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Jochen Volz, novo diretor da Pinacoteca

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O curador alemão Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo desde maio último, o alemão Jochen Volz fala sobre seus planos para o museu, sua experiência à frente de outras importantes instituições culturais no Brasil e no exterior, e também opina sobre o sistemático ataque conservador contra as exposições de arte no País.

Quais são seus planos para a Pinacoteca?

Jochen Volz — Uma instituição é muito mais do que uma programação de exposições. Tem politicas de acervo, de manejo de obras, de recursos humanos, envolve muitas equipes, é uma grande formadora de profissionais, tem uma programação educativa, uma programação cultural. São perfis diferentes. Acho que o primeiro tempo de uma chegada como gestor é esse momento de escuta. Foi um desejo meu pensar, nesses primeiros meses, as várias ações acontecendo em dois prédios. Ainda temos o Memorial da Resistência, que é um equipamento do Estado administrado pela mesma OS (Organização Social), uma instituição parceira, vizinha, dentro do mesmo prédio.

Colocar todo mundo no mesmo pé?

Sim. Ou pelo menos todo mundo consciente que a Pinacoteca é só uma dessas tantas ações. Ela não é uma ação só educativa, só manejo de acervo, só programa de exposições, ou a programação cultural. A Pinacoteca é a soma de tudo isso. Foi um exercício coletivo, uma tentativa de entender quais são os programas perenes, especiais, quais estão vinculados a uma exposição e quais tem uma vida independente. Tentar organizar isso de uma forma que todos entendam que a soma de tudo isso é a vida da instituição. Eu achava muito importante falar de todas as áreas num único documento, que chegasse ao nosso publico.

Na Pinacoteca há uma ambiguidade, talvez até uma contradição, porque ao mesmo tempo em que ela é histórica, tem esse grande acervo, ela cada vez mais vem se tornando contemporânea. Como você lida com esses dois lados?

Acho muito interessante pensar que ela tem um perfil muito claro. Mas pensando um pouco no histórico da Pinacoteca, é possível notar que mesmo quando foi criada ela já serviu para ensinar os jovens artistas. Era um equipamento de ensino. Então na verdade ela sempre foi muito ligada à arte contemporânea da sua época. Ela também tem essa função de contar uma história da arte brasileira, mas ela nunca se entendeu só como um museu de arte brasileira. Quer ser um museu de diálogos internacionais.

Muito se falou quando você foi convidado que o grande interesse era exatamente abrir esse canal com a arte internacional. Você acha que a arte brasileira está mais integrada?

A colaboração que eu pude dar nos últimos anos foi criar diálogos entre artistas brasileiros e outros de fora do país, em ambas as direções. Isso vem acontecendo naturalmente, mas historicamente alguma coisa mudou. Essa coisa de caixinha de arte brasileira é muito menos marcante. Desde os anos 1990, com mais naturalidade, artistas brasileiros circulam em diálogo com artistas do mundo inteiro. A própria evolução da Bienal de São Paulo contribui para isso. Desde 2006 ninguém mais vem com o rótulo de ser artista inglês, holandês, ou sul-africano, mas sim porque está em sintonia com uma questão posta. Para mim o interesse é pensar um pouco como criar diálogos mais estratégicos. Trazer pura e simplesmente um nome famoso da arte internacional para o Brasil me parece insuficiente. É interessante pensar quais diálogos podem ser criados que realmente mostram o que fazemos aqui de forma diferente, que modifiquem nosso pensar, ou nosso olhar, nosso entendimento, nossa visão do todo. Acho que isso é um desejo de operar muito estratégico.

Já li que no início de seu trabalho na Portikus, em Frankfurt, você se via mais como um realizador de exposições do que como um curador.

Organização de exposições: é o que respondo quando me perguntam o que faço. Nunca me senti como autor de um projeto. Até na Bienal de São Paulo, por exemplo, que é obviamente um projeto mais autoral, para mim foi muito importante que isso tenha sido um projeto coletivo, tanto com outros curadores como em diálogo com todos os artistas, muitos deles que nem participaram da mostra e que talvez nem saibam como foram importantes também na formação do projeto. E não só artistas, mas acadêmicos, lideranças, várias outras figuras. Eu entendo que somos formados por todos os encontros que temos.

Você já dirigiu, no Brasil, instituições de grande importância. Inhotim, Bienal e Pinacoteca compõem um bom trio. Cada uma dessas instituições tem suas especificidades. Você parece prestar atenção no que cada uma delas pode render.

Em cada uma eu estava num momento muito específico. Quando fui chamado para colaborar com Inhotim, a instituição refletia sobre a possibilidade de criar seu próprio perfil, a partir do contexto em que está inserida, em Brumadinho, sem outros museus em torno. Foi um processo de aprendizado em conjunto. Mas também isso foi 13 anos atrás, estava num outro momento. Tinha relacionamento com artistas, mas pouca experiência com gestão de instituições e a gente foi aprendendo junto. A Bienal de São Paulo é totalmente outros quinhentos. Era uma situação extremamente privilegiada, para a qual fui convidado não como gestor, mas como curador. Trata-se de uma instituição consolidada, com uma equipe consolidada e muito bem gerida, que reage a uma proposta curatorial e ajuda que isso se torne realidade. Foi um privilégio enorme fazer isso. Agora para mim a Pinacoteca é um outro momento. É uma das instituições de arte com uma das histórias mais longas no pais. Tem muita tradição, muita experiência e corpo técnico incrível. É um convite para ajudar a partir da minha experiência de trabalho com instituições de fora e brasileiras. Ajudar a pensar como uma instituição desse peso pode continuar crescendo. Porque um museu só é ativo enquanto coleciona.

Você tem uma experiência, uma vida, uma família, uma vivência brasileira. Não é exatamente um curador estrangeiro. Como é ter essa dupla nacionalidade?

Minha carreira profissional aconteceu muito mais no Brasil do que fora. Eu devo a arte brasileira muito mais, de uma certa forma, do que à cultura alemã ou europeia. Por outro lado, nesses anos em Inhotim percebi que vinha assumindo cada vez mais um papel daquele curador que conhece o Brasil, mas tem um olhar de fora. O que pode ser uma perspectiva interessante, mas as vezes é muito delicado também. Em 2012, quando aceitei o convite de trabalhar na Serpentine em Londres foi um pouco uma reação a isso. Esse perfil de estrangeiro que trabalha no Brasil principalmente com artistas ou com arte brasileira, ou trabalha fora com artistas brasileiros, não me parecia suficiente. Acompanhei um monte de exposições durante esses três anos e meio que fiquei lá. Aumentar o vocabulário foi muito importante. Além disso, hoje há mais pessoas com pesquisa similar, outros curadores, outros organizadores de exposições que hoje moram e trabalham no Brasil e que também são estrangeiros. A situação de 2004 para cá mudou muito.

Você fala muito da importância da troca com os artistas. Além do casamento e da proximidade com o trabalho da Rivane Neuenschwander, o contato com a obra de Cildo Meireles foi fundamental em sua trajetória, não?

A primeira exposição com um artista brasileiro que organizei foi com a Rivane. Quando a convidamos para fazer um projeto em Frankfurt em 2001 ela disse:  “Curioso, estão me convidando e não convidam o Cildo. Está faltando esse olhar para uma geração que nos ensinou muito”. A partir disso eu comecei a pesquisar mais o trabalho do Cildo e me aproximar dele. Fiz um convite a ele para um projeto em Frankfurt já em 2002, que se realizou em 2004. No segundo semestre de 2004 trabalhamos junto em Inhotim e desde então vários projetos foram feitos. Nesse sentido ele foi muito importante como uma das figuras com que até hoje tive mais diálogo, um diálogo contínuo.

E tem na obra dele talvez essa relação entre conceito e um cuidado com a forma, uma delicadeza, um afeto, com o próprio fazer, que você parece buscar na arte brasileira?

É, eu já falei isso. Eu vejo muito entre esses dois polos dois artistas históricos com que trabalhei intensamente, que foram Tunga e Cildo. Uma característica que me fascina na arte brasileira, que a diferencia de outras, é essa convergência entre discussão formal e discussão conceitual. A poética e política sempre é integrada. Não se separa. É diferente de uma arte inglesa, que talvez tenha uma reflexão sobre modos de fazer, uma coisa mais dura. Ou de uma escola mais alemã onde ou domina o conceitual ou o formal; são pontos diametralmente opostos mas podem estar juntos. É uma coisa que os pesquisadores em geral estão muito interessados, a arte brasileira ensina.

Talvez a gente esteja até vendo um refluir disso? Em função desse retrocesso reacionário, de um embate mais intenso em torno de questões importantes. As coisas parecem estar ficando mais duras?

Acredito muito no poder da arte, estou convencido de que a arte sempre sobrevive. Obviamente em momentos favoráveis ela assume outras formas, mas ela também nasce a partir da resistência. Já a cultura não. A cultura é um pouco aquele vocabulário que nós criamos coletivamente para poder falar disso, entender nosso ser no mundo, de uma forma mais complexa.

Gosto de usar esse paralelo mais óbvio, entre cultura e agricultura. Quando a gente joga veneno num terreno, não cresce mais nada e a gente perde essa riqueza e a consciência dessa riqueza. Estou mais preocupado com a dita cultura, a partir da qual a gente consegue estabelecer, defender e resistir a essas invasões super radicais e ultra conservadoras. Estou muito mais preocupado com perder essas memórias – perder por exemplo essa noção que falávamos de integração entre uma poética, uma política, um conceito e uma formalização, algo que é tão diferencial e tão único na arte brasileira. Isso é muito triste.

Como enfrentar isso?

Acho que a gente tem que fazer muito esforço para defender nossas instituições como espaço plural. A diversidade é o único jeito, A gente pode aprender por exemplo com culturas indígenas que claramente cultivam a terra em múltiplos caminhos, sempre visando a diversidade. Se alguma coisa está sendo ameaçada, tem outras formas que seguram a cultura em conjunto. Estamos vivendo uma situação histórica na qual a diversidade está sendo atacada, a multiplicidade está sendo reduzida para que se tenha uma só narrativa predominante e isso é muito perigoso. O papel principal das instituições culturais é promover a diversidade, a pluralidade. Criar formas, programas inclusivos para todos, entender que as linguagens são muitas, que os discursos são muitos. É nosso papel.

Você poderia fazer um balanço da 32a Bienal? Foi uma bienal que quebrou vários paradigmas e a noção de incerteza, que balizou a mostra, parece cada vez mais presente hoje.

Para mim é muito curioso isso, é um processo que ainda está em andamento. Em vez de fechar em dezembro, ela se desdobrou num monte de outros diálogos. Passou por doze cidades brasileiras, foi para Bogotá, para o Porto, em Portugal, ela é muito viva. Os assuntos que desenvolvemos como eixos principais –  as cosmovisões, a educação, a ideia de narrativas, as identidades múltiplas e a ecologia – são exatamente esses assuntos que estão sendo ameaçados diariamente.

Exatamente. São por essas frentes que identificamos o retrocesso?

Tudo que a gente tem vivido, o retrocesso ou o controle pelo capital, o desejo de poder pelo poder, é tudo por aí. Nossos recursos do Brasil estão todos em jogo. A ecologia, a diversidade, a multiplicidade, a questão indígena… Mas a discussão não acabou. E é curioso, porque durante a Bienal, nesses três meses em que ela teve 900 mil visitantes, não tivemos nenhum problema desta ordem aqui em São Paulo. Mas tenho certeza de que se a gente abrisse hoje a mesma Bienal era o que aconteceria. Isso porque não foi nem um ano atrás.

Com relação à programação da Pinacoteca, é possível notar algumas linhas de força e um peso de questões candentes como as discussões de gênero e raça. ‘Radical Women’ se apresenta como um dos grandes destaques?

Acho importante entender que é uma exposição histórica, que está sendo organizada pelo Hammer Museum, de Los Angeles. São duas curadoras, a Cecilia Fajardo-Hill e a argentina Andrea Giunta, que há sete anos vem fazendo uma pesquisa, olhando para a arte desenvolvida por artistas mulheres dos anos 1960 até 1985. Um período claramente definido em que as artistas mulheres assumiram cada vez mais um protagonismo dentro da reinvenção da arte. O que é muito bonito nessa exposição é que ela mostra claramente que,  embora muitas tenham sido ativistas solitárias, elas não estiveram sozinhas. Fazem parte de um grupo de pessoas, de uma pesquisa, bem maior do que uma conquista individual de cada uma delas.

Uma arte fora dos paradigmas?

Vejo que essa exposição tem um papel, por isso a gente está fazendo este esforço de trazê-la para cá, em sua única itinerância para América Latina. Podemos destacar três aspectos muito interessantes. Um deles é o fato de olhar para a arte feita por artistas mulheres neste período; outro é o destaque dado para as mídias e formas de expressão que foram inventadas por essas artistas, que hoje a gente entende como parte do nosso vocabulário, mas que na verdade desconhecemos a fonte. Por último, talvez esta seja uma das maiores exposições já feita sobre a arte latino-americana. Ela não olha a arte colombiana, a arte brasileira, a arte chilena, enfim. Ela realmente conta uma história de uma geração, dentro de um continente, um conjunto cultural, de uma forma extremamente ampla, algo que raramente se vê.

Você destacaria mais alguma exposição da programação?

Acho que o outro destaque será a próxima grande exposição, que abre depois do Di Cavalcanti: uma retrospectiva de Hilma af Klint, uma sueca, que se formou nos anos oitenta do século XIX, momento em que muitas coisas não são visíveis se tornaram visíveis, como o raio x, o radio, etc. Ela começou a se comunicar com energias, criou técnicas de desenho automático, para explorar esse campo não explorado ainda de uma forma muito inovadora. E, no início do século XX, começou a desenvolver uma arte “abstrata” extremamente revolucionária.

Precoce, não?

Super precoce. Antes de todo mundo. Foi uma das pioneiras. E mais surpreendente, trabalhou numa escala enorme. Há por exemplo um conjunto de dez grandes telas, pinturas que tem 3,50 por 2,40 metros de dimensão. Na história da arte, demorou ainda muito tempo até chegar nessa escala. E ela desenvolveu uma prática extremamente interessante, baseada numa exploração serial. É muito impressionante.  Quando ela faleceu, em 1944, pediu em testamento que não mostrassem esse trabalho por mais vinte anos para ninguém. Ficou trancado até os anos 1960. A família quis doar esse trabalho todo para o Pontus Hultén, que era o diretor do Moderna Museet de Estocolmo. Ele não entendeu a história de uma mulher que fazia figura abstrata antes do Kandinsky e deixou passar. O material ficou meio desconhecido até os anos 1980. A partir daí algumas obras começam a circular, mas só em 2013 ocorre a primeira retrospectiva mais sistemática de sua obra, que foi feito pelo próprio Moderna Museet de Estocolmo. Tem alguns eixos na pesquisa dela, a ideia da serialidade, das cores, da geometria, a ideia de se entender cada vez o mundo de uma forma mais plural e cosmológica, que permite um diálogo extremamente interessante com a arte brasileira. Enfim, foi uma artista sobre quem sempre fiquei curioso e agora abriu-se essa possibilidade de trazê-la, com uma nova exposição, curada por nós.

Foi idealizada para a Pinacoteca?

É. Uma curadoria minha junto com diretor do Moderna Museet de Estocolmo e em colaboração com a Fundação Hilma af Klint. A gente fez uma nova curadoria para cá que busca esse diálogo com a história da arte brasileira. Apresenta por um lado a pesquisa da Hilma para um publico brasileiro e latino-americano pela primeira vez, mas também é uma tentativa de trazer um outro olhar para o trabalho dela onde talvez o diálogo com a arte brasileira possa acrescentar alguma coisa além da leitura dela própria.

Uma coisa alimenta a outra?

A história da arte não é só linear. E a arte brasileira pode abrir caminhos para entender o trabalho de uma Hilma embora ela não tenha diálogo biográfico nenhum com a América Latina ou o Brasil.

Em momentos difíceis, é preciso tempo para construir alternativas

Os curadores buscaram criar uma mostra que desse “apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem'. Foto: Divulgação.

Qual a relevância de uma bienal de arte em meio a um regime opressor? Em um contexto delicado, quando após uma estranha tentativa de golpe, em 2016, a Turquia passou a prender dezenas de intelectuais, jornalistas e acadêmicos, esta foi uma das questões recorrentes aos artistas e curadores Elmgreen & Dragset, responsáveis pela 15ª. Bienal de Istambul.

Trabalhando juntos desde 1995, primeiro na Dinamarca, depois em Berlim, onde vivem desde 1997, o norueguês Ingar Dragset (1969) e o dinamarquês Michel Elmgreen (1961) consultaram até o prêmio Nobel de literatura Orhan Pamuk sobre a conveniência da organização da bienal.

A mensagem do escritor foi clara: “não se amedrontem”. Com isso, de acordo com Dragset, em entrevista à ARTE!Brasileiros, durante a abertura da Bienal, em setembro passado, os curadores buscaram criar uma mostra que desse “apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem”.

Intitulada “um bom vizinho”, a Bienal reuniu 56 artistas de 32 países, em seis locais expositivos, do museu Istambul Modern a uma residência modernista, que serviu de sede para a Proposta para uma Casa Museu do Desconhecido Homem que Chora, projeto do artista egípcio Mahmoud Khaled.

Esse ambiente íntimo, acaba reverberando em vários outros espaços da mostra, o que para Dragset significa que o momento agora é de um tempo interior. Veja o porque a seguir.

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Obra de Andrea Joyce Heimier exibida na Escola Grega, em Istambul.

Dezenas de jornalistas e acadêmicos estão presos, e a liberdade de expressão está seriamente ameaçada na Turquia. Como é fazer uma bienal neste contexto?

INGAR DRAGSET – Nós estivemos muito inseguros, até certo ponto, se ela seria possível ou mesmo se é relevante fazer uma bienal em um situação como esta. Logo após a tentativa de golpe que ocorreu no ano passado, o que fizemos foi colocar o tradicional processo curatorial em suspensão, afinal precisávamos falar com as pessoas locais sobre a visão delas do que ocorreu, só elas teriam uma leitura precisa dos fatos. Então, dez dias após a tentativa de golpe, viemos ouvir não apenas de artistas e curadores, mas jornalistas, políticos, pesquisadores, diretores de instituições, acadêmicos e assim por diante o que eles pensavam da Bienal, e se organizar esse evento seria ou não relevante.

Entendemos, então, bem rapidamente, que o pior que poderia ocorrer, naquele momento, seria o rompimento com a comunidade internacional. Imediatamente após o golpe, teve um expurgo de intelectuais e acadêmicos, ameaçados pelas autoridades, criando mais medo e isolamento. Escritores como o Orhan Pamuk, com quem tivemos um jantar naquela semana, nos disse: “rapazes, por favor não se amedrontem (chicken out), de um modo bem prêmio Nobel de se expressar.

Voltamos, então, à Berlim mais encorajados e recomeçamos o projeto curatorial, pensando que a Bienal poderia ser uma forma de manter os canais de comunicação abertos, de dar apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem, o que tem muito a ver com o que se vê por aqui no momento.

De resistir?

Sim, de resistir, de buscar alternativas. As pessoas não sabem, mesmo após Gezi (os protestos massivos na praça Taksim Gezi, em 2013), como é possível expressar oposição.

O tema “um bom vizinho” já estava escolhido, naquele momento?

Sim, ele é menos um tema e mais uma ferramenta de trabalho, mas já tinha sido escolhido e se tornou mais relevante com o Brexit e com o muro prometido na campanha do Trump na fronteira do México.

Por outro lado, esse nome tem a ver com o passado da Turquia, que é uma história de convivência na diversidade por séculos, de uma sociedade com muitas camadas, o que contradiz o presente do país.

Em momentos duros assim, talvez a tendência seja ser mais documental, de denúncia do que ocorre. Mas essa bienal é o oposto disso, ela é delicada e ambígua, o que talvez sejam formas possíveis de resistência.

Em momentos assim, a primeira coisa é ouvir. Entretanto, a oposição não é muito alta, o que se reflete nos trabalhos dos artistas turcos, que são mais introspectivos, com mais pesquisa, mais poéticos, o que não significa que sejam menos importantes. É o caso do trabalho de Volkan Aslam, comissionado para a Bienal, muito representativo do que muitas pessoas, especialmente as jovens, sentem, que é o desejo de voltar à normalidade do dia-a-dia, ao enrolar um cigarro, beber um café, escrever uma carta…

Na mostra de fato há muitas obras que tratam da estabilidade e instabilidade do lar, como as pinturas de Andrea Joyce Heimer, que representa lares enlouquecidos.

E nós não sabemos para onde isso vai, toda essa insegurança não está sendo sentida só aqui, mas em muitos lugares do mundo e ainda estamos pensando em como reagir a toda essa estupidez dos líderes políticos, dos altos escalões da política internacional. Mas para isso precisamos tomar o nosso tempo, insistir em nossas identidades, nossos modos de se expressar, sem sermos forçados, como artistas, intelectuais e acadêmicos, a dar uma resposta rápida como “hooligans” (torcedores fanáticos).

E o artista brasileiro Victor Leguy, como você chegou ao trabalho dele?

Para ser honesto, eu vi o trabalho dele pela primeira vez no Instagram. (risos). Além dele, também descobri Andrea Joyce Heimer no Instagram, mas nunca a encontrei, apesar de nos comunicarmos muito.

Com Victor, eu consegui ir visitá-lo em São Paulo e logo depois de conhecê-lo, percebi que realmente gostaria de trabalhar com ele. É um artista com tantos níveis, que aborda questões sociais, usa readymades, o que é bastante raro. Esse trabalho que ele apresenta aqui, no qual mistura objetos que encontra com histórias pessoais, é algo que muitos fazem, mas do jeito que ele trabalha, cobrindo partes em branco, é uma excelente forma de apontar como a sociedade apaga partes significativas da cultura, transforma tudo em quase a mesma coisa, é quase uma forma escandinava de falar de monocultura.

Alejandro Almanza Perada
Foto da instalação ‘PYZ’ 1915, do artista mexicano Alejandro Almanza Perada

Usar Instagram no processo curatorial é interessante, fale mais sobre esse processo…

Foram apenas dois artistas escolhidos pelo Instagram, mas obviamente usamos a internet para mais informações, sites de galerias, site de instituições. Mas também usamos o formato de pesquisa tradicional, fomos para a América do Sul, do Norte, África do Sul – onde fui pela primeira vez e achei incrível, daria para fazer toda uma bienal só com artistas de lá, é uma cena muito forte.

A curadoria de uma bienal é um processo no tempo, que um dia termina, já criar uma obra é um processo no espaço, que permanece. Como vocês diferenciam estas duas tarefas?

Curar uma bienal é trabalho que nos consome muito, de um momento para outro você se vê envolvido de situações políticas a conseguir patrocínio, definir logos, espaços. É um monstro. E, nestes últimos seis meses, praticamente paramos de produzir nosso trabalho, tanto que estou com medo de voltar ao ateliê (risos).

Creio que essa é a primeira vez que uma bienal está pronta quase um mês antes da abertura, essa é a maneira escandinava de se produzir uma bienal?

Superneurótico, como os filmes do Bergman, você quer dizer (risos), com toda a culpa protestante… Bom, uma coisa que a gente traz como artista é essa experiência pragmática, afinal nós já participamos de muitas bienais, e sabemos que para colocar de 60 a 70 projetos é preciso tempo. Tivemos um fantástico time também e, talvez isso se relacione às dificuldades do momento, houve uma energia positiva incrível em torno da bienal, de todos os técnicos, assistentes, voluntários, como se todos quisessem que algo bom acontecesse.

Como vocês começaram a fazer curadoria?

Nós nunca sentimos de fato uma oposição entre práticas artísticas e curatorais. Quando começamos, no início dos anos 90, em Copenhague, não havia uma cena comercial e tão pouco uma cena institucional, então tudo era possível e tudo dependia de nós. Criamos nossas exposições, revistas, performances, espaços expositivos, festivais.

Mas é raro esse reconhecimento tanto como artistas como curadores. Essa é a primeira bienal, não é?

Sim, e deve ser a última. (risos) Mas, sabe, foi natural, pensando novamente em Copenhague. Naquele momento, era quase a única opção pensar em tudo como um “gesamtkunstwerk” (obra de arte total).

As artistas esquecidas pela história

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"Sessão do Conselho de Estado" (1922), de Georgina de Albuquerque, primeira mulher premiada por uma pintura histórica

Em 1922, a famosa Semana de Arte Moderna rompeu com as tradições, imortalizando artistas como Anita Malfatti e Mário de Andrade. Nesse mesmo ano, outro acontecimento, muito menos celebrado pela historiografia, também constituiu um marco importante na arte brasileira: pela primeira vez, uma mulher era premiada por uma pintura histórica, gênero artístico mais prestigiado na época.

A paulista Georgina de Albuquerque recebeu o prêmio, concedido pela Escola Nacional de Belas Artes, pela pintura Sessão do Conselho de Estado. A partir do tema da independência do Brasil, a artista questionava as representações do poder, colocando uma mulher no centro de um acontecimento histórico. Ao invés de retratar um evento triunfal, como a famosa tela de Pedro Américo, a obra representava um episódio diplomático no qual a princesa Leopoldina ouvia as opiniões dos membros do conselho de Estado sobre a independência.

O fato de a pintura ter sido produzida por uma mulher já representava uma transgressão por si só. Na concepção da época, as artistas eram mais aptas a produzir obras delicadas, como as de natureza-morta ou reproduções, e não temas complexos, como os eventos históricos, que exigiam grande habilidade técnica. Além disso, ao representar um acontecimento político, a artista discutia um assunto da vida pública, esfera vetada às mulheres da época.

Assim como Albuquerque, muitas outras mulheres produziram trabalhos relevantes na virada do século XIX para o XX. No entanto, suas obras ainda são pouco conhecidas, mesmo pela crítica especializada. Esse ocultamento de personagens históricas tão relevantes foi o que motivou a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Ana Paula Simioni a pesquisar a trajetória dessas pintoras e escultoras.

“Existe uma névoa que acoberta a lembrança de outras artistas anteriores a Tarsila e Anita Malfatti, como se antes das modernistas simplesmente não tivessem existido artistas do então denominado ‘sexo frágil’. Existiriam artistas mulheres no século XIX? Se sim, quem foram elas? E por que sabemos tão pouco sobre elas?”, afirma Simioni na introdução da sua tese de doutorado.

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A obra ‘Estendendo a Roupa’, de Abigail de Andrade. Coleção de Sérgio e Hecilda Fadel

Em entrevista à Brasileiros, a pesquisadora pontua que as artistas do período precisaram enfrentar inúmeros obstáculos para conseguir produzir. Um dos principais era a própria profissionalização. Até 1889, as mulheres eram proibidas de se inscrever na maior parte dos cursos superiores. Apenas após a proclamação da República, o acesso foi liberado e, mesmo assim, ainda havia uma forte oposição da sociedade.

Na concepção da época, as mulheres deviam se restringir ao ambiente doméstico, sendo a maternidade a sua função primordial. Qualquer ação que pudesse desviá-las era um sinal de ameaça, como evidencia uma crônica da época publicada na revista Kosmos, em 1904: “Enquanto o homem, entregue à vida pública, desenvolve a ciência, a arte e a indústria, a mulher no lar o prepara para essa mesma vida. Ela não produz as grandes obras, mas forma os grandes homens; toda a sua glória está na dos homens que educa”.

No universo das artes, a principal instituição responsável pela formação era a Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Como não havia um mercado artístico paralelo, a escola monopolizava as poucas chances de carreira e projeção, organizando exposições e concedendo bolsas para o exterior aos alunos que se destacassem.

Desde 1889, as mulheres eram aceitas dentro da instituição. Porém, havia inúmeras dificuldades, desde salas e ateliês separados ou restrições ao acesso às aulas de modelo vivo. O estudo do nu era considerado uma das etapas essenciais na formação dos artistas. No entanto, para a moral da época, era um escândalo que as mulheres se juntassem a um grupo, formado majoritariamente por homens, para contemplar modelos despidos.

Mesmo assim, em 1897, a jovem paraense Julieta de França se matriculou na aula de modelo vivo da Escolas de Belas Artes, sendo a única mulher do curso. França é uma das personalidades estudadas por Simioni, que reconstitui a trajetória da artista. Interessada pela escultura, a paraense se destacou no curso da Escola de Belas Artes, tendo sido a primeira mulher a obter o prêmio de viagem ao exterior. Na França, ela aperfeiçoou suas habilidades com o mestre da escultura Auguste Rodin, já tido como uma grande referência.

De volta ao Brasil, em 1908, a artista se candidatou ao concurso que escolheria o monumento comemorativo à proclamação da República. Porém, sua maquete foi desclassificada pela comissão julgadora. Inconformada, a artista retornou à Europa coletando avaliações positivas de artistas e professores renomados, inclusive do próprio Rodin. Com esse documento em mãos, França exigiu que a comissão revisse o seu veredito.

A atitude foi considerada um escândalo na época, já que se tratava de um questionamento dos critérios da própria academia. A paraense assim tomava uma postura de confronto, rompendo com o “esperado recato feminino”, como aponta Simioni. A decisão da comissão não foi revista, mas a polêmica prejudicou a carreira da escultora, que já era malvista por ser mãe solteira, sustentando a sua filha sozinha. Para a pesquisadora, todos esses fatores fizeram com que a trajetória de França fosse apagada, tendo a academia se recusado a celebrar a sua produção.

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 Abigail de Andrade, ‘Sem título’. Coleção de Sérgio e Hecilda Fadel

Amadoras

Em sua luta por reconhecimento, essas artistas também tiveram que se contrapor à categoria de amadoras que lhes era atribuída. A prática artística era considerada uma profissão masculina. Simioni comenta que, mesmo com a inserção do público feminino na área, o rótulo continuou sendo empregado: “Se na época, a condição de amador para os homens era uma situação transitória – uma vez aceitos na Academia, podiam se tornar profissionais –, para as mulheres o amadorismo se tornou um rótulo taxativo, quase inescapável, uma ‘condição’ permanente. Isso porque o termo também comportava toda uma carga de estereótipos negativos sobre as aptidões profissionais e intelectuais femininas”.

As artistas do período adotaram diversas estratégias para contornar esse estereótipo, afirmando-se como profissionais. Na França, por exemplo, a pintora Rosa Bonheur se vestia com roupas masculinas para poder caminhar e observar livremente os animais que depois retratava em suas telas. Não há nenhum caso conhecido no Brasil de uma mulher que tivesse adotado uma postura similar à de Bonheur. No entanto, um dos principais meios de  escapar dos obstáculos impostos era o autorretrato.

A pintora carioca Abigail de Andrade foi uma das que produziram autorretratos relevantes, que construíam sua imagem como a de uma artista confiante, organizada e metódica no trabalho. Uma das obras mais famosas de Andrade, que foi a primeira mulher premiada com a medalha de ouro em uma exposição geral, é a tela Um Canto do meu Ateliê (que ilustra a abertura da matéria). Na pintura, ela retrata a si mesma produzindo uma nova tela. O ambiente é repleto de indícios do ofício da artista, com pinturas e esculturas por toda parte, além de estudos do corpo humano. A arte como profissão era assim reforçada pela carioca, que, ao longo da sua trajetória, sofreu diversas pressões familiares devido a sua opção pelo fazer artístico.

“Por muito tempo, os artistas do século XIX foram desvalorizados no Brasil, em virtude da supremacia do olhar modernista em nossa historiografia”.

Obras como os autorretratos de Andrade ou as esculturas de França ainda são pouco conhecidas, mesmo pelo público especializado. Simioni aponta os possíveis motivos: “Por muito tempo, os artistas do século XIX foram desvalorizados no Brasil, em virtude da supremacia do olhar modernista em nossa historiografia. Dos anos 1980 para cá, isso mudou bastante. No entanto, é bom lembrar, há ainda muito por fazer. Esse desconhecimento sobre o século XIX atinge homens e mulheres, mas no caso delas talvez isso seja mais dramático justamente porque, na época, elas foram julgadas amadoras”.

Alguns trabalhos dessas artistas fazem parte do acervo de instituições como a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu Nacional de Bela Artes. Porém, outras obras, como as de Abigail de Andrade, ainda pertencem a coleções privadas, estando inacessíveis ao público. Simioni acredita que, conforme mais pesquisas mostrarem a importância dessas artistas, os museus tenderão a adquirir seus trabalhos.

Indagada sobre as transformações no universo das artes e a posição ocupada pelas mulheres hoje, Simioni afirma: “Ao longo da história da arte do século XX, temos vários exemplos de mulheres que alcançaram fama e notoriedade, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lygia Clark e Adriana Varejão, entre tantas outras. Ainda assim, os seus exemplos podem ser vistos como casos ‘singulares’ e ‘excepcionais’, que acobertam uma realidade mais ampla de diversas carreiras femininas obliteradas, pouco conhecidas em períodos diversos, desde o modernismo até os dias de hoje”.

 

Frestas consolida-se como evento de ponta

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Ganham destaque obras que interagem com a cidade de Sorocaba

O principal espaço expositivo da mostra Frestas, a trienal de arte organizada pelo Sesc em Sorocaba, é uma garagem. O que poderia representar um certo desprezo pela arte contemporânea, escondendo-a em um setor que regularmente abriga automóveis, revela-se como uma estratégia acertada. O pé direito alto e os grandes espaços sem paredes possibilitam às obras um acolhimento adequado enquanto o aspecto um tanto marginal do local tem tudo a ver com a temática da exposição deste ano: “Entre pós-verdades e acontecimentos”.

Pós-verdade é a maneira técnica de se referir a boatos intencionalmente criados para disseminar falsas verdades, ou seja, surgem de lugares um tanto “invisíveis”, como as garagens, para espalhar mentiras. Desde 2016, quando o dicionário Oxford a escolheu como palavra do ano, “pós-verdade” tornou-se um objeto de estudos e debates.

Por isso, ponto para Daniela Labra, a curadora de Frestas, que trouxe a questão para o campo da arte, um lugar perfeito para o debate da linguagem. Nesse sentido, muitas obras apontam exatamente para esse momento de verdadeira fadiga, quando não só o discurso nas redes sociais, mas também dos grandes veículos de comunicação estão em suspeita.

Na mostra, a obra que sintetiza melhor essa questão é “O ano da mentira, 2017”, de Matheus Rocha Pitta. Nela, um calendário de 365 dias estampa de fato apenas uma data em todos os dias, 1º de abril, com imagens de manifestações populares. Difícil melhor imagem para quem lê jornal diariamente e se vê diante de notícias que, mesmo quando verdadeiras, parecem mentiras, dada a desgraça em seu conteúdo.

Sendo assim, obviamente o tom político da mostra é alto, como o momento de fato pede, mas nem sempre tão explícito. A mexicana Teresa Margolles, por exemplo, comparece com uma coleção de joias, compostas por ouro 18 quilates e estilhaços de vidros extraídos de corpos assassinados, em vez de diamantes. Aqui, a violência que envolve narcotráfico seduz, tanto quanto as carreiras de cocaína que embalam uma sociedade hipócrita, que condena os cartéis, mas consome seus produtos.

Há um caráter de urgência em “Frestas”, que se percebe não só pela temática, como pela natureza dos trabalhos: mais de metade dos 60 selecionados comparece com obras comissionadas pela Trienal. Com isso, artistas produzem na temperatura do tempo presente, e o Sesc cumpre importante papel na cena, que é ser também um espaço para o fomento e não apenas de exibição.

Nesse sentido, ganham também destaque obras que lidam com a cidade de Sorocaba, como no procedimento quase ingênuo, mas de grande efeito plástico, do cubano Reyner Leiva Novo, que montou um imenso painel com escovas de dente usadas, trocadas por novas com moradores de um bairro da cidade.

Mais política é a intervenção de Maria Thereza Alves, que pesquisou vestígios de comunidades indígenas na região, mas o único registro encontrado foi uma urna mortuária em um museu da cidade que não tem acesso ao público. A partir desse contexto, ela criou o projeto “Um Vazio Pleno”, para o qual o ceramista indígena Maximino Kalipety, de Dourados, confeccionou réplicas da urna enterradas em pontos no centro da cidade, entre eles o pé da estátua do bandeirantes Baltasar Fernandes, fundador de Sorocaba.

É com obras assim que Frestas ganha especial relevância, criando um diálogo de fato com a cidade, e não apenas exibindo trabalhos que falam do presente, de forma genérica. Mesmo obras de grande formato, como dos grafiteiros Nunca e Panmela Castro foram realizados em prédios da cidade, ele também tratando da questão indígena, ela do empoderamento feminino.

Ao criar tal experiência fora da capital, o Sesc contribui para que a arte contemporânea mais radical não seja vista apenas em grandes centros, como também as Gorilla Girls, que lá são vistas de forma muito mais dinâmica que no Masp, aliás.  É a partir desse tipo de compromisso com o contexto que a pós-verdade pode ser combatida e evitada.

Filme aborda perversidades em torno da arte contemporânea

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A questão central do filme não está na obra em si, mas como a partir dela chamar a atenção do público para a exposição da artista argentina. Foto: Divulgação

Não se trata de um ataque à arte contemporânea. The Square – A Arte da Discórdia, de Ruben Östlund, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e representante da Suécia a uma vaga no Oscar, é de fato uma crítica contundente à sociedade do espetáculo e toda perversidade que dela emana.

O ambiente principal é de fato um museu, ironicamente chamado X-Royal, como a indicar a grandiloquência que essas instituições vêm buscando assumir no campo da arte, utilizando para tanto a arquitetura de efeitos como um alicerce. Tudo teve início no Guggenheim de Bilbao.

Pois no X-Royal prepara-se a mostra de uma artista conceitual e socióloga argentina, que utiliza a teoria da Estética Relacional de Nicolas Bourriaud para preparar sua individual. Até aí, o roteiro está bem informado sobre a cena de arte contemporânea. Entre as obras, um quadrado de luz no chão à frente do museu, The Square, cria um espaço de convívio entre os transeuntes. Na Bienal de São Paulo, em 2008, Maurício Ianês possuía um trabalho um tanto semelhante, aliás, em torno de figuras geométricas desenhadas no chão, entre elas um quadrado.

A questão central do filme não está na obra em si, mas como a partir dela chamar a atenção do público para a exposição da artista argentina. É quando entra em campo uma dupla de jovens publicitários especialistas em redes sociais. Eles querem criar algo que viralize na internet sem nenhum tipo de constrangimento, como é típico no marketing. Aí é que o bicho pega.

Contudo, The Square possui vários subtemas, que giram em torno do diretor do museu, Christian (Claes Bang): ele se vê envolvido em várias confusões, seja por conta do sexo que teve com uma jornalista que o entrevistara (Elisabeth Moss, de Mad Men), seja por conta de um celular roubado, ou mesmo por sua desatenção no cotidiano do museu, o que na verdade tem razão em parte por causa do sexo e do celular.

Mas é mesmo no X-Royal que está a cena mais marcante, um jantar de gala tão similar a esses sofisticados eventos black-tie, que conselheiros dessas instituições tanto apreciam, e que de repente é colocado em cheque por uma performance agressiva e surreal, sonho de qualquer ser humano razoável frente a essas convencionalidades enlouquecidamente entediantes. Lembra o constrangimento do jantar em Festa de Família, de Thomas Vinterberg.

De fato, é esse tipo de perversidade que permeia The Square e que está tão presente no cinema escandinavo: revelar as obsessões de cada um, do modo mais exagerado possível, porque através de caricaturas pode-se perceber como pequenos gestos às vezes levam a grandes tragédias.

Veja abaixo o trailer oficial de The Square – A Arte da Discórida

Cresce colecionismo latino-americano

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Carlos Arias (nascido em santiago do chile, 1964), Legacy , 1995 - 2014, Bordado em lona de algodão, 175 x 355 cm

Feiras de arte tendem, cada vez mais, a buscar nichos específicos, que concentrem colecionismo e temáticas regionais. Assim, desde que surgiu, Art Basel Miami Beach, por exemplo, vem se consagrando como espaço para o colecionismo latino-americano, refletindo as características da própria cidade-sede. De certa forma, o mesmo vem ocorrendo com a feira Arco, em Madri, utilizando os laços colonialistas do antigo império espanhol.

Na América-Latina, contudo, onde se encontra a origem desse colecionismo, duas feiras vêm se fortalecendo com a cena local: ARTBO, em Bogotá e arteBA, em Buenos Aires.

Estive na Colombia há seis anos, para conhecer a ARTBO, em sua então sétima edição. Naquela época, uma ótima curadoria de Octavio Zaya era vista em uma mostra dentro da feira, mas toda a infraestrutura ainda possuía um caráter um tanto precário e não havia uma representatividade qualitativa de galerias internacionais. Do Brasil, por exemplo, apenas Vermelho e Luisa Strina participavam.

Em apenas seis anos, é impressionante a mudança de ARTBO. Dessa vez, continuam expondo 57 galerias, mas agora sete delas brasileiras: das consagradas Fortes D’Aloia & Gabriel, Vermelho e Luisa Strina, a estreantes recentes, como Blau Projects.

Estavam lá também algumas das galerias mais influentes da América Latina, como Ruth Benzacar, de Buenos Aires e Luis Adelantado, do México. Da Espanha a respeitada Elba Benitez e não cito as colombianas, por motivos óbvios. Faltam várias outras, especialmente mexicanas, mas o fato é que em seis anos, a feira deixou um ambiente provinciano, para ser uma feira verdadeiramente representativa.

Essa mudança tem muito a ver com outra marca de grandes feiras, que são as seções paralelas: mostras com curadoria, debates, eventos, livros de artista.

Nesta edição, ARTBO possui uma exposição que realmente tem caráter museológico, “Referentes”, a cargo da colombiana Sylvia Suárez, que aborda a produção de gravura, do fim da Segunda Guerra à queda do muro de Berlim, especialmente na Colômbia. Retratando questões que transitam entre a violência do narcotráfico às questões de gêneros, artistas como a peruana Tereza Burga, o mexicano Ulises Carrión e os colombianos Miguel Angel Rojas e Beatriz Gonzalez, estão entre os selecionados. Sem dúvida, este foi o ponto alto da feira, ao abarcar uma exposição complexa e com tantos artistas.

Já a seção de debates, denominada Relaciones Publicas, esteve a cargo de ninguém menos que o artista mexicano Pablo Helguera, reconhecido por sua série Artoons, onde ironiza o circuito das artes em imagens. Entre seus convidados, estiveram a artista cubana Coco Fusco, o curador mexicano Cuauhtémoc Medina, e a curadora venezuelana Gabriela Rangel.

Outra seção de grande visibilidade foi curada pela brasileira Kiki Mazzucchelli, Contra el Olvido (Contra o Esquecimento), composta por 15 artistas, que tratam de questões atuais como a falta de escuta marcada frente ao retrocesso mundial de conquistas sociais. Lá, estava a brasileira Rosana Paulina, das poucas artistas do país a abordar a violência contra os negros. Nesta seção também estavam gravuras do argentino Marcelo Brodsky, que retratam movimentos sociais em várias partes do mundo, da França aos Estados Unidos, incluindo aí o Brasil.

Além do próprio fortalecimento da feira, a cena de arte da capital colombiana vive um período positivo, com excelentes mostras em espaços institucionais, como a retrospectiva dos cubanos Los Cubanos, no Museo del Banco de la Republica, além de uma exposição especial da dupla no espaço NC-arte; e uma excelente mostra no espaço universitário Claustro de San Agustin, intitulada Selva Cosmopolita Reunida, com trabalhos que tratam da floresta amazônica, dos desenhos poéticos de Abel Rodriguez, presente na recente documenta 14, em Kassel, à política videoinstalação Selva Juridica, de Ursula Biemann e Paulo Tavares, vista na última Bienal de São Paulo, Incerteza Viva.

Espaços alternativos, como FLORA ars + natura, de Jose Roca, também mostraram sua vitalidade, com uma recente expansão, possibilitando mais de uma dezena de residências artísticas no local, todas ocupadas durante a feira.

Tudo isso levou à Bogota grande número de colecionadores latino-americanos, incluindo aí um grupo de brasileiros. É uma sinergia que leva as feiras a se tornarem espaços de irradiação, que vão muito além do mercado.

O jornalista Fabio Cypriano viajou a convite da organização de ARTBO

Tarsila do Amaral é tema de retrospectiva no MoMA

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Quanto mais próximo do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, mais Tarsila fica em evidência. (Foto: Reprodução)

Uma das artistas brasileiras mais consagradas mundialmente, Tarsila do Amaral é tema de grande exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

A partir do dia 11 de fevereiro até o dia 3 de junho, os 120 trabalhos serão expostos na primeira individual da modernista no MoMA.

Reunidas em acervos da Europa, da América Latina e dos Estados Unidos, obras indispensáveis de Tarsila, como Antropofagia e Abaporu, fazem parte da mostra, que também apresenta fotografias, desenhos, documentos históricos e rascunhos.

Com curadoria de Luis Pérez-Oramas, do MoMA, e Stephanie D’Alessandro, do Art Institute of Chicago, onde foi primeiramente apresentada, a exibição salienta a produção da artista entre as décadas de 1920 e 1930.

Quanto mais próximo do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, mais Tarsila fica em evidência. Também está prevista para este ano a gravação de um filme, parceria entre Brasil e Inglaterra, sobre a vida da artista. A atriz francesa Marion Cotillard é a mais cotada para viver a pintora no cinema.

Leia análise da obra de Tarsila do Amaral publicada pelo historiador e crítico de arte Francisco Alambert na edição 9, de julho de 2011, da revista ARTE!Brasileiros:

Tarsila e o Brasil dos Modernistas

Por Francisco Alambert*

“Uma obra não fica tão somente porque reflete a sensibilidade de seu momento histórico. Mas fica ainda menos se não a reflete”, escreveu certa vez Sérgio Milliet, o primeiro crítico de arte moderna brasileira e também o primeiro grande intérprete de Tarsila do Amaral. A frase serve perfeitamente para a artista, que refletiu (tanto no sentido do espelhamento, quanto no sentido do pensamento) o seu tempo, o primeiro modernismo brasileiro, em sua busca de uma forma moderna e original – com todas as suas conquistas e ambiguidades.

Na obra de Tarsila, parte dela agora exposta na Casa Fiat de Cultura, em Minas, especialmente em seus desenhos se define uma das marcas visíveis da abstração própria ao modernismo brasileiro: uma adaptação da linguagem vanguardista a um quê de naturalismo e primitivismo afetadamente local. É daí que se constrói o vocabulário “pau-brasil” e a arte “antropófaga”, com suas linhas largas e sinuosas inspiradas no movimento da natureza brasileira e nas formas populares que, como o traço arquitetônico de Niemeyer, será o que melhor representa uma certa visualidade brasileira moderna.

Essa arte generosa e arrojada é tão ambígua quanto o próprio processo modernizador do Brasil. Se há integralmente uma arte que remete à memória da infância e à sua liberdade de imaginação, há também um sentimento arraigado do mundo agrário e pré-industrial, próprio a uma elite que via seu mundo desaparecer, mas ainda assim seu poder se perpetuar.

É na força dessas contradições, em seu reconhecimento explícito ou inconsciente, que reside a grandeza do modernismo brasileiro e da obra de Tarsila em particular, essa mulher que foi tudo: aristocrata latifundiária, rentista, coquete parisiense, aluna aplicada de Léger, comunista, escandalosa companheira de Oswald de Andrade, esposa de um homem muito mais jovem do que ela, cronista delicada etc.

Acredito que a tela A Negra (1923) seja seu trabalho mais emblemático, certamente um dos pontos altos do primeiro modernismo. Trata-se do mais antiacadêmico de seus quadros, pois, pela primeira vez, se confronta a forma imperial da pintura acadêmica em sua representação conivente com a escravidão. A negra que está no quadro é, antes, um imenso campo monocromático, uma potência feminina sedutora, maternal e ao mesmo tempo inerte e passiva, posta à frente de um fundo geométrico que ela ignora. Uma simultaneidade, porém apresentada em dois planos.

O peso simbólico e a presença do olhar da negra escrava, de pés acolhidos pelo chão da terra – que nos vê e nos revela ao revelar-se – se replica na mais famosa e polêmica tela de Tarsila, o Abaporu (1928), na qual o fundo geométrico desaparece, dando lugar a um colorido quente e muito particular, que será ainda mais forte em Sol Poente (tela de 1929, para a qual cabe perfeitamente a definição de Drummond: “o amarelo vivo, o rosa violáceo, o azul pureza, o verde cantante”). Em Antropofagia (1929) tudo isso se reúne: o seio desnudo da negra e os pés fortemente ligados à terra do ser brasileiro de cabeça pequena – mas iluminado pelo sol e por cores cantantes – se entrecruzam na figura síntese do otimismo nacionalista e crítico do primeiro modernismo.

Apenas essas invenções bastariam para se entender Tarsila como uma força significante de nossas utopias mais generosas e também de nossos horrores atávicos. Talvez por isso suas obras se perpetuem como referências para o presente.

No final dos anos 1990, Carmela Gross elaborou uma espécie de escultura ou instalação que chamou também de A Negra. Composta por camadas de véus pretos, instalada sobre rodas, essa figura gigante e sem rosto foi colocada para andar, como o negativo de um fantasma de histórias infantis, pela avenida Paulista – o berço dos antigos palacetes dos ricos do império e atual passarela do império do capital.
Mais recentemente, quando a primeira mulher (branca) foi eleita presidente do Brasil, o artista Gustavo Rosa resolveu colocar o rosto da presidente em uma réplica do Abaporu. Tarsila ainda vive no nosso tempo, para o bem e para o mal.

Historiador e crítico de arte. Texto originalmente publicado na edição 9 da revista ARTE!Brasileiros

 

Garaicoa: ahora juguemos para no desaparecer

Ser urbano Carlos Garaicoca - foto Kelson Spalato.
Detalhe da obra 'Fim do Silêncio' (2010), de Carlos Garaicoa, apresentada na exposição Ser Urbano, no Espaço Cultural Porto Seguro. FOTO: Kelson Spalato

Poucas horas depois de chegar em São Paulo, Carlos Garaicoa foi caminhar pelos Campos Elíseos, na zona central. Apesar de visitar a cidade já há 20 anos, era como se nunca estivesse estado por aqui. Nesta região, marcada por algumas das principais tensões sociais da capital paulistana, o artista cubano monta sua primeira individual do ano, no Espaço Cultural Porto Seguro. “Quando se trabalha em uma cidade diferente, muitas vezes o tempo é limitado e estranho. Os artistas, no mundo da arte, ficam atrapalhados com uma ideia um pouco falsa da cidade, distante da realidade. Estou gostando de poder trabalhar aqui”, ele diz. A mostra Ser Urbano, com curadoria do também cubano Rodolfo de Athayde, destaca a produção mais recente de Garaicoa por meio de desenhos, fotografias, maquetes e instalações realizadas nos últimos dez anos.

Desde suas primeiras obras, o artista reflete sobre movimentos de construção e desmanche dos tecidos urbanos. As noções de memória, ruína, poder e utopia que herda de sua Havana natal estão presentes, por exemplo, naquele que talvez seja o trabalho mais conhecido de Garaicoa no Brasil, Ahora Juguemos a Desaparecer II (2002), uma miniatura de cidade feita com velas em constante reposição instalada no Instituto Inhotim. O conjunto de obras apresentadas agora, ainda que concebidas sob um contexto europeu para cidades como Lisboa e Turim, dialogam diretamente com a situação socioeconômica de São Paulo e, sobretudo, brasileira. Afinal, o entorno dos Campos Elíseos sofre com a especulação imobiliária advinda de ações gentrificadoras como a construção do complexo Nova Luz, as indefinições sobre um possível parque Minhocão e a expulsão mal-sucedida e criminosa da população da cracolândia. “É evidente que a arte de Carlos não é descompromissada. Ela se torna mais complexa, com outras camadas, por não apontar apenas os problemas do autoritarismo político mas também como o mercado financeiro e sua agenda econômica impõem controle social e violências tão catastróficas quanto” afirma o curador.

Em Saving the Safe (2017), o artista guarda uma escultura do Banco Central do Brasil feita de ouro em um cofre – metáfora sobre como as instituições financeiras, pela própria acumulação de riqueza e controle das economias, provocam crises que asseguram seu poder sobre as pessoas e as cidades. Outras obras articulam exercícios de linguagem mais amplos, como na subversão que o artista faz do Haus der Kunst, icônico edifício neoclássico de Munique construído durante o regime nazista para abrigar a “verdadeira” arte. Garaicoa cria uma maquete antítese do original feita de metal e vidro translúcido, esvaziando a lógica autoritária de Hitler ao utilizar os materiais da arquitetura moderna, inclusive da Bauhaus. Operando poéticas que partem de molduras urbanas distintas, são trabalhos que abrem um arco de relações possíveis entre arte e política na dinâmica contemporânea que fogem de uma convocação imediatista ao ativismo. “Eu venho de um país onde sempre fomos perguntados por um posicionamento político preciso, uma definição que de tão obrigatória tende a não ser uma resposta verdadeira. Me interesso por elaborar ideias com uma densidade semântica que não apenas comentem contextos locais, mas que tratem de questões mais amplas, incluindo a própria linguagem. Posso estar completamente equivocado ou no lugar certo, mas é o risco da arte”, afirma.

Outras grandes instalações revelam aspectos singulares da pesquisa do Garaicoa, como seu empenho em títulos expressivos e o apuro de feitura e montagem dos trabalhos. A obra Fin del Silencio (2010), a única da mostra já vista por aqui, dispõe sobre um chão escuro um conjunto de tapeçarias confeccionadas a partir de fotografias das calçadas de Havana. Cada tapete contém um tipo de assinatura, textual ou gráfica de estabelecimentos comerciais pré-revolução, que é modificada pelo artista. Uma fotografia de La lucha, por exemplo, torna-se um tapete La lucha es de todos. Outras peças criam palavras com base na tipografia original ou guardam as características do instante fotográfico – como a sombra de um transeunte e de um poste sobre a frase El pensamiento. Ao caminhar pela sala, o visitante é levado a um espaço público fantasioso e subversivo. Na instalação Partitura (2017), uma orquestra é elaborada a partir de gravações de músicos de rua entre Bilbao e Madrid. O trabalho foi esboçado quando Garaicoa viveu quase um ano no Rio de Janeiro, em 2006. Cada pedestal da orquestra contém a execução de um instrumento em tablets com fones de ouvido, acompanhados de partituras imaginárias. No centro, o lugar do regente é substituído por telas que animam todos os rabiscos e caixas que ressoam a composição em seu todo.

É precioso notar como o espaço e o tempo são alargados pelo cubano tanto pelos longos períodos de produção de uma obra quanto por seus resultados plásticos em si. Segundo Athayde, a metodologia de Garaicoa é bastante específica. “Ele está o tempo todo gerando ideias em um monte de cadernos que envelhecem bem ao longo dos anos, vão ganhando força e maturidade. Além disso, há um aspecto de arte conceitual, com um rigor que o faz encarar o tutano das propostas”.

Aos 50 anos e com uma trajetória consolidada no panorama internacional – ele realiza em média seis exposições individuais por ano em países diferentes -, Garaicoa também é fundador da residência artística Artista X Artista, onde pode mergulhar na produção dos mais jovens e escapar do papel central que o mercado possui no sistema de arte atual. “Historicamente, o modo de fazer arte é dedicando tempo e hoje muitos artistas jovens pensam primeiro no valor comercial de sua obra, qual galeria falará por eles ou estão se esforçando para criar obras de um dia para o outro. Quando você se torna um artista profissional, você não é mais livre”, comenta. “Tudo o que fiz com o que ganhei nestes anos foi tentar conquistar mais tempo para a criação”. Nesta altura da conversa, o curador emenda: “Carlos é que nem um navio quebra-gelo, que vai abrindo brecha para ele e outros artistas superarem relações simplistas do mercado e criar pensamentos mais complexos”.

Volpi encanta o público na Europa

elas ruas de cidades do noroeste da Itália e do litoral sudeste da França, é possível encontrar anúncios com imagens de obras de Alfredo Volpi, o italiano que aos dois anos de idade foi morar no Cambuci, bairro tradicional de São Paulo, em 1898. A publicidade chama a atenção das pessoas para a exposição Alfredo Volpi – La Poétique de la couleur (A poética da cor), que está em cartaz na cidade-estado de Mônaco até 20 de maio. Aberta no Nouveau Musée National de Monaco, desde o dia 9 de fevereiro, a mostra com aproximadamente 70 trabalhos do artista, produzidos entre 1940 e 1970, tem deixado o público deslumbrado.

Com pouca difusão fora do Brasil e da América Latina, pode-se dizer que Volpi ainda está sendo “descoberto” na Europa. Isso explica a surpresa, seguida de encanto, que suas famosas organizações de bandeirinhas em têmpera, dentre outras várias expressões, têm causado no público local. Lá fora, está sendo considerado “o artista brasileiro mais amado do século XX” e também tem sido chamado por veículos especializados em arte de “herói” e “orgulho” brasileiro. Essa característica difusória da exposição em Mônaco é considerada “educativa” pelo diretor do Insituto Volpi, Pedro Mastrobuono.

Alfredo Volpi, Sem título: Fachada marrom, terra, lilás, vermelho, verde, fim da década de 1970. (foto: Divulgação)

Apesar de obras suas terem sido expostas na Bienal de Veneza de 1962 e em galerias europeias, é a primeira vez que uma exposição individual do artista acontece em uma insitutição pública fora do Brasil. Isso graças a um grande esforço que o Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna tem feito, e também pelo apoio da Galeria Almeida e Dale.

O impacto positivo causado pelas obras de Volpi já atingiu grandes colecionadores e também a realeza monegasca. A princesa Caroline de Hanover, que abriu a exposição, pontuou em entrevistas a admiração pelo artista e o encantamento que as obras lhe causaram. O curador Cristiano Raimondi, chefe de Desenvolvimento e Projetos Internacionais do museu, atenta para os sinais de influências que o pintor, autodidata, teve de grandes artistas europeus, como Matisse e Cézanne.

Além da exposição em Mônaco, Volpi também tem algumas de suas obras, selecionadas por Luisa Strina, exibidas na galeria S|2, da Sotheby’s, em Londres. Apesar de não seguir uma escola definida, tem seu trabalho caracterizado lá como um “modernismo exploratório”. Desta forma, sua mostra vem acompanhada também de uma exposição do italiano Bice Lazzari. Além da mostra, que termina em 29 de março, a famosa casa realizará um leilão com trabalhos do artista, de com sessões em 13 de abril e 29 de junho.

Alfredo Volpi MoMA
Algumas das obras de Volpi expostas em Mônaco. Em cima, à esquerda, Fachada com bandeiras e arcos, 1950; à direita, Sem Título,1970. Abaixo, Sem titulo: composicao azul e preta com linhas vermelhas, 1959. (fotos: Divulgação)

 

Ella Cisneros doará peças de sua coleção para governo espanhol

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Ella Fontanals-Cisneros participou de conversa com Leonor Amarante, promovida pela ARTE!Brasileiros, em 2016. (foto: Ênio César)

 

colecionadora cubana Ella Cisneros comunicou na semana de abertura de ARCOmadrid, que irá doar obras de sua coleção particular para o Ministério da Educação, Cultura e Esporte da Espanha, em uma parceria para que seja criado um espaço para a arte das Américas em Madri. O local escolhido para sediar o que será chamado de The Contemporary Art Collection of the Americas é o segundo andar do edifício Tabacalera, onde ficava uma antiga fábrica de tabaco. O prédio histórico está abandonado desde 2009 e, há mais de uma década, existe um projeto para a criação de um Centro Nacional de Artes Visuais no local.

O anúncio acontece na mesma semana da ARCOmadrid, uma das feiras de arte mais importantes da Europa, na qual participam diversos artistas latino-americanos. Na ARCO, Ella recebeu, na noite de terça-feira (20), o prêmio “A” pela sua coleção. Enquanto não há arrecadação de fundos suficientes para a criação do Centro Nacional de Artes Visuais, o Tabacalera já tem sido usado para abrigar exposições e outras atividades temporárias. Porém, o projeto para que exista um local permanente continua a ser desenvolvido e começará pela revitalização do edifício.

No final de janeiro, Cisneros confirmou o fechamento do espaço permanente de exibições que mantinha em Miami, USA, desde 2006, a Fundação de Arte Cisneros-Fontanals (Cifo). Na ocasião, falou sobre uma transição para um modelo internacional de apresentações. Desta forma, a parceria com o governo espanhol pode ser vista como o começo dessa nova concepção da Cifo. A sede da fundação, porém, continua na cidade estadosunidense.

Assim como parte da coleção de CIFO, outras organizações ao redor do mundo também estão cotadas para assumir espaços no edifício. A gestão desse projeto será compartilhada entre o governo espanhol e uma instituição de artes internacional, cujo nome ainda não foi divulgado.

Além do espaço para exibição de trabalhos latino-americanos, a parceria também valida um pacto para a pesquisa de cultura latino-americana e suas herança artítica. Essa associação também é mais um passo para que a Espanha seja vista como um ponto de ligação entre essa arte a Europa. Em entrevista coletiva, Ella disse que se sente muito feliz porque passou “muito tempo pensando que a coleção precisaria de um lar onde o público pudesse ter acesso a toda essa arte latino-americana” que coleciona há anos e finalizou afirmando que a Espanha é como se fosse seu segundo lar.

Em 2016, a colecionadora participou do ciclo de debates TALKS, promovido pela ARTE!Brasileiros e a SP-Arte. Nele, falou sobre a coleção da Cifo e sobre as artes em Cuba, país onde nasceu.Leia abaixo o texto de Leonor Amarante sobre a colecionadora.

A abertura cubana também na arte

Por Leonor Amarante

Ella Cisneros é uma das grandes colecionadoras de arte da contemporaneidade. De origem cubana, deixou a Ilha ainda menina com a chegada da Revolução e voltou há cerca de três anos. São Paulo e Rio de Janeiro já fazem parte de seu roteiro internacional e é por isso que Ella esteve aqui para participar da edição do TALKS em 2016.

A colecionadora é um caso emblemático de como a arte pode ligar o homem a seu meio. Afinal, Cuba sempre esteve em sua alma. Nestes dias de distensão política, ela tenta encontrar sua voz artística na Ilha. Longe de seu país, reuniu em algumas décadas mais de 2.600 obras para sua Fundação de Arte Cisneros-Fontanals (CIFO), sediada em Miami. Agora, está pronta para ser uma Peggy Guggenheim de Cuba. Tem disposição de sobra para isso. Ella acredita que vai contribuir, e muito, para o desenvolvimento do sistema de arte cubano. “Posso ajudar, entre outras iniciativas, incluindo artistas da Ilha em exposições de qualidade internacional.” Gustavo Pérez Monzón, por exemplo, um expoente da chamada Geração 80 Cubana, já foi contemplado. “Organizamos a mostra Tramas, com 76 obras de Monzón, na CIFO.” Isso depois de a exposição passar pelo Museu Nacional de Belas Artes de Cuba, como parte da 12ª Bienal de Havana, em maio de 2015. Tudo orquestrado por Ella.

Suas simpatias artísticas também se voltam às instituições cubanas. Ella está restaurando o Arquivo Veiga, expressiva coleção de catálogos, documentos e textos sobre os artistas locais. “Estamos em fase de restauração, reorganizando e digitalizando tudo para colocarmos à disposição do público.” A colecionadora também quer participar do projeto El Almacén, que vai transformar um antigo depósito de gasolina em espaço para guardar a coleção do Conselho Nacional de Artes Plásticas (CNAP) e de outras instituições cubanas. Na verdade, espera mudanças nas leis cubanas que colocam limitações para instituições estrangeiras atuarem na Ilha. A arquitetura é assinada pelo francês Jean Nouvel e pelo cubano Pedro de Rodríguez e a inauguração está prevista para 2017.

Se nos fixarmos no conjunto de iniciativas e no estatuto dos empreendimentos gestados pela colecionadora, podemos concluir que Ella Cisneros, além de forte e poderosa, é enigmática. Seu projeto maior, no qual trabalha há vários anos em silêncio, é a megaexposição Goodbye Utopia, com obras de artistas cubanos desde a década de 50 até os dias de hoje. “Vamos levar a mostra aos quatro pontos dos Estados Unidos, em 2017.” O título soa provocativo, mas Ella tem a convicção de que depois da visita do presidente Barak Obama a Cuba haverá mudanças significativas. “A viagem gera segurança ao processo que Obama abriu durante seu mandato e dá continuidade ao projeto de intercâmbio cultural entre os dois países.”

Em sua passagem por São Paulo, no ano passado, comentou que os artistas brasileiros estão hipervalorizados e que o mercado tem variantes. “Uma delas se dá em função da economia mundial, e aí ocorre algo curioso. Antigamente, se havia crise, os preços logo baixavam. Hoje, como os mercados estão loucos, as pessoas procuram onde investir com um pouco de segurança, e a arte se tornou um desses portos seguros.”

A colecionadora compara o mercado de arte brasileiro ao dos Estados Unidos. “Aqui há pouca diversidade. O brasileiro compra artista brasileiro. É muito bonito ver como o mercado se mantém forte internamente, mas isso é reflexo dos altos impostos que são pagos para compras fora do País. Hoje, o real vem baixando, mas os preços continuam em dólares.” Ella comenta que isso afeta, sobretudo, os artistas emergentes, “pois no Brasil os novos custam o triplo do que valem iniciantes no exterior”. Ainda sugere que os colecionadores locais deveriam pressionar para a revisão dos valores. “Alguns mantêm parte das obras em suas casas em Nova York e é importante que possam emprestar às instituições brasileiras, para que todos possam vê-las.”