Renato Janine Ribeiro em cerimônia como ministro da Educação. Foto: José Cruz / Agência Brasil / Fotos Públicas
Não estou interpelando os outros, os que discordam de nós. Estou dizendo que nós mesmos, que nos consideramos progressistas, seja nos costumes seja na política, precisamos ter vergonha na cara. Faz dois ou três anos que vivemos uma crise forte, e nos sentimos desarmados, sem saber o que fazer. Deveríamos ter aprendido.
Pela simples razão de que, nos últimos 60 ou 70 anos, os tempos de crise, de insatisfação, de desânimo foram mais longos do que os momentos de satisfação, de euforia ou contentamento com nossa vida social e política. Pela conta que farei agora, nesse período tivemos mais de 40 anos ruins, versus duas décadas de otimismo e confiança. Dois anos ruins para cada ano bom. Por que, então, cada vez que vivemos um desastre, nos sentimos sem rumo, sem saber o que fazer? Já devíamos ter aprendido, pelo menos os mais velhos.
Começo com o suicídio de Getúlio, em 1954. O Brasil só retoma o ânimo com os otimistas cinco anos de Juscelino Kubitscheck. Depois vive a crise de Jânio e Jango, a repressão e a revolta após o golpe de 1964 – e só volta a ter otimismo no período do ditador Médici. Notem: não estou fazendo juízo político. Só quero checar os tempos em que, com razão ou sem, a sociedade brasileira olhou o presente e o futuro com confiança.
Depois de Médici, são 21 anos de crise, até que o Plano Real, em 1994, estabiliza a moeda. O primeiro mandato de Fernando Henrique dá satisfação – mas não o segundo. Lula, em seus dois mandatos, faz o Brasil conhecer quase que o êxtase, tanto assim que deixa o governo com uma aprovação em torno dos 80%. Mas, desde o terceiro ano de Dilma, entramos numa crise que só tem piorado.
Fazendo contas: JK, Medici, FHC 1, Lula, Dilma 1 somam uns 23 anos de confiança (repito, justificada ou não, nós gostando ou não). E isso, contra 40 anos de depressão.
Tivemos assim quatro décadas para aprender a lidar com a frustração. Entende-se que os mais jovens, bafejados por quatro anos de FHC-1 e uns 11 anos petistas, estejam menos preparados para lidar com as dificuldades. Mas o Brasil, como um todo, deveria ter aprendido a lidar com seus problemas e a enfrentá-los.
Por que não o fizemos? Porque terceirizamos nossa política. Isso não é de ontem. É uma longa trajetória histórica, que continua forte.
Culpamos os outros pelo que acontece. Penso que diminuiu o uso da terceira pessoa do plural para falar das frustrações e proibições (“fecharam essa rua”, “aumentaram o preço da gasolina”). Esse é um bom sinal! Nós omitíamos o sujeito, quando íamos falar de coisas ruins. Era um “eles” oculto, querendo culpar o outro e ao mesmo tempo tendo medo de identifica-lo. Isso melhorou, talvez, na linguagem.
Mas continuamos não nos sentindo responsáveis pelos desastres sociais e políticos.
Ser responsável não é ser culpado. Culpa é de quem fez a coisa errada. Responsabilidade é de quem vai resolver o erro, mesmo alheio. Quem se eleger em 2018 vai dirigir um país fraturado. Os problemas podem não ser culpa dele, mas será sua responsabilidade solucioná-los.
Pior que isso, não aprendemos a reagir ou a agir. Três governos foram derrubados por serem de esquerda – Getúlio, Jango, Dilma. A reação a suas deposições foi fraca – exceto no primeiro caso, mas isso porque Getúlio se suicidou, o que foi a solução extrema para adiar por dez anos o golpe militar. Mas não construímos estratégias, nem psique, para resistir ao retrocesso ou promover o avanço.
Vi isso quando fui ministro da Educação de Dilma Rousseff, por seis meses em 2015. Entrei no governo diante da possibilidade de seu impeachment, fui exonerado (para dar espaço ao PMDB) quando o impeachment já era uma probabilidade. Mas o que mais me surpreendeu, negativamente, foi a atitude dos beneficiários dos programas petistas de inclusão social. (Vejam bem, não isento de culpa quem destruiu o governo: mas questiono por que os que o defendiam, o defenderam tão mal ou tão pouco).
Olhando do MEC, os beneficiários das políticas públicas não foram solidários com o governo que lhes tinha aberto tantas oportunidades, mais que dobrando as vagas de ingresso nas universidades federais. Eu tinha a impressão de que as pessoas que me procuravam no MEC não liam jornal, não ouviam rádio, não viam TV, não abriam a Internet: porque pareciam ser as únicas, no Brasil, a não perceber que vivíamos uma crise econômica severa. Pareciam acreditar que havia dinheiro suficiente para fazer tudo o que queriam.
Eu me pergunto: é possível fazer política sem ter meios de lidar com os momentos difíceis, com as vacas magérrimas? Dá para fazer uma política que só serve para os momentos afortunados? Tudo o que a esquerda saberá fazer, será distribuir melhor a riqueza, isso quando houver riqueza a ser distribuída? Não saberá, quando falta dinheiro, agir para produzir riquezas? Marx acharia isso um absurdo. E é mesmo.
Resumindo, quem quer fazer política tem de se preparar para os momentos bons e os ruins. O Brasil teve dois anos ruins para cada ano bom, nos últimos 60 anos. Então, como não saber lidar com isso? Agora não falo só da esquerda, falo da sociedade inteira. Parece que isso foi anestesiado porque de 1994 a 2014 tivemos, na minha conta, três anos bons para cada ruim. Esquecemos os longos anos ruins da ditadura militar. Mas a moral da história é que justamente nas horas difíceis é que precisamos mostrar resiliência e saber o que fazer.
Segundo Paulo, os integrantes da oposição que começaram os protestos contra o governo de Bashar al-Assad durante a chamada Primavera Árabe, a partir de dezembro de 2010, não têm mais participação direta no conflito. FOTO: Reprodução / Facebook Vanessa Beeley
À frente da comissão internacional e independente nomeada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) para investigar as violações de direitos humanos na Síria, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro não tem dúvidas: os integrantes da oposição que começaram os protestos contra o governo de Bashar al-Assad durante a chamada Primavera Árabe, a partir de dezembro de 2010, não têm mais participação direta no conflito. “Ou eles estão mortos ou presos ou refugiados. Não tem oposição civil. Só existem grupos armados, militarizados. O que começou com protestos contra o governo se transformou em 2012 em um conflito bastante militarizado”, afirmou Pinheiro em São Paulo, onde mora e recebe relatos das mais diferentes fontes, entre elas representantes dos grupos armados e dos capacetes brancos, como são chamados os voluntários locais que atuam nos primeiros-socorros às vítimas.
Convicto de que não existe grupo armado moderado, Pinheiro acredita que a única saída para o conflito é a negociação. Para o cientista político, a retomada da parte Leste da cidade de Alepo por parte do governo não significa o fim da guerra: “Os grupos armados, que estão entre os mais cruéis daquela região, vão continuar lutando contra o governo Assad. Saem de Alepo, mas vão continuar lutando”. Em entrevista à Brasileiros, ele afirmou que recebe com cautela notícias que circulam nas redes sociais de que na Síria há mulheres se matando para escapar do estupro: “Nem tudo que está saindo nas redes sociais corresponde à verdade. Evidentemente que entre os refugiados tem problema de casamentos precoces, de violações de adolescentes e de trabalho forçado, mas querer completar o horror da guerra em Alepo com esses detalhes… Na verdade, ninguém sabe.”
Em agosto de 2012, quando o cientista político já chefia a comissão nomeada pela ONU, a Brasileiros publicou uma reportagem de capa sobre o seu trabalho, intitulada Paulo Sérgio Pinheiro, o Pacificador.
Brasileiros – Como o senhor, que acompanha o conflito na Síria desde o começo, analisa a situação em Alepo? Paulo Sérgio Pinheiro – Desde outubro a situação só vem se deteriorando. As negociações propriamente ditas foram paralisadas e o quadro se agravou também devido à intensidade dos ataques do governo da Síria, com apoio da aviação russa e também outras forças no terreno, como o Hezbollah. Simplesmente agravaram a situação na região Leste da cidade. Quando falo Alepo, estou falando da cidade, não da província. Então é preciso também sempre levar em conta que existe a região Oeste de Alepo, controlada desde sempre pelo governo da Síria.
B – A parte controlada pelo governo? PSP – Sim, pelo governo da Síria. A questão é que há uma desinformação total sobre quem é essa brava oposição armada que os Estados Unidos chamam de grupos moderados. Não existe grupo moderado algum. Esses grupos estão associados à organização que antes era Al Nusra, hoje a sucursal que se chama Jabhat Fatah al-Sham, que é exatamente a sucursal da Al-Qaeda, apesar de eles fazerem um esforço de dizerem que não são. E esses grupos armados atacavam indiscriminadamente – eles não têm aviação, mas têm morteiros – a população civil de Alepo Oeste.
B – O Jabhat Fatah al-Sham? PSP – Isso mesmo, mas tem outros grupos também. Todos esses grupos participam dessa frente. O Al-Sham é considerado pelo Conselho de Segurança da ONU uma organização terrorista, assim como o Estado Islâmico. São esses grupos que estavam lutando em Alepo Leste.
B – Com apoio dos Estados dos Unidos. PSP – E com apoio do Reino Unido, da França além de, evidentemente, da Turquia, da Arábia Saudita, do Catar. Enfim, toda a frente contra o governo Assad. Esses grupos, boa parte do tempo, tomam refúgio na população civil.
B – Tomam refúgio? PSP – Eles ficam dentro das habitações ou mesmo colocam armas em escolas. Com isso, transformam essas escolas em alvos militares legítimos, o que é uma coisa grotesca. E também impedindo a população civil, que queria sair de Alepo Leste. O noticiário é totalmente desinformado e só dá a versão oficial dos países e da frente contra o governo Assad. Não há inocentes. Não há nenhum inocente. Todos têm responsabilidade pelos horrores que ocorreram em Alepo Leste.
B – Podem estar ocorrendo ainda? PSP – Agora diminuiu. Com o governo no controle, a questão está só no debate humanitário, mas, há pouco, vários ônibus foram incendiados. Eram ônibus que transportariam habitantes para fora de Alepo Leste.
B – O presidente Assad ficou mais forte? PSP – Foi um tento importante conseguir derrotar esses grupos em Alepo Leste. O que precisa ficar claro é que os integrantes da oposição que iniciaram o movimento tipo Primavera Árabe ou estão mortos ou estão presos ou estão refugiados. Não tem oposição civil. Só existem grupos armados, militarizados. Quer dizer, o que começou com protestos contra o governo se transformou em 2012 em um conflito bastante militarizado. Depois, em uma outra etapa, de maior envolvimento das forças regionais, e o último círculo com o envolvimento das potências, os membros permanentes do Conselho de Segurança. De um lado, os Estados Unidos, a França e o Reino Unido. Do outro lado, a Rússia e a China, que não está envolvida diretamente no conflito armado, mas apoia a posição russa.
B – Que é a favor do Assad. PSP – O apoio é legal. Na verdade, a Síria é um Estado-membro da ONU e a carta da organização autoriza, em casos de ameaça, a solicitar o apoio de outro Estado-membro. Então, isso tem uma certa legalidade. A presença das outras potências não tem legalidade nenhuma. É tudo absolutamente ilegal.
B – Essas outras potências apoiam os grupos rebeldes? PSP – Exatamente. E esses grupos rebeldes são aliados a uma organização terrorista. Não estou falando do Estado Islâmico. O Estado Islâmico é outra história. Está em outra parte do território da Síria.
B – É também um dos protagonistas do conflito? PSP – Certamente. Não no caso de Alepo. É um dos protagonistas do conflito porque a coalizão em torno dos Estados Unidos ataca o Estado Islâmico, mas também a Rússia e a Síria atacam. Sem falar nos curdos, que também atacam o Estado Islâmico.
B – Há saída à vista? PSP – A única saída é uma saída negociada. Essa vitória do Assad é uma vitória de Pirro. Não significa o fim da guerra. Esses grupos armados, aliados aos terroristas, que estão entre os mais cruéis daquela região, vão continuar lutando contra o governo Assad. Não sei se o Ocidente vai continuar apoiando. Eles têm recursos. Saem de Alepo, mas vão continuar lutando.
B – Não param de circular informações nas redes sociais e jornais de que mulheres estariam se matando na região de conflito para evitar serem estupradas. PSP – Eu tomaria isso com uma certa sobriedade. É evidente que podem ter ocorrido casos limites, mas acreditar em tudo… Nem tudo que está saindo nas redes sociais corresponde à verdade. Evidentemente que entre os refugiados tem problema de casamentos precoces, de violações de adolescentes e de trabalho forçado, mas querer completar o horror da guerra em Alepo com esses detalhes… Na verdade, ninguém sabe. Nem nós que estamos lá. As informações que se tem, a não ser quando é da Unicef ou do Alto Comissariado de Refugiados, são todas de organizações da sociedade civil ligadas à oposição ao governo Assad. Apesar de algumas serem sérias, de fazerem bons levantamentos, nenhuma tem interesse muito grande em mostrar moderação no conflito.
B – As fontes para os relatórios que o senhor prepara sobre o conflito continuam sendo da área do conflito? PSP – Continuam as mesmas. Recebemos informações do interior de Alepo. No final de janeiro vamos lançar um relatório especial que o Conselho de Direitos Humanos da ONU nos pediu para fazer sobre Alepo. Mas é a mesma coisa. Pessoas que saem. São médicos, enfermeiras, capacetes brancos (voluntários locais que prestam serviços de primeiro-socorro) e também integrantes dos grupos armados. Falamos com os governos dos dois lados.
B – Também com os grupos considerados terroristas? PSP – Falamos com todo mundo. Ninguém escapa, a não ser o Estado Islâmico. O nosso único limite é não conversar com o Estado Islâmico nem com essa sucursal da Al-Qaeda, Jabhat Fatah al-Sham. Agora falamos com os que lutam com eles. E com os próprios grupos, que têm sempre enviados em países da região. Nós também conversamos com todas as organizações da oposição ligadas a levantamento de violações. Nós não tomamos partido. Não temos lado nenhum. É um exercício difícil, mas temos conseguido fazer.
Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 5 milhões de pessoas na Síria vivem em cidades sitiadas (por rebeldes ou pelo governo) ou em áreas de difícil acesso. E não apenas na cidade de Alepo. FOTO: EBC
*Por João Alberto Alves Amorim
Eu poderia começar este texto apontando a proximidade do final do ano, período em que, mais uma vez, nos rendemos aos mais variados festins consumistas em que se converteram estes dias, ou, ainda, qualquer outra referência que fisgasse a sua atenção focada nos temas natalinos e festivos.
Também poderia lançar mão dos tags mais comuns e dos temas e chavões mais difundidos – de modo consciente ou inconsciente –, através das redes sociais, com motes natalinos ou de reflexões de final de ano, de anseios de paz, de prosperidade e de alegria. Mas, vou começar este texto de outra forma, sugerindo uma reflexão: Você sabe quem você é? Ou, de modo mais simples e direto, quem é você? A pergunta, apesar do que possa parecer, não é simples, nem fácil. Ao contrário. Você verá que é uma questão extremamente incômoda. Principalmente se eu te disser que a resposta deve ser dada sem que sejam feitas referências ao seu nome, sua ascendência familiar, sua profissão, seu endereço, seus atributos físicos ou qualquer outra característica extrínseca.
Geralmente, é a primeira pergunta que dirijo a meus alunos, quando começo a explicar as questões fundamentais da teoria dos direitos humanos, como o conceito de dignidade da pessoa humana. Deixo os estudantes refletirem por alguns minutos e, em seguida, pergunto a eles (e o faço a você, agora) se conhecem a letra da música do Chico Buarque Geni e o Zeppelin (a letra toda, claro, e não apenas o refrão). Você conhece? Na maioria das vezes, a resposta a estas duas provocações é o silêncio. Não um silêncio qualquer, mas aquele que revela o incômodo de quem se cala, que o deixa inquieto, como se algo lhe revirasse as entranhas.
Basicamente, o mote desta primeira aula é induzir, ainda que apenas naquele momento, o despertar da empatia. É criar as condições para que aquelas pessoas, através destas pequenas induções (e, claro, do restante do contexto da aula) despertem da indiferença, sintam a fragilidade da segurança que pensam disfrutar, se coloquem no lugar daqueles a que tão facilmente nos referimos, quando precisamos exemplificar condições desumanas de existência, e percebam, por exemplo, a onipresente hipocrisia social e as nuances dos discursos e promessas carregadas através dela, como no que fizeram à coitada da Geni. O núcleo-verbal é exatamente este: despertar.
Cotidianamente somos entorpecidos por um sistema cultural de massa que, em sua quase totalidade, produz alienação mascarada de informação, aculturação disfarçada de erudição e conservadorismo e estreitamento intelectual maquiada de liberdade e amplitude de horizontes. Justamente diante deste ponto, volto a te perguntar: Quem é você?
Não é raro escutarmos que a causa para uma infinidade de problemas e questões sociais sérias no Brasil é a educação. Mais precisamente, a falta dela. Por um lado, é inegável que o Brasil é um país profundamente dividido e desigual em termos de educação (ou da falta dela). A maioria esmagadora da população não tem acesso a educação de qualidade e a minoria que tem não sabe lá muito bem, não quer saber ou tem raiva de quem saiba, o que fazer com ela.
Mas, apesar da falta de educação ser a usual suspect mais comum e frequente nas rodas de conversa, o Brasil não é um país que valoriza, preza ou investe na educação. Nem parcela considerável da população – apesar do belo discurso das rodas de conversa – está comprometida com ou desejosa da melhoria da educação de verdade e, principalmente, dos sacrifícios e esforços implicados em tal evolução. E, ainda que assim não fosse, será que o problema é tão simples quanto a tão alardeada “falta de educação”? Mesmo? Será que a questão não é um pouco mais profunda do que isso?
Campo de Refugiados Ain Al-Hilweh, no Líbano . FOTO: UNHCR
Você, que me lê agora e teve acesso a educação, ao sistema educacional, tem acesso a fontes variadas de informação, ou seja, que integra a parcela pequena da população que teve acesso à educação, principalmente em nível universitário, o que tem feito para, efetivamente, melhorar as questões sociais do país, de sua cidade, do seu bairro, de sua rua, do seu prédio (ou, ao menos, não cometer os mesmos “erros” da maioria que não teve acesso à “educação”)?
Somos um país que, na verdade, não valoriza a educação. Ao menos, não a educação real, que empodera, que liberta. Preferimos que as coisas nos cheguem de modo fácil. Sonhamos com o sucesso e com a glória, com a riqueza e com o luxo, mas queremos simplesmente que tais coisas aconteçam, como ganhar na loteria ou ser descoberto por um produtor desconhecido enquanto estamos sentados numa praça ou num bar. Ainda que tenhamos a consciência da necessidade de nos educarmos de forma libertadora, acabamos sendo vítimas de um sistema educacional praticamente onipresente que formata e adestra, ao invés de ensinar, que estreita a visão e o pensamento, ao invés de ampliá-lo.
Obviamente que existem exceções a esta regra geral. Mas, são pouquíssimas e, praticamente, inacessíveis à quase totalidade dos mortais deste país. Ah, uma coisa, já conseguiu responder à pergunta que lancei no começo deste texto? Não? Dentro deste contexto cultural de aversão não assumida pela educação, se encontra a questão da difusão da informação e seu processamento.
Por muitos séculos, uma das formas mais comuns e eficientes que a igreja católica e os reis usaram para difundir seus ensinamentos e suas versões dos fatos, sobretudo para a população iletrada, foi a pintura. Aqueles que não sabiam ler e escrever, que não conseguiam compreender as missas em latim, contemplavam, maravilhados, as belíssimas imagens e as prodigiosas explicações dos padres e demais incumbidos de espalhar a versão desejada dos fatos pelos donos do poder.
Através de representações imagéticas, os mais simples e iletrados poderiam compreender os mistérios da fé, as razões de seus sofrimentos e provações e, principalmente, o destino dos pecadores, dos que se revoltavam contra a vontade de Deus. Não é à toa que duas das maiores virtudes que um pobre servo, explorado, escravizado, sem qualquer perspectiva diante do sofrimento, deve cultivar são a humildade e a resignação. Aceitar a condição social, sofrer os martírios desta vida, para ganhar, por esta expiação, o reino dos céus, sempre foi uma poderosa mensagem de controle social, propagandeada até os dias atuais, pelas mais variadas formas.
No século XX, tivemos o rádio e a televisão, sobretudo para a massa de pessoas que, ou não sabiam nem ler nem escrever, ou, sabendo, simplesmente não se dispunham a tanto. Somos hoje no Brasil, provavelmente, a quarta geração de pessoas criadas em frente à televisão. Independentemente se nascido em pequenos bolsões de tranquilidade ou em grandes áreas sem tranquilidade alguma, somos uma sociedade que, em sua grande maioria, acostumou-se a ser amplamente entretida e “educada” pela televisão.
E, hoje, no século XXI, temos também a internet! Esta ferramenta espetacular que nos permite, literalmente, viver em um mundo que vira de ponta a cabeça as noções de tempo e espaço, que tem um potencial enorme de igualar desigualdades e promover verdadeiramente a inclusão democrática. Mas, que, também, tem seus mecanismos de coleta de metadados, que gravam nossos gostos, nossas preferências, nossos afetos, nossas sensibilidades, e as convertem em ofertas, notícias, informações, imagens e perfis selecionados para nos “agradar”.
Alguns dizem que já existem programas embutidos em smartphones que “gravam” palavras-chave de suas conversas e as transformam em metadados para o mercado.
Alguns dizem que já existem programas embutidos em smartphones que “gravam” palavras-chave de suas conversas e as transformam em metadados para o mercado. Sendo isso verdade ou não, é fato que vivemos numa realidade onde a navegação pela internet se tornou uma grande e trabalhosa aventura de seleção e de avaliação da qualidade e da veracidade das informações que recebemos.
Das “sugestões” de pesquisa que vão sendo fornecidas pelo Google, enquanto você está digitando o que de fato procura, até às notícias e pop-ups que aparecem nos portais de notícias e nas timelines das redes sociais, passando pelos anúncios que pipocam nos sites pelos quais você navega, somos bombardeados por uma avalanche de informações cuidadosamente escolhidas por algoritmos que se baseiam em informações coletadas de nós mesmos. Em meio a isso, são também selecionadas, por programas ou por agências de notícias que centralizam, segundo seus próprios interesses empresariais, as informações sobre o que acontece no mundo.
É uma quantidade de informação gigantesca que, pela velocidade e quantidade, acaba tornando-se impossível de ser processada. Talvez seja por isso que, na era da informação, seja tão difícil encontrar uma pessoa realmente informada.
Você, que já estudou bastante, consegue garantir a fidedignidade de suas fontes de informação? O que você tem compartilhado em suas redes sociais? Quais jornais ou sites de notícia você acompanha? Você ouve o dissenso? Reflete sobre ele? O risco, em meio à velocidade e profusão de informações, de se deparar com algo que não seja verdadeiro, ou que esconda interesses maliciosos, é muito grande.
É muito fácil, hoje em dia, “viralizar” indignações e manifestações contra este ou aquele absurdo, contra/a favor a tal ou qual pessoa, nos engajarmos em campanhas das mais variadas – inclusive antagônicas – no mundo virtual, mas cada vez mais difícil nos mobilizarmos, sairmos de casa, agirmos para fora do computador e dos limites da tela da televisão e da roda dos amigos que nos dão a proteção de pensar do mesmo modo que nós.
Talvez seja essa a razão de vermos tantos indignados virtuais com a fome, a miséria, o racismo, a pobreza, a violência, o machismo, a homofobia, a corrupção, a falta de saúde, a pouca educação, e tantos outros temas, e tão poucas pessoas agindo efetivamente no mundo real para eliminar tais situações. Lembre-se da pergunta que fiz no começo deste texto: quem é você?
Pode ser que o processamento e a exploração industrial do comércio de metadados sejam uma das principais razões pelas quais #somostodoschape ou tenhamos, há algum tempo atrás, sido todos Charlie, e não sejamos todos Alepo, ou Síria, ou República Democrática do Congo, ou Yemen, ou Chade, ou os refugiados que morrem nas águas do Mediterrâneo, ou mesmo não sejamos todos as crianças que dormem na rua na esquina da sua casa, ou no centro de sua cidade.
Não estou comparando ou classificando tragédias. Não é disso que se trata. Mas, me parece estranho que tantos se mobilizem (ao menos virtualmente) por Paris, pelos cartunistas do Charlie Hebdo, pelos mortos em Nice, pelos atletas da Chapecoense, pelos atropelados de Berlim, aqui e no resto do mundo, e tão poucos (mesmo virtualmente) se comovam com situações e tragédias semelhantes, ou de maiores proporções, sobretudo crises humanitárias, que matam milhares de pessoas inocentes, que vitimam civis em atentados terroristas covardes, que fazem milhões de pessoas abandonarem suas casas, que condenam à morte por fome, por doenças facilmente tratáveis, por contaminações ocasionadas pela ganância econômica.
No tempo que você está lendo estas linhas até aqui, centenas de crianças morreram de fome, em um planeta que produz alimento suficiente para mais do que o dobro da população que abriga, ou de doenças que poderiam ser evitadas com vacinas que custam centavos. Mesmo não aparecendo em sua timeline, neste exato momento (e já há muitos anos) centenas de milhares de pessoas estão à mercê de crises humanitárias na República Democrática do Congo, no Yemen, no Chade, na Nigéria, na Somália, no Sudão, na Palestina, no Mali, e, principalmente, na Síria. A maioria delas, alimentada por pesados interesses econômicos (petróleo, metais, água, terra) e geoestratégicos que movem e patrocinam o elevado padrão de bem-estar social das grandes potências globais.
Há cinco anos assistimos impávidos a uma sequência de absurdos e de crimes contra a Humanidade perpetrados na Síria, com milhões de refugiados e deslocados internos, centenas de milhares de mortos. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 5 milhões de pessoas na Síria vivem em cidades sitiadas (por rebeldes ou pelo governo) ou em áreas de difícil acesso. E não apenas na cidade de Alepo.
Apesar da onipresença de Alepo nos nossos telejornais e nas nossas timelines, e dos vídeos amadores e autobiográficos, principalmente de mulheres e crianças, que nos chegam diariamente (muitos sem que se consiga comprovar a autenticidade), Alepo não é a única cidade sitiada, nem em conflito, num país devastado pela guerra. Nem mesmo é uma cidade que esteve completamente sob o controle de grupos militares que se opõem ao governo Assad, uma vez que a parte Oeste da cidade sempre foi controlada pelo governo e o que foi recentemente retomada por este foi a parte Leste.
Quando nos chegam notícias de Alepo, precisamos tomar cuidado, por exemplo, para se identificar se se está a referir à cidade ou à província, ambas de mesmo nome. A crise humanitária na Síria, em termos humanos, é de dimensões gigantescas, mas é também uma guerra de informações, onde cada lado interessado procura capitalizar mais e vender melhor o “seu peixe”. E, em meio a esse fogo cruzado de bombas, balas e informações, está a população civil.
Há quem culpe o governo Assad e seus principais aliados, entre eles Rússia e Irã, pelo genocídio e pela catástrofe humanitária que assola a Síria. Outros, culpam os EUA e seus aliados na região e na Europa, por mais esta intervenção imperialista e a crise humanitária. Há também quem aponte o fracasso da ONU e sua doutrina da Responsabilidade de Proteção em mais esta catástrofe humanitária.
O que a maioria não vê é que, independente do lado que se simpatize ou escolha para torcer, independentemente do lado que você considere vencedor, ou dos temas selecionados que você aceita se sensibilizar e comover, a verdade é uma só: a grande derrotada na Síria, e em todas as regiões e crises humanitárias esquecidas do planeta, bem como na esquina da sua casa, é a própria Humanidade.
E isso não se resume à Síria apenas. A derrota de nossa Humanidade decorre do torpor do qual nos recusamos a despertar. O mesmo transe que nos deixa inertes em relação às tragédias humanitárias na Síria, no Yemen, na República Democrática do Congo, no Haiti, na República Centro Africana, na Nigéria, no Iraque, na Palestina, nos territórios dominados pelo Estado Islâmico, pela Al-Qaeda, pelos paramilitares na Colômbia, é o que nos faz indiferentes, ou manipuláveis, em relação à violência urbana; que nos mobiliza contra a redução de limites de velocidade nas marginais da cidade de São Paulo, ou nas ruas das grandes cidades do país, mas não nos faz parar de misturar álcool e direção; que nos deixa indignados pela corrupção de membros de um determinado partido, mas não nos abala em relação à corrupção ainda maior daqueles que tomaram ilegitimamente o poder; que nos faz chorar por uma criança com fome na África, mas não nos faz comprar um salgado de padaria para uma criança com fome, que nos interpela na rua por onde caminhamos.
É nisso que reside a derrota de nossa Humanidade. Só que este assunto ainda não apareceu – e, talvez, não apareça – em sua timeline, nem nas manchetes dos principais telejornais ou novelas da televisão. Talvez você pense: Isso não é comigo. Pode ser. Mas, afinal, quem é você?
P.S.: Nesta época do ano, enquanto muitos se refestelam ao som dos Jingle-Bells tradicionais, ou mesmo da música da Simone, eu me recordo sempre da música Do They Know its Christmas, gravada por um coletivo de artistas britânicos, em 1984, que se nomeou Band Aid (Ajuda das Bandas, em tradução livre) e de onde busquei o título deste texto que você acaba de ler.
Eram artistas em pleno sucesso nos anos 80, Sting (recém-liberto do The Police), Bono Vox, Phil Collins, Boy George, George Michael, Spandau Ballet, Duran Duran, entre outros, todos liderados por Bob Geldof.A música foi gravada para arrecadar dinheiro para as vítimas da fome na Etiópia e nos países vizinhos, então a grande manchete dos principais jornais do mundo e a crise humanitária onipresente na mídia àquele tempo, numa época em que a internet nem sonhava em nascer, não tínhamos celulares, nem TV a cabo, muito menos cobertura global em tempo real.
Lançada no Natal daquele ano (juntamente com o clipe), vendeu milhões, levantou uma quantia em dinheiro considerável e inspirou outros movimento iguais, principalmente o USA for Africa, liderado por Michael Jackson, Quincy Jones e Harry Belafonte (que gravou a música We are the World), além de levar à realização, no ano seguinte, dos concertos do Live-Aid.
Do They Know its Christhmas é uma canção muito bonita, com uma letra forte, que chama a atenção para a disparidade entre o mundo rico/consumista, bem alimentado e feliz, e o mundo pobre, miserável e que preferimos não ver.Recomendo que, no intervalo entre a música da Simone e o especial do Roberto Carlos, você assista ao vídeo (procure no YouTube), leia a letra e sua tradução. Talvez você se sinta tocado(a) e se emocione. Talvez passe a tentar agir de modo diferente. Ou, quem sabe, apenas pense: “Well, tonight, thank God is them, instead of you”.
*João Alberto Alves Amorim é doutor em Direito Internacional pela USP, professor de Direito Internacional e coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi advogado do Acnur e do Centro de Referência para Refugiados, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo
Ato de portugueses ao enfatizar o desprezo pela ditadura de Salazar na cidade do Porto. FOTO: Olivia Pedroso
Desde pequeno ouço falar da Revolução dos Cravos – o “25 de Abril”, como dizem os portugueses, dia que marcou a derrubada do regime salazarista em 1974. Não que eu tenha aprendido sobre o assunto na escola. A queda da ditadura fascista que oprimiu os portugueses por 41 anos, o breve período revolucionário que se seguiu a ela e a posterior consolidação da democracia em terras lusitanas não parecem suficientemente importantes para estarem no currículo escolar brasileiro.
Se com Portugal compartilhamos a mesma língua e tantos traços culturais, um passado de colonização, independência e grandes movimentos migratórios (nas duas direções), isso não importa. Portugal foi um país pobre e pouco influente geopoliticamente por quase todo o século 20. Para as escolas, importa mais ensinar – não que isso não seja fundamental – sobre o governo de qualquer presidente norte-americano (Roosevelt, Kennedy, Nixon…), o Maio de 68 na França, o período de Thatcher na Inglaterra, as revoltas contra a URSS no Leste Europeu e assim por diante. Mas é somente a história das grandes potências, sempre.
Pois bem. Sobre a Revolução dos Cravos, eu ouvia falar em conversas em casa, em algumas músicas (como “Tanto Mar”, de Chico Buarque) ou no filme “Capitães de Abril”, que por algum motivo assisti mais de uma vez na adolescência. Mas mais do que isso, um evento em particular, bastante íntimo à família, mas que diz muito sobre a história do século 20, sempre me comoveu. Foi o encontro de minha tia-avó – Clara Charf, ativista comunista e feminista, viúva de Carlos Marighella, irmã de minha avó Sarita – com o resto da família em Portugal, em 1975, após anos de exílio em Cuba.
Em 1970, na sequência do assassinato de Marighella (1911-1969) e após anos de luta contra a ditadura – primeiro pelo Partido Comunista e depois na luta armada com a Aliança Nacional Libertadora – o cerco da repressão se fechou de vez, e a permanência no Brasil, para a tia Clara e tantos outros guerrilheiros, seria uma escolha pela prisão, tortura e, possivelmente, a morte. Com documentos falsos e uma plástica no rosto (sua fisionomia já era bastante conhecida pelos agentes do regime militar), ela conseguiu sair do país e, após uma longa jornada, chegar a Cuba.
A família ficou sem notícias, por muito tempo. Não podia ir atrás, trocar cartas, nem mesmo para confirmar se ela havia chegado viva em Havana. Eram tempos de medo no Brasil – sempre bom lembrar, especialmente quando alguns ainda saem às ruas pedindo a intervenção militar. Pois em 1975, após uma comunicação cuidadosa e com a ajuda do governo cubano (realmente não sei dos detalhes, ainda hoje pouco falados na família, de como isso foi possível), minha avó e seus três filhos adolescentes embarcaram para Lisboa para encontrar a tia Clara.
Vivia-se o período do governo revolucionário em Portugal, e o país era território seguro para o encontro. O clima, segundo conta minha mãe, era de euforia e esperança na construção de um outro país possível. A emoção do reencontro familiar não posso descrever, já que eu nem era nascido. Sei vagamente de um quase desmaio, de horas de choro e por aí vai. Foram duas semanas passadas em Lisboa antes de minha tia voltar para Cuba, onde ficou por mais quatro anos até a anistia, em 1979.
Seja como for, escrevo este texto porque neste 25 de abril de 2017 estive nas ruas do Porto, acompanhando as celebrações, discursos, atos e shows organizados na cidade. A data da revolução é feriado nacional, motivo de orgulho para a grande maioria dos portugueses, que saem às ruas com cravos vermelhos e entoam a célebre “Grândola, Vila Morena”. Se reivindicações se fazem presentes – notadamente por melhores salários, direitos trabalhistas e contra a desigualdade de gênero –, o clima foi festivo e esperançoso com um governo que há cerca de um ano direciona Portugal para a esquerda, na contramão da tendência global.
Chamada de Geringonça, a união de quatro partidos de centro-esquerda e esquerda – Socialista, Comunista, Bloco de Esquerda e Verde –, capitaneados pelo mais moderado deles, tem conquistado bons resultados no país, seja em aspectos sociais, econômicos, no incentivo à revitalização urbana e à vida turística e cultural.
Voltando aos atos, o que mais se ouvia pelas ruas era o grito: “25 de abril sempre, fascismo nunca mais!”. Ouviam-se também falas sobre o inestimável valor da liberdade, a mesma que parece estar violenta e velozmente sendo retirada da população no Brasil pós-golpe, onde executivo, legislativo e judiciário demonstram pouca (ou nenhuma) simpatia pelo Estado de Direito, pelas liberdades individuais e pelos valores democráticos.
E como escreveu o historiador Rui Tavares – fundador do Livre, um novo partido de esquerda português – em sua coluna no jornal “Público”, “fascismo nunca mais” é para levar a sério. Não se trata de um grito vazio ou de um slogan ultrapassado em um mundo que já amargou o poder dos sanguinários Salazar, Franco, Hitler, Mussolini, Pinochet, Stroessner e, no nosso caso, Costa e Silva, Médici, Geisel e tantos outros. Trata-se sim, de um grito necessário em um mundo que convive com Trump, Marie Le Pan, Geert Wilders, Yisrael Beiteinu ou, no nosso caso, Bolsonaro, Temer e seus comparsas, e tantos outros fascistóides ao redor do mundo.
Alguns deles são ainda ameaças; outros estão no poder. Por isso, especialmente em semana de greve geral contra mais retrocessos no Brasil, gritemos como os portugueses fizeram neste 25 de Abril: “Fascismo nunca mais!”.
O Brasil cada vez mais recebe mulheres refugiadas. Foto: Reprodução Flickr/ ACNUR/ Frederic NOY
m debate com a participação de refugiadas e organizações feministas proporcionou a troca de experiências sobre as questões femininas que envolvem as mulheres refugiadas e discutiu a violência contra a mulher nos países de origem e no Brasil para estimular a solidariedade feminina transnacional. O evento foi organizado pela Cáritas no Memorial Getulio Vargas, no Rio de Janeiro.
De acordo com a Cáritas, o número de mulheres que pedem refúgio no Brasil aumentou desde 2014, passando de 30,1% naquele ano para 40,4% em 2015 e para 42,3% do total das solicitações feitas até novembro de 2016.
A responsável pelas relações institucionais do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas do Rio de Janeiro, Nina Queiroga, diz que esse aumento pode estar relacionado às violações que elas sofrem em seus países. Ela cita a República Democrática do Congo, um dos países com maior número de pedidos de refúgio no Rio de Janeiro, que passa por uma guerra há 20 anos e que já deixou 6 milhões de mortos.
“Dentro dessa guerra, a gente percebe que as violações causadas contra a mulher tem muito pouca responsabilização e muito pouco combate. Então, há uma relação na medida em que existe uma presença maior de pedidos de refúgio de congoleses de maneira geral. Também tem a hipótese de que as mulheres estão entendendo melhor os seus direitos e buscando novas realidades de apoio e refúgio”.
Violência institucionalizada
Há dois anos no Brasil, Mireille Muluila diz que no Congo, seu país de origem, a violência contra a mulher é institucionalizada, tanto como uma arma da guerra, onde os estupros são feitos pelas milícias rebeldes, como dentro de casa, onde a cultura local coloca a mulher totalmente submissa ao marido.
“Várias mulheres e crianças sofrem estupros e violações por causa da guerra, é usado como uma forma de impor o terror, mas dentro de casa também acontece, pelos maridos. O estupro pode acontecer na rua, mas também com alguém que você conhece, como o marido que força a mulher a fazer sexo, mesmo se ela não quer, inclusive bate nela por causa disso”.
Mireille relatou que são comuns no Congo casamentos forçados, inclusive com meninas na pré-adolescência. Ela diz que, muitas vezes, a mulher é obrigada a fugir dos rebeldes com a roupa do corpo e sem conseguir encontrar com seus familiares para planejar a saída do país.
“O que está acontecendo no meu país está fazendo com que essas mulheres saiam de lá. Quando acontece uma violência contra a mulher ou outra pessoa da família, como a mãe ou a filha, ela tem que fugir com as pessoas que estão com ela, mas é difícil, porque a chegada dos rebeldes pode acontecer num momento em que a mulher não está em casa e ela tem que sair do jeito que está, sem poder voltar para casa. Isso faz com que várias mulheres estejam fugindo de seus países e pedindo refúgio, como aqui no Brasil”.
Solidariedade Transnacional
Casos como o de Mireille levaram um grupo de mulheres a registrar essas histórias. Uma das responsáveis pelo projeto, Luciana Salvatore, diz que a aproximação começou com oficinas de cartas e evolui para o filme Travessias, que foi mostrado no debate.
“A ideia é que essas mulheres pudessem expressar, por meio da carta, seus sentimentos mais profundos, mais íntimos. O filme passou por essa necessidade nossa de conhecer essas mulheres e ir ao encontro com elas e entender esse universo mais íntimo que é nosso, que é delas, de todas as mulheres. É todo um trabalho de não violência e superação dentro do universo feminino. A violência é semelhante no sentimento. Uma mulher violentada terá o mesmo sentimento em qualquer parte do mundo”.
Integrante do coletivo Não me Kahlo, Bruna Rangel apresentou dados sobre a violência contra a mulher no Brasil, para todas se unirem no combate às violações de direitos.
“Os dados da violência contra a mulher no Brasil obviamente também vão afetar a vida dessas mulheres que agora também fazem parte da nossa sociedade. Elas contribuem trazendo as experiências delas e dos países delas, mas principalmente da gente ter atenção com elas, o que a gente pode fazer por elas. É uma questão de união entre mulheres, a gente percebe que tem uma participação no Congresso muito pequena e tem uma dificuldade imensa de implementar políticas públicas, então, o apoio da sociedade civil é extremamente importante”.
Antes de deixar o Palácio do Planalto, Dilma se despediu de Lula. Ela foi para o Alvorada e ele voltou a São Bernardo do Campo (SP) - FOTO:
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Às 6h34 da quinta-feira, 12 de maio de 2016, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), anunciava a abertura do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, depois de 20 horas de sessão. Consolidava-se assim a maior ameaça à democracia desde o golpe civil-militar de 1964.
Fogos de artifício cruzaram o céu gigante de Brasília. Para alcançar o Palácio do Planalto foi preciso acessar as ruas paralelas à Esplanada dos Ministérios, fechada desde o início da votação, na quarta-feira, 11. Uma grade continha a multidão que foi prestar solidariedade a Dilma.
Sob Sol quente, jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos se acotovelavam para tentar entrar no prédio que guarda a sede do poder. A dificuldade de chegar à notícia anunciava o que estava por vir: em poucas horas a troca de manche se estabeleceu. Refletiu-se nos desmandos de podres e pequenos poderes, desde o segurança da porta do Palácio até a extinção de ministérios fundamentais.
A presidenta chegou pela garagem, sem que pudesse ser vista pela população que se aglomerava diante da rampa. Do lado de dentro, em uma pequena sala, fotógrafos e câmeras disputavam espaço para registrar a imagem do anúncio à imprensa. Um pequeno corredor comportava um grupo de mulheres que levavam no rosto o cansaço pela madrugada em claro e a desesperança de quem enxerga os sinais do retrocesso de direitos. Portavam flores para Dilma.
Outras mulheres cercaram a presidenta durante a mensagem sobre seu afastamento. Na linha de frente estavam as ministras Tereza Campello, do Desenvolvimento Social; Eva Chiavon, da Casa Civil; Eleonora Menicucci, das Mulheres; Izabella Teixeira, do Meio Ambiente; Kátia Abreu, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; e Nilma Lino Gomes, da Igualdade Racial, além de senadoras e deputadas.
Ao entrar, a presidenta foi aplaudida sob o coro “Dilma, guerreira da pátria brasileira”. Estava abatida pelas semanas tensas que culminaram naquele momento. O mesmo olhar triste compunha a fisionomia das poderosas mulheres ao seu lado e de muitos de seus ministros. Apesar desse clima, Dilma estava firme.
“Na condição de presidenta eleita pelos 54 milhões (de cidadãos e cidadãs), eu me dirijo a vocês nesse momento decisivo para a democracia brasileira e para nosso futuro como Nação”, disse, na abertura do discurso. “Eu já sofri a dor indizível da tortura; a dor aflitiva da doença; e agora eu sofro mais uma vez a dor igualmente inominável da injustiça. O que mais dói, neste momento, é a injustiça.”
As câmeras do Brasil todo (e de muitos países) apontavam para a cena. Dilma finalizou o discurso avisando que não cansa de lutar, que não está sozinha e agradeceu. “Vamos mostrar ao mundo que há milhões de defensores da democracia em nosso País.” Rapidamente se dirigiu ao térreo do Palácio, seguida de seguranças, ministros, deputados, senadores, jornalistas – e de mulheres, sobretudo. Decidiu não descer a rampa. Seria uma imagem que ficaria congelada em um simbolismo equivocado. Dilma está afastada, mas ainda é presidenta do Brasil.
Quis sair pela porta da frente. Com dignidade, um sorriso e cabeça erguida, o primeiro abraço que a presidenta recebeu foi de uma mulher. A multidão cantava palavras de ordem, em vozes predominantemente femininas. Entre as mulheres que aguardavam na saída do Palácio do Planalto estava um grupo de sete companheiras de cárcere que foram torturadas com Dilma durante a ditadura, em 1970, no Presídio Tiradentes, em São Paulo. “Estar hoje com ela é um ato extremamente importante para todas nós”, disse Guiomar Silva Lopes, em depoimento aos Jornalistas Livres. “Nós viemos demonstrar a solidariedade à nossa companheira de luta e queremos reafirmar que vamos continuar junto a ela.”
Como se desse uma volta olímpica no Palácio, Dilma foi seguida pela massa de mulheres, jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas e parlamentares. Ia ao encontro das pessoas que a esperavam do lado de lá da grade.
O público segurava cartazes que diziam “Voltaremos”, levava flores e mantinha o punho erguido enquanto cantava “Renova, renova, renova a esperança, a Dilma é guerreira e da luta não se cansa” e “Olê, olê, olá, Dilma, Dilma”, ou “No meu País eu boto fé, porque ele é governado por mulher”, pedindo “Fica, querida”.
A presidenta encostou na grade e cumprimentou o povo. Nos semblantes uma mistura de alegria por ver pessoalmente a presidenta, pesar pelo golpe e preocupação pelo futuro. “Estou aqui para dar apoio à presidenta Dilma e para presenciar esse momento que eu sinto como se fosse um golpe fulminante e pela perda que eu sinto que vai acontecer, de tudo o que nosso povo recebeu e mudou a vida de tanta gente no País”, disse a brasiliense Ana Zélia, 60 anos. Ela tremia em um misto de emoção e nervoso. “É o fim de uma era. É um momento de muita dor para quem pensa nos menos favorecidos. Eu vim também em nome deles. Para que tenhamos dignidade”, completou.
Em seu discurso na beira da rampa, acompanhada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de suas ministras, Dilma estava agradecida e fortalecida pelo carinho. “Nós mulheres temos uma coisa em comum, nós somos dignas. Quero dizer a vocês que eu lutei a minha vida inteira e vou continuar lutando”, declarou.
Ao terminar o discurso, Dilma se despediu de Lula. Com sorriso cúmplice, o ex-presidente abraçou Dilma. Deu um beijo em seu rosto e ela deitou a cabeça no ombro esquerdo de Lula. E partiram. Ela para o Palácio da Alvorada. Ele para sua casa em São Bernardo do Campo (SP).
Um dia antes do impeachment
Tempos difíceis: lideranças de religiões de matriz africana se reúnem no jardim do Palácio do Planalto na manhã dequarta-feira, 11 de maio, em evento contra a intolerância religiosa – FOTO: Maria Carolina Trevisan
Sob a gestão de Michel Temer
Durante a posse do presidente interino, manifestantes expressam insatisfação com Temer e pedem intervenção militar. Em poucas horas o conservadorismo e a frieza tomaram o Palácio do Planalto – FOTO: Fernando Sato
Novo figurino
Em poucos minutos, o Palácio do Planalto mudou completamente. Grande parte dos visitantes se retirou. Ficou um grupo de 30 mulheres que se acorrentaram nas grades para protestar contra o governo ilegítimo de Michel Temer. Os seguranças se reposicionaram. Um deles quis impedir uma ministra de voltar ao salão principal. A imprensa se reorganizou para escutar o presidente interino. Servidores que fizeram questão de se exonerar com Dilma limpavam suas gavetas.
Naquela tarde, por volta das 17 horas, o Palácio se vestiu de amarelo para receber Temer e seu ministério de homens brancos. O primeiro protesto enfrentado por ele partiu dos fotógrafos, que cantaram “não vai ter foto!”. Em lugar de gente emocionada, a sala estava tomada por ternos pretos.
Ao comentar a eliminação de ministérios, Temer engasgou e teve que pedir pastilhas. Acabou por reduzir de 32 para 23 pastas, exterminando o Ministério da Cultura e secretarias como Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Pessoas com Deficiência. Escolheu como símbolo o velho “Ordem e Progresso” e como lema “não fale em crise, trabalhe”.
Ao fechar o discurso, Michel Temer evocou Deus para proteger o Estado que, segundo a Constituição, é laico. “O que nós queremos fazer agora, com o Brasil, é um ato religioso, é um ato de religação de toda a sociedade brasileira com os valores fundamentais do nosso País. Por isso que eu peço a Deus que abençoe a todos nós: a mim, à minha equipe, aos congressistas, aos membros do Poder Judiciário e ao povo brasileiro, para estarmos sempre à altura dos grandes desafios que temos pela frente.”
O clima na porta do Palácio do Planalto no momento do discurso de posse de Temer também era oposto ao que se viu pela manhã: policiais reprimiam com gás de pimenta um protesto contra o golpe; três pessoas carregavam a bandeira brasileira vestidas com uniforme da seleção; e dois homens portavam cartazes pedindo a volta da intervenção militar. O futuro do pretérito acabava de começar.
Rapper celebra o lançamento do vinil de 'Coisas do Meu Imaginário' com dois shows no SESC Pompeia. Foto: Jorge Bispo
*Por Vinicius Felix
Rael parece especialista no quesito esgotar ingressos de shows em tempo recorde. Os ingressos praticamente evaporaram quando o assunto são suas apresentações. Os shows que marcam o lançamento do vinil de Coisas do Meu Imaginário acontecem nos dias 2/3 (sexta) e 3/3 (sábado), na Comedoria do Sesc Pompeia, já têm pouquíssimas entradas disponíveis.
Na sua discografia solo, Rael soma quase 40 músicas. Desse montante pedimos que ele selecionasse 5 músicas para participar da nossa série de posts onde diversos artistas vão escolher e comentar cinco momentos especiais de suas discografias, trazendo curiosidades, boas histórias e, ao mesmo, criar uma playlist de boa música.
Veja as escolhas de Rael:
1 – “Vejo Depois” (MP3 – Música Popular do 3º Mundo – 2010)
Foi a primeira música que eu fiz depois de aprender a tocar a violão em 2004. Misturando ragga, reggae em uma música com pegada meio “love song”. Ela trouxe um pouco da minha identidade musical, o meu próprio estilo de fazer música, através do violão e influenciado pela música popular, reggae, rap. E nessa eu consegui mesclar um pouco isso e explorar mais o lance da melodia, coisa que até então eu não fazia muito, nos raps era mais focado no lance da oratória. E hoje é uma música bem conhecida. Em show quando eu canto ela todo mundo canta, ainda é muito forte.
2 – “O Hip Hop é Foda” (Single – 2014)
Essa foi inspirada na Bossa Nova é Foda do Caetano Veloso e repercutiu muito bem, chegou nele e chegamos a cantar juntos em um show no Ibirapuera. Foi bem bacana. É uma música que receberam muito bem. Tentei falar nela da importância do hip hop para mim. Se o Caetano fala que a bossa nova é foda, espera aí, o hip hop também é. E o hip hop é como minha formação acadêmica, me tornou uma pessoa melhor. Na O Hip Hop é Foda 2 eu chamei outros rappers para contarem a visão deles.
3 – “Ser Feliz” (Diversoficando – 2014)
Gosto muito de Ser Feliz. Ela traz esse lance que tá rolando agora do consumismo desenfreado, de ficar muito apegado as coisas materiais e não se atentar a outras coisas importantes como se encontrar como pessoa para conquistar suas coisas e tal. Fiz a batida no violão e a letra veio na sequência: “Hoje acordei decidido a mudar/Não tem nada nem ninguém pra me desmotivar/Eu vou pedir a conta lá no trampo/Que não tá rendendo tanto”. É um diálogo com a molecada.
4 – “Envolvidão” (Diversoficando – 2014)
Essa é a minha primeira música que foi para rádio e tá rolando muito bem com essa oratória meio romântica. É uma música que deu um up na minha carreira, então tenho um apreço por ela. Acho que a primeira vez que eu ouvi no rádio foi dirigindo, fiquei feliz, né? Porque é mó treta entrar no rádio, só entre depois de anos trabalhando com música e as pessoas tão gostando.
5 – “Caminho” (Ainda Bem Que Eu Segui As Batidas Do Meu Coração – 2014)
Foi o primeiro afrobeat que eu fiz, essa coisa de misturar rap com afrobeat. Tem uma pegada bem africana, uma letra que fala de orixás, da dificuldade de correr atrás das próprias coisas e tal.
Neste 25 de janeiro, São Paulo completa 464 anos. Habitada por mais de 12 milhões de pessoas nascidas aqui, vindas das mais diversas partes do País ou do mundo, a capital paulista jamais deixou de reiterar sua exuberância e suas controvérsias.
Acolhedora para milhões que nutrem paixão incondicional por essa espécie de “mãe geográfica”; hostil para outros milhões que vivem às margens de regiões suburbanas e periféricas, ou que aqui chegam desavisados, como nortistas, nordestinos e imigrantes, São Paulo, na juventude de seus 464 anos, segue indecifrável e plural.
Para além da vocação industrial, que a consagrou e rendeu o prepotente vulgo “Locomotiva do País”, São Paulo é também reconhecida como um epicentro de cultura efervescente nas mais diversas facetas. Não por acaso, muitos artistas egressos de outros estados do País escolheram a capital paulista como destino afetivo e espaço de amplitude de seus desejos profissionais.
A seguir, páginaB! compila depoimentos de seis artistas que longe de casa, no famigerado misto de amor e ódio, vivenciam em seu dia a dia as controvérsias humanas da maior metrópole do Brasil.
Renata Carvalho, atriz e transfeminista, Santos/SP:
A cidade de Zé Celso e do Teatro de Arena, da Roosevelt, do Satyros e Parlapatões. A cidade da Rêgo Freitas. A cidade do Transcidadania e da Casa Florescer. A cidade de Claudia Wander, Phedra de Córdoba e Thelma Lipp… Ah… Thelma Lipp e sua trágica história com o Carandiru…
A cidade que mais matou pessoas Trans no Brasil no ano passado. SP MATA TRANS. Precisamos falar sobre travestilidade e transexualidade em São Paulo. Estamos morrendo. Parabéns, São Paulo. Parabéns pra quem?
Badi Assad, cantora e violonista, São João da Boa Vista/SP:
“Tem uma forma que gosto de me definir, que é “Um pé no mato, outro no asfalto”. Digo isso por ter vindo da natureza (e adorar estar nela), mas também por gostar de sentir-me parte da metrópole. Afinal, foi na grande cidade que tive a oportunidade de entrar em contato com múltiplas culturas e seus excelentes profissionais, que me ensinaram diversidades. Em São Paulo, especialmente, sanei muito da minha sede de aprendizados, por ser uma cidade que transborda competência humana. É nela também que habitam meus mais antigos e queridos amigos. Sampa, na verdade, funciona como uma especial lâmpada mágica. Você faz o pedido e ela te devolve possibilidades concretas, num passe de sonhos.”
Milton Hatoum, escritor, natural de Manaus/AM:
Eu vim pra São Paulo na década de 70 para morar e estudar aqui. Acabei entrando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de São Paulo. Foi aqui que tive uma formação mais sólida como leitor, porque eu frequentava os cursos de literatura na faculdade como ouvinte. Então, a minha guinada da arquitetura para a literatura é fruto de São Paulo. Foi uma aprendizagem. Aqui eu comecei a escrever, me dediquei à literatura. Essa cidade é parte da minha formação intelectual e sentimental. Longe de ser Cidade Linda, é das cidades brasileiras a que te oferece mais oportunidades em todos os sentidos. Aqui existem grandes patrimônios que auxiliam na cultura, o SESC de São Paulo, por exemplo, é um dos grandes dínamos da área na cidade.
Fábio Trummer, músico, natural de Olinda/PE:
“Eu costumo vivenciar os lugares onde eu estou. Eu fiz essa opção por morar em São Paulo porque eu gosto de alguns aspectos culturais e sociais da cidade. A minha obra é feita disso: das minhas observações principalmente e dos meus sentidos em relação ao meu entorno. A cidade de São Paulo tem dado à minha obra exatamente o que fui buscar enquanto pessoa, alguns outros sentidos que em Recife e Olinda eram menos presentes. É assim como vou me alimentando da música e que a música vai se alimentando de mim: é assim com a cidade. Eu me alimento da cidade e transformo isso em música. Vou vivendo o dia-a-dia assim”.
Aretha Sadick, cantora e drag queen, natural de Caxias/RJ:
“A cidade de São Paulo, nestes dois rápidos anos por aqui, me fez vivênciar duas coisas que me parecem mais importantes: COLETIVIDADE e DIREITO À CIDADE. Meu trabalho artístico reflete isso! Ser nova numa grande selva e, apesar disso, ser rapidamente abraçada pelos meus, outros meus, exercendo o direito de ocupar o espaço urbano… Acho que, por isso, hoje a música eletrônica é um dos meus campos de atuação, tanto performando, quanto cantando. Em São Paulo, encontrei novos coletivos que fortaleceram ainda mais o cunho político no meu trabalho e no meu discurso, assim como a minha Identidade de Gênero.Trabalho com imagem e, neste sentido, exploro as potencialidades e pluralidades enquanto pessoa negra na moda e no audiovisual”.
Tássia Reis, rapper, natural de Jacareí/SP:
“A primeira vez que eu visitei São Paulo pra vir numa festa de dança, eu me encantei pela atmosfera a cidade, era como se cada porta de bar, balada ou casa escondesse um universo único e totalmente diferente do outro. Aquilo me encantou… 3 anos depois vim pra cá estudar e acabei florescendo minhas composições, aquele agito e pressa das pessoas me deixava ansiosa! Logo entrei naquele fluxo de pessoas que estão apressadas e comecei a perguntar porque 24 horas não davam conta de todas as demandas. Essa cidade é muito louca, e a gente vai ficando meio loka junto! Não sei se por ter vindo de outro lugar, mas essa não-rotina é muito estimulante. Isso com certeza trouxe novas perspectivas pra minha música, escrevo muito sobre sentimentos e sensações, e vir pra cá aos 20 anos me atravessou de uma maneira muito marcante”.
O curador alemão Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo desde maio último, o alemão Jochen Volz fala sobre seus planos para o museu, sua experiência à frente de outras importantes instituições culturais no Brasil e no exterior, e também opina sobre o sistemático ataque conservador contra as exposições de arte no País.
Quais são seus planos para a Pinacoteca?
Jochen Volz — Uma instituição é muito mais do que uma programação de exposições. Tem politicas de acervo, de manejo de obras, de recursos humanos, envolve muitas equipes, é uma grande formadora de profissionais, tem uma programação educativa, uma programação cultural. São perfis diferentes. Acho que o primeiro tempo de uma chegada como gestor é esse momento de escuta. Foi um desejo meu pensar, nesses primeiros meses, as várias ações acontecendo em dois prédios. Ainda temos o Memorial da Resistência, que é um equipamento do Estado administrado pela mesma OS (Organização Social), uma instituição parceira, vizinha, dentro do mesmo prédio.
Colocar todo mundo no mesmo pé?
Sim. Ou pelo menos todo mundo consciente que a Pinacoteca é só uma dessas tantas ações. Ela não é uma ação só educativa, só manejo de acervo, só programa de exposições, ou a programação cultural. A Pinacoteca é a soma de tudo isso. Foi um exercício coletivo, uma tentativa de entender quais são os programas perenes, especiais, quais estão vinculados a uma exposição e quais tem uma vida independente. Tentar organizar isso de uma forma que todos entendam que a soma de tudo isso é a vida da instituição. Eu achava muito importante falar de todas as áreas num único documento, que chegasse ao nosso publico.
Na Pinacoteca há uma ambiguidade, talvez até uma contradição, porque ao mesmo tempo em que ela é histórica, tem esse grande acervo, ela cada vez mais vem se tornando contemporânea. Como você lida com esses dois lados?
Acho muito interessante pensar que ela tem um perfil muito claro. Mas pensando um pouco no histórico da Pinacoteca, é possível notar que mesmo quando foi criada ela já serviu para ensinar os jovens artistas. Era um equipamento de ensino. Então na verdade ela sempre foi muito ligada à arte contemporânea da sua época. Ela também tem essa função de contar uma história da arte brasileira, mas ela nunca se entendeu só como um museu de arte brasileira. Quer ser um museu de diálogos internacionais.
Muito se falou quando você foi convidado que o grande interesse era exatamente abrir esse canal com a arte internacional. Você acha que a arte brasileira está mais integrada?
A colaboração que eu pude dar nos últimos anos foi criar diálogos entre artistas brasileiros e outros de fora do país, em ambas as direções. Isso vem acontecendo naturalmente, mas historicamente alguma coisa mudou. Essa coisa de caixinha de arte brasileira é muito menos marcante. Desde os anos 1990, com mais naturalidade, artistas brasileiros circulam em diálogo com artistas do mundo inteiro. A própria evolução da Bienal de São Paulo contribui para isso. Desde 2006 ninguém mais vem com o rótulo de ser artista inglês, holandês, ou sul-africano, mas sim porque está em sintonia com uma questão posta. Para mim o interesse é pensar um pouco como criar diálogos mais estratégicos. Trazer pura e simplesmente um nome famoso da arte internacional para o Brasil me parece insuficiente. É interessante pensar quais diálogos podem ser criados que realmente mostram o que fazemos aqui de forma diferente, que modifiquem nosso pensar, ou nosso olhar, nosso entendimento, nossa visão do todo. Acho que isso é um desejo de operar muito estratégico.
Já li que no início de seu trabalho na Portikus, em Frankfurt, você se via mais como um realizador de exposições do que como um curador.
Organização de exposições: é o que respondo quando me perguntam o que faço. Nunca me senti como autor de um projeto. Até na Bienal de São Paulo, por exemplo, que é obviamente um projeto mais autoral, para mim foi muito importante que isso tenha sido um projeto coletivo, tanto com outros curadores como em diálogo com todos os artistas, muitos deles que nem participaram da mostra e que talvez nem saibam como foram importantes também na formação do projeto. E não só artistas, mas acadêmicos, lideranças, várias outras figuras. Eu entendo que somos formados por todos os encontros que temos.
Você já dirigiu, no Brasil, instituições de grande importância. Inhotim, Bienal e Pinacoteca compõem um bom trio. Cada uma dessas instituições tem suas especificidades. Você parece prestar atenção no que cada uma delas pode render.
Em cada uma eu estava num momento muito específico. Quando fui chamado para colaborar com Inhotim, a instituição refletia sobre a possibilidade de criar seu próprio perfil, a partir do contexto em que está inserida, em Brumadinho, sem outros museus em torno. Foi um processo de aprendizado em conjunto. Mas também isso foi 13 anos atrás, estava num outro momento. Tinha relacionamento com artistas, mas pouca experiência com gestão de instituições e a gente foi aprendendo junto. A Bienal de São Paulo é totalmente outros quinhentos. Era uma situação extremamente privilegiada, para a qual fui convidado não como gestor, mas como curador. Trata-se de uma instituição consolidada, com uma equipe consolidada e muito bem gerida, que reage a uma proposta curatorial e ajuda que isso se torne realidade. Foi um privilégio enorme fazer isso. Agora para mim a Pinacoteca é um outro momento. É uma das instituições de arte com uma das histórias mais longas no pais. Tem muita tradição, muita experiência e corpo técnico incrível. É um convite para ajudar a partir da minha experiência de trabalho com instituições de fora e brasileiras. Ajudar a pensar como uma instituição desse peso pode continuar crescendo. Porque um museu só é ativo enquanto coleciona.
Você tem uma experiência, uma vida, uma família, uma vivência brasileira. Não é exatamente um curador estrangeiro. Como é ter essa dupla nacionalidade?
Minha carreira profissional aconteceu muito mais no Brasil do que fora. Eu devo a arte brasileira muito mais, de uma certa forma, do que à cultura alemã ou europeia. Por outro lado, nesses anos em Inhotim percebi que vinha assumindo cada vez mais um papel daquele curador que conhece o Brasil, mas tem um olhar de fora. O que pode ser uma perspectiva interessante, mas as vezes é muito delicado também. Em 2012, quando aceitei o convite de trabalhar na Serpentine em Londres foi um pouco uma reação a isso. Esse perfil de estrangeiro que trabalha no Brasil principalmente com artistas ou com arte brasileira, ou trabalha fora com artistas brasileiros, não me parecia suficiente. Acompanhei um monte de exposições durante esses três anos e meio que fiquei lá. Aumentar o vocabulário foi muito importante. Além disso, hoje há mais pessoas com pesquisa similar, outros curadores, outros organizadores de exposições que hoje moram e trabalham no Brasil e que também são estrangeiros. A situação de 2004 para cá mudou muito.
Você fala muito da importância da troca com os artistas. Além do casamento e da proximidade com o trabalho da Rivane Neuenschwander, o contato com a obra de Cildo Meireles foi fundamental em sua trajetória, não?
A primeira exposição com um artista brasileiro que organizei foi com a Rivane. Quando a convidamos para fazer um projeto em Frankfurt em 2001 ela disse: “Curioso, estão me convidando e não convidam o Cildo. Está faltando esse olhar para uma geração que nos ensinou muito”. A partir disso eu comecei a pesquisar mais o trabalho do Cildo e me aproximar dele. Fiz um convite a ele para um projeto em Frankfurt já em 2002, que se realizou em 2004. No segundo semestre de 2004 trabalhamos junto em Inhotim e desde então vários projetos foram feitos. Nesse sentido ele foi muito importante como uma das figuras com que até hoje tive mais diálogo, um diálogo contínuo.
E tem na obra dele talvez essa relação entre conceito e um cuidado com a forma, uma delicadeza, um afeto, com o próprio fazer, que você parece buscar na arte brasileira?
É, eu já falei isso. Eu vejo muito entre esses dois polos dois artistas históricos com que trabalhei intensamente, que foram Tunga e Cildo. Uma característica que me fascina na arte brasileira, que a diferencia de outras, é essa convergência entre discussão formal e discussão conceitual. A poética e política sempre é integrada. Não se separa. É diferente de uma arte inglesa, que talvez tenha uma reflexão sobre modos de fazer, uma coisa mais dura. Ou de uma escola mais alemã onde ou domina o conceitual ou o formal; são pontos diametralmente opostos mas podem estar juntos. É uma coisa que os pesquisadores em geral estão muito interessados, a arte brasileira ensina.
Talvez a gente esteja até vendo um refluir disso? Em função desse retrocesso reacionário, de um embate mais intenso em torno de questões importantes. As coisas parecem estar ficando mais duras?
Acredito muito no poder da arte, estou convencido de que a arte sempre sobrevive. Obviamente em momentos favoráveis ela assume outras formas, mas ela também nasce a partir da resistência. Já a cultura não. A cultura é um pouco aquele vocabulário que nós criamos coletivamente para poder falar disso, entender nosso ser no mundo, de uma forma mais complexa.
Gosto de usar esse paralelo mais óbvio, entre cultura e agricultura. Quando a gente joga veneno num terreno, não cresce mais nada e a gente perde essa riqueza e a consciência dessa riqueza. Estou mais preocupado com a dita cultura, a partir da qual a gente consegue estabelecer, defender e resistir a essas invasões super radicais e ultra conservadoras. Estou muito mais preocupado com perder essas memórias – perder por exemplo essa noção que falávamos de integração entre uma poética, uma política, um conceito e uma formalização, algo que é tão diferencial e tão único na arte brasileira. Isso é muito triste.
Como enfrentar isso?
Acho que a gente tem que fazer muito esforço para defender nossas instituições como espaço plural. A diversidade é o único jeito, A gente pode aprender por exemplo com culturas indígenas que claramente cultivam a terra em múltiplos caminhos, sempre visando a diversidade. Se alguma coisa está sendo ameaçada, tem outras formas que seguram a cultura em conjunto. Estamos vivendo uma situação histórica na qual a diversidade está sendo atacada, a multiplicidade está sendo reduzida para que se tenha uma só narrativa predominante e isso é muito perigoso. O papel principal das instituições culturais é promover a diversidade, a pluralidade. Criar formas, programas inclusivos para todos, entender que as linguagens são muitas, que os discursos são muitos. É nosso papel.
Você poderia fazer um balanço da 32a Bienal? Foi uma bienal que quebrou vários paradigmas e a noção de incerteza, que balizou a mostra, parece cada vez mais presente hoje.
Para mim é muito curioso isso, é um processo que ainda está em andamento. Em vez de fechar em dezembro, ela se desdobrou num monte de outros diálogos. Passou por doze cidades brasileiras, foi para Bogotá, para o Porto, em Portugal, ela é muito viva. Os assuntos que desenvolvemos como eixos principais – as cosmovisões, a educação, a ideia de narrativas, as identidades múltiplas e a ecologia – são exatamente esses assuntos que estão sendo ameaçados diariamente.
Exatamente. São por essas frentes que identificamos o retrocesso?
Tudo que a gente tem vivido, o retrocesso ou o controle pelo capital, o desejo de poder pelo poder, é tudo por aí. Nossos recursos do Brasil estão todos em jogo. A ecologia, a diversidade, a multiplicidade, a questão indígena… Mas a discussão não acabou. E é curioso, porque durante a Bienal, nesses três meses em que ela teve 900 mil visitantes, não tivemos nenhum problema desta ordem aqui em São Paulo. Mas tenho certeza de que se a gente abrisse hoje a mesma Bienal era o que aconteceria. Isso porque não foi nem um ano atrás.
Com relação à programação da Pinacoteca, é possível notar algumas linhas de força e um peso de questões candentes como as discussões de gênero e raça. ‘Radical Women’ se apresenta como um dos grandes destaques?
Acho importante entender que é uma exposição histórica, que está sendo organizada pelo Hammer Museum, de Los Angeles. São duas curadoras, a Cecilia Fajardo-Hill e a argentina Andrea Giunta, que há sete anos vem fazendo uma pesquisa, olhando para a arte desenvolvida por artistas mulheres dos anos 1960 até 1985. Um período claramente definido em que as artistas mulheres assumiram cada vez mais um protagonismo dentro da reinvenção da arte. O que é muito bonito nessa exposição é que ela mostra claramente que, embora muitas tenham sido ativistas solitárias, elas não estiveram sozinhas. Fazem parte de um grupo de pessoas, de uma pesquisa, bem maior do que uma conquista individual de cada uma delas.
Uma arte fora dos paradigmas?
Vejo que essa exposição tem um papel, por isso a gente está fazendo este esforço de trazê-la para cá, em sua única itinerância para América Latina. Podemos destacar três aspectos muito interessantes. Um deles é o fato de olhar para a arte feita por artistas mulheres neste período; outro é o destaque dado para as mídias e formas de expressão que foram inventadas por essas artistas, que hoje a gente entende como parte do nosso vocabulário, mas que na verdade desconhecemos a fonte. Por último, talvez esta seja uma das maiores exposições já feita sobre a arte latino-americana. Ela não olha a arte colombiana, a arte brasileira, a arte chilena, enfim. Ela realmente conta uma história de uma geração, dentro de um continente, um conjunto cultural, de uma forma extremamente ampla, algo que raramente se vê.
Você destacaria mais alguma exposição da programação?
Acho que o outro destaque será a próxima grande exposição, que abre depois do Di Cavalcanti: uma retrospectiva de Hilma af Klint, uma sueca, que se formou nos anos oitenta do século XIX, momento em que muitas coisas não são visíveis se tornaram visíveis, como o raio x, o radio, etc. Ela começou a se comunicar com energias, criou técnicas de desenho automático, para explorar esse campo não explorado ainda de uma forma muito inovadora. E, no início do século XX, começou a desenvolver uma arte “abstrata” extremamente revolucionária.
Precoce, não?
Super precoce. Antes de todo mundo. Foi uma das pioneiras. E mais surpreendente, trabalhou numa escala enorme. Há por exemplo um conjunto de dez grandes telas, pinturas que tem 3,50 por 2,40 metros de dimensão. Na história da arte, demorou ainda muito tempo até chegar nessa escala. E ela desenvolveu uma prática extremamente interessante, baseada numa exploração serial. É muito impressionante. Quando ela faleceu, em 1944, pediu em testamento que não mostrassem esse trabalho por mais vinte anos para ninguém. Ficou trancado até os anos 1960. A família quis doar esse trabalho todo para o Pontus Hultén, que era o diretor do Moderna Museet de Estocolmo. Ele não entendeu a história de uma mulher que fazia figura abstrata antes do Kandinsky e deixou passar. O material ficou meio desconhecido até os anos 1980. A partir daí algumas obras começam a circular, mas só em 2013 ocorre a primeira retrospectiva mais sistemática de sua obra, que foi feito pelo próprio Moderna Museet de Estocolmo. Tem alguns eixos na pesquisa dela, a ideia da serialidade, das cores, da geometria, a ideia de se entender cada vez o mundo de uma forma mais plural e cosmológica, que permite um diálogo extremamente interessante com a arte brasileira. Enfim, foi uma artista sobre quem sempre fiquei curioso e agora abriu-se essa possibilidade de trazê-la, com uma nova exposição, curada por nós.
Foi idealizada para a Pinacoteca?
É. Uma curadoria minha junto com diretor do Moderna Museet de Estocolmo e em colaboração com a Fundação Hilma af Klint. A gente fez uma nova curadoria para cá que busca esse diálogo com a história da arte brasileira. Apresenta por um lado a pesquisa da Hilma para um publico brasileiro e latino-americano pela primeira vez, mas também é uma tentativa de trazer um outro olhar para o trabalho dela onde talvez o diálogo com a arte brasileira possa acrescentar alguma coisa além da leitura dela própria.
Uma coisa alimenta a outra?
A história da arte não é só linear. E a arte brasileira pode abrir caminhos para entender o trabalho de uma Hilma embora ela não tenha diálogo biográfico nenhum com a América Latina ou o Brasil.
Os curadores buscaram criar uma mostra que desse “apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem'. Foto: Divulgação.
Qual a relevânciade uma bienal de arte em meio a um regime opressor? Em um contexto delicado, quando após uma estranha tentativa de golpe, em 2016, a Turquia passou a prender dezenas de intelectuais, jornalistas e acadêmicos, esta foi uma das questões recorrentes aos artistas e curadores Elmgreen & Dragset, responsáveis pela 15ª. Bienal de Istambul.
Trabalhando juntos desde 1995, primeiro na Dinamarca, depois em Berlim, onde vivem desde 1997, o norueguês Ingar Dragset (1969) e o dinamarquês Michel Elmgreen (1961) consultaram até o prêmio Nobel de literatura Orhan Pamuk sobre a conveniência da organização da bienal.
A mensagem do escritor foi clara: “não se amedrontem”. Com isso, de acordo com Dragset, em entrevista à ARTE!Brasileiros, durante a abertura da Bienal, em setembro passado, os curadores buscaram criar uma mostra que desse “apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem”.
Intitulada “um bom vizinho”, a Bienal reuniu 56 artistas de 32 países, em seis locais expositivos, do museu Istambul Modern a uma residência modernista, que serviu de sede para a Proposta para uma Casa Museu do Desconhecido Homem que Chora, projeto do artista egípcio Mahmoud Khaled.
Esse ambiente íntimo, acaba reverberando em vários outros espaços da mostra, o que para Dragset significa que o momento agora é de um tempo interior. Veja o porque a seguir.
Obra de Andrea Joyce Heimier exibida na Escola Grega, em Istambul.
Dezenas de jornalistas e acadêmicos estão presos, e a liberdade de expressão está seriamente ameaçada na Turquia. Como é fazer uma bienal neste contexto?
INGAR DRAGSET – Nós estivemos muito inseguros, até certo ponto, se ela seria possível ou mesmo se é relevante fazer uma bienal em um situação como esta. Logo após a tentativa de golpe que ocorreu no ano passado, o que fizemos foi colocar o tradicional processo curatorial em suspensão, afinal precisávamos falar com as pessoas locais sobre a visão delas do que ocorreu, só elas teriam uma leitura precisa dos fatos. Então, dez dias após a tentativa de golpe, viemos ouvir não apenas de artistas e curadores, mas jornalistas, políticos, pesquisadores, diretores de instituições, acadêmicos e assim por diante o que eles pensavam da Bienal, e se organizar esse evento seria ou não relevante.
Entendemos, então, bem rapidamente, que o pior que poderia ocorrer, naquele momento, seria o rompimento com a comunidade internacional. Imediatamente após o golpe, teve um expurgo de intelectuais e acadêmicos, ameaçados pelas autoridades, criando mais medo e isolamento. Escritores como o Orhan Pamuk, com quem tivemos um jantar naquela semana, nos disse: “rapazes, por favor não se amedrontem (chicken out), de um modo bem prêmio Nobel de se expressar.
Voltamos, então, à Berlim mais encorajados e recomeçamos o projeto curatorial, pensando que a Bienal poderia ser uma forma de manter os canais de comunicação abertos, de dar apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem, o que tem muito a ver com o que se vê por aqui no momento.
De resistir?
Sim, de resistir, de buscar alternativas. As pessoas não sabem, mesmo após Gezi (os protestos massivos na praça Taksim Gezi, em 2013), como é possível expressar oposição.
O tema “um bom vizinho” já estava escolhido, naquele momento?
Sim, ele é menos um tema e mais uma ferramenta de trabalho, mas já tinha sido escolhido e se tornou mais relevante com o Brexit e com o muro prometido na campanha do Trump na fronteira do México.
Por outro lado, esse nome tem a ver com o passado da Turquia, que é uma história de convivência na diversidade por séculos, de uma sociedade com muitas camadas, o que contradiz o presente do país.
Em momentos duros assim, talvez a tendência seja ser mais documental, de denúncia do que ocorre. Mas essa bienal é o oposto disso, ela é delicada e ambígua, o que talvez sejam formas possíveis de resistência.
Em momentos assim, a primeira coisa é ouvir. Entretanto, a oposição não é muito alta, o que se reflete nos trabalhos dos artistas turcos, que são mais introspectivos, com mais pesquisa, mais poéticos, o que não significa que sejam menos importantes. É o caso do trabalho de Volkan Aslam, comissionado para a Bienal, muito representativo do que muitas pessoas, especialmente as jovens, sentem, que é o desejo de voltar à normalidade do dia-a-dia, ao enrolar um cigarro, beber um café, escrever uma carta…
Na mostra de fato há muitas obras que tratam da estabilidade e instabilidade do lar, como as pinturas de Andrea Joyce Heimer, que representa lares enlouquecidos.
E nós não sabemos para onde isso vai, toda essa insegurança não está sendo sentida só aqui, mas em muitos lugares do mundo e ainda estamos pensando em como reagir a toda essa estupidez dos líderes políticos, dos altos escalões da política internacional. Mas para isso precisamos tomar o nosso tempo, insistir em nossas identidades, nossos modos de se expressar, sem sermos forçados, como artistas, intelectuais e acadêmicos, a dar uma resposta rápida como “hooligans” (torcedores fanáticos).
E o artista brasileiro Victor Leguy, como você chegou ao trabalho dele?
Para ser honesto, eu vi o trabalho dele pela primeira vez no Instagram. (risos). Além dele, também descobri Andrea Joyce Heimer no Instagram, mas nunca a encontrei, apesar de nos comunicarmos muito.
Com Victor, eu consegui ir visitá-lo em São Paulo e logo depois de conhecê-lo, percebi que realmente gostaria de trabalhar com ele. É um artista com tantos níveis, que aborda questões sociais, usa readymades, o que é bastante raro. Esse trabalho que ele apresenta aqui, no qual mistura objetos que encontra com histórias pessoais, é algo que muitos fazem, mas do jeito que ele trabalha, cobrindo partes em branco, é uma excelente forma de apontar como a sociedade apaga partes significativas da cultura, transforma tudo em quase a mesma coisa, é quase uma forma escandinava de falar de monocultura.
Foto da instalação ‘PYZ’ 1915, do artista mexicano Alejandro Almanza Perada
Usar Instagram no processo curatorial é interessante, fale mais sobre esse processo…
Foram apenas dois artistas escolhidos pelo Instagram, mas obviamente usamos a internet para mais informações, sites de galerias, site de instituições. Mas também usamos o formato de pesquisa tradicional, fomos para a América do Sul, do Norte, África do Sul – onde fui pela primeira vez e achei incrível, daria para fazer toda uma bienal só com artistas de lá, é uma cena muito forte.
A curadoria de uma bienal é um processo no tempo, que um dia termina, já criar uma obra é um processo no espaço, que permanece. Como vocês diferenciam estas duas tarefas?
Curar uma bienal é trabalho que nos consome muito, de um momento para outro você se vê envolvido de situações políticas a conseguir patrocínio, definir logos, espaços. É um monstro. E, nestes últimos seis meses, praticamente paramos de produzir nosso trabalho, tanto que estou com medo de voltar ao ateliê (risos).
Creio que essa é a primeira vez que uma bienal está pronta quase um mês antes da abertura, essa é a maneira escandinava de se produzir uma bienal?
Superneurótico, como os filmes do Bergman, você quer dizer (risos), com toda a culpa protestante… Bom, uma coisa que a gente traz como artista é essa experiência pragmática, afinal nós já participamos de muitas bienais, e sabemos que para colocar de 60 a 70 projetos é preciso tempo. Tivemos um fantástico time também e, talvez isso se relacione às dificuldades do momento, houve uma energia positiva incrível em torno da bienal, de todos os técnicos, assistentes, voluntários, como se todos quisessem que algo bom acontecesse.
Como vocês começaram a fazer curadoria?
Nós nunca sentimos de fato uma oposição entre práticas artísticas e curatorais. Quando começamos, no início dos anos 90, em Copenhague, não havia uma cena comercial e tão pouco uma cena institucional, então tudo era possível e tudo dependia de nós. Criamos nossas exposições, revistas, performances, espaços expositivos, festivais.
Mas é raro esse reconhecimento tanto como artistas como curadores. Essa é a primeira bienal, não é?
Sim, e deve ser a última. (risos) Mas, sabe, foi natural, pensando novamente em Copenhague. Naquele momento, era quase a única opção pensar em tudo como um “gesamtkunstwerk” (obra de arte total).