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Um país em chamas

Congresso em Brasília
Foto: Pedro B. Camargo - Wikimedia Commons

Por Tales Ab’Sáber* para a Revista Brasileiros n˚113

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podíamos esperar – se é que podíamos – para nosso País em 2017.

A desmontagem em uma crise política radical, uma disputa pelo poder alucinada e alucinatória – típica da nossa longa tradição do radical transe social político – de nosso pacto civilizatório mínimo ocorrida nos últimos dois anos, colocou o Brasil em um espaço político simbólico de grande indefinição, ao mesmo tempo que evidentemente malévolo. Todos os dias convivemos com o efeito produtor de impotências, dor e confusão, na vida de todos que nos cercam, um efeito massivo de afetos tristes e de choque que tanto emana da má realização política de um impeachment artificial e falsificado, baseado em genéricas e odiosas visões do inferno de um anticomunismo desqualificado e irrealista, quanto da efetiva e real crise econômica aprofundada ao máximo por este próprio movimento irresponsável do novo poder brasileiro. O mal vem do real, vem da alucinação, vem do ressentimento, vem da desmontagem do processo histórico ordenado, e vem do descompromisso e desinteligência mais geral do novo poder. Estamos todos bastante doentes de Brasil, e precisamos de cuidados coletivos e humanos que nos permitam sonhar e trabalhar novamente pelo melhor.

Preparam-se os ataques frontais à Constituição, a liberalização mais geral do mercado de trabalho, o fim de garantias trabalhistas e a redução maciça de qualquer ordem de cuidado e investimento social, do trabalho, da busca de um Estado de bem-estar entre nós. Fica claro o caráter sádico e antissocial do movimento geral da direita que tomou de assalto o poder contra uma eleição legítima no Brasil, o modo mais simples e direto de valorização de uma massa de capital paralisada e improdutiva: cortes profundos no mundo da renda do trabalho, tanto direta quanto indiretamente. Nossa direita, concentrada no comitê financeiro que determina as ações do patético governo arcaico de Michel Temer, é tradicional e simplista. Diante do seu impasse em reproduzir os seus valores na ordem de crise mundial do capital, ela liquida os pactos sociais, dissolve os controles e direitos públicos que transmitem renda social ao todo da nação, e aos pobres, e libera a renda nacional para a sua apropriação direta. Mas, certamente, tal processo não se dará sem confrontações, o mínimo que uma mínima democracia pode realizar para poder carregar este nome, no espaço público que reage como pode ao ataque geral à vida, e na luta intestina de uma elite antissocial e desorgânica pela posse do próprio butim político econômico que conseguiu extorquir.

O que nos resta, e não se trata de um resto, mas de algo que importa em si mesmo, é aumentar o valor do vínculo humano, da política crítica do dia a dia, da aproximação estético-afetiva dos grupos de resistência e diferença, da política do desejo entre aqueles que não desejam a diferenciação social radical a favor do poder que a nossa direita canhestra busca produzir. Na crise geral da renda na vida social, crise da reprodução do próprio sistema de valores e imagens da mercadoria entre nós, temos um segundo de paz e liberdade, em meio à guerra social forte projetada pelo novo poder, para nos olharmos, encontrarmos, conhecermos, conversarmos e amarmos, por fora da máquina infernal do consumo, a linha de transmissão do desejo de tudo aquilo que nos torna indignos de nós mesmos.

* Tales Ab’Sáber é psicanalista e professor de Filosofia da Psicanálise da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Combater a corrupção até o fim

Renato_Janine_Ribeiro_em_2015 - foto de Valter Campanato/Agência Brasil
FOTO: Valter Campanato/Agência Brasil

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podíamos esperar – se é que podíamos – para nosso País em 2017.

O melhor que pode acontecer para o Brasil e para a esquerda, hoje, é aprofundar o combate à corrupção. Foi a manipulação desse tema que derrubou o governo constitucional do PT: investigações concentradas em seus governos, uma campanha implacável da mídia, a atuação dos operadores do Direito. Daí a aversão de muitos petistas às campanhas contra a corrupção. Tudo indica que o primeiro ato acabou, mas a peça continua. Dirigentes do partido que herdou o governo, o PMDB, são o novo alvo das investigações, dos protestos. O divisor de águas será o momento em que também o partido promotor do impeachment, o PSDB, entrar na linha de fogo. Aí poderemos separar o joio do trigo. Em todos os partidos, é mais que provável que tenha havido ou haja corruptos – assim como gente honesta.

A corrupção não é a maior questão do País. A miséria foi, no século XX, o flagelo nacional, como no XIX foi a escravatura. A abolição em 1888 foi solução superficial. Os escravos não ganharam terras ou indenização. Quando se discutia indenização, se pensava nos senhores, porque perderam propriedade, não nos cativos, que tinham sido privados de seu direito à liberdade. As iniciativas de inclusão social em larga escala, que chegaram ao apogeu nos governos Lula e Dilma, foram mais abrangentes porque retiraram multidões da miséria e procuraram fazer isso de forma consolidada. Não se completaram, porque o problema é enorme. Cinco séculos de exclusão não se resolvem da noite para o dia. E essa é a questão.

Mas o tema que emplacou foi a corrupção. E nenhum petista deveria reclamar. Afinal, o partido passou pelo menos 20 anos, da fundação à Presidência, acusando de corruptos os governos que tivemos. Ligava dois temas éticos, o combate à corrupção e à miséria. No poder, fez muito por ambos. Deu autonomia à polícia, à procuradoria, aos sistemas de controle. Criou programas premiados de inclusão social. Mas parou de falar em ética. Em vez de pregar, fez. Mérito seu, das palavras para os atos, mas palavras são necessárias para criar nova consciência. Calando-as, deixou o espaço da ética livre para a pregação da direita, que jamais colocou como flagelo do País a miséria: pôs, em seu lugar, a corrupção – acrescentando que nunca antes, na história do Brasil, tinha sido tão grande. Mentira? Sim, mas pegou.

E a corrupção é, sim, um problema. Menor que a miséria, mas também péssimo. Os dois fazem, da moral, uma farsa. A corrupção responde por boa parte do fracasso do poder público. Quando o cargo público é privatizado em suas vantagens, a república falha. Nossa república é débil porque em vez do bem comum provê bens privados. Temos inúmeras formas de privatização na sociedade. Costumo falar da privatização do diploma: aluno de universidade pública, boa, que usa a educação que lhe foi custeada pela sociedade só para ganhar dinheiro. Poucos, na esquerda tradicional, percebem ou denunciam essa privatização perversa. E há as formas óbvias de corrupção. Fazem um mal danado não só objetivo, para os cofres públicos, mas subjetivo, porque retiram a fé na vida em comum, desmoralizam a política e afastam dela pessoas talentosas e decentes. O que fazer, então, especialmente para a esquerda, deveria ser evidente. Exigir que o combate à corrupção não seja mero instrumento para desmoralizar e deslegitimar partido – qualquer que seja. Exigir que toda corrupção seja desmascarada e condenada. Cobrar que os partidos menos contemplados pelas investigações também prestem contas. Isso não resolverá os problemas. Se conseguirmos limpar a desonestidade dos agentes do Estado, eleitos ou nomeados, faltará adotar políticas públicas que promovam o crescimento econômico, a fim de completar a inclusão social (e não de revertê-la) com respeito à natureza e aos humanos. Será um passo importante e está na hora de dar. Lutemos para uma apuração até o fim, com respeito aos direitos humanos e com a meta de fazer do Brasil uma república, um país em que o valor maior seja a coisa pública, o bem comum.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular da USP, na disciplina de Ética e Filosofia Política, e professor honorário do Instituto de Estudos Avançados, da USP. Recebeu o Prêmio Jabuti em 2001 por A Sociedade contra o Social (Cia das Letras). Foi ministro da Educação entre abril e setembro de 2015

As perspectivas para um Brasil pós-golpe

Eugênio José Guilherme de Aragão
Eugênio José Guilherme de Aragão foi ministro da Justiça durante o governo de Dilma Rousseff (PT) - FOTO: Divulgação Palácio do Planalto

Por Eugênio Aragão* para a Revista Brasileiros n˚113

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podíamos esperar – se é que podíamos – para nosso País em 2017.

O mar não está para peixe. Vê-se, a olho nu, o Brasil derretendo. O golpe nos projetou num limbo institucional que ignorávamos existir. À beira da realidade de um Estado falido, assistimos ao Ministério Público insolente desafiar a representação popular. E o faz com uso de seus podres poderes de intimidação, prática que só conhecíamos do “lobby da bala”, das entidades representativas das polícias. E isso só é possível porque o Congresso Nacional atravessa sua maior crise ética da história, com bancadas insignificantes, ultraconservadoras em sua maioria, pulverizadas por quase três dezenas de partidos que não dizem quais são seus programas, seus ideais, seus escopos e nem sequer têm militância espontânea (coisa diversa de militância paga). Afinal, algumas centenas de parlamentares com contas a acertar com a Justiça facilitam a ousadia do órgão de persecução penal. E o discurso falso moralista, que reduz os problemas do Brasil ao campo da corrupção, conseguiu conquistar massas de corações e mentes providas de um par de neurônios apenas.

O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião maior da Constituição, perdeu todas as oportunidades para defender o poder legítimo e colocar freios ao oportunismo político dos perdedores das eleições de 2014 e ao corporativismo abusado de algumas carreiras de Estado. Enquanto o País vivia uma de suas maiores crises políticas e éticas com o afastamento trapaceado da presidenta da República, o excelso sodalício decidia se consumidores poderiam entrar com sua própria pipoca nos cinemas ou se eram obrigados a comprá-la ali… Chega a ser um quadro surreal.

Paralelamente, a economia desfalece. A agressividade da Operação Lava Jato sobre grandes ativos empresariais dizimou perto de 30% do Produto Interno Bruto e levou consigo milhares de empregos. O esmagamento da produção petrolífera com conteúdo nacional levou ao colapso não só as indústrias de equipamentos, mas também estados da federação que deixaram de recolher impostos e auferir royalties. O estado do Rio de Janeiro é o mais concreto exemplo do estrago causado por falta de estratégia persecutória e econômica.

Nesse ambiente, o mercado encolhe e o apetite empresarial entra em regime de jejum. Investimentos deixam de ser feitos e desaparecem as perspectivas para um projeto soberano de desenvolvimento nacional.

A conjuntura política e econômica é propícia para aventuras e aventureiros, sejam eles parasitários, sejam populistas fascistas. Só estes nada têm a perder. Uns podem contar com a benevolência de rentistas e patrões ao norte do globo terrestre; outros se aproveitam do desânimo e das fobias coletivas para oferecer saídas fáceis e sem qualquer apego à realidade, para iludir as massas com falso sentimento de serem um povo unido, submisso a uma “nova ordem” que substitua a antiga, apodrecida com a corrupção e com o “comunismo” perverso.

É nesse contexto que se descortina 2017. O que esperar dele? Mais do mesmo, se as instituições não tomarem coragem de reinventar sua prática. Os desafios são enormes para o Judiciário e para o Legislativo. O Executivo, coitado, de protagonista de um projeto de democracia inclusiva, passou a ser reboque da história, sem qualquer autonomia para realizar políticas públicas, para governar. O golpe desfigurou o sistema constitucional presidencialista e o transformou num parlamentarismo de matilha, comparável à dinâmica duma massa de caninos famintos farejando por restos aqui e acolá, num aterro sanitário.

O que esperar do Judiciário? Difícil dizer. Um personagem emerge com poderes desproporcionais: o sr. ministro Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e da 2ª turma do STF. Nessa dupla condição, é ele que pauta os processos nos órgãos jurisdicionais em que funciona. E, só por isso, é o homem mais poderoso da putrefeita república. Dele dependem os destinos do sr. Michel Temer e dos principais atores do Legislativo. No TSE, pautar ou não pautar as ações do PSDB contra a chapa de Dilma nas eleições de 2014 pode significar vida ou morte do governo nascido do golpe parlamentar; na 2ª turma do STF, pautar feitos da Lava Jato num dia de quorum completo ou quorum incompleto pode significar rejeição ou admissão de denúncias, concessão ou denegação de habeas corpus e, até mesmo, condenação ou absolvição de réus. Quem mais pode tanto? Não é de estranhar, pois, que o presidente do Senado, senador Renan Calheiros, arquivou de plano pedidos de impedimento manejados naquela casa legislativa contra Gilmar. Afinal de contas, depende dele se Renan será ou não condenado e quando o será…

Na Procuradoria-Geral da República o corporativismo venceu a esperança, quando o sr. Rodrigo Janot resolveu se assumir como mais um dos muitos justiceiros que pululam no Ministério Público Federal. Saiu do armário. Afinal, com o golpe, os tempos são mais propícios para o perfil de moralista-punitivista. Dá mais sustentação do que ser crítico do nosso falido sistema de Justiça. Remar a favor da maré e fingir que a crise é problema dos outros torna a vida mais confortável. Por isso, a escolha de José Bonifácio como seu vice (independentemente de se tratar de pessoa competente e correta em sua atuação) já foi prenúncio dos novos tempos de maior clareza política: Bonifácio foi procurador-geral do estado de Minas Gerais no governo de Aécio Neves e sucedeu, no governo FHC, Gilmar Mendes na AGU. Não tem como alguém ser mais próximo do tucanato de alta plumagem. A Operação Lava Jato, que Janot se recusou a civilizar por medo de desgaste com a mídia golpista e com seu entourage de justiceiros, poderá finalmente fechar seu movimento fortíssimo e entrar no pianíssimo, deixando de lado seu ativismo de oposição. Afinal, já fez o servicinho que se esperava dela, que era inviabilizar o governo da presidenta legitimamente eleita. Agora que pode vir a se aproximar demais de personagens do outro lado do rio, é melhor botar esses meninos para estudar no exterior ou se mudarem para capitais mais atrativas.

Judiciário e Ministério Público Federal estão, por conseguinte, na área de influência do PSDB. O fato de Rodrigo Janot ter jantado há anos com José Genoino não muda em nada essa constatação.

As perspectivas são, nessa constelação de condições, muito propícias para um redimensionamento da importância dos perdedores da última eleição presidencial no governo do País, com franco apoio do complexo judicial em sua cúpula. Para Temer, não sobrará muito a não ser se inclinar a essa realidade e se transformar em marionete da direita que milita por um projeto de desnacionalização política e econômica do Brasil. Para quem odiava ser vice decorativo e sonhava tanto em ser presidente, ter sua jovem esposa como primeira-dama apresentável nos salões da República, ocupar seus dias penteando a vaidade, este é um mal menor. O PMDB nunca teve convicção de nada a não ser de se servir das facilidades que o poder proporciona, independentemente de quem puxa os fios. Ser presidente decorativo da matilha fuçadora nem é tão ruim assim. O Palácio da Alvorada tem seus encantos.

Mas se houver um problema de sustentabilidade do governo Temer, a guilhotina está pronta para lhe cortar o pescoço no TSE. O timing está na mão do clemente verdugo, presidente da corte. E, em saindo Temer, os mestres em conchavos conspirativos do PSDB saberão fazer o sucessor em eleições indiretas. Ficará todo mundo feliz nesse parlamentarismo de matilha, pois até o atual PGR poderá fazer de Bonifácio seu sucessor, garantindo dias mais tranquilos para a governabilidade do presidente biônico.

No Congresso, espera-se a substituição dos presidentes da Câmara e do Senado, provavelmente tucanos ou filotucanos. É como se vivêssemos num mundo paralelo, nada fácil e que demanda muito Sonrisal para suportar. Mas o rebuliço não se fará esperar. Quando aparecer a extensão do envolvimento de parlamentares com o esquema de propinas desnudado pela Lava Jato, muitos terão que se despedir do mandato. Talvez seja até mesmo o caso de se cogitar de novas eleições, pois esse Congresso não terá legitimidade de ser parceiro do governo falido ou da escolha de um chefe de governo biônico.

Por fim, o povo. Ah, o povo… nesses tempos anda tão esquecido, a não ser quando o MBL se arroga qualidade de “povo”, com a bateção de panelas Le Creuset nas varandas gourmet da Asa Sul, da avenida Faria Lima, da avenida Vieira Souto ou dos edifícios das vizinhanças do Farol da Barra. Aí dão um jeito de ser lembrados, mesmo que se trate de uma fraude. Mas o verdadeiro povão, aquele que ganhou inclusão com os programas de Bolsa Família, Pronatec e Minha Casa Minha Vida, se não souber se articular e reagir à altura, estará regressando à miséria, com uma volta a três décadas atrás, sem programas de inclusão social e de renda para os mais pobres. O tucanato nunca se preocupou com eles mesmo e há os que pensam que investimento social é jogar dinheiro fora, pois alimentaria meia dúzia de parasitas petistas. O resultado pode ser uma queda vertiginosa dos índices de desenvolvimento humano, de matrículas em escolas e universidades públicas por alunos e estudantes de baixa renda, com a reintrodução do Brasil no mapa da fome. É preciso reagir maciçamente contra essa partilha do Estado e de seus recursos por aqueles que o tomaram de assalto. Se não for por via de provocação de instituições, já que estas foram capturadas pelo golpe, há de ser pela articulação da parte mais esclarecida da sociedade com os movimentos populares.

E os militares? Até agora estão quietinhos. Mas podemos ter certeza de que estão muito incomodados. As Forças Armadas brasileiras são compostas de pessoas da classe média urbana. Têm por isso perfil mais conservador. Mas adotam uma doutrina do interesse nacional que esbarra frontalmente com aquilo que se está bagunçando no governo do golpe. A prisão e condenação, com estardalhaço, do almirante Othon, pai da energia nuclear brasileira, o desmonte de indústrias estratégicas, como a naval, preparada para renovar a frota da Marinha de Guerra, ou a Aeronáutica, que tem em sua carteira a Força Aérea Brasileira como um dos principais clientes, não podem ser aceitos sem reação. Não seria de sua tradição de defesa do Brasil. Sabem nossos bravos soldados muito bem como os governos de 2003 a 2016 se preocuparam seriamente com seu reequipamento, recuperando os anos perdidos do governo de FHC. Voltar atrás e desistir do papel estratégico do Brasil na geopolítica é crime de lesa-pátria, praticado para atender a podres interesses alienígenas e garantir o ganho de uma elite egoísta e sem visão do mundo e da história.

Em resumo, temos muito a esperar do ano vindouro, menos tranquilidade. O acirramento da crise é inexorável com um desfecho barulhento ao jeito de um clímax numa ópera wagneriana. Se o que vier depois nos ajudar a ver luz no fim do túnel, será um ganho. Fica para as corporações das carreiras de Estado, para o Parlamento e para a população a lição de que não se briga com Constituição pactuada, pois o rebuliço que se segue não compensa as vantagens auferidas por poucos gananciosos ávidos por poder.

Que Deus mostre que é brasileiro em 2017!

*Eugênio Aragão é ex-ministro da Justiça. vice-procurador-geral da República e professor de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB)

Focos de esperança e resistência

Câmara dos deputados - Brasil
Câmara dos deputados, Brasília - FOTO: José Cruz/ABr

Por William Nozaki para a Revista Brasileiros n˚113

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podíamos esperar – se é que podíamos – para nosso País em 2017.

O exercício de escrever sobre o futuro é tarefa mais para místicos do que para intelectuais. Sendo assim, por prudência, um esforço de predição sobre o próximo ano poderia partir de um sinal do zodíaco. Para o horóscopo, a passagem para 2017 simboliza o início de um ciclo regido por Saturno, que é também o símbolo da melancolia, portanto, da convivência entre a nostalgia da perda e a ansiedade da recusa, pés ainda fincados no passado, mas olhos mirando o futuro. Assim tende a ser o próximo ano.

Ao que tudo indica, 2017 deve ser marcado por desconfianças, com a permanência das instabilidades econômicas, das incertezas políticas e das insatisfações sociais.

Do ponto de vista econômico, na melhor das hipóteses, devemos transitar de uma recessão profunda para uma estagnação prolongada. O atual governo não conseguiu apresentar um projeto eficiente de recuperação econômica, apenas regride ao liberal-conservadorismo e ao austericídio, reafirma o Estado mínimo para as políticas públicas e o Estado máximo para a manutenção de privilégios e violências. Em 2017, as empresas não devem aumentar os investimentos, pois vão se haver ainda com a capacidade ociosa instalada; as famílias não devem ampliar o consumo, pois ainda estarão ocupadas gerindo a inadimplência doméstica; o governo, por questões econômicas e ideológicas, pouco deve fazer para recuperar o investimento público em infraestrutura; além disso, a apresentação das reformas previdenciária e trabalhista só deve aprofundar esse quadro. Portanto, o País continuará enfrentando a falta de crescimento, o desemprego e o endividamento.

Do ponto de vista político, se tudo seguir como está, o governo Temer continuará enfrentando a impopularidade, a ingovernabilidade e a ilegitimidade. No primeiro caso porque a população não está vendo com bons olhos a combinação entre a recessão na economia e a perpetuação da corrupção entre os políticos; no segundo caso porque o próximo ano deve explicitar ainda mais as fissuras no bloco de poder: PMDB e PSDB seguem disputando a direção do golpe e a babel da barbárie institucional deve continuar com disputas entre o Judiciário e o Legislativo, e entre esse último e a grande imprensa hegemônica; no terceiro caso porque os efeitos colaterais das delações de Cunha, da Odebrecht e outras que virão podem colocar sobre a mesa de um modo cada vez mais claro uma saída pela via da eleição indireta ou do parlamentarismo.

A propósito, o centro das disputas continuará sofrendo influência da Operação Lava Jato. De um lado, no Congresso e no Executivo, bombeiros corruptos seguirão correndo e fazendo manobras, não para apagar o incêndio do País, mas para salvar a própria pele. De outro lado, na mídia e no Ministério Público, piromaníacos descompensados seguirão jogando combustível na fogueira da crise, não porque queiram encontrar uma saída para o País, mas porque já perceberam que o fortalecimento do seu poder relativo depende da continuidade dessa operação.

Do ponto de vista social, a esquerda organizada permanecerá se havendo com a ressaca de suas derrotas recentes, entrando em um ano de recomposição e ajustes combinados a tensões e cisões. O clima de polarização na política institucional deve seguir nutrindo o desencantamento, a apatia e a indignação da maioria da população. Há um perigo iminente de que o afastamento entre as instituições políticas e o tecido social crie um clima cada vez mais adequado para que o ódio se converta em experiências fascistoides, nas redes sociais e nas ruas. Esse processo será tanto mais acelerado quanto mais lenta for a capacidade das forças progressistas para dialogar com desejos e demandas de uma população que passou por profundas transformações nos últimos anos. A sociabilidade pelo consumo, o empreendedorismo popular, o neopentecostalismo, as culturas periféricas como o hip-hop e o funk expressam novas visões de mundo e traduzem novas gramáticas que precisam ser apreendidas pela esquerda a fim de que se possam refazer as pontes de contato entre o campo democrático-popular e a maioria dos cidadãos e cidadãs do País.

Em meio a essa aridez, felizmente, florescem novidades e a esperança vem dos focos de resistência: partidos de esquerda buscam se reunir em frentes amplas, movimentos sociais seguem nas ruas, estudantes secundaristas resistem ocupando escolas, o movimento dos trabalhadores sem teto persiste lutando por direitos, intelectuais progressistas se reúnem para debater o maior envolvimento da sociedade civil na política, artistas e produtores se engajam nas denúncias contra o governo, as juventudes se mobilizam na luta pelos direitos civis e pelas questões identitárias, contra o machismo, o racismo e outras formas de intolerância.

Se Saturno traz consigo o sentimento de perda, também traz junto de si a recusa contra a realidade social existente. Portanto, se em 2017 devemos continuar enfrentando o avanço de um projeto de Brasil onde não cabem todos os brasileiros, devemos acreditar que, felizmente, o nosso povo é melhor do que a nossa elite e, ainda que não seja no curto prazo, saberá converter suas perdas de direitos em recusa contra a reação liberal-conservadora.

William Nozaki é economista, sociólogo e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

“Brasília virou uma cloaca”

Foto de Sérgio Andrade
Cláudio Lembo - Foto de Sérgio Andrade

Cláudio Lembo é homem de respostas curtas, incisivas. E não parece ter dúvidas: “O Brasil é um país reacionário, conservador, extremamente retrógrado”. De acordo com sua análise, depois que a Constituição foi promulgada, em outubro de 1988, o País vivenciou “um exercício” de democracia, que funcionou enquanto a economia estava bem, mas embrenhou-se por um período sombrio quando os números passaram a ser negativos. Um dos entraves à democracia, afirma Lembo, é o fato de os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – estarem imiscuídos em Brasília, frequentando os mesmos espaços, trocando ideia dia e noite: “O maior erro do Juscelino (o ex-presidente Juscelino Kubitschek) foi transferir a capital. Destruiu o Rio de Janeiro e construiu uma cloaca”.

Outro aspecto que influencia na cristalização desse cenário é, para Lembo, o controle do poder político, da comunicação, por grupos hegemônicos que atuam em defesa exclusiva de seus interesses. Aos 82 anos, o ex-governador, professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie, em São Paulo, e presidente do Centro de Estudos Políticos e Sociais (Cepes) afirma que não tem esperança de mudanças em curto prazo, mas acredita na possibilidade de reversão no futuro distante: “É claro que em longo prazo o País vai se recompor e efetivamente vencer esse grande obstáculo”.

Quanto à queda de braço entre o Legislativo e o Judiciário, ele acredita que a tendência é o arrefecimento: “A opinião pública, e particularmente a Internet, vai fazer com que todos caiam na real, percebam a forma ridícula que estão agindo.” Lembo é apontado como político conservador desde os tempos em que estreou na política, na segunda metade dos anos 1970, como secretário de Negócios Extraordinários do prefeito de São Paulo Olavo Setubal. Quando esta repórter entrou em seu escritório de advocacia, nas imediações da avenida Paulista, em São Paulo, ele acabava de ouvir, pelo celular, um áudio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E fez questão de reiniciar o arquivo do celular.

Cláudio Lembo – Não sei se você ouviu isso aqui. Está certo o Lula. Ouça a gravação: “É que você tem em Curitiba um agrupamento especial de pessoas ungidas por Deus para salvar o mundo. Eles têm noção de quanto a Operação Lava Jato já causou de prejuízo na economia deste País? Eles têm noção de quantos desempregos já causou?”. Ele está certo. Essa operação parou o Brasil.

Brasileiros O senhor então concorda com o ex-presidente Lula?

Sim. E a Lava Jato está cometendo excessos, particularmente quando a Polícia Federal, com autorização do Poder Judiciário, realiza conduções coercitivas de pessoas. É uma agressão contra os direitos humanos.

Antes de a Operação Lava Jato começar, como funcionava no Brasil o instrumento de condução coercitiva?

Era raríssimo, muito raro, pois não se deve usar condução coercitiva. Uma testemunha não pode ser conduzida debaixo de vara. É um absurdo. Se a testemunha tem endereço, tem profissão, uma estrutura familiar, ela vai comparecer ao depoimento. Ela não vai fugir, tanto que ninguém fugiu. Portanto, conduzir coercitivamente é uma desnecessidade. Está havendo violência no Brasil.

A testemunha precisa, na verdade, ser convocada para depor?

Ser convocada, intimada. E ela vai depor espontaneamente. Só se ela não comparecer, aí sim, pode ser conduzida coercitivamente. Mas fazer uma primeira intimação de forma coercitiva é uma agressão.

É o que diz a lei?

É o que diz a lei. É também o bom senso. É o artigo quinto da Constituição, que está sendo violado a todo momento.

O que acontece que as instâncias superiores não interferem?

É o temor da opinião pública. A opinião pública está totalmente envolvida por uma ideia de vingança absoluta. Isso é complexo porque vai levar a uma paralisia total da sociedade, como já está acontecendo.

Já se detecta isso na economia, não é mesmo?

A economia parou. O País está parado. Quem correr a cidade de São Paulo vai ver que toda ela está ou à venda ou para alugar, o que é dramático. É uma situação patética. O Brasil nunca viveu algo igual. E, como eu disse, não há esperança, porque não existem instituições que mereçam o respeito da sociedade.

Como o senhor avalia essa situação?

Com muita amargura. Confesso que, na altura dos meus 82 anos, nunca vi o Brasil tão mal. Não há esperança. E a pior coisa que pode acontecer com uma sociedade é viver sem esperança.

Qual é a origem desse quadro?

Uma série de elementos. Primeiro, o desgaste dos políticos, que se desmoralizaram. Segundo, os excessos do Ministério Público, que envolve também a Polícia Federal. Tudo isso levou um ar de depressão e de fragilidade de toda sociedade.

Na sua opinião, também não há uma pessoa que possa liderar uma mudança?

Neste momento, não vejo ninguém. Vai surgir inevitavelmente, mas neste momento ainda não temos ninguém.

E existe o risco de a extrema direita, de um político como Jair Bolsonaro, crescer ainda mais?

Pode crescer, mas não creio que ele vá chegar lá. Acredito, porém, que o espaço da direita é inevitável. O conservadorismo vai ser um caminho futuro.

Em sintonia com o resto do mundo?

Ontem a Itália, anteontem os Estados Unidos, anteriormente outros países, e assim vai. Só houve um pouquinho de ar na Áustria, onde não ganhou a direita.

Com a recente vitória de um progressista sobre o candidato ultranacionalista na disputa presidencial?

Exatamente, mas o resto do mundo caminha para o conservadorismo. Talvez o excesso do politicamente correto tenha criado o antagonismo. Houve um excesso de desrespeito a algumas instituições em favor dos direitos humanos. Com isso, houve a contrapartida. Vai surgir um equilíbrio, mas ainda vai demorar.

Como assim?

É muito simples. Houve, por exemplo, um desgaste imenso das forças policiais. Elas foram agredidas de todas as maneiras. Talvez elas agissem com excesso, e isso fez com que perdessem o controle da sociedade. Então agora está se montando o equilíbrio, sabendo que é preciso haver instrumentos policiais, para que a sociedade viva em equilíbrio e com capacidade de dialogar. Depois da redemocratização, o Brasil passou por uma busca do ideal. Como o ideal não existe, caiu no que estamos vivendo hoje.

Com relação às forças policiais, elas agem de forma dúbia. Quando a manifestação é da direita, fazem selfie com os manifestantes. Quando é da esquerda, batem.

O que é errado. Há um desequilíbrio. A polícia está se recompondo para a vida em uma sociedade democrática, o que é difícil. O Brasil nunca foi democrático. O Brasil é um país reacionário, conservador, extremamente retrógrado. Então, ele sofre muito quando tem um período longo de democracia.

O período a partir de 1988?

Da Constituição para cá, foi um exercício de democracia. Enquanto a economia ia bem, a democracia funcionou. Agora que a economia vai mal, há interrogações a respeito da democracia em todo o mundo e no Brasil.

Então não tem saída?

Não tenho esperança em curto prazo. É claro que em longo prazo o País vai se recompor e vai efetivamente vencer esse grande obstáculo. Mas no momento não há esperança, porque não há personalidades. O Congresso desgastado. O Judiciário desacreditado. As polícias objeto de censura. O que sobrou do Brasil? Não tem instituições.

E a queda de braço entre o Legislativo e o Judiciário?

Os dois estão errados. O Legislativo deveria ter compostura e examinar a legislação no equilíbrio e bom senso. E o Judiciário deveria falar menos. O que falam hoje os ministros do Supremo é uma incoerência. É um absurdo que ministro fale tanto. Ele deveria falar nos autos ou quando em debate judicial, no interior da corte. Hoje eles falam sobre tudo. Eles não foram escolhidos para isso. Aliás, foram escolhidos politicamente. São, portanto, instrumentos políticos de outras forças.

E não parece que a disputa vá arrefecer.

Arrefece, porque todos vão apanhar muito. A opinião pública, e particularmente a Internet, vai fazer com que todos caiam na real, percebam a forma ridícula que estão agindo.

As mesmas redes sociais que ajudam a aguçar conflitos podem também acalmar?

Sim, porque mostram com tal clareza as inconsequências e a fraqueza dos poderes que eles vão ter que se recompor.

O senhor já tinha visto no Brasil manifestações de ódio iguais às que temos visto nos últimos tempos?

São individuais. É próprio de pessoas, não do coletivo. São pessoas que se revoltam e partem para agressões muito estúpidas.

Mas hoje em todos os ambientes, até em família, há conflitos por causa de questões políticas, ideológicas.

O que é bom. No passado, todos eram silenciosos. O Brasil sempre viveu sob a égide do Concílio de Trento (reunião convocada pelo papa Paulo III em meados do século XVI, que reafirmou os dogmas da fé católica, em reação à Reforma Protestante de Martinho Lutero). Então, ninguém podia falar. Tinha uma religião única, uma vontade única, um absolutismo pleno. O Brasil está sendo recomposto. Vai ser duro, mas nós temos que sofrer isso.

Para recompor, vai ter antes que desmoronar?

Ah, sim. Vai ter que refazer as estruturas e as instituições. O que está aí vai ter que mudar. É inevitável. Ninguém mais aceita. Ninguém aceita esse Parlamento como ele é, as formas de eleger, a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal e dos outros tribunais federais. Tem que alterar.

Como deveria ser a escolha de um ministro de tribunal superior?

Deveria haver um concurso público, uma exposição pública das personalidades. O ministro não poderia ser escolhido jamais pelo Executivo. Porque ele fica vinculado ao Executivo, queira ou não, se não nos seus votos ao menos moralmente. Tem que pensar em formas novas. Há país da América Latina que está adotando concurso público televisionado para ministro das cortes superiores.

Qual?

O Equador. Lá os candidatos fazem concurso. Não é como no Brasil, onde os amigos do rei é que viram ministros do Supremo e depois se acham donos do Brasil.

Aliás, o Supremo ganhou tanto protagonismo que está havendo uma judicialização da política.

Exato, o que é um grande equívoco, um grande problema. O Supremo está saindo dos seus parâmetros, dos seus limites e invadindo outras áreas. Tem violado a Constituição. Agora leva à prisão sem condenação em última instância, não recorrível. A Constituição é clara. Ou a presunção da inocência foi para o espaço? Se for assim, muda a Constituição. O mesmo em relação ao aborto. Tem que perguntar à sociedade. O Supremo não pode decidir por conta própria. Eu sou pela descriminalização do aborto, mas não sei se a sociedade quer. Tenho minhas dúvidas.

Questões que afetam a vida…

Tem que perguntar para a sociedade.

Por meio de plebiscito?

Óbvio. A sociedade responde. Ela sabe o que quer. Ela não é interditada. O Supremo pensa que nós somos todos interditados. Eles decidem como deuses. Não são deuses. São pessoas comuns, que têm talvez um pouco de nível intelectual.

E a delação premiada como está sendo usada?

Pessoas presas estão sofrendo uma tortura psicológica. E fazer a delação leva a uma situação extremamente grave. Pode-se dizer que sem prender não há delação, mas com isso também cria-se um grande constrangimento.

Sem isso, as construtoras não abririam o jogo, digamos assim.

Mas não precisaria, porque todo mundo sabe que as construtoras são responsáveis pela corrupção no Brasil. Só os ingênuos não sabem. Ou os imbecis. Qualquer um que passa pela vida pública sabe que as empreiteiras foram sempre imorais no Brasil.

O caminho que a Lava Jato vem escolhendo parece sem volta, mas há medidas que são inconstitucionais e muitos não percebem isso.

Não percebem o risco que estão passando, porque no fundo todos estão querendo a violação dos direitos humanos e esquecem que também são titulares desses mesmos direitos humanos, que poderão ser violados. É um problema interessante. Há uma revolta quase ingênua da sociedade. Ela não está percebendo os riscos que está passando. E ninguém fala. Então, continuam todos correndo riscos.

O senhor acredita que a mídia tem culpa no cartório?

Uma culpa muito grande. A grande mídia deveria esclarecer a situação. Ela tem interesses, não é isenta. Ninguém que tem um instrumento de comunicação é absolutamente isento, tem posição, uma posição subjetiva que passa objetivamente pelos meios de comunicação. A queda da Dilma foi um trabalho midiático. Não tinha base jurídica.

Agora começaram os pedidos de impeachment em relação ao Temer.

Ele corre o risco, porque o clima é de exigência de uma justiça quase primitiva. E isso pode fazer com que ele e o grupo dele caiam em um novo impeachment, porque a partir de 1º de janeiro a eleição vai ser direta pelo Congresso. Estão preparando candidatos.

O PSDB inclusive?

É só ver o que faz o presidente Fernando Henrique, a todo momento dando entrevista de candidato. E já foi lançado por um correligionário dele (o ex-deputado Xico Graziano, que foi chefe de gabinete da Presidência no governo FHC), em um artigo de jornal extremamente estranho.

E a PEC do teto dos gastos, que abarca um prazo de 20 anos?

Eu me preocupo com o prazo. Mesmo sem esperança no momento, espero que daqui a 20 anos o Brasil seja outro. Eu vou estar longe, mas o Brasil deve ser outro. Vinte anos é um período muito longo. Nenhum país do mundo fez isso. É uma visão de Cassandra (profetisa da mitologia grega, amaldiçoada pelo deus Apolo, para que ninguém acreditasse em suas previsões).

Há muita preocupação com as áreas da saúde e da educação.

Com a saúde, que já está tão mal, vamos ter problemas. A educação não vai tão mal, é razoável, na perspectiva de um país de Terceiro Mundo. Agora a situação da saúde é extremamente grave, principalmente porque os instrumentos para preservação da saúde estão cada vez mais tecnológicos e, portanto, mais onerosos.

Depois de aprovada a PEC, tem jeito de voltar atrás?

Claro que tem. É fazer outra PEC. No Brasil tudo se resolve.

Ao promover esse tipo de mudança, o governo Temer não está indo com muita sede ao pote?

Acredito que ele foi extremamente capitaneado pelos interesses financeiros. A Itália fez há pouco um plebiscito. O “não” ganhou. O povo italiano disse que quem elaborou esse projeto foram os bancos italianos e os interesses econômicos. A PEC do Temer está no mesmo caminho italiano. Foi elaborado pelos grandes interesses financeiros. Ela cai. Cai no futuro breve. Outros instrumentos vão ter que ser imaginados.

Essa PEC pode fragilizar ainda mais o governo dele?

Acredito que sim. Ela pode ser útil a curto prazo, mas a médio prazo não prevalece. O povo se revolta. O Delfim Netto, que é muito sarcástico, disse muito bem. Com essa PEC, Temer está preparando o próprio impeachment. Ele não vai cumprir a PEC. E cai.

O senhor citou a Itália ao falar sobre a PEC. E em relação à Operação Lava Jato?

Também na Itália foi um fracasso. Nasceu Berlusconi (o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que ascendeu na política italiana e mais tarde protagonizou diversos casos de corrupção). Sinal de como o povo é muito complexo. Ele é muito sensível, muda de acordo com as circunstâncias. Isso tudo que se vê nas ruas pode mudar.

Na Itália, ao final da Operação Mãos Limpas, o sistema político estava desmantelado.

Destruiu tudo. E agora ainda tem o Beppe Grillo (líder do Movimento 5 Estrelas), que é um demagogo, um populista.

Qual a saída?

A saída é ouvir o povo. Eles não ouvem o povo. Em Brasília, querem fazer tudo sozinhos. Brasília virou a cloaca do Brasil. É uma vergonha, um constrangimento. É uma cidade de lobby, de prostituição política, econômica. Uma tragédia. O maior erro do Juscelino (o ex-presidente Juscelino Kubitschek) foi transferir a capital. Destruiu o Rio de Janeiro e construiu uma cloaca.

Por quê?

Porque estão imiscuídos entre eles o Judiciário, o Executivo e o Legislativo. Todos trocam ideia dia e noite, nos mesmos bares, nos mesmos restaurantes, nos mesmos salões. Não pode.

Se a capital continuasse no Rio seria a mesma situação.

Mas o Rio era a corte. Sempre foi corte. As cortes têm mais experiência. Tinha uma sociedade muito mais estruturada. E destruiu o Rio porque favelou a cidade. Lá, a sociedade era muito mais qualificada, com um bom nível cultural. O Rio sempre teve boas cabeças. Brasília não tem nada. Brasília é uma cidade deserta. No final de semana é uma tragédia. Uma cidade da fuga. Vão para passar horas e fogem. O Parlamento não tem vida em Brasília.

Como o senhor viu o impeachment de Dilma Rousseff?

Uma tragédia para a democracia brasileira.

E existe outro impeachment no horizonte.

Vai virar uma moda latino-americana. A nova forma de dar golpe na América Latina é o impeachment.

Qual a perspectiva do senhor para o País em 2017?

Depressão.

Diante das más notícias de 2016, muitos estão se referindo a ele como “annus horribilis”, expressão usada pela rainha Elizabeth em 1992. O senhor está de acordo?

Não é o ano. É a década.

Quando começou essa década?

No segundo governo Dilma Rousseff, mas as raízes vêm de antes. Começou no segundo governo Dilma e vai longe.

Em referência a seu comentário anterior, de o Brasil não ser um País democrático?

Não foi democrático. Está tentando ser e encontra dificuldades. Está difícil porque há grupos hegemônicos que têm o domínio das formas de comunicação, do poder político. Para recompor tudo isso é complicado.

Por causa de uma minoria, que o senhor definiu em 2006 como “elite branca”?

É a que domina. Domina e só pensa em seus próprios interesses. Não pensa no Estado, na nação, na sociedade. E não vejo perspectiva de mudança. Está tudo errado. O Brasil vai sofrer por uns dez, 20 anos. Disso não tenho dúvida nenhuma.

Uma parte da esquerda critica o ex-presidente Lula argumentando que ele deveria ter promovido reformas profundas quando con­­­tava com grande aprovação popular.

Claro que deveria ter feito. O Lula se embeveceu com a burguesia. Ele se encantou. Ele era amigo de todos os empreiteiros. Não pode. Eu passei pelo governo e nunca quis receber empreiteiro. É pecaminoso. Lula ficou íntimo, coitado. Foi envolvido.

O senhor acredita então que ele deveria ter feito as reformas da mídia e a política?

Lógico. Ele aceitou tudo o que a burguesia queria. Deu nisso que está aí. Não é nem esquerda, nem direita nem centro. Não é nada. Fui simpático ao Lula e à Dilma, mas ele errou. Lula aceitou todos os salamaleques da burguesia. E, como ele não é burguês, eles usam e não aceitam. Eles usam e atiram depois no lixo. É doloroso, mas esta é a verdade. Todo mundo levou vantagens. Só ele que não.

Falamos antes de annus horribilis. E o contrário? O que o Brasil precisa fazer para conquistar um annus mirabilis?

Procurar um psiquiatra de boa qualidade, que não seja charlatão. 

Política da exclusão

CAMINHADA DAS FLORES Mulheres protestam contra cultura do estupro diante do STF, em Brasília - Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

O primeiro escalão do governo interino de Michel Temer não tem mulheres. Entre os 23 nomes que compõem a equipe ministerial anunciada na tarde de 12 de maio, data da posse, não há nenhuma ministra. Tampouco há negros. As duas parcelas da população – mulheres e negros – representam mais da metade dos brasileiros, que é composta por 51,4% de mulheres e 53,6% de negros.

Para agravar ainda mais o cenário sexista e racista, Temer extinguiu as secretarias especiais de Políticas para as Mulheres, de Igualdade Racial e de Direitos Humanos, transformando-as em meras secretarias sem status de ministério. Respondem ao Ministério da Justiça e Cidadania, comandado por Alexandre de Moraes, que tem muito mais afinidade com a esfera da segurança pública do que com os direitos humanos. Ele foi secretário de Segurança Pública de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) e tem em sua conta a conduta violenta da Polícia Militar contra os estudantes secundaristas, além da chacina de Osasco (SP) em agosto de 2015, praticada por policiais, que exterminou 19 pessoas em uma madrugada.

A lua de mel política, comum nas trocas de governo, durou pouco. Michel Temer havia dito em sua primeira entrevista como presidente interino (ao Fantástico, da Rede Globo) que formaria um “ministério de notáveis”, mas seu ministro do Planejamento, Romero Jucá (PMDB-RO), caiu em 12 dias. O da Transparência, Fabiano Silveira, foi forçado a sair em 17. Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), do Turismo, pediu demissão ao ter o nome citado em delação. Temer também afirmou que traria uma representante do “mundo feminino” (como se fosse um outro planeta) para ocupar cargos na Cultura, ministério que havia extinto. Não teve sucesso.

Com esse perfil, ficou difícil encontrar candidatas para ocupar pastas no segundo nível do governo Temer. Entre convites e sondagens, em 15 dias, sete mulheres disseram “não”, mesmo com a mediação da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP). Nos últimos 37 anos de gestão federal, todos os presidentes brasileiros, até mesmo João Figueiredo, último presidente da ditadura militar, tiveram mulheres em ministérios. No período democrático todos os ex-presidentes escolheram ministras. Fernando Collor teve uma, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso tiveram duas, Luiz Inácio Lula da Silva contou com 11 e Dilma Rousseff comandou 16 ministras.

Os próprios aliados do presidente interino criticaram a falta da presença feminina nos ministérios. “Tem o meu protesto absoluto, teria que ter (mulheres na equipe)”, afirmou o senador Aécio Neves (PSDB-MG), durante votação da abertura do processo de impeachment no Senado. “Existem mulheres altamente competentes em vários partidos, certamente ele vai encontrar espaços para que as mulheres possam ajudar.”

A primeira a aceitar um cargo de segundo escalão no governo Michel Temer foi a economista Maria Silvia Bastos Marques, quatro dias depois de o presidente interino tomar posse. Reconhecida por sua competência e eficácia técnica, ela assumiu a presidência do BNDES, pela primeira vez ocupada por uma mulher. Até o final de maio, apenas três mulheres compunham esse patamar de governo, além de Bastos Marques: Nara de Deus, chefe de gabinete de Temer, Flavia Piovesan, na Secretaria de Direitos Humanos, e Ana Paula Vescovi, na Secretaria do Tesouro Nacional. Nesta quinta-feira (16), uma nova tentativa de incluir mulheres nos ministérios de Temer saiu errado. O ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, Torquato Jardim, nomeou sua sócia em um escritório de advocacia para chefiar o seu gabinete no ministério. A nomeação da advogada Lilian Claessen Miranda Brandão foi publicada no Diário Oficial da União. Pegou mal. Além de um evidente conflito de interesses, o presidente interino disse há poucos dias que congelaria nomeações de cargos comissionados.

Nova chefe de gabinete do ministro da Transparência é sua sócia em escritório de advocacia.

Para a Secretaria de Políticas para as Mulheres, Michel Temer escolheu a socióloga e ex-deputada federal Fátima Pelaes (PMDB-AP), presidenta reeleita do PMDB Mulher. Pelaes tem uma história triste. Foi feminista por muito tempo. Lutou pelo direito ao aborto. Mas, em 2002, ao sofrer um grave acidente de barco no rio Amazonas e sobreviver, se converteu à igreja evangélica. Posicionou-se contra o aborto. Em uma sessão na Câmara dos Deputados para votar o Estatuto do Nascituro, em maio de 2010, Pelaes revelou que nasceu em uma penitenciária, do ventre de uma mulher que tinha sido abusada por três homens. “Depois de muito trabalho, terapia e de buscar Deus eu posso falar normalmente. Ela (a mãe) chegou a pensar no aborto. Não via saída. Como uma mulher encarcerada poderia continuar com essa gravidez?”, contou. “Ela não teve como fazer. Depois que eu já estava adulta, ela pediu perdão. Hoje eu estou aqui podendo dizer: a vida começa na concepção, sim. Que direito nós mulheres temos de tirar uma vida?” Pelaes também enfrenta investigação sobre desvio de R$ 4 milhões em emendas.

O fato de o presidente interino não ter se preocupado em conduzir mulheres ao primeiro escalão de seu governo demonstra muito mais que falta de habilidade política. É um forte indicador de que as políticas públicas para mulheres, direitos humanos, igualdade racial e agenda social não são prioridades para o governo federal temporário. No recorte de gênero, quer dizer também que o processo de impeachment não só legitimou o machismo presente na sociedade brasileira como explicitou, sem constrangimentos, a conduta sexista de muitos parlamentares, o que se reflete na sociedade em geral. O deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), o mais evidente dos exemplos, além de celebrar o torturador de Dilma, se referiu a ela como “anta”. Nas ruas, manifestantes pró-impeachment não tiveram pudores em chamar a presidenta eleita de “vaca”, entre outros xingamentos impublicáveis. Na noite de 11 de maio, enquanto acontecia a votação da admissibilidade do impeachment no Senado, a Polícia Legislativa reprimiu violentamente uma manifestação de mulheres contra o golpe. “É a retomada de uma perspectiva de exclusão e preconceito”, alerta a socióloga Marcia Lima, professora de Desigualdades Raciais na USP. “Precisaríamos seguir por décadas enfrentando o preconceito e seus efeitos. Mas estamos voltando à estaca zero.”

PELA DEMOCRACIA O fim da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres evidencia a iminente perda de direitos – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Políticas Públicas para mulheres
São inegáveis os avanços na agenda dos direitos das mulheres nos últimos 13 anos, desde que foi criado o Ministério de Políticas para Mulheres. Um dos marcos mais importantes é a Lei Maria da Penha, de 2006, contra a violência doméstica, uma realidade cruel e silenciosa para mais de um milhão de brasileiras, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2015). Como consequência, em dez anos, a taxa de homicídios contra mulheres em âmbito doméstico caiu 10%, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea/2015). “Vamos perder tudo o que conquistamos com muita luta nesses 13 anos. É o maior retrocesso que eu já vi na história do meu País dentro da democracia”, declara a ex-ministra de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.
Outra ação fundamental foi a mudança na legislação sobre estupro. Até 2009, o estupro era considerado “crime contra os costumes”, ou seja, o “ofendido” em sua honra era o pai ou o marido. Com a Lei 12.015/2009, a mulher deixou de ser “propriedade” para ter direitos sobre seu corpo. A nova lei também considerou todas as formas de violência sexual (atos libidinosos) como estupro, mesmo sem conjunção carnal. A pena é agravada no caso de a vítima ser adolescente ou vulnerável, como pessoas com deficiências.

No Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, de acordo com a estatística do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São 131 estupros por dia, em média. O enfrentamento a essa realidade segue extremamente ameaçado. Tramita no Congresso o Projeto de Lei 5069/2013, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que interfere no direito de interromper a gravidez em caso de estupro. Pelo PL, a vítima de estupro deve ser obrigada a fazer exame de corpo de delito para acessar o aborto legal, submetendo-se a constrangimento. Também indica punição severa aos profissionais que ajudarem a vítima, inclusive ao “instruir”, “orientar” ou “prestar auxílio” à mulher. O projeto é assinado por 13 homens, entre eles André Moura (PMDB-RJ), líder do governo na Câmara. “A gente não pode ter a mistura entre o Estado e a religiosidade”, diz a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), responsável pelo projeto de lei que mudou o crime de estupro. “O Estado laico é a garantia de que todas as pessoas sejam respeitadas. Você não pode impor a sua perspectiva filosófica”, completa.

Pouco mais de dez dias depois da votação do impeachment, o Brasil assistiu online ao abuso sofrido por uma adolescente no Rio de Janeiro. O caso demonstrou que a cultura do estupro é muito presente no País. Insuflou mulheres e homens a saírem às ruas indignados pelo crime brutal. Na mesma medida, demonstrou a força fascista que espreita a sociedade, com julgamentos contra a menina (por sua roupa ou comportamento) e pedidos de pena de morte e castração para os suspeitos.

O fato de uma mulher ter ocupado o cargo mais poderoso do Brasil é um legado simbólico incontestável que está sob ameaça. Para a ex-ministra do Desenvolvimento Social Tereza Campello, um dos ganhos importantes foi a maior autonomia feminina. As mulheres passaram a dizer “eu posso”. Mas o novo governo pode botar tudo abaixo. “Apesar de termos avançado muito na construção de uma agenda de direitos para as mulheres, isso ainda é tão frágil a ponto de poder ser revertido. Eu me sinto agredida como mulher. É muito duro”, afirma Campello.

Demonstra a vulnerabilidade da mulher na sociedade brasileira. “Todas as mulheres estão vulneráveis nesse processo: as pobres, as negras, as indígenas, as lésbicas, as deficientes, as jovens, as idosas. Todas”, declara a ex-ministra das Mulheres Eleonora Menicucci. Não basta o presidente interino, Michel Temer, afirmar que foi o primeiro a criar uma Delegacia da Mulher, quando era secretário de Segurança Pública de São Paulo, 31 anos atrás.

Fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres nos EUA, só em 2152

O estudo mostra que a brecha salarial, o chamado “gap” (em inglês), tem efeitos negativos financeiros duradouros. Foto: EBC
Mesmo após mais de um século de luta por igualdade de condições entre homens e mulheres nos Estados Unidos, elas só deverão ter salários equiparados aos deles daqui a 135 anos, em 2152, segundo projeção divulgada na semana passada pela Associação Americana de Mulheres Universitárias (American Association of University Women – AAUW).

O estudo Simple Truth about the Gender Pay GAP (A Simples Verdade Sobre a Desigualdade Salarial de Gêneros, em tradução livre) aponta que, em 2015, as trabalhadoras em tempo integral nos Estados Unidos ganhavam 80% menos que os homens.

Apesar do valor menor, o salário já era reflexo de melhorias constantes para as mulheres no período de 1960 até 2000. Entretanto, desde 2001, observa-se maior lentidão na tentativa de deixar os salários menos desiguais – o que só permitiria que fossem igualados em 2152.

De acordo com o estudo, a diminuição das desigualdades registradas de 1960 em diante estava diretamente ligada ao aumento da escolaridade das mulheres.

O estudo mostra que a brecha salarial, o chamado “gap” (em inglês), tem efeitos negativos financeiros duradouros. Em 2015, 14% das mulheres norte-americanas entre 18 e 64 anos de idade, viviam abaixo da linha de miséria, enquanto esse percentual entre os homens é de 11%.

Mudanças nas estruturas familiares também têm afetado a vida das mulheres. Em 2012, a proporção de mulheres chefes de família atingiu o patamar de 40%. Por isso, diz o documento, os índices de pobreza aumentaram, porque cada vez mais mulheres passam a sustentar sozinhas a família, sem uma melhoria salarial equiparada à condição dos trabalhadores.

Sem igualdade

Em outra estimativa baseada na participação por gênero, o Centro de Pesquisa Pew Reseacher avalia que a participação das mulheres no mercado de trabalho deve atingir o percentual máximo em alguns anos, mas deve seguir uma tendência de ser sempre minoria e nunca chegar aos 50% da força laboral norte-americana.

A conclusão do Pew Reseacher baseou-se em números oficiais do Bureau of Labor Statistist. Na análise do centro de pesquisa, a participação de mulheres no mercado vem crescendo e poderá atingir o pico de 47,5% em 2025 e depois começar a diminuir.

A pesquisa mostra que o crescimento das mulheres como força de trabalho foi constante até o começo dos anos 2000. Depois iniciou-se um período de estagnação e ligeira queda.

Durante a década de 1960, a força de trabalho das mulheres aumentou, em média, três vezes mais rápido que a masculina. Em 2000, 59,9% das mulheres estavam no mercado de trabalho, contra 37,7% em 1960.

Mas após os anos 2000 iniciou-se um declínio. Para os pesquisadores, a principal razão é a maternidade. Mães com filhos menores de 18 anos têm menos possibilidade de ter um trabalho em tempo integral.

Nos Estados Unidos, a educação só é universal e gratuita a partir dos 5 anos, na pré-alfabetização. A mãe que trabalha fora e tem filhos pequenos precisa pagar por serviços de creche ou babás que costumam ser caros no país.

Várias mulheres abandonam o trabalho nesta fase ou partem para funções de meio-período, que dificilmente levam a promoções internas nas empresas.

Jennifer Marilyson, de 34 anos, têm dois filhos: uma de 4 anos e outro de 1 ano e meio.

Ela conta que deixou o cargo de gerente de banco quando engravidou da filha mais velha.

“No começo, eu pensei em ficar. Mas a licença maternidade era de 14 semanas e eu fiquei muito triste de ter de deixar minha filha.”

Ela disse que conversou com o marido e, depois de fazer várias contas, viu que seria mais caro pagar um serviço para cuidar da filha pequena do que ficar em casa.

Jennifer diz que não se arrependeu no começo e que olhava para a filha pequena e sentia que havia feito a escolha certa. Mas depois, ao engravidar do segundo filho, ela  viu mais distante o projeto de voltar a trabalhar.

“Eu queria ter outro filho, mas se eu não conseguia pagar creche para um, imagine para dois”, disse, sorrindo.

Jennifer agora espera voltar a trabalhar quando seu filho mais novo completar 5 anos e meio, idade necessária para a entrada no “kindergarden”, jardim de infância das escolas públicas norte-americanas.

Ela diz que até lá terá completado pelo menos nove anos fora do mercado de trabalho.

“Às vezes eu sinto falta de trabalhar. E penso que é muito cruel. Como gerente, eu ganhava menos que outros gerentes homens e, agora, quando eu voltar a trabalhar, tenho que começar tudo de novo, provavelmente, ganhando menos de novo e eles vão estar à frente”, comenta.

A luta e o legado de Chico Mendes

Foto- Reprodução:theguardian.com
Foto- Reprodução:theguardian.com

* Alex Tajra

No coração da maior floresta do mundo, os últimos seringueiros do Brasil buscam continuar vivendo do extrativismo, mesmo com a constante desvalorização do látex. Nos áureos tempos da borracha, a região, que seria o futuro estado do Acre, foi o centro de uma disputa diplomática entre brasileiros e bolivianos. Em 1903, portanto há 110 anos, foi necessária a intervenção do Barão do Rio Branco para que o território, habitado em sua maioria por brasileiros, pertencesse definitivamente ao Brasil.

Hoje, as dificuldades ainda são imensas. Ameaçados por posseiros, os seringueiros do Acre são os alvos principais de agricultores, que os intimidam o tempo todo. A luta pela terra neste rincão escondido do país gera mortes, despedaça famílias, mantém os seringueiros em constante estado de alerta. O sonho de envelhecer vivendo na floresta é uma batalha diária, que já vitimou pessoas simples e líderes, como Wilson Pinheiro e Chico Mendes.

O assassinato de Chico Mendes, em Xapuri, em 1988, foi o estopim para que as reivindicações dos povos da floresta chegassem ao poder público. Porém, 25 anos depois, o que se vê é o abandono de muitos projetos e cooperativas idealizadas pelo líder dos seringueiros.

Google homenageou o aniversário do seringueiro e líder sindical Chico Mendes – Foto- Reprodução:Google
Google homenageou o aniversário do seringueiro e líder sindical Chico Mendes – Foto- Reprodução:Google

Com o látex pouco lucrativo, os extrativistas buscam novas formas de sustento. Plantações de cacau e produção de castanha para exportação são atividades que garantem a sobrevivência dos acrianos que resistiram. Resistir parece ser o verbo correto para se pronunciar no Acre. Assim como os extrativistas, a floresta resiste às ações de madeireiras.

A reportagem do programa Caminhos da Reportagem foi até as margens do Rio do Rola, conversou com quem sempre viveu ali, entrevistou quem está ali só pelo lucro. No papel, todas as madeireiras dizem fazer o manejo sustentável das áreas exploradas. Na prática, é visível que o corte ilegal da vegetação amazônica aumentou nos últimos anos.

Nada mais distante do ideal que Chico Mendes tinha para a região, onde os trabalhadores, reunidos em cooperativas, conseguiriam a sobrevivência respeitando os limites da floresta. O Acre, com sua história mais do que centenária; Chico Mendes, sua luta e seu legado; e a dura realidade dos povos da floresta; são os temas deste Caminhos da Reportagem.

Cruzamentos históricos

  • Vinícius Mendes

Nos anos 1960, a tradutora e intérprete alemã Margarethe Hamich se mudou com o marido para a pequena Bietigheim, no sudoeste da Alemanha, mais de uma década antes de sua junção à vizinha Bissingen. “A cidade era muito feia. Falei que ficaria no máximo três anos, mas cá estou eu”, afirma a octogenária Margarethe, hoje também uma guia especializada na joia da coroa do lugar, as construções medievais feitas com enxaimel, estruturas de hastes de madeira, encaixadas em posições horizontais, verticais ou inclinadas, com paredes de barro ou tijolos. Com cerca de 42 mil moradores, Bietigheim-Bissingen faz parte de uma rota criada pelo órgão oficial de turismo da Alemanha (DZT, na sigla em alemão) nos anos 1990, que percorre cerca de cem cidades ao longo de três mil quilômetros, de Stade, à beira do rio Elba, no norte do país, a Meersburg, no Lago Constança, no sudoeste.

Ao todo existem mais de 2,5 milhões de construções do gênero na Alemanha. A Brasileiros visitou algumas delas, não somente em Bietigheim-Bissingen, mas também em Besigheim, Schorndorf, Blaubeuren, Pfullendorf, Esslingen, Biberach e Meersburg, num dos seis segmentos da Fachwerkstrasse (o nome da rota em alemão), que abriga 26 cidades com enxaimel, em construções que datam do século 13 ao 19. Em todas, as técnicas construtivas e os detalhes arquitetônicos funcionam como uma moldura para o interessante retrato histórico oferecido pela rota.

As casas mais antigas do trecho ficam em Biberach e Esslingen. Na primeira, algumas das casas com enxaimel revelam, por meio da divisão de seus cômodos, como era a vida doméstica e citadina nesses pequenos povoados alemães, nos séculos 14 e 15. Por exemplo: uma característica marcante era o andar térreo reservado ao abrigo de animais, ao armazenamento de alimentos e à atividade econômica de seu proprietário, como a panificação ou o curtume, de que a família inteira participava. Os dormitórios ficavam nos andares superiores e o banheiro ainda era elemento praticamente ausente do vocabulário arquitetônico. Um pequeno apêndice fazia as vezes de WC, com escoamento para o vão entre as casas. Tempos insalubres.

Outro destaque de Biberach é a Weberberg, área da cidade que no século 16 chegou a reunir cerca de 400 teares, ocupando 1/4 da população. Um dos highlights do roteiro do enxaimel, o lugar se tornou um ímã para profissionais como ceramistas, escritores, designers e arquitetos.

Em Esslingen, por sua vez, a antiga praça do mercado da cidade abriga um grandioso exemplar de enxaimel, onde fica a Kessler-Haus, mais antiga fabricante de espumantes (Sekt, em alemão) do País, e a primeira de vinhos do gênero fora da França. Aberta em 1826, a Kessler ocupa um complexo com adegas e construções que datam do início do século 13, e que já haviam pertencido à Igreja. O lugar ideal para Georg Christian Kessler aplicar os conhecimentos de produção de champanhe, aprendidos diretamente com Barbe-Nicole Clicquot, a famosa viúva.

Já em Bietigheim-Bissingen, a casa-museu Hornmoldhaus, antiga residência do escrivão e oficial de justiça Sebastian Hornmold (1500-1581), revela a transição entre dois estilos de enxaimel, do alemânico (fim da Idade Média) para o francônio (início da Idade Moderna), com elementos construtivos passando a ter função meramente ornamental, como a cruz de Santo André, um “X” de madeira muitas vezes aparente na estrutura.

Mas não só isso. Lá dentro, uma maquete revela como é o esqueleto de hastes da construção, ainda sem o preenchimento de paredes com barro ou pedra. As pinturas nas paredes e no teto da Hornmoldhaus falam um pouco do estilo de vida na Alemanha durante a Renascença. Além de ornamentos florais, dos brasões da família Hornmold e da Casa de Wurtemberg, há desenhos que criticavam a Igreja Católica e o clero. Criada nos anos 1980, a casa-museu tenta contar um pouco dos 1.200 anos de história da cidade.

Na pequena Blaubeuren, mais história. As águas do lago Blautopf (panela azul, em alemão) servem de cenário para construções de enxaimel do século 15, muitas delas à beira dos canais que cortam a cidade. Há também pré-história: Blaubeuren abriga em seu principal museu a Vênus de Hohle Fels, a mais antiga figura feminina feita pelo homem, a partir de marfim de mamute. Descoberta em 2008, a Vênus tem entre 35 mil e 40 mil anos. E faz o enxaimel parecer até recente.

Uma tarde na Fundação Casa

Matéria especial da semana- Uma tarde na Fundação Casa
Matéria especial da semana- Uma tarde na Fundação Casa
  • Vinícius Mendes

Obstáculos, como muralhas, alambrados e portões, separam os adolescentes que ocupam o centro de atendimento socioeducativo Casa Governador Mário Covas da Fundação Casa, na Vila Maria, zona norte de São Paulo, do trânsito da pista local da Marginal Tietê. Para entrar no edifício, os visitantes precisam assinar um caderno, deixar celulares no balcão e abandonar ideias preconcebidas do lado de fora. Nesse ambiente, encontram-se 64 jovens (capacidade máxima da casa) entre 15 e 18 anos incompletos que vivenciam pela primeira vez a experiência de estarem confinados em uma instituição socioeducativa. Qualquer um deles pode ser protagonista do polêmico debate em curso no País: a redução da idade penal de 18 para 16 anos em alguns casos. A Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional, que prevê redução da maioridade nos casos de crimes hediondos – como estupro e latrocínio – e para homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Se a medida for aprovada pelo Senado, infratores de 16 e 17 anos vão cumprir pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos.

Inaugurada em novembro de 2014, a Casa Governador Mário Covas conserva as paredes pintadas de verde-claro e os acabamentos, como batentes e janelas, em tons da mesma cor, só que mais escuros. Tem oito dormitórios, cada um com quatro beliches, e várias salas onde os meninos têm aulas de ensino básico, desenho, computação, confeitaria, panificação. O prédio ainda abriga uma quadra poliesportiva, mas eles preferem mesmo jogar futebol.

Todos, sem exceção, têm o cabelo cortado ao estilo militar por “motivos de higiene” e usam uniforme azul-marinho com um número de identificação – as toalhas, os lençóis, as saboneteiras, tudo tem um número. Edson Luis de Oliveira, diretor do centro de atendimento, explica que esse método, semelhante ao usado entre presos adultos, tem apenas função administrativa na Fundação Casa. “Eles não são chamados pelos seus números. Utilizamos essa prática apenas para organizar melhor as nossas atividades.”

“Olha que louco, senhor. Os caras fizeram mais unidades da Fundação Casa do que escola. Não é uma contradição, senhor?”, pergunta João. Antes que pudesse continuar, Mateus diz: “No meu bairro não tem escola nem posto de saúde, senhor”.

Pelos corredores, Oliveira fala com um e com outro, sempre chamando pelo nome – nesta reportagem, a identidade dos internos será mantida em sigilo. “Sua cama não está tão bem arrumada, hein, João?”, diz o diretor. Com um leve sorriso, ele continua: “Tudo bem, pelo menos está tudo dobrado”. Na sequência, explica: “Antes, eles deixavam tudo bagunçado. Até o dia em que os que estão no quarto cinco arrumaram as camas sem que ninguém desse uma ordem. Agora é uma concorrência para ver quem deixa o lençol mais esticado”.

O ambiente, apesar de contido, tem espaço para esse tipo de conversa entre diretoria e interno. Em um dos corredores, uma tabela chama a atenção porque informa quem é quem no centro. Nela estão escritas “as referências” de cada menino – os profissionais da equipe psicossocial.

O refeitório serve para as refeições e também funciona no improviso. No dia da visita, enquanto um dos funcionários colocava um filme para rodar na TV, outro deixava três caixas cheias de livros sobre uma mesa. Alguns meninos se interessaram pelos livros, mas a maioria preferiu assistir ao filme. Uma das caixas só tem Bíblia, presente das duas organizações evangélicas – Igreja Universal do Reino de Deus e Congregação Cristã do Brasil – que realizam cultos semanais na fundação. A frequência dos meninos nesses encontros é irregular. “Tem dias que lota. Mas tem dia que vão quatro, cinco meninos”, diz Oliveira.

A Casa Governador Mário Covas foi a 71a aberta desde 2006, quando o nome da instituição mudou de Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) para Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Mais do que o rebatismo, a ideia foi melhorar o atendimento do Estado aos adolescentes em conflito com a lei. Uma das reformulações foi a descentralização da entidade, realizada por meio da construção de unidades no interior do Estado, o que reduziu o número de rebeliões, que desgastaram a imagem da antiga FEBEM.

De acordo com o último relatório da Fundação Casa, de agosto último, havia 10.035 jovens na instituição em todo o Estado de São Paulo. Desses, 7.328 (73,2%) tinham entre 15 e 17 anos e 42,9% estavam privados da liberdade por roubo qualificado. Dados de 2013 da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SINASE) mostram que o País possuía 23.066 menores de 18 anos cumprindo medidas socioeducativas. Ao fazer a comparação, chega-se a um resultado alarmante: o Estado de São Paulo comporta 43% do total de adolescentes em conflito com a lei.

O que eles contam
João e Mateus, ambos de 16 anos, acompanharam a nossa visita, em meio às suas lembranças, rotinas e regras. Ao longo do encontro, percebe-se que há normas bastante peculiares lá dentro, como pedir “licença” cada vez que cruzam com qualquer pessoa, andar sempre com as mãos para trás, falar muitos palavrões e terminar as frases invariavelmente com “senhor”. Eles contam que tiveram o primeiro contato com livros na Fundação Casa. João acabou de ler Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, mas admite ter gostado mais da história de A Hora da Estrela, da brasileira Clarice Lispector. Mateus também fala sobre sua leitura preferida. Foi um livrinho pequeno e surrado chamado A Última Pedra, de Rogério Formigoni, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. “Já leu esse, senhor?” Ao receber a negativa, ele conta que o livro trata de um jovem viciado em crack que consegue se reerguer.

Mas os meninos também leem jornais e revistas. Por isso sabem argumentar sobre o que muito lhes interessa: o debate em torno da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos para crimes hediondos. João parece mais familiarizado com o assunto, enquanto Mateus acompanha as palavras do colega para formular a sua opinião. “Olha que louco, senhor. Os caras fizeram mais unidades da Fundação Casa do que escola. Não é uma contradição, senhor?”, pergunta João. Antes que pudesse continuar, Mateus diz: “No meu bairro não tem escola nem posto de saúde, senhor”.

Ninguém passa incólume por uma temporada de privação de liberdade. “Eu odeio este lugar”, diz João. “Mas seria ingrato se não dissesse que isso aqui mudou minha vida, senhor. Nunca tinha lido um livro no ‘mundão’, senhor. Aí vim para cá e conheci todos esses caras. Agora estou lendo um livro que conta a história do mundo, dos hominídeos, do homo erectus, dos homens que desceram das árvores e começaram a andar com duas pernas. É louco, não é, senhor? Jamais leria um livro lá fora, senhor. Por isso tenho de admitir que isso aqui mudou minha vida. Vou sair daqui e nunca mais fazer cagada.”

João está na Fundação Casa há um ano, desde setembro do ano passado. Ele se tornou interno depois de assaltar uma mulher em uma rua do Jardim Brasil, bairro no extremo norte de São Paulo, onde sua família mora. Na ação, João usava uma faca de cozinha. Ele conta que foi flagrado por policiais, colocando a ponta do objeto cortante no abdômen da vítima. Na hora, pensou em tentar fugir, mas foi fortemente segurado pelo policial. “Fiquei com o‘cu na mão’. Nunca tinha entrado num camburão, senhor. Fiquei lá até a minha mãe chegar. Ela estava indo para o trabalho e viu os policiais na rua. Acho que se tocou que era eu. Me deu um conforto quando ela entrou na viatura, que o senhor nem imagina. Ela estava chorando, mas foi até a delegacia, me levou lanche, acompanhou tudo.”

Nunca tinha lido um livro no ‘mundão’, senhor. Aí vim para cá e conheci todos esses caras. Agora estou lendo um livro que conta a história do mundo, dos hominídeos, do homo erectus, dos homens que desceram das árvores e começaram a andar com duas pernas. É louco, não é, senhor?

Antes da internação, João usava drogas, basicamente cocaína. Entrou nessa quando tinha 11, 12 anos. Já tinha cometido outros roubos para sustentar o vício. Seu irmão mais velho, que gerenciava um ponto de venda de drogas, também está privado de liberdade em uma penitenciária do interior do Estado. Os outros dois não tiveram experiências melhores: um está detido por tráfico de drogas e outro, que recentemente saiu da cadeia, voltou para as ruas. João não sabe nada sobre o emprego da mãe, mas tem certeza de que ela “não está ganhando bem”. O diretor Edson Luis de Oliveira diz que João “não é criminoso”. O problema dele seria o vício. “Quando chegou aqui, estava acabado. Hoje é outro menino.”

Por enquanto, João tem sonhos aparentemente prosaicos para quando recuperar a liberdade, provavelmente nos próximos dias. “Vou pegar essa marginal aí, ir até o Shopping D, comprar um BK Picanha, um saco de batata frita, um milk shake de Chokito e assistir qualquer filme que estiver passando no cinema”, diz, encarando o arame farpado no topo das muralhas do prédio.

Mateus é mais calado. Enquanto João fala, ele prefere rir da espontaneidade do único amigo que fez lá. Os dois andam sempre juntos. Mateus também está internado desde setembro do ano passado, mas chegou à Vila Maria em dezembro, depois de ficar no centro de atendimento do Brás, na região central da cidade. Ele diz que nunca se viciou em drogas e roubava para pagar desejos materiais que os pais não podiam lhe dar.

“Eu não vim de uma família rica nem pobre, mas era bem de vida, senhor. Desde pequeno minha mãe saiu de casa, fui criado pelo meu avô. Fiquei até os 11 anos lá. Ele tentou me molestar, eu e minha tia, senhor. Falei para a minha mãe, mas ela não acreditou.” Mateus conta que a mãe só começou a dar conta do problema quando ele e a tia foram visitá-la. “Minha tia chorou e minha mãe viu que eu estava contando a verdade.” Naquele mesmo dia, os três foram à delegacia para denunciar o avô. A partir de então, Mateus toma remédios para controlar o trauma. “É difícil esquecer, senhor. Às vezes, estou com a cabeça vazia e vem.”

O avô acabou preso, Mateus foi morar com a mãe, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Um dia, foi flagrado com um cigarro de maconha por uma vizinha, que contou para a sua mãe, que, por sua vez, decidiu dividir o assunto com o pai de Mateus. “Ele me telefonou e disse que iria me matar. Meu pai não me batia, mas meu tio sim.” João interrompe, eufórico: “Olha aí”, aponta em direção à parte superior da orelha direita de Mateus, que tem uma cicatriz, aparentemente fruto de um corte profundo.

Com medo da reação do pai, Mateus fugiu de casa no mesmo dia do telefonema. “Fiquei na rua. Fui morar na casa de uns amigos e comecei a traficar, senhor. Meus pais até me procuraram, falaram para eu voltar para casa, mas disse que não queria porque eles estavam querendo me agredir.” Um mês depois, decidiu roubar e foi pego. Ele não tem previsão de deixar a unidade, apesar dos constantes elogios que recebe dos coordenadores, que o consideram “observador” e “inteligente”.
No desfecho do encontro, recuperamos nossos pertences na recepção da unidade. Os portões se fecham, ouve-se o som forte da tranca de ferro. Do lado de fora, às margens da Marginal Tietê, fica a questão: adolescentes em conflito com a lei ou a sociedade em conflito com os adolescentes?