas categorias que já estavam aí disponíveis. Me impressionou muito e eu pensava assim: essa geração dele vai transtornar o ambiente em que as pessoas são chamadas genericamente de “os índios”, ou que os índios fazem artesanato ou esses papos atrasados todos; eles vão implodir com essa cápsula. E eles conseguiram mesmo fazer isso. Se eu tiver ajudado em algum sentido, isso só me anima mais ainda, porque eu me identifico muito com a geração deles. Você mencionou a Daiara, e a Daiara Tukano puxa uma lista de mulheres, jovens mulheres indígenas que fazem intervenção nisso que é galeria, museu.

ARTE! BRASILEIROS: Como Glicéria Tupinambá.

KRENAK: É. Imagina o manto Tupinambá, se ele era alguma coisa cogitada no século XX? De jeito nenhum. Ele é uma invenção dessa geração de gente como Daiara, Denilson Baniwa, que é genial, o Gustavo Caboco, a Naine Terena, que a gente já mencionou. Olinda Tupinambá, que é genial, da nova geração também. Tem uma mulher pataxó que tem uma capacidade de se expressar em diferentes materiais, em desenho, escultura e arte, na sua observação do mundo. Arissana Pataxó. Viva Arissana. Maravilhosa. Os trabalhos dela não são, não tem uma singularidade? O jeito dela lidar com a forma, com a representação das coisas, é muito próprio dela, né? E admiro muito o jeito dela atuar também, né? É muito discreta. Quando ela tá no campo da criação, ela surpreende a gente, mas quando ela não tá intervindo, ela tá cuidando da sua própria experiência de vida.

O que tem em comum nessa geração? Eu acho que todos eles descobriram que podem ser o que quiserem. Isso que é maravilhoso. Eles saíram do confinamento colonial que tinha sido estabelecido para “índio”. Esse genérico índio, ele tinha que ficar num determinado lugar. Ele tinha que usar tanga, arco e flecha. Tinha que fazer uma imitação ideal do que o pensamento branco colonial designou para ele. Ele tinha que fazer coisas espetaculares, tipo ficar deitado numa praia, esticando um arco e jogando uma flecha para o céu. Ele tinha que acertar um pássaro em pleno voo. Ele tinha que pegar um peixe com a mão. Ele tinha que virar onça. Ele podia mergulhar, sumir e aparecer jiboia em algum outro lugar. Quer dizer, ele só não podia ser humano.

A geração dessa turma que eu listei agora, eles descobriram que podem ser humanos e podem ser o que quiserem. Inclusive, voar. Ou mergulhar, ou também virar onça e tudo, mas agora sem ser caricatura. Sem ser um simulacro, sem ser o que o Gonçalves Dias queria, sem ser o que o outro lá, o José de Alencar, queria. Aliás, quando me convidaram para fazer uma releituras de O Guarani, a ópera, eu olhei também assim e falei: “Mas tão falando comigo”? Porque historicamente, ou recorrentemente, quem era chamado para isso eram os figurões manjados da dramaturgia, da cena, da arte e tudo. Convidar um indígena fora desse circuito todo para fazer uma releitura da ópera O Guarany, é uma provocação. Eu pensei: “E eles estão querendo me convocar para uma provocação. Será que eu vou encarar essa?” E aí eu fui. Fui em boa companhia. Eu fui com o Denilson Baniwa. Eu fui com os Guarani do Jaraguá. Com o Coral Guarani. E ainda tive a assistência, a generosidade da Cibele Forjaz, que é de lá da turma do Zé Celso (Martinez Corrêa), para fazer direção de palco, aquela coisa toda, né? E o pessoal que fez dramaturgia, todo mundo muito experimentado. Mas a gente decidiu que a gente ia virar a história de cabeça para baixo.

A gente estreou a ópera O Guarany no Teatro Municipal lotado e não parou de lotar até a última apresentação. Os jornais, nervosos, diziam que a elite paulista tinha contratado um identitarista, eu, para destruir Carlos Gomes. Eu pensei: “Caramba, destruir Carlos Gomes não deve ser brincadeira, hein?”. Aí a gente fez a primeira leitura, foi um sucesso imenso. Dois anos depois, a gente montou de novo, o Teatro Municipal me chamou para fazer a remontagem daquela leitura do Guarani. A gente não mexeu muito mais do que naquela primeira versão lá. A gente só aperfeiçoou alguns recursos que a gente queria botar em cena e tem um maestro Livio Tragtenberg, o Livio chegou pra mim e disse: “Você está certo. Você pode pôr a musicalidade indígena se sobrepondo aquela eloquência da ópera que o público, a audiência vai entender o que você está fazendo. Pode ir nessa”. Eu falei: “Mas tem muita gente achando que eu estou insultando a ópera”. A ópera do Theatro Municipal, a orquestra que está executando o libreto, que eu estou insultando eles quando eu ponho no palco uma orquestra Guarani. Eles dizem que não existe uma orquestra Guarani, eu disse ao Lívio. O Lívio afirmou: “Não, você pode dizer que existe, sim, porque eu estudei como os Guarani nas missões produziram a música daquela época, das missões, e como eles continuaram depois que foi desbaratinada as missões jesuíticas a aperfeiçoar a sonoridade deles, do povo Guarani, e que a sonoridade Guarani é muito complexa. Ela tem duração e ela tem a potência de conquistar aquele ambiente da ópera numa boa”. Aí a gente anunciou no programa que ia botar em cena uma orquestra Guarani. Teve um monte de gente que ficou irritada para caramba dizendo: “Mas que é isso? Não existe uma orquestra Guarani. Tem um coro Guarani, mas uma orquestra não”. A gente bancou, botou orquestra lá. Sucesso de novo. Imenso.

Então, eu acho que quando a gente fala de arte indígena, a gente não deveria pensar só nas artes plásticas. A gente deveria pensar nas intervenções que os indígenas têm feito naquilo que amplamente é chamado de arte, na música, no teatro, em qualquer coisa, no cinema também. Tem uma geração na faixa de idade da Daiara (Tukano) ou do Denilson (Baniwa) ou da Zahy Tentehar, ou da Kerexu, que está fazendo filmes. A Txai Suruí ganhou todos os prêmios aí com o filme que celebra a terra, Minha Terra Estrangeira, dirigido pelo João Moreira Salles.  Então eu estou fazendo um brainstorm, eu tô fazendo uma tempestade, puxando várias fichas, mas o que eu tô querendo dizer é: cinema, teatro, as artes dramáticas, a pintura, o desenho, as galerias de arte, os museus, as bienais, em todas elas você vai encontrar pessoas indígenas fazendo intervenção. É como se no século XXI tivesse destampado mesmo o campo da criação artística aberta para os indígenas, e eu acho que vai ser cada vez mais. Tem um coletivo indígena chamado Maku, o coletivo Maku, que foi criado pelo Ibã Huni Kuin Kaxinauá, que tem obras agora nas galerias, nos museus, na Fundação Cartier-Bresson lá na França, que comprou a obra obras deles, o que fez com que outras galerias e os outros museus se obrigassem também a ter obras deles. 

ARTE! BRASILEIROS: Assim como as obras do Jaider estão lá no Beaubourg. 

KRENAK: É, inaugurou uma obra dele aqui também no Masp. Eu não sei por que o Masp demorou tanto, já que ele é um artista daqui. Enquanto ele não foi lá para esse Beaubourg, quando eles compraram a obra dele, a partir daí virou uma coisa. Você entendeu? Parece que uma Bolsa de Valores de algum lugar do mundo fora daqui tem que dizer que alguma coisa vale para os daqui olharem e falarem: “Ah, é mesmo, vale”.

ARTE! BRASILEIROS: A sua frase “O índio vai ser aquilo que ele quiser” se aplica muito a você mesmo. Agora mesmo, você esteve no Carnaval Paulistano. E também está na Academia Brasileira de Letras (ABL). E também compôs um samba com o Diogo Nogueira, ou eu estou enganado? 

KRENAK: Olha, na verdade, o Diogo me convidou. Eu tinha a referência do pai dele, né? Do João Nogueira. 

ARTE! BRASILEIROS: Você o conheceu? 

KRENAK: O João propriamente não, mas a obra dele sim. Todo mundo ouviu, é conhecida, é igual à do Tom Jobim e tudo. Você fala: “Você conheceu o Tom Jobim?”. Não precisa ter conhecido a pessoa. A gente sabe a obra dele. Então, o João Nogueira, para mim, tem essa obra com essa expressão toda. Quando o filho dele falou comigo: “Ah, Krenak, eu queria te mandar a letra de uma música para você completar uma frase e tal, e queria te convidar para você vir para o estúdio fazer a música ali comigo”. Eu fiquei tão admirado desse convite, mas falei: “Eu não sou músico”. Mas, de novo, uma pessoa indígena conquistou o direito de ser o que ela quiser. Eu decidi: “Vou para o estúdio”. E ficou aquela coisa bonita para caramba. Eu fiquei comovido com a música. Ele não me atribuiu nenhuma tarefa de ir lá fazer tocar atabaque, nem flauta, nem nada. Simplesmente ele falou assim: “Põe a poesia que você traz aqui”. E ficou aquele diálogo respeitoso, gentil, colaborativo. Assim como o Gil também e o Emicida fizeram. Botaram a história do Tamanduá na na música do Emicida, no álbum dele Amarelo, aquele do “viver é partir, voltar e repartir”. A frase da música introduz uma história sobre o Tamanduá, que é uma história Krenak, que eu narro e o Gil conta essa história, dizendo: “E aí avô, o que você achou da gente?”. Aí ele responde: “Mais ou menos”. E tal. É frase de uma história chamada Kuán e Os Meninos Sabidos, que é de um livro que eu botei no formato de história para crianças e que tá por aí. Então essa coisa de poder escrever, publicar, distribuir, contar história, fazer filme, fazer teatro, eu acho que ela se abriu como uma possibilidade para todas as pessoas indígenas daqui para frente. 

Cotidiano de trabalho na década de 1980: a máquina de escrever e o fax eram as ferramentas de comunicação, além das fitas cassete. Foto: Acervo Angela Pappiani

ARTE! BRASILEIROS: Você tem quantos livros publicados? Você sabe? 

KRENAK: Olha, alguém já disse que eu tenho 20 títulos. Alguns são assinados junto com outros autores. Livro de autoria eu tenho Idéias para Adiar o Fim do Mundo, A Vida não é Útil, O Futuro é Ancestral. Tem esse Kuján e os meninos sabidos. Tem outras histórias que saíram por aí ao longo desses anos todos. O Lugar onde a Terra descansa. Ah, tem o Encontros, que saiu pela editora Azougue. 

ARTE! BRASILEIROS: Tem também muitos no exterior, né? 

KRENAK: É que os meus livros foram traduzidos. Eu tenho títulos traduzidos em 20 línguas. Não são 20 países, são 20 línguas. Quando você publica em espanhol, todo mundo na América Latina lê. Todos os países espanhóis. São dezenas de países hispânicos. Quando você publica em inglês, na Inglaterra, você é lido pelas colônias dele todas. Mas curiosamente meus textos aqui no Brasil pela Companhia das Letras foram comprados para tradução americana dos Estados Unidos, e pelo inglês da Inglaterra. Eu achei ótimo, porque eu pude vender duas vezes o mesmo livro. Eu vendi ele para uma tradução nos Estados Unidos e para uma tradução inglesa no Reino Unido. O do Reino Unido eu sei que ele tá sendo lido na Índia, lido em tudo quanto é lugar que fala inglês. Então, eu não imaginava, eu não imaginava de jeito nenhum que eu fosse ser um autor lido fora do Brasil. Do ponto de vista assim, de autoria. Eu podia ser lido num texto, num artigo, numa reportagem, numa matéria, mas um texto de autoria, difundindo um pensamento que pode ser percebido como uma autoria de um filósofo indígena… Eu comecei a ser chamado de filósofo depois que eu publiquei Ideias Para Adiar o Fim do Mundo (2019).

ARTE! BRASILEIROS: Me disseram que seu método de escrever tem a ver com o seu próprio método de contar histórias. 

KRENAK: Isso. É como agora. Isso que nós estamos fazendo aqui é o modo de fazer escrita. Eu conto para você uma história, a gente vai transcrever esse texto, alguém vai trabalhar na edição dele e ele vai sair num formato livro. Eu acho que essa experiência é contemporânea, ela tem tudo a ver com esse tempo, com as tecnologias e com as facilidades que a gente tem hoje para publicar. 

ARTE! BRASILEIROS: É quase como a escrita automática lá dos os beatniks lá dos anos 1950.

KRENAK: Provavelmente eu tenha percorrido esse mesmo percurso, mas de outra maneira. 

ARTE! BRASILEIROS: O que chama a atenção na sua Ocupação é a quantidade de telas suas que estão expostas aqui, um aspecto que é menos conhecido de sua produção. 

KRENAK: Eu acho interessante que é o seguinte: (a ocupação) é uma instalação pré-definida em termos de dimensão. Se você inventar de botar 300 obras aqui, é lógico que não cabe. Então, aquele espaço pré-define de certa maneira os circuitos que um acervo pode percorrer. Mas aqui tem uma curadoria tão genial, uma turma tão especializada, tão escolada nisso, que conseguem fazer tudo com o mesmo tamanho, o mesmo espaço. 

ARTE! BRASILEIROS: Na Pinacoteca tinha dois trabalhos grandes seus que estão ali na Ocupação. Mas há outros de colecionadores.

KRENAK: São pessoas para quem doei trabalhos. Eu nunca vendi nada. Nem uma tela. Sempre doei. Mas eu não sabia onde estavam. Um presente que eu ganhei com essa ocupação é que eles localizaram a maior parte dos meus trabalhos que estavam espalhados, localizaram e me deram um catálogo. A Ocupação Krenak está me proporcionando um catálogo das minhas obras. Agora elas têm endereço, cronologia.

ARTE! BRASILEIROS: O que significa esse trabalho de pintura para você na sua produção?

KRENAK: Isso tem a ver com a ideia das nossas diversas culturas indígenas. Nenhuma cultura indígena, nenhuma, eu posso te afirmar, guarda coisas. Coisas não são para ser guardadas. As coisas são para rodar. Circular o mundo. E a ideia de guardar uma coisa, ela tá confrontada com o entendimento de que tudo é efêmero. Arquitetura indígena é efêmera. Você não faz uma casa para durar sua vida inteira. Ao longo da sua vida, você vai fazer e desfazer várias casas. Fazer, desfazer, fazer e desfazer. Essa ideia de uma estrutura de casa que dura por gerações, isso é uma coisa tipicamente europeia. Por isso que eles fazem casas de pedra. Talvez seja por isso que a ideia de arte não coincide muito com o pensamento com a ideia indígena. Porque arte tem a ver com comércio. Não tem a ver com a permanência. Você faz uma coisa dessas para ela continuar existindo, com perenidade. E ao longo do tempo isso foi se transformando numa coisa de patrimônio. Ganhou esse atributo, de ser um patrimônio. A cultura indígena não se encaixa nessas coisas, não se encaixa no pensamento patrimonialista. Nem na cultura, nem na cultura material, nem na cultura chamada simbólica. Não tem essa pauta, não. Você não vai guardar nada. Aí a gente volta de novo à Carta do Grande Chefe, quando o general lá dos militares norte-americanos diziam para o Chefe Seattle: “A gente veio comprar a sua terra”. Você sabe que o desfecho daquela história foi trágico, não é? Eles disseram que não vendiam, os caras invadiram e mataram eles. Que é como os Estados Unidos fazem em qualquer lugar do mundo. Eles chegam e falam: “Quero te comprar”. Você fala: “Eu não tô à venda”. 

ARTE! BRASILEIROS: É o que estão fazendo agora em Gaza. Ou na Venezuela. E no Brasil também. 

KRENAK: Quero te comprar. “Eu não tô à venda”. Então, vou te matar. Então, esse podia ser o mantra deles, né? Ah, voltando àquele mesmo lugar, ao chefe Seattle, não tinha sentido aquela proposta de comprar a terra. Para o pensamento indígena, ampliando a expressão, (também) não tem sentido preservar essas coisas que você cria. Seja uma casa, um arco, uma flecha. Quando termina uma festa, por exemplo, com o Kuarup, todos aqueles adornos, tudo aquilo é descartado, é transformado em outra coisa, é trocado, é doado, mas não é guardado. Ninguém vai guardar o cocar do ano passado para usar no ano que vem. Tem até uma outra coisa muito curiosa: eu desfilei pela primeira vez numa escola de samba esse ano e eu aprendi uma coisa: eles também desmancham aquilo tudo e fazem outra coisa no ano que vem. É reutilizado. 

ARTE! BRASILEIROS: Você curtiu a experiência do Carnaval, não? 

KRENAK: Olha, para mim foi uma experiência, assim, arrebatadora. Eu fiquei muito, muito, muito comovido com tudo. Mas isso não quer dizer que eu virei um carnavalesco. Tem gente que acha que agora, ah, descobri o Carnaval. Não, não é isso. Eu não descobri o Carnaval, assim como o Cabral não descobriu o Brasil.

ARTE! BRASILEIROS: Você tá em vias de publicar alguma coisa nova, Ailton? 

KRENAK: Você está vendo como é? A gente tem sempre uma expectativa de alguma coisa nova. É nova em termos. A gente podia dizer que não tem nada mais novo do que a vida. Nada mais novo do que todo dia começar de novo. Eu estou sim com um trabalho que reúne textos inéditos que a minha editora, que agora tem sido a editora que me publica, a Companhia das Letras, vai publicar para o ano que vem. 

ARTE! BRASILEIROS: Tem a ver com esse momento brasileiro?

KRENAK: Não, ele não é sobre esse momento, não é uma obra refletindo sobre a política, a realidade, digamos, regional, nossa, do Brasil ou da América Latina. Ele tem a ver, sim, com filosofia e eu acho que esse inédito vai ampliar algumas ideias que trabalho nos meus três livros, questões que se puseram para o leitor. Esse inédito também tem a função de sair daquele formato de “gibi”, daquele formato dos meus livrinhos. Dos quais todo mundo gosta; “ó o livrinho do Ailton e tal”. Eu acho que (o formato) foi uma coincidência do tempo, a gente tava saindo da pandemia, um período ainda meio assim, meio tímido da vida livreira. O mercado de livros tinha muitas editoras, muitas livrarias fechando, essa coisa toda. E, de  repente a gente tinha um livrinho que não era difícil de comprar, porque é barato, provocando uma uma reflexão sobre o medo que a gente passou na pandemia e a crise que a gente estava imbricado nela, que é esse fim de mundo, mísseis apontados para todo lado, isso tudo que está acontecendo. De uma hora para outra, nós viramos uma espécie assim de Guerra nas Estrelas de novo, com ameaças de se atravessar os continentes, bombardear. Não é brincadeira o que tá rolando agora. 

ARTE! BRASILEIROS: Essa coisa dos Estados Unidos fazendo manobras na Venezuela.

KRENAK: Aqui na nossa beirada aqui e também na Rússia, na China, na Índia. Eles todos, e o Brasil também, se sentindo bolinado pelo Trump, a irritação que está no ambiente. A gente não está muito longe daquele relógio do fim do mundo, né? Aquela imagem do relógio do fim do mundo, de que a gente estava assim a alguns minutos do fim do mundo e o ponteirinho deu mais uns pulos para a frente agora, e está bem encostando. Desde o Ronald Reagan que a gente não escutava coisas como “estamos prontos para um confronto global”, que foi o que o Putin falou. E os outros também, repetindo o mesmo refrão, parece que nós estamos num concurso de quem tem o míssil mais grande. O Ziraldo ia fazer uma boa piada com ele. Um bom cartum. Mostra o seu míssil que eu mostro o meu! Os grandes homens do mundo estão querendo medir quem tem o míssil mais comprido. Então é uma desgraça. Ao invés da gente “aprender a pisar suavemente na terra”, os caras estão tentando descobrir como roubar sem largar rastro. Eles não entenderam nada. E essa entrevista nossa já ficou parecendo aquelas entrevistas do Pasquim (risos).