A manchete sobre o sistema de governo implantado a toque de caixa. FOTO: Reprodução
Na falta de termo melhor, chamaram de “solução de compromisso”. Da noite para o dia, o sistema de governo parlamentarista foi adotado para permitir o desembarque de João Goulart, o Jango, no Brasil, e sua posse na presidência da República. Vice de Jânio Quadros, Jango fazia escala em Singapura, voltando de viagem à China, quando o presidente renunciou.
Se as regras do jogo democrático estivessem valendo, Jango assumiria o governo e ponto final. Os ministros militares, no entanto, viram em sua ausência momentânea a brecha para impedir a posse de um político nacionalista, de esquerda, próximo dos sindicatos. Com o apoio de setores conservadores da sociedade, anunciaram sua posição e tentaram o golpe.
A resistência foi liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola, que deflagrou uma bem-sucedida campanha pela legalidade, escudado pelo III Exército, do Rio Grande do Sul. Temendo que o conflito se degenerasse em guerra civil, Jango aceitou assumir só como chefe de Estado, impedido de elaborar leis e orientar a política externa, entre outras restrições.
Jango tomou posse no Palácio do Planalto em 7 de setembro de 1961, 13 dias depois da renúncia de Jânio Quadros. Naquela altura, havia sido aprovada a emenda constitucional que instalava o sistema parlamentarista no Brasil. Nos 17 meses de duração do regime, o Brasil teve três primeiros-ministros: Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima.
Só que a emenda à Constituição que implantou o parlamentarismo também previa a realização de um plebiscito em 1965 para decidir pela manutenção ou não do sistema político imposto pelo conservadorismo. Jango, que desde o primeiro dia como presidente trabalhou pela volta do presidencialismo, conseguiu que o Congresso antecipasse o plebiscito para janeiro de 1963.
“Libertado o presidente, as reformas vão pra frente”, foi um dos lemas da campanha pelo “Não” ao parlamentarismo. Com 82% dos votos válidos, a consulta popular restaurou o presidencialismo. Trinta anos depois, em abril de 1993, a pergunta sobre o regime político que deveria reger o País foi repetida aos brasileiros. De novo, deu presidencialismo, com 55% dos votos, contra 25% para o parlamentarismo e 10% para a monarquia.
"Quando fui nomeado diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1992, as pessoas diziam: 'Como um negro, baiano?'. Eu dizia: 'Não só negro, mas homossexual também'", conta Emanoel. FOTO: Silvia Zamboni.
Diretor artístico do MASP e um dos curadores da exposição Histórias Afro-atlânticas, Adriano Pedrosa entrevistou, em 2013, Emanoel Araújo. O artista e diretor do Museu Afro Brasil passou a limpo o circuito brasileiro de arte. O texto foi publicado na edição 26 da ARTE!Brasileiros, em setembro de 2014.
Emanoel é um dos artistas que participam da mostra Histórias Afro-atlânticas, parceria do MASP com o Instituto Tomie Ohtake. O artista também recebeu homenagem do MASP com exposição de 70 obras, que ficou em cartaz até o início de junho de 2018. Leia a entrevista:
*Por Adriano Pedrosa
Adriano Pedrosa – Você vem de uma experiência singular como artista. Como começou a trabalhar como curador em exposições, coleções e museus?
Emanoel Araújo – Trabalhei no Museu Regional de Feira de Santana, na Bahia, criado por Assis Chateaubriand, dentro do projeto de museus regionais, inaugurado em 1967. O museu recuperava a civilização do couro e seus artefatos em Feira de Santana, que fica na boca do sertão. Havia também uma coleção de arte brasileira reunida por Odorico Tavares, diretor dos Diários Associados, na Bahia, e pelo Chateaubriand, por meio da amizade que mantinham com artistas, como Djanira e Di Cavalcanti.
Qual era sua atividade no museu?
Trabalhei na montagem, na museografia, com os arquitetos.
E desenvolvia, paralelamente, seu trabalho como artista?
Sim
Qual sua formação?
Sou de Santo Amaro da Purificação e estudei Belas Artes na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Mas não terminei o curso, fui trabalhar profissionalmente. Em 1965, expus na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro, e na Astreia, em São Paulo, as mais importantes do Brasil na época. Em 1963, trabalhei com Lina Bo Bardi na exposição Civilização do Nordeste, no MAM da Bahia. Em 1972, fui para os Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado, e conheci, de costa a costa, museus de arte americana, chinesa, europeia, afro-americana, e tive a sorte de ter curadores que me mostravam os acervos, a reserva técnica.
Você foi convidado como artista ou como profissional de museu para essa viagem?
Como artista. Nessa época não existia profissional de museu no Brasil. Em 1981, fui nomeado diretor do Museu de Arte da Bahia, em Salvador, onde fiquei até 1983.
Assim começa sua trajetória como curador?
Sim, inclusive com a reforma e a mudança do Museu. Essa era uma das exigências que fiz ao governador da Bahia na época, Antônio Carlos Magalhães, para voltar a Salvador. Mudamos o museu para a sede atual, no Palácio da Vitória. Montei um grupo de restauro de pintura, porcelana, mobiliário, criando um museu a partir do ponto de vista do design e da arte decorativa. Era eclético, com pintura, porcelana, mobiliário, imaginária religiosa, joias, como vários museus da Bahia, Pernambuco e Ceará. O museu estava em mau estado, a reforma durou um ano e depois de pronta eu saí. Durante esse período, fiz exposições importantes: Os 400 Anos do Mosteiro de São Bento, Escola Baiana de Pinturae, em 1982, África BahiaÁfrica, quando eu comecei a desenvolver essa pesquisa.
Como foi a exposição?
Programei performances na abertura, com os Filhos de Gandhy, o maior afoxé do Carnaval da Bahia, e um grupo de dança afro-brasileira. Houve 1.500 pessoas na abertura vendo fotografias de Pierre Verger, objetos de candomblé, entre outras coisas. Mais tarde, em 1987, desenvolvi o tema na exposição AMãoAfro-Brasileira – Significado da Contribuição Artística e Histórica, no MAM de São Paulo, com o diretor Aparício Basílio da Silva.
Como se desenvolveu esse projeto no MAM-SP?
O projeto nasceu no Senegal.
Qual foi sua primeira viagem à África?
Para a Nigéria, em 1976, no Festival de Arte Negra, com Roberto Pontual, crítico e historiador de arte pernambucano.
Como foi sua experiência com o II FESTAC World Black and African Festival of Arts and Culture, em Lagos, em 1977?
Perturbadora, perdi a abertura. O avião que fazia São Paulo-Dacar atrasou e nós perdemos a conexão do voo direto para Lagos. Havia a exposição organizada pelo crítico baiano Clarival Prado Valadares. Mostrei relevos enormes, foi um pandemônio para eles chegarem àÁfrica. O Pontual escreveuo texto A Raiz Localizadora. Naquela circunstância, conheci um brasileiro, o Mister da Silva, que morava lá.
De antepassados brasileiros, dos escravizados libertos que voltaram para a Nigéria no século XIX?
Sim. Mas ele não falava português nem sabia nada sobre o Brasil. Para ele, o Brasil era uma abstração. Ele tinha agência de viagem, Da Silva Travel. Fiquei seu amigo e armei uma viagem para Osogbo, a terra de Oxum, com o escritor Gumercindo da Rocha Dorea, Roberto Pontual e Cleusa, a filha de Dona Menininha do Gantois. Passamos por Ife e Ibadan, para ver o rio Osun, e lá tive a surpresa de conhecer Susanne Wenger.
Sim, a artista austríaca. Vi recentemente o trabalho dela no catálogo de The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa 1945-1994, de 2001, do curador nigeriano Okwui Enwezor. Ela era uma figura interessante?
Interessantíssima. Eu escrevi um artigo sobre essa viagem. No meio da floresta comecei a ver grandes esculturas de terracota. Ela fazia uma versão bastante europeia do culto de Oxum. Eram grandes monumentos, de 5 m, 6 m de altura, esculturas completamente surrealistas.
Você foi com expectativa de reconexão com a África?
Não. Tanto que briguei com Gilberto Gil, que estava lá com Caetano Veloso. Ele me perguntou: “O que você veio fazer na África?”. Eu respondi: “Vim ver a África”. E ele me disse: “Eu vim colher minhas raízes”. Aí, respondi: “Você se enganou, suas raízes estão na Bahia, não aqui”. Mas o que eu queria dizer é que aquilo era tão distante da gente, que o mais próximo era a Bahia. Nós não sabíamos da África, como os africanos não sabiam de nós, como o agente de viagens Da Silva, que não tinha a menor ideia do que era o Brasil. Ele sabia da sua descendência, mas nada mais.
A essa altura você já tinha ido para Europa?
Sim. Em 1972, fui à Itália, Áustria e, depois, aos Estados Unidos e à Inglaterra. Minha visão de África era distante, embora eu fosse filho de Santo Amaro da Purificação, cidade com muitos escravos, muitos africanos, por causa dos engenhos de cana-de-açúcar. Voltei à África em 1987, a mando do presidente José Sarney, em um encontro em Dacar, pois estavam pensando em refazer o FESTAC. Ali nasceu a ideia da Mão Afro-Brasileira. Visitando a ilha de Goré, no Institut Fondamental d’Afrique Noire (IFAN), o guia de uma escola nos viu e disse aos alunos: “Vejam, esses são nossos primos do outro lado do Atlântico”.
Como foi a pesquisa para essa exposição?
Foi tudo feito em seis meses, coisa maluca.
Aquilo era muito material, muita pesquisa, muito tempo. Mas era um trabalho que você vinha recolhendo há tempos?
Seis meses. Coisas que eu sabia, havia guardado. E também me valeu a pesquisa para o África Bahia África.
O livro é impressionante, e a 2ª edição, de 2011, é mais ainda.
Na primeira, o Itamaraty providenciou a tradução para o inglês, mas o tradutor era preconceituoso e escreveu The Afro-Brazilian Touch,dizendo que não havia “mão” afro-brasileira. Ele tinha uma visão eurocêntrica, na qual o negro não criara coisa alguma.
Existem imagens da exposição? Talvez eles tenham lá no MAM.
Talvez, mas eu acho que não. A exposição foi fracasso de público.
Mentira!
Sim. A exposição coincidiu com o convite para eu ser visiting-professor na City University of New York – CUNY, e dar aula de desenho e gravura.
A exposição então é de 1987 e não de 1988, no centenário da abolição da escravatura no Brasil.
Foi em 1987, mas era para festejar o centenário da abolição. Então, fui aos Estados Unidos, fiquei dois anos lá e me valeu muito.
Mas A Mão Afro é um estudo verdadeiramente pioneiro. Olhando as divisões que você fez no livro – “Barroco e Rococó”, “Século 19”, “Herança Africana na Arte Popular”, “Arte Moderna e Contemporânea”, e “Múltiplas Contribuições”, que é música, literatura, culinária –, como chegou a essa divisão?
Eu parti do Barroco porque é esse o momento em que há maior ênfase nessa questão, com os escultores mineiros Mestre Valentime Aleijadinho, Francisco de Paula Brito e o pintor baiano José Teófilo de Jesus. O século XVIII no Brasil tem uma arte completamente negra, porque é o negro que faz, embora o padrão seja europeu, português. É o Thebas (Joaquim Pinto de Oliveira), por exemplo, que era escravo e depois virou mestre de obra, aqui em São Paulo, e fez a Catedral da Sé.
De onde veio esse interesse?
Eu havia estudado com o Manoel Quirino (1851-1923), intelectual baiano, pioneiro nessa questão de artistas negros e baianos. Ele escreveu sobre arte religiosa, comida, o africano como colonizador. Outra pesquisadora importante foi Marieta Alves, uma das poucas que dava a origem e a cor da pessoa. Quando voltei da África em 1987, me centrei nisso. Embora me recuse a dizer a cor da pele, penso nela como fundamento e como princípio. Quando fiz a exposição dos irmãos Timóteo recentemente, esse era meu foco. Foi a descoberta desses pintores cariocas extraordinários do século XIX: Estêvão Silva, Antônio Rafael Pinto Bandeira e Firmino Monteiro.
Existe essa questão do pardo, do mestiço. Se todo mestiço ou pardo tem algo do africano, ele também tem a mão afro…
Eu parto do princípio de que todo pardo é negro.
Então o Museu Afro poderia ser um Museu Negro…
Na verdade, é um museu negro.
Mas se todos nós brasileiros somos mestiços, o Museu Afro é também um Museu do Brasil?
Por isso que se chama Museu Afro Brasil. Não é Museu Afro Brasileiro, porque eu criei a ideia de que poderíamos discutir as questões africanas, mestiças, brasileiras, incluindo outros povos, que também são brasileiros – os italianos, os japoneses. Nós abrimos essa possibilidade. Às vezes, as pessoas chamam de Museu Afro Brasileiro, mas isso muda completamente o conceito, porque não é museu de gueto.
E o Negro de Corpo e Alma, uma das 12 exposições da Mostra do Redescobrimento, em 2000, e que tem o maior volume do conjunto de catálogos da mostra? É também uma pesquisa impressionante.
Eu queria olhar a iconografia do Rugendas, do Jean-Baptiste Debret e outros para incluir no processo.
Isso já amplia bastante o projeto.
Sim. Inclui Lasar Segall, Pancetti, Candido Portinari. Depois, fiz a exposição Imagens Inocentes e Perversas, no Museu Afro Brasil, em 2007, sobre essa representação que fortalece o preconceito. E a Mão Afro Brasileira que inclui essa iconografia que não é perversa, mas registra o negro, e o negro representando a si próprio. São pontos que se cruzam e criam novos campos de pesquisa.
Alberto da Costa e Silva, diplomata e historiador da África, escreveu em Um Rio Chamado Atlântico (2012), que todo brasileiro tem o escravo dentro de si, algo que o antropólogo Darcy Ribeiro escreveu de algum modo em O Povo Brasileiro, a Formação e o Sentido do Brasil (1995)…
Éum desejo de Alberto Costa e Silva, mas não é verdade. Ou melhor, eu acho que é verdade, mas as pessoas não admitem isso. Senão, o Brasil não seria o País tão preconceituoso que é. Você vê a TV brasileira e parece que estamos na Suécia, sem negros. A Rede Globo coloca o negro sempre no pior papel, e os atores aceitam isso porque não tem alternativa.
Você acha que está mudando?
Não.
Mas o Museu Afro não exerce um papel nesse sentido.
O Museu só tem 9 anos, o Brasil é muito devagar.
Você acha que o meio de arte no Brasil é mais preconceituoso?
Sim, mais preconceituoso. Quando fui nomeado diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1992, as pessoas diziam: “Como um negro, baiano?”. Eu dizia: “Não só negro, mas homossexual também”.
No entanto, hoje todos sabem que a reforma que Paulo Mendes da Rocha fez na Pinacoteca durante sua gestão é o grande ponto de inflexão na história do museu.
Mas há muito preconceito, é uma coisa silenciosa, o Brasil é silencioso. É uma coisa perversa.
Você não acha que melhorou de 30, 40 anos para cá?
Piorou. A África não existe para o Brasil. Como é que o Brasil não tem um museu de arte africana?
Mas o fato de o museu existir já é algo importante. Ainda que só tenha 9 anos.
Sim, mas estou investindo para futuro. Quando cheguei à Pinacoteca, a instituição já tinha completado 90 anos, e era aquele desastre, uma pocilga. No segundo dia, choveu e aquilo parecia Veneza. Então, acho que preciso completar 90 anos aqui também no Museu Afro Brasil.
Na Pinacoteca, você ficou de 1992 a 2001.
Quando cheguei à Pinacoteca, em 1992, também comecei minha gestão com um projeto de reforma do museu, escancarando ao público de São Paulo o estado desgraçado daquele museu. Para mim, o Museu Afro Brasil é um investimento, uma homenagem ao meu passado.
ÀÁfrica que estádentro de nós! Na Pinacoteca, você fez exposições afro-brasileiras?
Eu fiz Vozes da Diáspora, em 1993, e Herdeiros da Noite: Fragmentos do Imaginário Negro, em 1994. Fizemos a retrospectiva de Rubem Valentim, O Artista da Luz, 2001, com curadoria de Bené Fonteles, trouxe obras de artistas negros para a coleção. Mas também trouxe obras do Willys de Castro, comprei Hélio Oiticica, ampliei a coleção de esculturas do museu.
Você acha que sua perspectiva como artista trabalhando com museus e curadoria é diferente daqueles outros que só têm um trabalho institucional?
Eu acho que tenho uma visão ampla da questão, que inclui restauro, conservação, educação, mas também das artes plásticas do Brasil. O curador fechado, que estabelece princípios e conceitos, é diferente de um diretor de museu, as perspectivas são bem diferentes.
Como foi a criação do Museu Afro Brasil, em 2003, ocupando esse grande prédio no Parque Ibirapuera, em São Paulo?
A Marta Suplicy, na época prefeita de São Paulo e atual ministra da Cultura, tinha pensado em fazer um museu afro aqui, mas ela não sabia como começar nem com que acervo. O secretário de Cultura me perguntou se eu não queria emprestar minha coleção. Aí, foi formado um grupo para armar esse conceito; eles ficaram discutindo, discutindo, e eu cheguei e fiz o museu. Quando terminou a discussão, eu disse: “O museu está pronto!”.
E a discussão era em torno de quê?
Do conceito do museu. Tinha antropólogo, sociólogo, e não sei mais o quê. Eu disse: “Eu não vou cair nessa armadilha de vocês”. Então, apliquei a ideia da mão afro-brasileira.
Mas aqui também há objetos ameríndios.
A questão da arte indígena é que o africano sempre teve o índio como um deus da terra. Tanto que todo candomblé da Bahia tem o seu caboclo, o mestiço de branco com ameríndio. Porque o orixá da terra é o caboclo que faz, é o caboclo que significa. E toda casa de candomblé, toda mãe de santo tem o culto ao caboclo, que é uma forma de honor a essa herança. É por isso que aqui no Museu Afro nós começamos a exposição com o caboclo, com o índio. Essa história é muito intrincada, mas é muito clara também. É possível lê-la, mas é preciso querer.
Você acha que o Brasil é um país ocidental?
Ée não é. Tem tanta coisa aqui dentro que ainda não foi descoberta.
Parece-me que a antropofagia é um projeto incompleto, porque ela se voltou muito para a canibalização das referências europeias e poderia devorar outras matrizes, a africana e a ameríndia, o que a repotencializaria.
Claro.
Em vez de olhar apenas para o Léger, para o construtivismo…
Esse é o erro do (Manifesto da Poesia) Pau Brasil, de Oswald de Andrade, de 1924, e da Semana de Arte Moderna de 1922. A Semana foi feita por elitistas, tinha apenas um sujeito, o Mário de Andrade, escritor e crítico paulista, que tinha uma visão brasileira, os outros eram alienados.
A Tarsila do Amaral vem de uma família de elite, mas tem quadros…
Vem de uma família de elite, e toda vez que ela se manifesta na representação do negro é perversa.
Mas A Negra (1923) de Tarsila, você acha perversa?
Acho perversíssima, na medida em que ela transfigura a imagem da negra com protótipos da perversidade, acentuando seus traços, os seios, a boca. O Portinari também é perverso. O único que é mais livre é o Segall.
O Segall se pinta negro, mestiço.
Ele se pinta negro, mulato. E a ilustração que ele faz para Jorge de Lima, para Poemas Negros,de 1947, aquilo tudo tem um contexto em que ele entende o Brasil mais do que os brasileiros. Aliás, para entender o Brasil precisa ser estrangeiro. Nesses 500 anos de Brasil, desde Caramuru e Catarina Paraguaçu, Pernambuco com os holandeses, há toda uma história complexa por aqui, uma mélange. Nós fizemos a exposição dos Bijagós, de Guiné Bissau – A Arte dos Povos da Guiné Bissau, Museu Afro Brasil, 2008 –, e fomos descobrir que os primeiros africanos que vieram para o Maranhão foram os Bijagós, que plantaram arroz no Maranhão, sua cultura de origem. Mas ninguém sabe disso.
Émuita ignorância. O Mestiço (1934), de Portinari, você também o considera perverso?
Não. O Portinari é muito melhor do que a Tarsila nesse sentido.
E o Christiano Júnior que fotografou escravos?
É interessante…
Ele trata o escravo com dignidade.
Trata com naturalidade, embora sejam fotos de estúdios, não se sabe se ele acrescenta alguma coisa. O mais importante é Militão, Augusto de Azevedo, fotógrafo carioca, que revela uma sociedade negra no final do século XIX com o poder de se fotografar. Tem muita coisa ainda encoberta. Mas os dois são importantes no registro de um Brasil…
Precisava se conhecer muito mais.
Mas não tem dinheiro de pesquisa. A Universidade não investiga isso.
Mas hoje há muitos estudos de escravidão.
Tem, mas…
Fica na Academia.
Sim. Há uma anemia profunda disso.
Mas esse descompasso entre a academia e o grande público poderia ter o museu para fazer a conexão, a ponte, sobretudo no que diz respeito à história visual.
Difícil, assim como o Museu de Antropologia da Universidade de São Paulo não faz. Outro dia, fizemos aqui um seminário sobre as coleções africanas nos museus e a pior apresentação foi a da USP.
Não temos experts, especialistas no assunto.
Mas poderíamos ter. Há uma dicotomia entre a arte africana tradicional e a arte africana contemporânea. Isso não chega até aqui.
Mas um dia vai chegar.
Um dia nós não estaremos vivos! E o Brasil vai ficar branco, aquela tese do branqueamento! Eu tenho observado que negro com branco dá branco, a primeira geração já nasce branca. A Universidade teria um papel fundamental se ela não fosse tão eugênica. Você vai ver como lidar com essa questão no Brasil é complexo.
Mas aí é que a gente pode trabalhar na questão.
Eu não desanimo porque tenho o compromisso da cor da pele e tenho de levar adiante. Mas acho muito difícil. E eu sou otimista, sou teimoso, vou até o fim.
Você teve muito apoio para fazer esse museu, essas exposições, essas publicações?
Tenho, mas não tenho o eco que gostaria de ter.
Você acha que poderia ter intercâmbio e residências, por exemplo, entre os artistas brasileiros e os africanos?
Sim, nós estamos fazendo.
Rosângela Rennó e Paulo Nazareth estiveram na África. Eu falo que tem arquitetura brasileira do século XIX lá e as pessoas não acreditam.
Tem a festa do Carnaval em Porto Novo, da comunidade brasileira local. Só que eles estão abandonados. Quero ver se neste ano vamos até lá, para dar dinheiro para manterem aquela associação. Tem uma missa linda, rezada em português. O que é extraordinário é que em 200 anos ainda tem uma comunidade brasileira.
O mais impressionante é que ninguém sabe disso aqui no Brasil…
Há famílias brasileiras lá no Benim, tem muitos Rego, Sousa, Oliveira. É inacreditável que isso exista, vivo. Essa conexão é que está faltando, parece que é uma coisa muito distante, e não é, é muito próximo. O nível de alienação no Brasil é impressionante.
As pessoas negras tem muita dificuldade de se inserir no meio da arte” explica Moisés Patrício. FOTO: Andre Stefano/Facebook Presença Negra
*Por Theo Monteiro
A tarde do dia 5 de março de 2016 foi marcada pela inauguração da nova sede da Casa Triângulo, galeria de arte localizada no bairro do Jardins. Em meio à cor branca das paredes do prédio, bem como da cor da pele da maior parte das pessoas, se destacava a presença do artista Moisés Patrício: negro, vestindo uma bata branca e adereçado com um colar de contas que remete à cultura afro-brasileira. A ele, se juntariam mais alguns negros no decorrer do evento, cuja cor da pele ajudou a quebrar o monocromatismo até então reinante no ambiente. Para os desavisados, aqueles personagens negros no recinto poderiam estar ali apenas por acaso. Poderiam.
Na verdade, aquelas presenças não foram fruto de coincidência. Desde alguns dias antes estava agendado no Facebook um evento intitulado Presença Negra, que chamava artistas e pessoas negras de um modo geral a comparecerem a abertura na mesma galeria. “Este não é um ambiente considerado nosso. As pessoas negras tem muita dificuldade de se inserir no meio da arte” explica Patrício, um dos organizadores do ato, criado em parceria com Peter de Brito, outro artista negro.
“A ideia é ser uma intervenção pacífica e alegre, que incite os afrodescendentes a ocuparem espaços específicos que lhes são historicamente negados, no caso, aberturas de exposições e mostras, para que venham prestigiar as aberturas”, conta Patrício. “O Brasil é um país diversificado: variadas culturas, cores, religiões e formas de pensamento convivem nesse território. No entanto, e surpreendentemente, essa diversidade praticamente inexiste em diversos meios, e a arte é um deles. Pra mim, que sou artista negro, foi muito difícil se fazer presente. O Brasil possui uma vastíssima produção artística, mas a que entra no meio comercial e é divulgada é unicamente a produção branca”, lamenta.
Presença Negra em galerias
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Poética diferente
Segundo Patrício, se você indagar qualquer galerista sobre a ausência de artistas negros nestes espaços, a justificativa será a praticamente inexistência dos mesmos. A explicação não corresponde à realidade. O fato de não ter sido absorvida pelos circuitos comerciais não torna a arte dos afrodescendentes menos importante para a cultura brasileira. “Ela carrega uma poética diferente, distinta da produção corrente no mercado da arte, que é muito marcada por uma temática individualista. A produção afrodescendente carrega questões próprias, porque os artistas tem outro tipo de vivência e são submetidos a uma série de violências”, explica Patrício. “A poética negra no Brasil é muito próxima da matriz africana, que é coletivista, que pensa a fruição num sentido mais amplo, e não apenas para um público seleto de pessoas.”
Ainda que menos destacada, a produção negra no Brasil existe e remonta ao período colonial: desde o mineiro Aleijadinho (173?-1814) até artistas contemporâneos como Sidney Amaral, Emanuel Araújo e Lidia Lisboa. “Não é porque somos alvo de grande violência em todas as esferas sociais que elas nos pertençam menos. Pelo contrário, esses espaços também são nossos e intervenções como a Presença Negra são fundamentais para que os ocupemos”, explica Patrício.
Outra questão levantada pelo artista é a de que essa constante exclusão e negação de qualquer produção negra acaba tendo consequências nefastas para os indivíduos: “A depressão que acomete muitos afrodescendentes acaba tendo como origem justamente essa identidade que nos é negada. É uma crise de identidade que nos é imposta, e a nossa exclusão do circuito das artes é mais uma faceta disso”. No entanto, para ele, ainda que o preconceito racial persista, houve muitos avanços na última década. “O racismo no Brasil praticamente não era discutido dez anos atrás. Esse era um tema que incomodava e por isso o seu debate ficava adormecido. Agora o negro tem mais acesso à itens básicos, à informação e a cultura e está na universidade. Estamos finalmente colocando o pé na porta, e essa discussão não pode ser diferente na arte. A arte incomoda, provoca, levanta questões. Pensar o racismo nesse meio é fundamental”, conclui.
Por esta fotografia, Rafael foi mantido por dez dias em uma solitária. FOTO: Reprodução/Facebook DHH.
*Por Mariana Tessitore
Símbolo de Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga está na exposição Histórias Afro-atlânticas. O Instituto Tomie Ohtake, que hospeda a exposição junto ao MASP, promoveu em 2017 a mostra Osso, exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Relembre conversa, publicada na época, da jornalista Mariana Tessitore com acadêmicos, curadores e artistas para saber o que eles pensam sobre a relação entre arte e política hoje:
“A arte é a ciência da liberdade”, já dizia Joseph Beuys. Mas como interpretar essa frase do mestre alemão à luz da crise democrática que assola o Brasil? Esse debate ganha fôlego com a inauguração da mostra OSSO: Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Feita em parceria com o IDDD (Instituto de Direito do Direito de Defesa), a mostra debate o caso de Rafael Braga, jovem negro que foi detido nas manifestações de 2013 por portar desinfetante e água sanitária. Braga foi o único condenado no contexto dos protestos, seu caso se tornou um símbolo de luta dos movimentos sociais.
Em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, a exposição apresenta 29 trabalhos, reunindo desde nomes consagrados, como Cildo Meireles e Anna Maria Maiolino, até jovens artistas representados por Moisés Patrício, Paulo Nazareth, entre outros. Junto às obras, também há documentos sobre o caso de Braga. Segundo o curador, Paulo Miyada, os artistas participam da mostra como se estivessem assinando um abaixo-assinado.
“O caso do Rafael é paradigmático por ser um exemplo de uma situação institucionalizada. Ele revela o quanto a cidadania, no Brasil, é desigualmente atribuída, dependendo do grupo social, da raça e etc”. Miyada afirma que há um “consenso de que não está tudo bem no País” e que é preciso entender qual é a “pertinência da arte e da cultura nesse contexto”.
Com uma retórica clara, já enunciada no próprio título, a mostra marca posição, sem precisar recorrer a trabalhos panfletários ou “verborrágicos”, como define o curador. “Privilegiamos obras que não fossem tão discursivas. A palavra ‘osso’ remete ao que há de mais agudo, afiado e conciso na arte contemporânea. É como se cada trabalho equivalesse a um gesto, uma ação direta feita pelo artista”, explica.
Símbolo da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga que será exibido em ‘Histórias Afro-atlânticas’.
Uma das participantes da mostra, Carmela Gross acredita que as obras devem “agudizar” as questões sociais: “A arte sempre é política. Claro que não podemos entender a política num sentido estreito. Trata-se, antes de tudo, de produzir um acontecimento sensível que possa reverberar nos outros”. Nuno Ramos, que exibe a obra Balada, composta por um livro alvejado por uma bala, concorda com a colega.
“Não se faz política apenas quando se trata de uma pauta engajada. Quer dizer, há política em toda obra. A Bossa Nova, por exemplo, tinha uma grande potência política, apesar de não ser uma intenção explícita dos autores”, afirma o artista. Ele ainda chama atenção para os riscos de “leituras enviesadas”: “Não necessariamente as obras mais engajadas serão aquelas que permanecerão, dando conta do seu tempo. Precisamos interrogar os trabalhos com bastante riqueza para não ficarmos presos ao seu conteúdo”.
Em rumo ao impossível
Para o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, a força da obra de arte não pode ser reduzida ao seu discurso.“A dimensão política fundamental da arte não está no engajamento explícito, mas na sua capacidade de dar forma ao que é tido como impossível. E isso não é simplesmente uma função utópica da arte, é a sua dimensão mais concreta, ela permite a criação de novas formas de sociabilidade”. Ele explica que aspirar ao impossível significa, sobretudo, pensar em outras maneiras de habitar e sentir o mundo. E, para isso, é preciso criar novas linguagens.
“Hoje, se olharmos nas galerias de arte, há muitos trabalhos que tratam diretamente de problemas sociais. Mas o que talvez nós precisemos seja algo de outra natureza. Um dos motivos do embotamento da nossa imaginação política vem do fato de adotarmos a gramática daquilo contra o qual se combate. Acabamos falando a mesma linguagem, ainda que para fazer frases diferentes. E é óbvio que, dentro desse processo, o jogo já está perdido. Talvez a arte seja um dos poucos discursos que possa nos lembrar disso. Não há instauração política sem criação de uma nova gramática”, pontua.
1 de 3
"Cruzeiro do Sul", Cildo Meireles
"Balada", Nuno Ramos
"Nadaísmo", Paulo Bruscky
Na mostra em cartaz no Tomie Ohtake, um trabalho em especial traz a a ideia da arte em busca do impossível. Trata-se do registro de uma exposição que o artista Paulo Bruscky montou em Recife, em 1974. Intitulada Nadaísmo, a mostra não era composta por nenhuma obra, a galeria estava totalmente vazia. O público era convidado a comparecer com um panfleto irônico: “As pessoas chegam à sala e nada acontece. (..) Nada e somente o nada que perturba tanto. Mas então o nada é algo. Se perturba tanto, então não é só algo, como muito. O nada é muito”.
O encontro com o nada, proposto por Bruscky, desarma o espectador, convocando-o a refletir sobre o inesperado. Para Paulo Miyada, é preciso de fato pensar a política de uma forma mais ampla. “Como curador, tento desautomatizar os jeitos em que trago as pautas para os meus projetos. É uma forma de revalorizar a ideia de política como algo que deve ser conquistado e não uma palavra-chave a priori”, pontua.
Perspectiva histórica
Olhar o passado pode ajudar a entender a relação entre a arte e a política hoje. Segundo o professor do departamento de história da USP, Francisco Alambert, a arte moderna se baseava em duas formas de revolução: a social, pautada pelos exemplos das transformações na França, em 1789, e na Rússia, em 1917, e a formal, associada às vanguardas artísticas. “A arte contemporânea, por sua vez, nasce sob o signo da pós-revolução, quando a perspectiva de uma transformação radical nas coisas e na arte, ainda que não desapareça, já não é mais vista como necessária. Daí o desafio da arte contemporânea de ter que procurar o seu lugar político”.
Nessa busca por uma nova gramática, como afirma Safatle, talvez um dos maiores impasses seja a relação dos artistas com o mercado. Alambert defende que, diferentemente da arte moderna que no início se opunha aos parâmetros oficiais– os quadros de Picasso, por exemplo, chegarem a ser censurados- a produção contemporânea já surge em diálogo com as instituições.
“A política da arte contemporânea é muito contraditória porque, por um lado, os artistas romperam completamente com as linguagens tradicionais. A arte foi para a rua, o corpo, as instalações. Nesse sentido, ela é muito livre. No entanto, essa liberdade é limitada pela condição de mercadoria e pelo fato das obras sempre estarem dentro de uma instituição que as legitime: museus, bienais, galerias. Muito raramente a produção de arte contemporânea está associada a movimentos sociais maiores”, defende o historiador.
Rosana Paulino, ‘O Progresso das Nações’, 2016e
Mesmo que dentro de uma instituição, a mostra OSSO representa essa tentativa de diálogo com outros setores da sociedade civil, sendo uma parceria da arte com a justiça. Segundo o curador, a exposição funciona como um “chamado social” para que cada setor colabore trazendo reflexões. “Esse diálogo foi fundamental para o projeto. E talvez seja algo mais ou menos raro porque geralmente o próprio sistema da arte se retroalimenta e tem todas as suas dinâmicas e reflexões internas”, pontua Miyada.
Nuno Ramos também considera importante que as mostras consigam “dialogar cada vez mais com outras parcelas da sociedade”. Ainda assim, ele comenta que a relação entre arte e política deve ser vista a partir de suas nuances:“ Em um momento em que tudo indica que a função do artista é assumir para si questões éticas, talvez o que devamos fazer seja trair essa expectativa e não assumir nenhum papel. E isso em si já é uma postura política. No fundo, é pensar um pouco a arte como uma forma de solidão, algo que não se identifica com as funções do mundo”.
O artista Jaime Lauriano conta que começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial". FOTO: Divulgação
*Por Mariana Tessitore
“Para eu estar aqui hoje falando, muitas pessoas que vierem da África para serem escravizadas tiveram que morrer.” É assim que o artista Jaime Lauriano começou essa conversa com a ARTE!Brasileiros no final de 2016. Com seus óculos grandes e redondos, e o mapa do continente africano tatuado em seu braço, ele recebeu a reportagem no Ateliê 397, espaço de intervenção cultural sediado na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo.
Lauriano falou sobre a sua atuação como artista iniciada em 2007, após sua formação no curso de artes visuais na Faculdade Belas Artes. Em 2011, sua produção teve um hiato de um ano, no qual trabalhou com marketing político “para entender como a estrutura funcionava por dentro”.
Porém, em 2012 decidiu retornar ao campo das artes, iniciando um projeto que propõe releituras de momentos chaves da história brasileira. No ano passado, a Pinacoteca do Estado de São Paulo adquiriu a sua instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, o que conferiu maior projeção ao artista.
O coletivo é uma questão central para Lauriano. Ele reforça que o seu corpo é fruto de uma ancestralidade, marcada pelas lutas dos grupos marginalizados ao longo da história. “Falar dessa coletividade é uma das responsabilidades que assumi para mim. Não necessariamente tematizando isso, mas afirmando que sou um produtor de origem africana, que algo está gravado no meu corpo. E isso a polícia e a segregação racial me lembram a todo o momento”, conta o artista.
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Jaime Lauriano, “novus brasilia typus: invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural”. FOTO: Filipe Berndt
Jaime Lauriano, “colonização”. FOTO: Filipe Berndt
Em seu último projeto, Lauriano reconta a história brasileira a partir de três perspectivas: o trabalho, a dominação do solo e a criação do Estado nação. Esses três pontos foram investigados em exposições que o artista realizou respectivamente no Centro Cultural São Paulo, na Galeria Leme e no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio. Segundo Laureano, o intuito era “buscar no passado as explicações para o que acontece no presente. Queria entender questões como: por que se matam tantos jovens negros? Ou por que até hoje ainda criamos tantos slogans nacionalistas?”.
Para responder a essas indagações, ele foi aos arquivos públicos do Rio e de São Paulo. Lá encontrou diversos documentos, a partir dos quais criou suas obras mais recentes. Nos últimos anos, o arquivo se tornou uma referência constante nos trabalhos de arte contemporânea. Indagado sobre essa questão, Lauriano comenta: “É uma tentativa de ‘ficcionalizar’ os arquivos para mostrar que a história que nos é contada também é uma ficção. Não se trata de criar uma nova história oficial, mas de apresentar outras possibilidades e perspectivas”.
Em 2014, Lauriano tirou o pó dos arquivos da ditadura militar para criar dois vídeos que apresentou na coletiva I Mostra, no Centro Cultural São Paulo, realizada durante o período da Copa do Mundo no Brasil. Em Morte Súbita, o artista filma pessoas encobrindo o rosto com a camisa da seleção brasileira, enquanto um narrador lê os nomes de 25 desaparecidos políticos da década de 1970. No vídeo, “a câmera faz um travelling, mostrando essas pessoas de perfil, como se estivessem escutando o hino antes de uma partida, tomando um enquadro ou ainda prestes a serem fuziladas”.
Na obra, o artista chama atenção para como o esporte pode ser utilizado como instrumento de exaltação patriótica: “Eu quis falar sobre a Copa do Mundo de 1970 porque, ao mesmo tempo em que todos torceram pelo Brasil, esse foi o ano que a ditadura militar conseguiu desbaratar a luta armada. Também foi o período do milagre econômico, a população empolgada com a distribuição de renda pelo consumo. E é muito contraditório porque essa é uma retórica que se dá até hoje em qualquer tipo de governo”.
No ano passado, o artista realizou a exposição Autorretrato em Branco Sobre Preto na Galeria Leme. A mostra foi um marco em sua carreira, funcionando como “um autorretrato, não só meu mais de uma condição social, dessa imposição da sociedade branca sobre os corpos negros, e como isso atravessa a história do Brasil”. Foi lá que ele apresentou a instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, composta por uma muda de Pau Brasil plantada dentro de uma estufa. Na obra, há todo um sistema, com irrigação e ventilação, que garante as condições ideais para que a árvore viva. Porém, ao crescer, a árvore provavelmente morrerá por asfixia ou por explodir os vidros da estufa ao aumentar de tamanho.
Lauriano afirma que, assim como na estufa, no Brasil “há as condições ideias para o crescimento, mas a gente aprisiona. O Estado subsidia transporte, saúde, enfim, muitas coisas, mas também cerceia a liberdade, as pessoas têm fronteiras, passaportes, polícias. O primeiro escravizado no Brasil foi o índio para retirar o pau Brasil, que é perversamente a planta que dá nome ao País. Então, aquilo que nomeia a nação é o sinal do primeiro genocídio, a primeira tortura. No trabalho, eu queria pensar tudo isso”.
Jaime Lauriano, ‘Nessa terra, em se plantando, tudo dá’, 2015.
O atual diretor artístico da Pinacoteca, Tadeu Chiarelli, viu a obra na exposição e decidiu adquiri-la para o acervo da instituição. Depois de comprar a peça, Chiarelli fez outras aquisições de obras de artistas afrodescendentes, que comporiam a exposição Territórios, apresentada neste ano na comemoração dos 110 anos da instituição.
Lauriano conta que a partir desse momento, começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial, mas que até hoje prega a meritocracia e a democracia racial como pilares fundadores”.
Para o artista, a inserção do negro no mercado da arte é “um trabalho de formiguinha. Eu, por exemplo, indico pessoas para outras exposições. Entendo que criar uma rede, uma comunidade de pessoas também faz parte do trabalho artístico. Aprendi isso porque ouço muito rap desde criança e isso é muito forte no rap, essa indústria que é abastecida por produtores afro-brasileiros. E eu acho que esse pensamento também precisa estar nas artes plásticas, quanto mais gente conseguirmos trazer juntos, vamos lá sabe? Onde passa boi passa boiada. Abriu uma fresta, vem gente. Eu e algumas pessoas estamos conseguindo abrir essa fresta, esse lugar de diálogo”.
Em sua última exposição, apresentada neste ano no CCBB do Rio, Lauriano continuou propondo conexões entre o passado e o presente. Na obra Calimba, por exemplo, criou carimbos com 25 manchetes de jornais sobre linchamentos realizados no Brasil. Os carimbos remetem à prática adotada pelos senhores de marcar os escravos a ferro. O artista conta um pouco sobre o processo de concepção da obra: “Enquanto eu pesquisava nos jornais, me lembrei dos linchamentos praticados na década de 1920 no sul dos EUA. Eram homens negros espancados, enforcados e pendurados em praças públicas. Essas imagens viravam cartões postais como se fossem paisagens que deveriam ser contempladas. Isso durou cerca de 20 anos. E aqui no Brasil, nesse tempo, estávamos vivendo o auge da democracia racial. Isso também acontecia, só não era divulgado. Tudo isso me fez pensar na violência colonial, em como ela é atualizada hoje nesses linchamentos, que de novo são feitos na praça pública pela sociedade civil, e não pelo Estado. É impressionante como a violência também transita historicamente”.
Lauriano comenta que uma parte do seu trabalho é justamente aparecer na imprensa para questionar os estereótipos associados aos afrodescendentes. “É importante mostrar que existe outro lugar para o jovem negro que não o do suspeito em potencial. Até porque o negro no Brasil hoje nem é mais suspeito, ele já é o acusado, aquele que fez a treta.” Otimista, ele afirma que, devido à presença de artistas como Sonia Gomes, Emanoel Araújo e Paulo Nazareth, o meio das artes tornou-se mais aberto, mesmo que obviamente ainda exista preconceito. Porém com o fortalecimento da discussão, “torna-se muito mais difícil apagar ou silenciar o negro”. Como diz o artista, onde passa boi passa boiada.
Ayrson Heráclito, fotografias da série 'Bori' (2008-2011).
*Por Mariana Tessitore
Praticante do candomblé há mais de vinte anos, Ayrson Heráclito acredita na arte como uma forma de cura. Para o artista baiano, é preciso “exorcizar os fantasmas da sociedade colonial” que ainda assombram o País. Em suas performances, vida, arte e religião se misturam num mesmo caldeirão, onde também entram alimentos da cultura baiana como o açúcar, a carne de charque e o dendê.
Heráclito é um dos cinco artistas brasileiros que participaram da 57ªBienal de Veneza, em 2017, uma das mostras mais importantes do mundo com inauguração prevista para o mês de maio. Em entrevista à ARTE!Brasileiros no período que ocorreu a Bienal, o baiano fala sobre o trabalho que apresentará na Bienal, a relação entre a arte e o sagrado, o mito da democracia racial e a convivência com Marina Abramovic, entre outros temas.
ARTE!Brasileiros: Você poderia falar sobre a obra que apresentará na Bienal de Veneza?
Ayrson Heráclito: O trabalho se chama Sacudimentos*, é uma obra que fiz uma parte na Bahia e outra no Senegal. Em 2015, realizei dois rituais, um na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, e outra na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal. O sacudimento é uma espécie de exorcismo que eu faço nesses dois grandes monumentos arquitetônicos, localizados nas duas margens do Atlântico ligadas ao tráfico de escravos e à própria colonização. Eu queria voltar fisicamente e poeticamente a esse passado colonial e a própria história do escravismo para refletir sobre as condições sociais do nosso presente.
Esse ritual do sacudimento é realizado no recôncavo baiano com bastante frequência pelas pessoas ligadas a religiões de matrizes africanas. É uma prática importante a de limpar o espaço e afugentar, sobretudo, os espíritos e mortos, os eguns dos ambientes domésticos. Então quando você muda para uma casa nova, você chama alguém para fazer um sacudimento e tirar esses espíritos ruins que tendem a permanecer entre os vivos, trazendo infortunas.
Ao fazer esses rituais, eu me perguntava quais eram essas energias de mortos que eu precisava retirar dessas casas. A meu ver, essa morte que ronda os dois lugares foi causada pela própria história da colonização que tem consequências muito atuais tanto no Brasil quanto na África. Eu queria sacudir essa história, exorcizar esse fantasma do colonizador. O resultado dessas ações, registrado em vídeo, será o que eu apresentarei na Bienal.
Ayrson Heráclito, série ‘Sacudimentos’. Performance ‘O Sacudimento da Maison des Esclaves’ (2015).
Quais são as suas expectativas quanto à Bienal? Seu trabalho dialoga com outras obras que estarão na mostra?
Primeiro eu fiquei bastante feliz. Não é todo dia que um artista afro-brasileiro e, sobretudo, nordestino participa de uma mostra como a Bienal de Veneza. Minha obra estará ao lado das de outros artistas que têm práticas parecidas com a minha. É o que a curadora está chamando de pavilhão dos mágicos e dos xamãs, são artistas que trabalham com o ativismo. Porque isso que eu faço, pra mim, é política, uma política de outra perspectiva, um ativismo muito mais místico. Eu acredito na energia dos rituais, do poder de transformação que eles têm no mundo.
Num momento de tantos embates culturais e com a eleição do Trump, qual a importância de uma mostra cujo tema é a convivência?
O tema da Bienal chama atenção para esse momento de crise que estamos vivendo, o mundo todo está passando por profundas transformações. Eu não tenho conhecimento total do projeto, mas a curadora sempre falou que é uma bienal positiva. Porque não adianta apenas criticar sem apontar possibilidades de superação. O pavilhão onde estará a minha obra também é uma resposta à cultura hegemônica europeia, mostrando a complexidade do mundo. Não existe apenas a Europa. E cada região tem formas distintas de trabalhar com os problemas.
Qual a relação do sagrado com o seu trabalho? Como arte e religião se unem na sua produção?
O limite entre a arte e a religião na minha obra é bastante tênue. Eu sou praticante do candomblé há mais de 27 anos. E esse caminho religioso foi paralelo à minha trajetória artística. Eu me considero uma espécie de tradutor desse universo do sagrado. Tradutor no sentido de alguém que aproxima as pessoas de um outro universo, tornando aquilo público para os não iniciados. Eu venho me inspirando muito em artistas que têm essa relação com o sagrado, como, por exemplo, o Mestre Didi aqui na Bahia, que é um artista e sacerdote religioso.
Você costuma falar que a arte pode curar as feridas históricas. Poderia falar um pouco sobre isso?
A história sempre foi muito presente nas minhas pesquisas artísticas, principalmente o processo da escravidão. Eu me tornei uma espécie de artista exorcista. Minha função é sacudir a história, exorcizar os fantasmas. Não tenho uma concepção linear do tempo, então eu realmente acredito que essas energias que estão no passado contaminam a sociedade e atravessam o tempo, entrando na tessitura social. Porém, os escravos também nos deixaram a cura, a solução que está nos rituais religiosos, o poder das folhas, a comunicação com os elementos da natureza. A partir de todo esse conhecimento, eu tento ajudar as pessoas, dar um apoio, fazer uma limpeza e organização energética. Todos os meus trabalhos têm isso, um enfrentamento com a dor do escravismo, a dor colonial. E ao mesmo tempo uma superação dessa dor por meio de algum tipo de performance, ritual, vivência.
No Brasil, nós ainda falamos pouco da história da escravidão?
Com certeza. Caso o Brasil encarasse de fato essa questão, todos entenderiam muito bem o que é uma reparação por meio de políticas afirmativas de cotas. Até hoje, uma boa parte da sociedade brasileira acredita que todos têm o mesmo nível de acesso às coisas. O Brasil ainda vive dominado pelo mito da democracia racial, a ideia de que não existe um jogo duro da desigualdade e um genocídio das juventudes negras pelos policiais. Não podemos nos esquecer dessa ferida da escravidão, mantendo ela aberta para que ela não volte. O Brasil precisa conviver com o seu holocausto, estudá-lo para que a gente não repita as coisas terríveis que aconteceram. Principalmente a juventude precisa aprender quanto foi perverso e o quão violenta é a nossa história.
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Ayrson Heráclito, fotografias da série 'Bori' (2008-2011).
Fotografia que integra a série 'Bori', de Ayrson Heráclito
Ayrson Heráclito, fotografias da série 'Bori' (2008-2011).
Os materiais são muito importantes em sua obra. Elementos como carne, açúcar, sêmen e principalmente o dendê aparecem bastante nos seus trabalhos. Por quê?
Fiz essa opção por esses materiais orgânicos porque eles são bastante utilizados dentro dessa filosofia religiosa que é o candomblé. O açúcar foi a matéria que empreguei para falar da crise do antigo sistema colonial português, momento-chave da nossa história. A carne de charque é o ingrediente primordial que é servido para Ogum, um orixá da guerra. Mas também é um alimento resistente, assim como a carne do corpo de nossos escravos que foram marcados a ferro. Já o dendê, eu relaciono à fertilidade, o esperma que gera novos corpos. Esses três materiais orgânicos são essenciais nessa minha gramática artística.
Falando na carne como material, você poderia comentar a sua performance Transmutação da Carne, que hoje é uma das mais conhecidas.
Transmutação da Carne foi um trabalho que surgiu em 2000. A obra foi inspirada em um documento que descreve as torturas que um senhor de engenho submetia seus escravos. Ler esse documento me chocou muito. A partir daí eu concebi o trabalho no qual os performers vestiam a carne de charque e sofriam algumas das torturas descritas no documento. Uma delas era o processo de marcação do corpo a ferro. Esse trabalho se tornou bastante popular porque, em 2015, Marina Abramovic pediu que eu o reapresentasse em sua exposição Terra Comunal, no Sesc Pompeia. A performance fala da carne de charque como uma metáfora desse corpo escravo que sofreu muitas violências, mas resistiu.
E como foi a convivência com a Marina Abramovic?
Foi incrível. Olha que eu já tenho bastante experiência com os rituais do candomblé. Mas fazer o workshop dela foi importantíssimo pra mim. Ficamos uma semana quase sem comer, sem falar, sem ler ou usar celular. Sempre envoltos num espaço da natureza e fazendo exercícios de longa duração. E eu realmente consegui entrar nesses outros níveis que nunca havia acessado, principalmente na esfera religiosa. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Ela realmente influenciou o meu método como performer.
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Ayrson Heráclito, foto da série 'Vodun Agb', 2013
Ayrson Heráclito, foto da série 'História do Futuro', 2014
Dentre tantas obras, com quais você mais se identifica?
Essa obra que eu vou apresentar na Bienal, “Os Sacudimentos”, é uma das mais importantes da minha vida. Não sei se no futuro vou conseguir fazer outra tão relevante. Foi um trabalho muito difícil, não só por uma questão de logística, de conseguir autorização dos espaços para fazer essas limpezas, mas também no nível espiritual, de enfrentar esses eguns. Existem outros trabalhos também muito importantes como a performance Bori, na qual eu dou comida sagrada para as cabeças de pessoas. Mas a obra Os Sacudimentos é muito importante porque ela reúne essas duas margens atlânticas, que é algo essencial pra mim.
Você está produzindo algum trabalho agora?
Muitos, graças a Deus. Mas há um em especial que se chama História do Futuro. É uma série de filmes e fotografias sobre as minhas experiências na África. O nome do trabalho é uma referência a um texto do Padre Antônio Viera, de quem eu me aproprio para pensar na relação da África com o futuro. É uma série que pretendo mostrar logo.
*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora, trabalha no IMS
Manifestação de mulheres pela legalização do aborto no Rio de Janeiro, em 2016. FOTOS: Fotos Públicas
Nesta semana se vota no Senado argentino a legalização do aborto. Já foi aprovado pela Câmara de Deputados e após uma mobilização organizada e democrática mais de 1 milhão de mulheres, a conquista deste direito está sendo discutido amplamente em todos os países de América Latina.
Leia no jornal argentino pagina12.com.ar entrevista com a deputada Monica Macha
Leia a seguir matéria publicada pelo páginab.com.br em 2017
Mulheres entram e saem do Hospital Pérola Byington, na região central da cidade de São Paulo, com um segredo que provavelmente guardarão para sempre. Chegam sozinhas, com medo e vergonha. A maioria foi vítima de violência sexual e está ali para fazer um aborto. “Se contam para alguém, é para uma amiga. Falar para a família é mais complicado”, diz Daniela Pedroso, chefe do atendimento psicológico do Serviço de Aborto Legal da instituição.
No Brasil, a interrupção da gestação é permitida apenas nos casos em que é decorrente de estupro e se há risco de morte para a mãe. Esse direito existe desde 1940. No entanto, a primeira norma técnica do Ministério da Saúde para regulamentar e implantar devidamente o procedimento na rede pública foi redigida 59 anos depois, em 1999. Já o direito de abortar fetos anencefálicos foi reconhecido em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal.
O Pérola Byington é um centro de referência em saúde da mulher e na realização desses procedimentos. “Chegamos a fazer um terço de todos os abortos registrados por ano no País”, diz o médico Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal.
Em 2016, cerca de 320 mulheres foram submetidas pela equipe do médico ao aborto legal, número que é quase o dobro das intervenções feitas no ano anterior. “Se você reunir todos os outros serviços no estado de São Paulo em um ano, eles chegarão a uma fração do que é feito no Pérola. Essa concentração é terrível”, diz Drezett.
A realidade é que ainda são poucos os serviços que praticam o aborto legal e o atendimento integral previsto nesses casos. É o que evidenciam os dados obtidos pela pesquisa Serviços de Aborto Legal no Brasil – um Estudo Nacional, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, professora de Bioética da Universidade de Brasília e pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética. Diniz foi uma das principais articuladoras da ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que admitiu o aborto em casos de anencefalia em 2012.
A pesquisa mostrou que, entre 2013 e 2015, um total de 5.075 mulheres foram à rede pública em várias partes do País para realizar o procedimento, mas apenas 2.442 tiveram êxito. O estudo não investigou o que aconteceu às mulheres que não conseguiram abortar, mas não é errado imaginar que boa parte foi parar em clínicas clandestinas.
O estudo avaliou 68 centros de referência cadastrados no Ministério da Saúde, dos quais apenas 37 estavam, de fato, realizando o aborto. Em sete estados, não havia serviço disponível e 70% dos atendimentos foram realizados na região Sudeste. Essa ideia é reforçada pelo volume de pacientes de fora de São Paulo atendidas no “Pérola”. Em 2016, elas representaram metade do movimento do serviço. “Cerca de 18% foram encaminhadas por serviços públicos do estado que, publicamente, se dizem aptos a realizar o aborto legal, mas não o fazem”, aponta o obstetra Drezett.
Sobram dificuldades para complicar a vida da mulher que precisa se submeter ao aborto legal. Uma delas é a negativa de alguns médicos em realizar o procedimento. Eles estão amparados pelo código de ética médica e por uma norma técnica que permite rejeitar a tarefa por “objeção de consciência”. A mesma norma, porém, determina aos serviços públicos credenciados que garantam o atendimento em tempo hábil por outro profissional da instituição ou de outro serviço. E mais: a objeção de consciência não é reconhecida na falta de outro médico para atender a mulher, se houver risco de morte ou a omissão do atendimento puder causar danos.
O pedido de documentos que não são mais exigidos legalmente nos casos de violência sexual é outra barreira. Muita gente não sabe, mas não é obrigatório apresentar Boletim de Ocorrência e nem um laudo do Instituto Médico Legal. Apesar disso, 14% dos serviços em atividade ainda pedem tais comprovações, como mostrou o estudo conduzido por Diniz.
Mesmo amparada pela lei, a mulher que chega aos serviços de aborto legal ainda pode ser maltratada. Lamentavelmente, é comum no País encontrar médicos e funcionários dos serviços de saúde capazes de inocular suspeitas sobre a história da violência relatada. Levantamento de 2012 feito com ginecologistas e obstetras brasileiros mostrou que 43% dos médicos declararam objeção de consciência quando não tinham certeza se a mulher estava contando a verdade sobre o estupro.
“A ambiguidade que o aborto legal provoca por ser exceção à regra da criminalização gera essas distorções. Em vez de ouvir, acolher e cuidar da mulher em sofrimento, os profissionais assumem postura policial, promovendo a intromissão de um requisito investigativo no que deveria ser apenas cuidado em saúde”, afirma Diniz.
A resistência dos médicos é mais intensa em relação ao aborto por violência sexual do que à interrupção de uma gestação de risco. “Os profissionais sabem que até 35% de toda mortalidade materna está relacionada a complicações de saúde que se acentuam na gravidez”, diz o médico. A oferta de assistência integral às vítimas da violência sexual é outro desafio.
Mesmo entre os serviços cadastrados pelo Ministério da Saúde, são raros os que prestam atendimento como manda o figurino, conforme aponta Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA) e professor livre-docente de Genética Médica pela Universidade de São Paulo.
A integralidade de que fala Gollop engloba o acolhimento, o suporte psicológico, a coleta de material para extração de DNA e possível identificação do agressor, a anticoncepção de emergência, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e, quando indicada, a interrupção da gravidez. “Dos mais de cinco mil municípios do País, apenas 1% teria esse atendimento, ainda que incompleto”, diz Gollop.
O especialista atribui essa escassez a fatores como as pressões políticas de prefeitos, das câmaras de vereadores e de variados cultos religiosos. Some-se a isso a cumplicidade do estado. “Os serviços de saúde têm ignorado essa responsabilidade sem que sejam incomodados pelas autoridades”, aponta o obstetra Drezett.
O “esquecimento” do tema é extensivo às faculdades de medicina, especialmente àquelas ligadas a universidades regidas por religiões. “Como muitos temas ligados aos direitos sexuais e reprodutivos, a questão do aborto deixa de ser discutida e permanece um tabu para a maioria das escolas médicas e médicos em geral”, diz Gollop. “Não faz parte do currículo das faculdades, dos congressos e simpósios da área. E quando incluídos na programação, isso se dá no último dia do evento, quando há mínima audiência.”
Ao chegar nos hospitais com complicações pós-aborto, frequentemente as mulheres são alvo de desconfiança. Muitas postergam ao máximo a ida ao hospital em razão das denúncias feitas à polícia por médicos, funcionários ou agentes dos serviços de saúde. Na visão do juiz e professor José Henrique Torres, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), quem está cometendo um crime são os acusadores.
Pelo código de ética médica, a relação de confidencialidade entre médico e paciente não pode ser desrespeitada. “A polícia deveria desconsiderar essas denúncias porque são uma prova ilícita, praticada de forma criminosa. O Ministério Público, em vez de instaurar inquérito para apurar a conduta da mulher, deveria fazê-lo por violação de sigilo profissional e crime de quem fez a denúncia.”
Para Torres, há incompatibilidade entre a legislação brasileira, o sistema internacional de direitos humanos e a assistência e saúde da mulher: “A criminalização em si acarreta mortes de mulheres, sequelas terríveis e tem um custo social muito grande. Não consegue proteger o feto, a vida. Ao contrário, traz prejuízos para a saúde e vida das mulheres”.
Por isso, a questão precisa ser enfrentada de outras formas que não a drástica, severa e repressiva penalização das mulheres. O especialista argumenta que a criminalização contraria diversos princípios constitucionais. “Quando uma sociedade tem um problema a ser enfrentado, deve lançar mão de providências legislativas e políticas públicas antes de criminalizar, o que deveria ser a última alternativa a ser posta em prática pelo estado”, explica.
A proibição do aborto contrariaria ainda o princípio da idoneidade, uma vez que não reduz o índice de procedimentos realizados. “As pesquisas apontam que as mulheres não deixam de fazer o procedimento porque é criminalizado”, diz Torres. O princípio da racionalidade também sai ferido. No caso do aborto, a criminalização empurra as mulheres para o atendimento clandestino, matando-as e deixando sequelas. “O estado não pode causar problemas maiores ainda”, afirma o juiz. A cada ano, no Brasil, são feitos de 700 mil a um milhão de abortos, segundo Torres.
“É uma ilegalidade consentida. Se temos um milhão de abortos praticados, deveríamos ter um milhão de mulheres processadas. Isso não acontece porque a ideia é manter a criminalização como uma ameaça constante contra as mulheres, com o objetivo de controlar o corpo e a sexualidade femininos”, analisa o juiz.
Um caminho a seguir, segundo o especialista, seria a linha adotada em uma decisão do STF, que afirmou, recentemente, não haver crime de aborto até o terceiro mês de gestação. Ainda que diga respeito a um caso específico, é considerada um avanço na descriminalização do ato e pode influenciar magistrados de outras instâncias. Outros países já consentiram o aborto no início da gravidez, como Portugal, Itália, França e Espanha.
“O Brasil possui regras muito restritivas sobre aborto, inspiradas na legislação italiana fascista de Mussolini”, diz Gollop. Além disso, tentativas de retrocesso emergem volta e meia, como a proposta do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB), que queria obrigar as mulheres a ir à delegacia de polícia antes de ter atendimento. “A intenção de Cunha não era punir o agressor, mas ver se a mulher não estava mentindo”, pontua Drezett.
Na opinião da antropóloga Débora Diniz, estamos aquém do que poderíamos. “Mas, por iniciativa das mulheres, o tema tem se mantido em pauta e deve amadurecer”, diz a especialista. Que seja rápido. O aborto clandestino é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil. Estima-se que tire a vida de 300 brasileiras a cada ano.
Modelo a ser copiado
Daniela Pedroso, chefe de psicologia do Serviço de Aborto Legal do Pérola Byington, ao lado do doutor Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. FOTO: Luiza Sigulem
Daniela Pedroso, chefe de psicologia do Serviço de Aborto Legal do Pérola Byington, ao lado do doutor Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. Foto: Luiza Sigulem[/caption]
No Hospital Pérola Byington, o atendimento a quem procura o aborto legal começa com uma conversa para ouvir a história de cada mulher e avaliar se ela está em situação de risco, se precisa de abrigo e assistência social. Depois, é feita uma avaliação emocional, psicológica e das condições de saúde.
A maioria é encaminhada pela polícia, pelo Instituto Médico Legal ou outros serviços de saúde. “Mas estamos vendo um aumento da busca espontânea por atendimento”, diz o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que chefia o Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. Isso seria resultado da divulgação dos serviços pela Internet e funciona como um indicativo de que as mulheres estão menos dependentes de intermediários para encontrar os locais de atendimento.
Feitos os exames, a mulher assinará cinco documentos. Neles, se responsabiliza pelo que é declarado para fazer o aborto legal, autoriza o procedimento e se diz ciente das alternativas. A equipe médica aprova ou não o pedido e, por fim, faz uma avaliação técnica do tempo de gravidez para checar se é compatível com o tempo passado do estupro.
Entre 25% e 30% das mulheres não conseguem aprovação para fazer o aborto legal. O principal motivo é o tempo de gestação superior ao limite técnico para interrompê-la – até a 20ª semana ou até a 22ª se o feto pesar menos de meio quilo. O segundo impedimento mais frequente é a gravidez não ser decorrente de violência sexual.
“Muitas vezes, a mulher foi estuprada e está grávida, mas não do estuprador”, diz Drezett. Depois do procedimento, a psicóloga Daniela Pedroso, que há 20 anos dá suporte às mulheres que vão ao hospital, diz que prevalece um sentimento de alívio.
“Elas sentem que poderão retomar a vida, o trabalho, os estudos – voltar a ser quem eram antes de engravidar.” Segundo a psicóloga, aproximadamente 25% das mulheres pensaram em suicídio. “O trauma é maior em relação ao estupro e à falta de opção para fazer o aborto do que pelo procedimento em si”, diz a especialista.
Pela complexidade da situação, o “Pérola” oferece acompanhamento psicoterapêutico por seis meses a um ano. Metade das mulheres aceita frequentar as sessões.
Residência afetada por bombardeio. Vila Mariana, São Paulo, 1924. Foto: Coleção Mons. Jamil Nassif Abib
A mostra que esteve no IMS até julho de 2018, Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964, é uma aula de fotografia, política e História. Negando de forma peremptória a tese oficialista de que o Brasil é uma nação pacífica, a exposição reúne um amplo conjunto de imagens captadas entre dois momentos-chave: a proclamação da República, em 1889, e o Golpe Militar de 1964. A ideia de “mãe gentil” propalada pelo hino nacional e pelos livros escolares se desfaz rapidamente diante da sucessão de registros de conflitos, guerras civis, revoltas, insurreições e muita repressão liderada por um Estado violento nesse intervalo de 75 anos.
Como sintetiza a cientista política Angela Alonso, em um dos textos introdutórios do alentado catálogo da exposição, “os confrontos armados envolvendo governo e Exército bordam nossa história com alta frequência e virulência”. Alguns dos conflitos representados são extremamente conhecidos, como a Guerra de Canudos, a Revolução de 1930 e o suicídio de Getúlio Vargas. Outros passam batido nos livros escolares, como a Revolução de 1924, por exemplo. O mesmo ocorre com as imagens selecionadas. De autorias diversas (assinadas por mestres como Marc Ferrez ou por fotógrafos cuja identidade se perdeu no tempo), essas imagens podem ser lidas de diferentes e enriquecedoras formas.
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Veículos de O Globo tombados pela população. Rio de Janeiro, 24/08/1954. Foto: Agência O Globo
SECRETARIA DO 1° BATALHÃO DO QUARTEL DA LUZ. são paulo, 1924. Foto: Flávio de Barros/Acervo Instituto Moreira Salles/Museu da República
Polícia contém avanço da massa durante o Comício das Reformas. Rio de Janeiro, 13/03/1964. Foto Coleção Diários Associados – Rio de Janeiro/Acervo Instituto Moreira Salles
Em conjunto, elas falam sobre a brutalidade de um país marcado pela violência, no qual “um povo que se insubordina e uma elite que não se civiliza” têm sua relação mediada sempre pelo conflito. Traçam também um interessante painel sobre a diversidade e evolução da imagem fotográfica no país, desde as técnicas mais antigas, em prática no século XIX, até a utilização massiva das imagens pela imprensa, passando por momentos distintos como o uso recorrente do cartão postal e as primeiras experiências com a fotografia em movimento (precursoras do cinema). Em todos os casos, com maior ou menor intensidade, fica evidente o uso político da imagem como arma de convencimento e testemunho. Como lembra Heloisa Espada, curadora da exposição e autora do catálogo juntamente com Angela Alonso, “toda imagem realizada num conflito é interessada”.
Em muitos casos, o que essas imagens registram não é a ação propriamente dita. Temos diante dos olhos o palco dos conflitos, seus atores e as marcas de destruição depois que a violência ocorreu, que sempre coloca de um lado o poder constituído e de outro os derrotados. Da primeira imagem, que registra um grupo que posa antes da degola de um inimigo na Revolução Federalista de 1894, ao registro final, que recorda a brutal repressão e tortura à qual foi submetida o líder comunista Gregório Bezerra em 1964, surge um número amplíssimo de questões, muitas delas tratadas detalhadamente por um diversidade de ensaios reunidos no livro/catálogo.
Do ponto de vista do registro da imagem, é possível notar como a melhoria dos recursos técnicos permite uma captura mais “realista” da cena. A pose dá lugar a uma imagem capturada no calor da hora, como os registros feitos por Evandro Teixeira nas primeiras horas do golpe militar (1964). Isso não se traduz necessariamente em uma maior dramaticidade. Difícil superar o caráter trágico de imagens como as que mostram o corpo do inimigo aniquilado, numa clara estratégia de reafirmação do poder. Vale citar, por exemplo, os registros das cabeças decapitadas de Lampião e outros cangaceiros (foto anônima, 1938) ou do corpo morto e exumado de Antônio Conselheiro (Flávio de Barros, 1897). Nem tampouco que a velocidade do fotojornalismo tenha substituído integralmente o controle da pose e da composição por parte dos fotógrafos, estratégias de organização interna da imagem que se repetem ao longo das décadas.
Outro aspecto que se destaca nessa trajetória, ao mesmo tempo histórica e técnica, é como evoluem de forma quase paralela a maneira de registrar os conflitos e a forma como eles são realizados. Em outras palavras, o avanço tecnológico não tem impacto apenas sobre as formas de registrar e distribuir as imagens, mas também tem seus efeitos sobre as formas de combate. Conflito a conflito, a mostra nos revela como pouco a pouco a faca vai dando lugar ao poder cada vez mais destrutivo de canhões e bombas lançadas dos ares.
Rogério Reis, série Na Lona, Rio de Janeiro (1987-2002) Campo Grande, 1997, Rio de Janeiro, 1987-2002, Hasselblad com filme Tri-X, 120 mm (sais de prata), Impressão em pigmento mineral sobre papel algodão, 50 x 60 cm
Programe-se
Nelson Leirner, ‘Futebol’, 2001
O tridimensional na coleção Marcos Amaro: frente,fundo, em cima, embaixo, lados. Volume, forma e cor, coletiva na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, abertura em 23/6.
Exposição inaugural da Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu. Com curadoria de Ricardo Resende, a mostra traz um recorte do acervo do colecionador, artista e empresário Marcos Amaro. A exposição reúne cerca de 50 trabalhos entre pinturas, esculturas, relevos e instalações. São criações de artistas de gerações e influências distintas, do Barroco à contemporaneidade, passando ainda pelos modernistas.
Rogério Reis, série Na Lona, Rio de Janeiro (1987-2002) Campo Grande, 1997, Rio de Janeiro, 1987-2002, Hasselblad com filme Tri-X, 120 mm (sais de prata), Impressão em pigmento mineral sobre papel algodão, 50 x 60 cm
Histórias Afro-atlânticas, coletiva no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, a partir de 28/6.
Cotada como a grande exposição do ano, apresenta cerca de 400 obras de mais de 200 artistas, tanto do acervo do MASP, quanto de coleções brasileiras e internacionais, incluindo desenhos, pinturas, esculturas, filmes, vídeos, instalações e fotografias, além de documentos e publicações, de arte africana, europeia, latino e norte-americana, caribenha, entre outras. No sábado, 30, parte da mostra também é inaugurada no Instituto Tomie Ohtake.
Héctor Ragni, “Número Uno”, 1936
Construções Sensíveis: a experiência geométrica latino-americana na coleção Ella Fontanals-Cisneros, coletiva no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, abertura em 27/6
A exposição traz ao Brasil um recorte da abstração em nosso continente. Junto ao importante legado do concretismo e neoconcretismo brasileiros, são apresentadas as poéticas abstratas que prosperaram em outros países a partir dos anos 1930. Pensada especialmente para o Brasil, presta uma sutil homenagem à mostra “Arte Agora III, América Latina: Geometria sensível”, destruída num trágico incêndio em 1978, quando ocupava o MAM Rio de Janeiro. Diversos artistas apresentados naquela histórica ocasião estão presentes, junto a artistas contemporâneos que apontam para os rumos da abstração atual.
Bruno Dunley, “No meio”, 2016
Bruno Dunley: No meio e Fabio Miguez: Fragmentos do Real (Atalhos), individuais na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, aberturas em 23/6
Ambos os artistas pertencem a gerações marcadas pela retomada da pintura, 2000 e 80 respectivamente, e compartilham referências históricas do universo pictórico. Todos estes aspectos serão abordados em uma conversa aberta ao público entre os artistas e os críticos Rodrigo Moura e Tadeu Chiarelli, no dia 04 de agosto.
José Alberto Nemer, ‘Sem título’
José Alberto Nemer: Aquarelas recentes – Geometria Residual, individual na Galeria de Arte do Centro Cultural Minas Tênis Clube, abertura em 24/6.
As aquarelas surgiram de forma diferente na vida do artista. “Foi por meio de um processo psicanalítico. Perguntei para a analista se podia fazer um relatório usando aquarelas”, conta Nemer. A partir daí veio a primeira série, intitulada “Ilusões Cotidianas”, exposta, nos anos 1980, em São Paulo e na Bienal de Cuba. O artista se afeiçoou à técnica e não parou mais. Segundo Nemer, a forma da aquarela mostra sua personalidade. “A técnica se adequou à minha introspecção e silêncio. A minha linguagem passou a ser 100% a aquarela”, afirma.
Leda Catunda “O Nove e o Novilho ll”, 2013,
Transformers: Catunda, Chaves, França, Rauschenberg, coletiva na AURORAS, abertura em 23/6.
A apropriação de imagens é uma prática que se intensificou drasticamente nas ultimas décadas. Desde então, incorporar imagens das mais diversas origens é uma das características da produção contemporânea, frequentemente misturando diferentes materiais e técnicas. A exposição Transformers, no auroras, destaca o uso diverso da imagem que é articulada por Leda Catunda, Arthur Chaves, Pedro França e Robert Rauschenberg.
Manuella Karmann, “Mata”, 2017
Campos Gerais, coletiva na Adelina Galeria, até 24/8.
Josué Mattos, o curador da exposição, reconhece a importância do encontro dos três artistas pelo fato de “residirem áreas em que os biomas sofrem grande degradação. Daniel Caballero e Miguel Penha preservam interesses pela paisagem do cerrado, colocando o assunto em voga em suas investigações. Manuella Karmann, por sua vez, atua diretamente na Serra da Mantiqueira, em área de reflorestamento, resistindo à frenética transformação do bioma em pastagem.”
Yoko Nishio, “Bemtevi”
Luzes indiscretas entre colinas cônicas, coletiva de abertura da Galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, até 8/8.
A proposta de Marcelo Campos com esta exposição é unir trabalhos que tratem de ideias relacionadas à luz, ao corpo e a paisagem. Ele se baseou no relato de viajantes que se deparavam com as cidades brasileiras e em três conceitos que se tornaram evidentes: a luz, a transbordante paisagem e o gentio. A mostra traz Anna Kahn, Brígida Baltar, Claudio Tobinaga, Hugo Houayek, Jimson Vilela, Leo Ayres, Lívia Flores, Osvaldo Gaia, Roberta Carvalho, Robnei Bonifácio, Thiago Ortiz, Tiago Sant’Ana e Yoko Nishio.
EM TEMPOS NOS QUAIS A ARTE tem sofrido com reações caluniosas ao se mostrar política, algumas instituições optaram por isentar suas mostras de qualquer tipo de militância. Outras, corajosas, dão aos curadores e artistas a voz necessária para propagar a mensagem desejada. É o caso da curadora Júlia Rebouças, que buscou obras de arte que se encaixassem no que ela define como “estratégia de hackeamento para pensar o nosso momento político”.
Convidada para fazer a curadoria, Júlia teve pouco tempo para preparar a mostra MitoMotim, que fica em cartaz no Galpão VB até 28 de julho. Essa limitação de prazo fez com que ela optasse por focar sua pesquisa no próprio Acervo Histórico da Associação Videobrasil, o qual já conhece há algum tempo, tendo trabalhado várias vezes com a instituição. “Eu disse ‘vamos fazer um motim com o que temos aqui’”, conta a curadora. A partir daí, todo o processo da exposição foi construído com os braços e os recursos do Videobrasil.
Escolheu um momento específico da história do País para articular sua ideia. Quis, então, olhar para o momento do processo de redemocratização do Brasil, passando pelas décadas de 80 e 90. Para ela, a construção desse período reflete na realidade atual. A insurgência de um grito de resistência diante do que ela considera “tempos difíceis” levou à palavra “motim”: “Motim é levante contra uma institucionalidade. É sempre um desejo de contestação”, declara.
Já a palavra “mito” surgiu da contestação sobre os mitos criados no decorrer da história do País, como o do “homem cordial” e o das “harmonia entre três raças”. Desta forma, o palíndromo criado na união das duas palavras se referem, de acordo com ela, a um motim do mito: “É no sentido de pensar que é preciso desconstruir os clichês identitários”.
Utilizando muito da linguagem da televisão, meio muito mais utilizado pela massa na época que nos dias de hoje, buscou também discutir o papel do discurso televisivo nas questões políticas e sociais: “Também é uma discussão sobre comunicação e mídia. Vamos descobrindo quem está representado na mídia”, acrescenta.
Além das obras do acervo, Júlia convidou outros artistas para participar da exposição, com instalações. “É um conjunto de artistas pelos quais me interesso e acompanho. Eles são os nossos aliados nesse contexto todo”, explica. Para ela, ao mesmo tempo que eles criam diálogos também criam contrastes, mas não se opõem, e considera: “São artistas importantes para o País e que têm uma arte disruptiva e contestadora”. O grupo de convidados é formado por Artur Barrio, Marilá Dardot, Randolpho Lamonier, Rivane Neuenschwander, Sara Ramo e Traplev.
MitoMotim Até 28 de julho
Galpão VB
Av. Imperatriz Leopoldina, 1150 – Vila Leopoldina, São Paulo