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Kirk Douglas, segundo Denilson Monteiro

O ator Kirk Douglas em cena de Spartacus (1960), de Stanley Kubrick. Foto: Universal Pictures

Todo mês convidamos uma personalidade do universo cultural para escolher algum artista ou obra que tenha sido especialmente marcante em sua vida. Nesta edição, perguntamos para o escritor e roteirista Denilson Monteiro quem ele colocaria em seu “altar”. A escolha do autor de Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos ImperialA Bossa do Lobo: Ronaldo Bôscoli, Chacrinha, a Biografia e Divino Cartola foi um gigante do cinema, que, no último dia 9*, completou um século de vida.

Foi no dia 3 de julho de 1976 que assisti pela primeira vez a um filme estrelado por Kirk Douglas.  Era um sábado, e a TV exibiu O Invencível (Champion, filme de Mark Robson, de 1949), a história de um pugilista em luta dentro e fora do ringue. Eu, um garoto de 9 anos, fiquei fascinado pelo ator dono de toda aquela fúria prestes a explodir, bem parecido com os personagens sobre os quais, muitos anos depois, eu escreveria. Após estrelar filmes como Assim Estava Escrito, A Montanha dos Sete Abutres, Ulisses e Chaga de Fogo, Issur Danielovitch Demsky, o verdadeiro nome do astro de covinha no queixo, decidiu tornar-se produtor. O trabalho mais famoso da Bryna, companhia que batizou com o nome da mãe, é Spartacus. Como seu personagem, o gladiador que desafiou a Roma escravocrata, Douglas travou suas batalhas: insistiu no jovem Stanley Kubrick como diretor; fez valer suas decisões diante do impetuoso Stanley e derrotou o macartismo ao fazer constar nos créditos do filme o nome do roteirista Dalton Trumbo, até aquele momento trabalhando na clandestinidade. Kirk foi indicado três vezes ao Oscar, obteve somente um pelos 50 anos de carreira, em 1996. Sua única frustração foi não ter interpretado R.P. McMurphy em Um Estranho no Ninho, seu papel no teatro, mas que ficou com Jack Nicholson no filme produzido por seu filho, o também ator Michael Douglas, e dirigido por Milos Forman, que o considerou além da idade para o personagem. No dia 9 de dezembro, Kirk Douglas completou 100 anos. Sua memória o trai, fazendo com que recorra a Anne, sua esposa há 62 anos, para lembrar-lhe que Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, outro roteiro de Trumbo) é seu filme favorito; a fala está comprometida por um AVC e a coluna ficou ruim após um acidente de helicóptero. Porém, ele jamais deixará de ser Spartacus.

*Originalmente publicado na edição de dezembro de 2016 da revista CULTURA!Brasileiros

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Veja o trailer oficial de Spartacus

 

O desbunde tropicalista de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues

Arnaud Rodrigues, como Paulinho Cabeça de Poeta, e Chico Anysio, como Baiano. Foto: Reprodução / CID

“Faço do meu canto a neura existencial / O conteúdo do cotidiano, o dia a dia da vida / A eletrônica está substituindo o coração / A inspiração passou a depender do transistor / O poeta de aço, de poesia programada, é demais para os meus sentimentos, tá sabendo?”.

O papo cabeça supracitado – para defini-lo com uma gíria bem anos 1970 – é proferido pelo personagem Baiano, no decorrer do registro de Nêga, segunda faixa do LP Sangue no Cacto (título não estampado na capa, mas no encarte). Lançado pela gravadora CID, o álbum fez grande sucesso e consagrou a feliz parceria entre os humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues. Estivessem inseridos em um LP de Caetano Veloso ou de Chico Buarque, os versos tornar-se-iam máximas replicadas pela juventude intelectualizada e politizada que combateu o regime militar no Brasil dos anos 1970.

Lançado em 1974, depois do enorme sucesso do quadro criado por Chico para o programa semanal Chico City, Sangue no Cacto chegou a outros destinatários e atingiu um espectro diverso. Daí seu enorme valor, porque, por mais cifradas que fossem as mensagens contidas no álbum, pequenos recados, como o que abre este texto, instigavam o ouvinte a suspeitar que as coisas não andavam nada bem no seu amado Patropi.

Com a visibilidade de nosso maior humorista, questões urgentes do cotidiano do País caíram nos ouvidos e na boca do povo e deixaram em alguns a amarga percepção de que era melhor rir para não chorar. Se o clima sombrio da repressão pairava no ar, na tentativa de amortizar o terror daqueles dias, os generais vendiam as delícias do  Milagre Econômico – espetáculo econômico financiado com empréstimos infindáveis, que legaram ao País décadas de endividamento com o FMI e outros credores internacionais.

Com AI-5, general Médici e o recrudescimento da violência do Estado, o primeiro quinquênio dos anos 1970 foi marcado pela quase extinção dos grupos de resistência ao regime militar. Aos remanescentes não restaram muitas escolhas, além de partir para a guerrilha ou fugir do País e viver clandestinamente em algum canto seguro e bem distante daqui. E a crônica desse momento está implícita, com muita astúcia, até mesmo para driblar os censores, em Sangue no Cacto, assim como em todas as escolhas futuras de Baiano e Paulinho, pseudônimo adotado por Arnaud.

A dupla Baiano e Paulinho Cabeça de Poeta foi formada no início de 1973, quando Chico criou seu personagem e Arnaud também decidiu prestar homenagem aos emergentes Novos Baianos sugerindo o nome composto. Sarcástica e ao mesmo tempo reverente, a dupla provocava as idiossincrasias de Caetano e Gil que, um ano antes, haviam voltado do exílio em Londres. em texto memorial, onde relembra os dias de parceria com Arnaud, Chico esclarece: “O personagem baiano nasceu na época do exílio do Caetano, um período em que ele quase não podia falar, por isso o tipo Baiano era monossilábico”.

Apesar do aparente tom de deboche com os ícones máximos da MPB basta uma audição para concluir que a brincadeira era para lá de séria. Vô Batê Pa Tu, principal sucesso de Sangue no Cacto, é exemplar para a defesa dessa teoria. Escrita a quatro mãos por Arnaud e o Rei do Sambalanço, Orlandivo, a canção trata de tema dos mais pesados: a delação sob tortura e o clima de silêncio imposto pela censura. “O caso é esse: dizem que falam, que não sei o quê / Tá pra pintar ou tá pra acontecer / É papo de altas transações / Deduração, de um cara louco que dançou com tudo / Entregação com dedo de veludo / Com quem não tenho grandes ligações”, diz a letra.

Em Aldeia, o alvo é o Milagre Econômico: “Em cada rosto uma expressão / Em cada bucho a digestão / Um novo carro / Nova capa / Enquanto o velho me pede pão / O pão nosso de cada dia dão-nos hoje / Creditai nossas dívidas / Assim como não nos perdoam nossos credores”. No hilário baião Urubu tá Com Raiva do Boi (a ave necrófaga indigna-se com o bovino que não morre e, assim, a impossibilita de saciar a fome), única canção que não é de autoria de Chico e Arnaud (foi composta por Geraldo Nunes e Venâncio) a veia tragicômica do LP chega ao ápice no discurso de Baiano que, primeiro, divaga em tom apocalíptico “o medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição, os juros, o fim… / nada de novo / a gente de novo só tem os sete pecados industriais”, para, ao fim da terceira estrofe, com fina ironia, prosseguir “ai a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘Tudo bem?’ / e ele diz pra gente, ‘tudo bem!’ / não é um barato, Paulinho? / é um barato!”. Impiedoso, no final da canção, Baiano retorna para concluir: “Nada a dizer… Nada ou quase nada / O que tem é a fazer: tudo / Na rua, a obra do homem, o cheiro de gás, o asfalto fervendo, o suor batendo… o suor batendo”. Como sugere a aparência “riponga” de Baiano e de Paulinho, o disco também versa sobre o desbunde e os estatutos da geração flower Power. Em Dendalei (corruptela de “dentro da lei”) a estrofe que sucede o primeiro refrão celebra o desprendimento e o hedonismo dos hippies: “Sou fã da viração do vento / Sou fã do livre pensamento / Sou fã da luz do nascimento / Sou fã aqui do melhor momento!”.

Letras a parte, a qualidade musical de de Sangue no Cacto é inquestionável. O álbum promove a fusão de ritmos brasileiros e estrangeiros com resultados distintos, e inscreve Chico e Arnaud como defensores do tal “som universal” tão perseguido pelos tropicalistas. Multifacetado, o LP reúne doses generosas de rock, samba, baião, xaxado, maracatu, bossa, choro, ciranda e soul. Infelizmente, a ficha técnica não foi creditada pela gravadora CID, mas a direção artística dessa pequena obra-prima ficou a cargo de um craque de nossa música, o compositor e instrumentista Durval Ferreira. Egresso da primeira geração da Bossa Nova, “Gato”, como Durval era tratado pelos amigos por conta de seus olhos azuis, liderou, ao lado de Eumir Deodato, o lendário combo de samba jazz Os Gatos, que lançou dois álbuns, hoje, raros e disputados por colecionadores, Os Gatos (1964) e Aquele Som dos Gatos (1965).

A parceria entre Chico e Arnaud ainda renderia mais três álbuns de Baiano, Paulinho e os Novos Caetanos (Baiano e Os Novos Caetanos, de 1975, A Volta, de 1982, e Sudamérica, de 1985). Além deles, ao lado de Arnaud Chico produziu, em 1975, outra pérola: o álbum Azambuja & Cia, que conta com o auxílio luxuoso do trio Azymuth. No hiato entre o álbum de 1975 e o de 1982, Chico lançou também, com a cantora baiana, Baiano e Amaralina, uma homenagem a Elba Ramalho. Título raro e obrigatório é Murituri, de 1974, álbum solo de Arnaud, dos mais primorosos, com a participação do guitar-hero tropicalista Lanny Gordin. Em 1976, colhendo os frutos da enorme projeção de seu personagem, Arnaud lançou também outra joia, o álbum O Som do Paulinho.

A propósito do sucessos de LP, no mesmo texto em que Chico explica a gênese do fenômeno Baiano e Os Novos Caetanos, o humorista dá boas pistas do quão grandiosa foi a dupla formada por ele e Arnaud: “Com o sucesso de vendas do LP, o senhor Harry Rozemblit, dono da companhia de discos CID, comprou três coberturas na avenida Delfim Moreira (localizada no Leblon, um dos mais caros endereços da zona sul carioca). O Eddie Barclay (dono do selo francês Barclay), na época, nos convidou para ir à Europa para participar do Miden, em Cannes, e eu não fui. Disse a ele que tinha que fazer um show em Curitiba. Que loucura a minha! Ele ficou sem entender. Como é que dois artistas esnobavam um dos maiores encontros da música internacional do planeta?!”. Para não deixar dúvidas sobre a projeção internacional de do álbum, Vô Batê Pá Tu ganhou, inclusive, uma deliciosa releitura da cantora sueca Sylvia Vretmar.

Como bem sabemos, infelizmente Chico e Arnaud já partiram: o Rei do Humor em março de 2012, em consequência das complicações de uma grave infecção pulmonar que o levou à falência múltipla de orgãos; e o saudoso Paulinho no carnaval de 2010, em um trágico acidente de barco no Tocantins. Mas o legado de alegria e reflexão deixado por essa dupla da pesada, para fechar com mais uma gíria setentona, é atemporal e atravessará décadas.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 23.1.2014

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Relativamente raros no Brasil, o primeiro LP da dupla e o álbum Azambuja & Cia serão relançados pela gravadora britânica Far Out Recordings. Recentemente, com o anúncio das reedições, o baterista Mamão revelou no Facebook que o registro teve a participação do Azymuth.

 

A pluralidade urbana na escrita de Cristhiano Aguiar

Cristhiano autografa exemplares do livro no lançamento na Banca Tatuí. Foto: Levi Fanan/Divulgação

*Por Rafael Mastrocinque

 

Doze anos depois do seu último livro ficcional, Cristhiano Aguiar, 37, volta o fluxo criativo às suas narrativas novamente. Os tempos de experiência acadêmica, curadoria de revistas literárias e outras ações culturais, levaram ao amadurecimento do escritor campinense até a sua mais engenhosa obra, Na Outra Margem, O Leviatã. Natanael, Faustine e Estevão representam a melancolia da capital paulista, que os forçam aos devaneios, até se chocarem com a brutalidade urbana que assola as suas vidas. Cristhiano trás em um fluxo refinado, contos entrelaçados que interpretam o mal dos trópicos modernos; a melancolia.

Na Outra Margem, O Leviatã se divide em sete contos, boa parte deles compostos pelos mesmos personagens, com histórias simultâneas caminhando lado a lado a catarse do protagonista de cada capítulo. Cristhiano Aguiar passou seis anos a procura do tom ideal para traduzir em sua narrativa, o mau estar existencial de cada indivíduo em meio a um cenário de hostilidade policial, que se prolonga pelas memórias de cada personagem. Os contos, em especial Teresa, trabalham as identidades de cada um a partir de suas cicatrizes familiares, com elementos mágicos que trazem belezas sublimes à narrativa. Artifício que só os grandes contistas possuem.

“Trancada no quarto, jogou toda a sua roupa no chão e observou, com desgosto, o próprio corpo. Considerou-se horrivelmente branca. Deitada na cama, manteve-se quieta e observou a caminhada da noite através do seu corpo sem manchas.”

Cristhiano ressalta as suas referências na poesia de Murilo Mendes, os contos de Alice Munro, Hilda Hilst e Borges como as raízes para o surgimento de Na Outra Margem, O Leviatã.

Formado em letras pela Universidade Federal de Pernambuco, Cristhiano conta o desafio de conciliar a sua vida acadêmica com a sua produção literária, hoje professor doutor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Depois do lançamento de seu primeiro livro de contos Ao Lado do Muro, do qual não se orgulha tanto, Cristhiano participou fielmente a projetos literários de pernambuco. Foi um dos editores da Revista VacaTussa, participou da Antologia Granta: Os melhores jovens escritores brasileiros em 2012, ano que começou os seus “tropeços e barrancos” nas palavras do autor, ao caminho de produzir o livro e outras obras paralelas, conforme foi equilibrando a tumultuosa vida acadêmica.

“Levantado, veio a pancada na cara, o cassetete nos rins. Nos desenhos animados, quando caímos, surgem uns passarinhos ou uma órbita de estrelas ao redor de nossa face, não é mesmo? Ali, só houve tempo para o chão” do capítulo Desaparecido, Cristhiano narra a repressão do morador de rua Caetano, perdido no meio de uma manifestação.

Autoritarismo

As personagens Faustine e Caetano são figuras antagônicas. Assombradas pela violência da polícia militar em posições sociais distintas. Na Outra Margem, O Leviatã apresenta um diálogo sobre as fissuras do autoritarismo a partir de Faustine, neta de um militar envolvido no Golpe de 64. A partir das memórias de infância, na fazenda de seu avô, Faustine trás em trechos as raízes mais profundas pela sua aversão ao autoritarismo.

Privilegiada, e protegida por um homem de confiança, a personagem se divide entre a ternura e horror aos últimos momentos que passou com o avô. “O ponto desse conto, ‘Os recém-nascidos’, e da trajetória de Faustine em especial, é o fato de que nosso país tem em suas instituições a marca do autoritarismo como um elemento articulador. Infelizmente, o nosso aparato jurídico, policial e político não escapa desse autoritarismo.”, explica Cristhiano.

Melancolia

Cristhiano Aguiar trás em sua nova obra o impacto dos contistas renomados. Suas personagens se deparam com o absurdo durante o cotidiano banal da cidade, deixando suas memórias e fraquezas translúcidas a partir de encontros. Uma desocupação no interior da Paraíba, a custódia de um boliviano pela polícia até o constrangimento de Lina e Estevão presos por horas no elevador de São Paulo. Sobre o lugar dos contistas brasileiros, Cristhiano inspira-se nos clássicos e entende a tarefa a ser cumprida pelos escritores atuais. “Cada tempo, cada cultura, exige de seus escritores e escritoras o desempenho de diferentes papéis. Em pleno 2018, voltamos ao olho do furacão de uma crise política aguda e cujas consequências são ainda imprevisíveis. Assim, sinto uma demanda por narrativas e posicionamentos públicos, por parte da autoria contemporânea, que possam dar conta de todo esse turbilhão.”

Depois de seu grande lançamento na Banca Tatuí, pelo selo independente Lote 42, Cristhiano guarda alguns novos títulos que foi trabalhando em paralelo ao Na Outra Margem, O Leviatã. Ele estará presente no dia 13 de abril, na SP-Arte para o seu próximo lançamento.

Assista ao vídeo em que Cristhiano narra um trecho do livro, cedido com exclusividade pela Lote 42:

A 11ª Bienal do Mercosul está corajosa em sua abordagem crítica

A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul vai até 3 de junho, em Porto Alegre, RS - FOTO: Divulgação
A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul vai até 3 de junho, em Porto Alegre, RS - FOTO: Divulgação

A arte contemporânea pode ser voz forte dos povos oprimidos? A 11ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, responde que sim. Notabiliza-se ao fazer uma mostra enxuta, simples na expografia, mas com tema e conceitos desafiadores, sem medo da censura que ronda as exposições brasileiras. Migração, racismo, territorialidade, pertencimento, resignificam o papel do negro na sociedade brasileira, a qual nunca o incorporou devidamente dentro do tecido social. Já na festa de abertura, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, a Orquestra de Câmara Fundarte dividiu o palco com cantores, atores, em performances contestadoras. Jovens artistas subiram ao palco com a faixa, Uma arte Inspira, Respira. Censura não, clara alusão à mostra Queer Museu, censurada e fechada no Centro Cultural Santander, no ano passado. Textos de Bertolt Brecht sobre liberdade também entraram em cena.

Reunidas em torno do tema O Triângulo Atlântico, com curadoria de Alfons Hug, que mora na África, os trabalhos sintetizam e denunciam a exploração e apagamento das nações africanas, tiradas à força de seus territórios, fato que até hoje reflete no drama de várias gerações que vivem sob desigualdades sociais no Brasil. O êxodo do Atlântico Negro provocou o processo de crioulização, promoveu o cruzamento de religiões, idiomas, tecnologias, culturas e artes. A mestiçagem, o sincretismo religioso também atuaram sobre a cultura indígena. Desde sempre esses povos são vítimas de uma invisibilidade proposital e só emergem com destaque na sociedade como nome de ruas, rios, comida, instrumentos, musicais.

O presidente da Bienal do Mercosul, Gilberto Schwartsmann, um médico sensível a essas questões é, sobretudo, um homem aberto que deu asas aos curadores, sem filtrar nada. “A meu ver, uma bienal tem que focar na qualidade artística da obra e não na quantidade delas ou dos artistas. O conjunto tem que ter densidade em todos os aspectos”.

Com esse suporte, os curadores Alfons Hug e Paula Borghi (adjunta) pensaram a Bienal em três espaços principais e outros periféricos. A mostra começa no Margs, com imersão pelo Oceano Atlântico, durante a diáspora e depois na escravidão. Se estende pelo Memorial do Rio Grande do Sul, onde pulsam as questões indígenas, e no Centro Cultural Santander com obras que pensam a cidade e o indivíduo. As performances estão espalhadas pelas praças da capital e por Pelotas, onde as atividades acontecem na Comunidade Quilombola do Areal e na Casa 6.

Sem se prender a artistas somente da região do Mercosul, esta edição reúne produção de praticamente todos os continentes. Os desenhos de Arjan Martins nascem diretamente sobre a superfície como demonstra seu painel de setenta e oito metros quadrados, um mapa com os pontos de chegada dos escravos no Brasil. Territorialidade também faz parte do universo do cubano J.Pavel Herrera que leva em conta a origem africana de Cuba, resignifica o conceito de Ilha, que só existe por causa do mar, um espaço simbólico de rota da escravidão e ao mesmo de tempo de transitoriedade, desejo de ir e vir. “O mar é um espaço de pertencimento, e também simbólico de perdas desde as travessias dos escravos até a simples tentativa de chegar ao outro lado. “É um território a ser olhado de um modo responsável”, recomenda Pavel Herrera.

A hipocrisia e a barbárie dos primórdios da colonização de Angola são o fio condutor da obra de Iris Buchholz Chocolate, alemã que vive naquele país. Suas peças são feitas com metais, cabelos artificiais trançados, penas de pavão, com os quais “borda” um manto imperial inspirado num paisagismo barroco, conivente com a escravidão. Sua pesquisa envolve questões em que pergunta: “Como nos distanciamos do passado quando carregamos o estigma de sermos os descendentes das vítimas e dos opressores?  O que o mundo esquece? E o que lembra? Somos as vítimas ou somos os culpados? Haverá certezas na vida? Como se conversa sobre temas que nunca são falados?

Para Gilberto Schwartsmann, o momento é oportuno para abordar todas as temáticas que envolvem a 11ª Bienal do Mercosul, que foi adiada por um ano e que teve a sorte de acontecer neste, quando se comemora os 130 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, o último país a abolir essa barbárie.

A 11ª edição se envolve com temas polêmicos e chega à administração de Porto Alegre, cidade onde existem cinco quilombos. No dia seguinte à inauguração da Bienal, o presidente se reuniu com lideranças das comunidades negras da cidade no Viaduto Abdias Nascimento, homenagem ao escritor e intelectual negro que cursou a Universidade de Nova York e é praticamente desconhecido na cidade. Como o estádio do Internacional de Porto Alegre fica próximo ao viaduto, os moradores o chamam “como gozação” de Mamzebe, time da República do Congo que eliminou o Internacional da Copa Mundial de Clubes, em 2010. Agora o viaduto tem placa com o nome de Abdias Nascimento, que foi colocada com a presença da esposa do escritor, a norte-americana Elisa Larking.

A 11ª Bienal do Mercosul dá um exemplo de sabedoria ao abordar questões tão polêmicas e pouco visíveis no circuito brasileiro de arte.

León Ferrari, por um mundo sem Inferno

León Ferrari, 'Sem título', 2008

Como entender o “fenômeno poético” León Ferrari? A resposta poderia vir de vozes como a do cineasta Fernando Birri, do escritor Julio Cortázar, dos críticos Andrea Giunta, Walter Zanini, da artista Regina Silveira. Alma tingida pelo desejo de justiça, a vida do artista argentino se insere nas conturbadas mudanças da contemporaneidade.

Com obra obrigatória nos compêndios da arte contemporânea, que oscila entre Eros e Tanatos, Ferrari tece sofisticado registro de ambos. Ferrari não é unanimidade, ele e sua obra já bateram e apanharam muito, o que fez dele um corajoso testemunho da destruição da substância das relações humanas. Ao longo de sessenta anos de arte, viveu no contrafluxo do sistema sendo empurrado aos infernos para emergir ainda mais forte. Ferrari observa o mundo e o transfigura em textos/gráficos que apontam dimensões submersas no cotidiano. Parte de sua obra compõe a retrospectiva León Ferrari, por um mundo sem Inferno na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, a partir de 10 de abril. No dia 26, estreia na sede nova-iorquina da galeria.

A mostra paulistana é um voo panorâmico que revela o “jovem” Ferrari como artista atemporal, homem que não perdeu tempo com críticas superficiais, rigoroso pesquisador da estética da linguagem, interpretando o universo como bem quis. Traços poéticos, dionisíacos e anticlericaispreenchem o espaço da mostra, com curadoria de Lisette Lagnado, que reuniu as obras junto com Anna Ferrari, arquiteta, neta do artista e diretora da Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo, cuja prioridade é a preservação, catalogação e divulgação da obra e dos arquivos, tanto de León quanto do seu pai, o arquiteto, pintor e fotógrafo Augusto César Ferrari (1871-1970). A retrospectiva já faz parte das ações da Fundação.

Mais de setenta trabalhos produzidos a lápis, tinta, aquarela, arames, xerografia, heliografias e colagens em Braille, realizados entre 1962 e 2009, revelam as preferências de Ferrari no campo artístico-político-cultural. Lisette destaca a figura pública do artista que se tornou parte indissociável de sua extensa e multifacetada produção. A curadora alerta sobre o conceito de ativismo, de insubordinação expresso em seus trabalhos. “Percebe-se logo que a chave do ’ativismo’ é redutora para explicar a monumentalidade de uma obra que compreende uma coleção extraordinária de reproduções recolhidas da história da arte”.

A obra de Ferrari ganha rumo na década de 1960, com as esculturas em arame, executadas em Milão e expostas na galeria Pater, interpretadas como “desenhos no espaço com mais luz do que o corpo, uma explosão cintilante”. Uma instintiva reação à literatura fez de Ferrari leitor de Borges, Sade, Gombrowicz, Cortázar e, nas escrituras com letras deformadas, parece recorrer a eles, como na série Carta a um General, de 1963. As escrituras revelam um artista inconformado com seu tempo. Luis Pérez-Oramas, no catálogo da mostra Alfabeto Enfurecido em que a obra de Ferrari dialoga com a de Mira Schendel, afirma que “as crenças ou descrenças de Ferrari passaram a incluir uma visão de textos sagrados judaico-cristãos como perversos chamados à exclusão, à tortura e ao crime.”

Tudo o que Ferrari produziu, em diversas mídias, demonstra sua aguçada criatividade e picardia crônica. Relecturas de la Bíblia, iniciada em 1983, consiste em colagens nas quais justapõe imagens da iconografia religiosa cristã ou da história da arte com imagens eróticas orientais. Em sua série de Brailles, perfura ilustrações e reproduções fotográficas de obras de artistas como Giotto e Michelangelo para escrever poemas ou passagens bíblicas na linguagem dos deficientes visuais. Ferrari se dizia influenciado pela cegueira de Borges, que escreveu poemas de amor que o encantaram. “Um poema de amor sobre a fotografia de uma mulher nua, dizia Borges, significa que você tem que acariciar a mulher para ler o que o poema diz. Foi aí que eu entendi a ideia”. Sob o efeito Borges, cria uma série de trabalhos sobrepostos às fotografias de Man Ray, reproduções de Kitagawa Utamaro e pinturas de Giotto e de Fra Angélico.

Compõe séries caligráficas como o emblemático Cuadro Escrito, de 1964, desenvolvido com texto complexo e gestual, no qual Ferrari descreve o que faria se soubesse pintar e incita reflexões diversas. Luis Camnitzer, crítico uruguaio de fino pensar, ressalta que a obra antecede as propostas comparáveis à do artista Joseph Kosuth. Já a crítica Mari Carmen Ramírez vê no trabalho “exemplo central de particular inflexão do conceitualismo latino-americano, concentrado mais nas relações com o contexto político da inserção do sujeito social ativo no circuito comunicacional do que nas propriedades empíricas da linguagem”. De 1980 a 1986, o artista trabalha planos sobre poliéster inserindo imagens de Letraset que emprega nas cópias heliográficas de grandes dimensões. Entre todas as obras, Ferrari se notabiliza por La Civilización Occidental y Cristiana, de 1965, em que coloca Cristo crucificado sobre um avião caça-bombardeio norte-americano, da Guerra do Vietnã. Muitos anos depois, a mesma peça foi exposta na mostra León Ferrari-Retrospectiva, curada por Andrea Giunta, no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, e irrita o então arcebispo da cidade, Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco. Seu texto incendeia a ira dos católicos que invadem as salas e destroem alguns trabalhos e a mostra é fechada. Três anos depois, em 2007, o mesmo trabalho, com curadoria de Robert Storr, recebe o Leão de Ouro, na 52ª Bienal Internacional de Veneza. La Civilización Occidental y Cristiana prova sua capacidade de resistência como agente transformador através do tempo.

Em 1977, Ferrari e sua família deixam a Argentina e mudam para o Brasil, com exceção de Ariel, seu filho mais jovem, que permanece em Buenos Aires e é morto pela repressão da ditadura militar. Para Ferrari, “a arte não se organiza a partir de formas e de estilos, mas por coincidências ideológicas que levam os artistas a agrupar-se, mesmo quando subescrevem diferentes tendências estéticas”. Com esse espírito, ao chegar ao Brasil, onde permanece por 15 anos, se fixa em São Paulo e se aproxima do grupo do Ateliê Aster, um lugar de trabalho e convívio que funcionava no bairro de Perdizes, dirigido por Walter Zanini, Regina Silveira, Donato Ferrari e Julio Plaza. Regina lembra que Ferrari foi visitá-la em 1978, interessado no que ela ensinava em litografia. “Os artistas, na época, faziam trabalhos com imagens fotográficas, foto-mecânicas, nas matrizes de pedra ou de metal. Ferrari queria aprender esse procedimento para fazer seus trabalhos de inversão de textos”. Durante sua vivência no Aster, ele inventou a exposição Gerox, uma mistura de gravura e xerox, da qual Mira Schendel participa. Sob a curadoria de Walter Zanini, Ferrari e Regina participam da 21ª Bienal de São Paulo, de 1981, quando o crítico dá a grande virada no conceito da Bienal. Elimina a amostragem das obras por países, como Veneza, e as expõem por analogia de linguagem, como ocorre até hoje. Ambos, dentro dessa novidade, põem obras em micro filme, “éramos os únicos representantes dessa linguagem”.

Na sua primeira fase em São Paulo, realiza xilografias, fotocópias e retoma as esculturas de arame, iniciadas em 1961, que Aracy Amaral chamou de “galáxias lineares”. Seu grande momento em São Paulo são as esculturas sonoras expostas na Pinacoteca de São Paulo, quando o crítico Fábio Magalhães, então diretor do museu, o apoia. Ao construir Berimbau, que emite som quando tocada, León decidi utilizar esculturas como instrumentos musicais que “dançam sua própria música”. O músico Caito Marcondes, a convite de Michelle Brill (Grupo Quebranto), grava e amplifica o som dessas esculturas em música para dança Tarot. Algumas dessas peças estão agora na mostra Esculturas para Ouvir, curada por Cauê Alves, no Museu Brasileiro da Escultura, MuBE.

León Ferrari recebe o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, em 2007. FOTO: Reprodução

Em 1991, Ferrari retorna à Argentina onde dá continuidade a um trabalho, intenso, corajoso e provocador, só interrompido em 2013, quando morre aos 93 anos. A atemporalidade de obra de León segue viva, movimentando museus e instituições pelo mundo. A Fundación Augusto y León Ferrari já está trabalhando o catálogo Raisonné de León com a coordenação de Andrea Wain, em parceria com o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, o Mamba. Neste ano, abre as portas do Taller Ferrari em Buenos Aires onde León trabalhou grande parte de sua vida. Nesta mesma direção, a Itália apresenta, em setembro próximo, uma retrospectiva da obra de seu pai Augusto Ferrari, na Academia Albertina de Torino.
Quase inimaginável, no ano passado, Palabras Ajenas, trabalho realizado durante a Guerra do Vietnã, com trechos de discursos de políticos, papas, Hitler, Cristo, entre outras 108 personalidades, montadas como diálogo entre eles, foi encenada na íntegra, com oito horas de duração junto à exposição sobre a obra no RedCAT Carl Arts dentro do projeto Pacific Standard Time, em Los Angeles. De lá, a ópera viajou para o Pérez Art Museum de Miami, onde pode ser vista até 14 de abril. Em paralelo O Museu Reina Sofia, em Madrid, prepara uma itinerância pela europa para 2020.

A vigência da obra de León é o testemunho de uma trajetória irretocável.

 

Bienal apaga fronteira entre artistas e curadores

GABRIEL PÉREZ-BARREIRO
Gabriel Pérez-Barreiro, espanhol, vive entre São Paulo e Nova York, EUA, é doutor em História e Teoria de Arte pela Universidade de Essex (Reino Unido) e mestre em História da Arte e Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Aberdeen (Reino Unido) - Foto: Bienal 2018

AProxíma Bienal de São Paulo promete esfacelar uma série de modelos há muito vigentes. A primeira das instituições a ter sua tradição arranhada é a do curador-autor. Desde pelo menos a 23ª edição do evento, a mostra se organiza em torno de um projeto pessoal, muitas vezes imposto de fora, de uma idéia diretora de um único responsável, que no máximo dividia as responsabilidades com uma equipe de assistentes. Incomodado com isso, Gabriel Pérez-Barreiro resolveu inverter um pouco as coisas. Ele diluiu em seu projeto não apenas a ideia de conceito norteador, adotando como mote a noção bastante aberta da “Afinidade Afetiva”, mas sobretudo horizontalizando de forma radical não apenas a concepção, mas a exposição como um todo, ao convidar sete artistas para assumirem, ao seu lado, a curadoria do evento.

Em outras palavras, elimina-se a clássica fronteira entre curadores e artistas. “Acho que esses dois termos são equivalentes”, faz questão de esclarecer Pérez-Barreiro. “As imposições são poucas e são de ordem apenas burocrática, relativas a questões como orçamento – igual para todos –, ter de inserir sua própria obra na exposição e não interferir na ‘ilha’ do outro”, explica. Ilha é como estão sido chamados os núcleos concebidos por Alejandro Cesarco, Antonio Ballester Moreno, Claudia Fontes, Mamma Anderson, Sofia Borges, Waltercio Caldas e Wura-Natasha Ogunji. De diferentes gerações e origens, os caminhos trilhados por cada um deles são únicos e diversificados.

Enquanto Waltercio Caldas tem lidado com obras que já existem, propondo um trabalho mais próximo de uma curadoria de museu (em maneira semelhante ao que já havia desenvolvido na 6ª Bienal do Mercosul, também curada por Pérez-Barreiro, em 2007), Wura Ogunji e Claudia Fontes – que já tem uma tradição de trabalho em rede – se voltaram para a comunidade de artistas, horizontalizando o sistema e incorporando trabalhos novos, comissionados especialmente para a 33ª Bienal.

“São sete aulas de curadoria”, diz. “Olhei para eles mais pela diferença, pela diversidade formal e de processo, do que pela semelhança”, acrescenta o curador. “É uma herança do modernismo pensar que que existam versões corretas e incorretas”, explica ele. A necessidade de expandir seus horizontes de forma não tão controlada e de assumir riscos que o tirassem da posição confortável de repetir o que já sabe fazer levou Pérez-Barreiro a evitar fazer mais do mesmo.

Dos sete curadores-artistas convidados, conhecia anteriormente apenas dois deles (Waltercio Caldas e Alejandro Cesarco). Outras regras que o curador estabeleceu para suas escolhas foram a do equilíbrio entre os gêneros e o respeito a uma certa balança geopolítica tradicionalmente seguida para a Bienal, de garantir uma maior representatividade de artistas brasileiros e latino-americanos (com cada um desses grupos correspondendo a cerca de um terço da mostra). Não necessariamente os co-curadores se aterão a esses critérios. Entremeando cada uma das sete ilhas de cada um dos artistas-curadores, o visitante encontrará as escolhas do próprio Pérez-Barreiro. A divulgação dos nomes finais deve ocorrer em breve, mas ele adianta que sua seleção é extremamente ampla, indo de um filme inédito a algumas pontuações históricas. Dentre elas, destacam-se obras da série Césio, de Siron Franco. Criado em 1987, o trabalho faz uma ácida crítica ao acidente radioativo ocorrido em Goiânia pouco tempo antes. No total, a Bienal terá cerca de 80 participantes, número que ele considera satisfatório para conseguir viabilizar uma exposição leve, sem que o visitante se sinta exausto após a visita.

A ideia é exercitar no público o exercício do olhar, que ele possa realizar suas próprias escolhas, entender-se afetivamente e não racionalmente com a obra de arte. O título escolhido, que mescla referências a Goethe e Mário Pedrosa – sobre quem Pérez-Barreiro acaba de fazer uma exposição, no museu espanhol Reina Sofía –, reitera esse caminho. A noção de atenção, de interação com os trabalhos, também é essencial nesse projeto. “O que mudou radicalmente nos últimos anos é a introdução das redes sociais, a invasão da tecnologia na vida das pessoas. Isso nos leva a pensar em como criar a possibilidade de um espaço autêntico, de pensamento sobre a realidade que nos envolve e a arte é um espaço altamente privilegiado para isso, porque fala de relação, fala da ambiguidade”, explica. Esse desenvolver do foco, de troca entre o espectador e a obra, ganha um peso grande no projeto educativo. Aliás, este também apresenta uma mudança de foco em relação às outras edições, indica Pérez-Barreiro, na medida em que privilegiará um material com uma vida mais longa, sem vínculo estrito com o conteúdo da Bienal para que possa tornar-se um instrumento mais amplo e despertar a consciência da própria atenção para além dos limites temporais do evento.

No último dia 20 de março, a Bienal divulgou oficialmente o nome de 12 novos expositores que integram a lista da Bienal de Arte 2018

Hilma af Klint: Uma artista adiante de seu tempo

Hilma af Klint, 'The Ten Largest, No. 3, Youth, Group IV', 1907.

Hilma af Klint é uma artista excepcional. Nas várias acepções do termo. Sua obra não é apenas seminal, antecipando em vários anos o início do abstracionismo, como apresenta uma qualidade estética rara, aliando sutileza formal e cromática a uma intensa espiritualidade. A isso se soma sua história singular. Formada na Academia Real de Belas Artes da Suécia (a segunda do mundo a aceitar alunas mulheres), em 1887, foi uma artista de relativo sucesso, dedicando-se à paisagem, ao desenho de botânica e às ilustrações de livros, revistas e jornais. Tinha, ademais, um interesse profundo pela ciência e pela religiosidade, o que acaba a levando pouco a pouco ao trabalho de fôlego que pode ser visto atualmente na Pinacoteca do Estado.

A mostra, que permanece na Pinacoteca de São Paulo até meados de julho, traz pela primeira vez à América Latina algumas das séries mais emblemáticas feitas por Hilma nas primeiras décadas do século XX e que foram escondidas do público por quase um século – primeiro por ordem da artista, que assim o determinou em testamento, e, em seguida, pela dificuldade do sistema de arte de compreender e absorver sua obra. Afinal, não deixa de ser surpreendente que uma mulher, imbuída inicialmente por uma missão de cunho espiritual, tenha antecipado de maneira tão evidente pesquisas que viriam a tona pelas mãos de mestres consagrados como Kandinsky e Mondrian, eles também interessados pelo plano metafísico.

Logo na entrada da mostra, o visitante é recebido por 10 pinturas gigantescas, de quase 3,5 metros de altura, que representam as dez idades da vida humana, da infância à velhice. O conjunto tem uma imponência e um forte poder de sedução, com suas sutilezas cromáticas e abstracionismo orgânico muito particular. Foram realizadas num fôlego só, ao longo de 40 dias, em 1907, o que dá uma média de quatro dias para a confecção de cada uma delas. O conjunto faz parte de uma ampla pesquisa desenvolvida por Hilma seguindo instruções que lhe foram dadas por entidades externas, que lhe pedem que faça um ciclo de pinturas para um templo. Ela é, nas palavras do curador Jochen Volz, “das primeiras e mais monumentais obras de arte abstrata do mundo ocidental”.

A majestuosidade das “Dez maiores”, como são chamadas, não sombreiam os outros grupos de trabalhos selecionados na vasta produção de Hilma. O visitante descobre, sala a sala, como o trabalho desdobra-se em diferentes campos de pesquisa, desde uma investigação sobre o átomo, até uma sublime representação das religiões do mundo a partir de pequenas variações compositivas a partir de uma simples estrutura circular.
Esse lado místico, fundamental em sua trajetória, se deu de maneira diferenciada ao longo do tempo. Das primeiras experiências mediúnicas com um grupo de outras quatro amigas, intitulado De Fem (As Cinco) – representadas na exposição por um conjunto amplo de desenhos e escrita automáticos, técnica que adquiriria status artístico apenas na década de 1920, com as experiências surrealistas – até experiências mais tardias, como a série “Da observação de flores e árvores”, de 1922 (uma impressionante integração entre o visível, o energético e uma ordem espiritual), há uma mudança de tônica. As vozes antes externas, atribuídas a “mestres elevados” tornam-se pouco a pouco internas.

Especialistas atribuem essa tônica menos ligada ao espiritismo e mais anímica à aproximação de Hilma com Rudolf Steiner, fundador da antroposofia. Ele é o único a receber autorização para ver, em 1908, os trabalhos que ela vinha desenvolvendo e se encanta com a série “Caos Primordial”. E a relação entre eles se mantém ao longo do tempo. Nos anos 1920, após a morte da mãe, ela passa a visitar com frequência o Goethearum, sede do movimento antroposófico, onde se dedica a estudar a teoria das cores, de Goethe, reeditada por Steiner. Como explica Volz, “Se tivesse mostrado isso na sua época, muito mais machista, provavelmente seria declarada um caso clínico”.

Tal espanto com a ousadia de sua obra, que se quer sempre totalizante, buscando a unidade de campos tão potentes como a ciência, a religião e a arte, não é algo exclusivo do início do século XX. Em 1987, por ocasião da exposição de arte abstrata em Los Angeles na qual sua obra foi mostrada pela primeira vez, um crítico chegou a tentar recoloca-la novamente no espaço secundário – e invisível – ao qual as mulheres eram relegadas, invertendo a seu favor o discurso em prol da igualdade, ao afirmar que ela “nunca teria recebido esse tratamento intumescido se não se tratasse de uma mulher”.

Apesar de trabalhar de forma intermitente, deixou mais de 26 mil páginas manuscritas e datilografas, nas quais esclarece a organização interna de seu trabalho, procura explicar e organizar a infinidade de simbologias presentes em sua obra, formadas por um entrecruzamento complexo entre formas geométricas, símbolos, letras e cores. E também um conjunto de 1,2 mil pinturas, desenhos e aquarelas. Morreu aos 82 anos, vítima de um atropelamento, e seu herdeiro, o sobrinho, respeitou seu desejo expresso em orçamento de manter guardadas por mais 20 anos suas obras não-figurativas. “Não há dúvida de que ela tinha absoluta ciência de seu próprio tempo, do vigor de suas imagens e do potencial destas para o futuro. Ela tinha muito claro o que fazia”, explica Volz, lembrando que mesmo depois da abertura das caixas, foram necessárias mais duas décadas para que seu trabalho começasse a adquirir visibilidade. Apenas em 2013, é realizada uma retrospectiva itinerante de sua obra, começando pelo Moderna Museet, de Estocolmo.

Para a mostra de São Paulo, foram escolhidas 130 obras, enfatizando a estrutura serial adotada pela artista, rara em sua época. Algumas delas nunca foram mostradas anteriormente. Segundo Volz, a presença da obra de Hilma na Pinacoteca ajuda a sublinhar os diálogos muito fortes entre sua obra e a arte brasileira, como um embate muito forte entre a forma geométrica e orgânica, a força do sincretismo religioso e a ideia de universalidade.

sp-Arte: Ver, conhecer e (por que não?) comprar

Douglas Gordon, Self Portrait of You and Me (Audrey Hepburn) 2010. Burned Print Size framed: 26,9 x 21, 6 x 4 cm.

A SP-Arte 2018, que se realiza todo ano na segunda semana de abril, no Pavilhão da Bienal de São Paulo, promete confirmar o tradicional encontro de agentes do circuito da arte nacional e internacional na cidade. O evento terá a presença de 131 galerias, apresentações solo e espaços curados. Pela terceira vez, haverá um espaço dedicado ao design, com mais de 33 galerias presentes.

A cidade se prepara para aberturas diárias de exposições em galerias, percursos noturnos de visitas guiadas no Gallery Night, lançamentos de livros, seminários e debates em museus.

Já no sábado, 7 de abril, a Galeria ARTE57 abre Quimera, primeira individual da artista Fernanda Feher.

O Instituto Tomie Ohtake organiza uma tarde completa de atividades em torno de Turbulência, com visitas guiadas de Paulo Pasta e Paulo Miyada na exposição de Cecily Brown, conversas com artistas brasileiros e estrangeiros que visitam a cidade especialmente nessa semana e uma performance inédita da artista Bené Fonteles.

No dia 9, às 20h, a Galeria Estação organiza uma visita à exposição de Teodoro Dias, que fala sobre sua carreira, seu processo criativo e suas novas obras, feitas para a exposição em cartaz.

Na terça, 10, a Galeria Nara Roesler abre a exposição León Ferrari: por um mundo sem Inferno, com curadoria de Lisette Lagnado. Na ocasião, a galeria apresenta para o público obras do artista, que passa a formar parte do seu elenco. Como parte da programação, a galeria organiza na quinta feira, 12, uma conferência no MAM, às 19h, com a presença da artista Regina Silveira, Catherine David (Centre Pompidou), a curadora argentina Vitoria Noorthonn (Museu de Arte Moderna da Argentina) e o curador mexicano Pablo León de la Barra.

No mesmo dia, a Galeria Vermelho, apresenta o trabalho de Mauricio Dias & Walter Riedweg, que se dedicam à obra do norte-americano Charles Hovland, mais especificamente com as imagens que o fotógrafo realizou a partir de seus anúncios em jornais nova-iorquinos nos anos 1970 e 1980. Neste projeto, ele convidava pessoas comuns a realizarem suas fantasias sexuais para sua câmera.

Das inúmeras galerias, duas, nascidas em 2017, apresentam-se pela primeira vez na SP-Arte. A Galeria Adelina, do empresário Fábio Luchetti, possui espaço expositivo, de cursos e de ateliês. Ela abre, também na semana, uma exposição do coletivo DOMA. A outra estreante é a Galeria Houssein Jarouche que, segundo seu diretor e fundador, o empresário que dá nome ao investimento, será o primeiro espaço no Brasil dedicado às práticas da Pop Art e suas reverberações na arte contemporânea.

Já a tradicional e habitué galeria baiana Paulo Darzé investe este ano na obra de Rubem Valentim, nascido na Sé, em Salvador.

Seu repertório, de base geométrica, aponta para um sincretismo, tendo em vista que sua família era de origem católica, mas ele se aventurou pelo mundo da Umbanda e do Candomblé. Amigos de Rubem, falecido em 1991, se uniram para criar uma organização com seu nome. O Instituto Rubem Valentim foi inaugurado em 2017, em Brasília, com esforços de Celso Albano, Paulo Darzé, Jonas Bergamim, Carlos Dale e Antônio Almeida e do crítico Frederico de Morais, dentre outros. “Era uma vontade antiga de Rubem. Ele tentou fazer isso nos anos 70, mas não conseguiu”, conta Paulo Darzé.

Fernando Oliva, curador do MASP e um dos participantes da Conferência Ecos do Atlântico Sul, que o Goethe-Institut realiza em Salvador, também em abril, comenta que a obra de Valentim será resgatada pelo MASP, no segundo semestre, pelas referências que estabeleceu com o universo da matriz cultural e visual afro-brasileira, especialmente no que diz respeito à religiosidade. Ele aponta para os objetos, ferramentas de culto, estruturas de altares e símbolos de deuses representados por Valentim.

“Nas obras de Valentim, há uma interpenetração muito sutil e precisa entre a estrutura de base construtiva, a iconografia e o colorido herdados do universo mágico e religioso afro-brasileiro”.

Na segunda edição de Repertório, espaço curado por Jacopo Crivelli Visconti, o objetivo foi encontrar um recorte artístico cronológico focando em trabalhos produzidos durante a década de 1980. Na escolha curatorial, estarão presentes as galerias brasileiras Jaqueline Martins, Almeida e Dale (com Ione Saldanha) e a galeria italiana Contínua.

Durante a feira, será conhecido o vencedor do Prêmio de Residência da SP-Arte cujos finalistas neste ano são: Daniel Jablonski, Janaína Torres Galeria; Daniel Lie, Casa Triângulo; Igor Vidor, Galeria Leme e Luciana Caravello Galeria; Laura Belém, Athena Contemporânea, e Marcelo Cidade, Galeria Vermelho. Em 2018, o programa oferece uma estadia de três meses na Delfina Foundation, uma das principais organizações do gênero, sediada em Londres.

Neste ano, o leitor e o visitante podem pesquisar o elenco de artistas e o conjunto das obras, assim como a programação completa, no site da feira www.sp-arte.com.

Iconografia e insubordinação

León Ferrari, Madonna + Infierno del Indio Japari, 1993.

No dia do fechamento desta edição, ARTE!Brasileiros e o mundo se comoveram com o brutal assassinato, uma clara execução, de Marielle Franco, mulher, negra, militante pelos direitos humanos, vereadora do Rio de Janeiro, representante de mais de 56.000 eleitores, e seu motorista Anderson Gomes.

Num verdadeiro ato de provocação à vigência de um regime supostamente livre, milicianos e quem os financiam matam impunemente tentando calar as vozes de quem ousa defender direitos sociais: a saúde, a educação, a cultura, escolher como se vestir ou a quem amar, seja mulher, homem, trans ou papagaio.

Com a ascensão de Trump nos EUA, o impeachment no Brasil e outros movimentos contrários a vida democrática em vários países, “se agudizaram deliberadamente ondas de racismo, xenofobia e sexismo que estavam latentes mas não legitimadas”, diz o filósofo e professor americano Noam Chomsky, um dos pensadores mais importantes na contemporaneidade, no seu último livro Réquiem para o sonho Americano, da editora Bertrand Brasil.

Na sua opinião, a cada vez maior concentração e polarização econômica criada pelo neoliberalismo produziu uma depreciação da vida cotidiana na maioria dos povos nos diferentes continentes. Uma certa depressão e uma falta de esperança do que se pode mudar.

Porém, independentemente da necessidade de encontrar as bandeiras certas para uma concentração de forças que permitam mudanças profundas e estruturais por uma sociedade mais justa, toda e qualquer intervenção de artistas e agentes culturais a serviço da reflexão sobre as inquietações e o sofrimento contemporâneo são fundamentais.

Capa da edição 42 da Revista ARTE! Brasileiros
León Ferrari, colagem da série ‘Homenaje a Madonna’, ‘Madonna + Infierno Del Indio Japari, 1993. Coleção particular. Reprodução fotográfica da obra por- ARTE!Brasileiros.

Esta edição – você tem acesso a todas as materias no PaginaB! – traz inúmeros exemplos de instituições culturais, artistas modernos, contemporâneos e fotógrafos, que centraram suas pesquisas, imagens, esculturas e projetos retratando como, numa história que se repete, o poder de setores conservadores, econômicos e políticos tenta sujeitar os cidadãos e sua liberdade de expressão.

Na materia de capa, por exemplo,  León Ferrari: por um mundo sem Inferno, título da mostra que abre em abril na Galeria Nara Roesler com curadoria de Lisette Lanhado, apresentamos o trabalho incansável de um artista conceitual, transgressor, que colocou seu trabalho desde os anos 60 a serviço da discussão dos valores éticos e estéticos dominantes. Questionou com ironía e humor o Poder, político e religioso, e reverenciou a liberdade da mulher muito antes que as discussões de gênero viessem a tona nos anos 80.

Assistir a beleza de seus trabalhos ou chocar-nos com eles nos permite tomar ar e seguir adiante.

Uma chapa só

Chichico Alkmim, Diamantina, MG. Sem data. FOTO: Acervo Instituto Moreira Salles
Registro de um encontro entre passado e presente na exposição de Chichico. A foto é de Helio Campos Mello.

*Hélio Campos Mello

Chichico Alkmim nasceu em 1886 e abriu seu ateliê em 1912, em Diamantina, Minas Gerais. Faleceu em 1978, dois anos depois suas fotos foram expostas pela primeira vez em Diamantina. Do seu acervo fazem parte 5544 negativos, a maior parte de vidro e que, desde 2015, estão sob os cuidados do Instituto Moreira Salles.

Com curadoria de Eucanaã Ferraz , foi exposto no IMS, do Rio e está até 15 de abril no IMS de São Paulo. Excelente também é o catálogo de 180 páginas, Chichico Alkmim, Fotógrafo.

A exposição, que é dividida em seis partes, tem retratos feitos no ateliê, paisagens, retratos feitos fora do ateliê e também um museu. Nele são exibidas engenhocas usadas no laboratório de Chichico, quase 300 negativos de vidro além de uma espécie de manual mostrando como se fotografava. Segundo Eucanaã Ferraz o conjunto fornece “ uma espécie de retrato do Brasil”. Com razão. Frente as lentes de Chichico posaram ricos, pobres, negros, brancos. Em comum, uma serena e solene altivez. Na realidade um retrato de um Brasil que hoje seria muito bem vindo.

 

*Hélio Campos Mello é fotojornalista e co-fundador da Brasileiro s Editora. Participou da refundação da Agência Estado, do grupo Estado de S.Paulo. Foi diretor de redação da revista Istoé e da revista Brasileiros. Ganhou vários Prêmio Esso. Nesta edição, colaborou com a matéria de Chichico Alkmim e traduziu para o inglês vários dos textos.