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O imaginário de Jennifer Tee

Jennifer Tee, performance Let it Come Down, 2017. Em parceria com a coreógrafa Miri Lee

Nadja é um dos romances ícones de André Breton, datado de 1962. A personagem é sua suposta amante e prostituta, que empresta o nome ao livro. De acordo com Jennifer Tee o lema de sua arte é “alma no limbo”. A protagonista do romance também afirmava: “Eu sou a alma no limbo”. Quem sabe o que é uma alma? Esta questão amarra uma das últimas exposições de Jennifer Tee, holandesa, que estará na 33ª Bienal de São Paulo, em setembro próximo, com trabalho ainda não definido. A artista trabalha com esculturas, tapeçarias, performances, objetos espalhados pelo chão, suspensos no ar, leituras, performances, mas mantendo espaço para que o público circule e viva seu estado de limbo.

Ao se apropriar da literatura ocidental, Jennifer, mais uma vez, reforça seu processo criativo destacando um território multicultural híbrido, construído a partir de necessidades, o que pode até ser The Soul in Limbo, um tema recorrente. O conceito de limbo não é interpretado apenas por uma porção espacial, mas por uma relação complexa e pode ter diferentes interpretações. Jennifer Tee também usa esse conceito em suas colagens de pétalas de tulipas secas, que são símbolos de sua própria origem de diáspora. Nascida em 1973, em Arnhem, Holanda, com mãe de ascendência inglesa e holandesa, avô e bisavô ex-plantadores de tulipas. Seu pai, indonésio, foi para a Holanda de navio e toda essa história reflete fortemente em seu imaginário. Jennifer Tee pode ser aparentemente frágil, mas seu trabalho deixa transcender com muita força e energia sua personalidade, especialmente nas leituras e performances coreografadas que costumam atrair jovens, artistas ou não.

Jennifer faz uma negociação contínua entre ideias esotéricas e a materialidade dos objetos, trabalhando muitas vezes com artefatos e símbolos culturais. “Gosto de trabalhar com materiais que sempre tenham uma presença e que também contenham um significado cultural”. Seu pensamento se move entre as filosofias orientais e a cultura ocidental e, ao se deslocar de uma margem a outra, nesse navegar contínuo, muitas vezes, mergulha em textos literários com influência da teosofista Helena Blavatsky e os artistas Wassily Kandinsky e Hilma af Klint.

Jennifer Tee não é somente uma intérprete, ela pesquisa o artesanato, escultura, performance e colagem, para chegar a conceitos de patrimônio cultural. Seu universo se divide em uma parte mais pessoal em que se dedica às pétalas de tulipas e às instalações de palco que examinam uma fusão de conceitos sobrenaturais orientais e ocidentais, incluindo ocultismo e taoísmo. “Eu descobri que se eu fizesse colagem com essas pétalas, elas pareceriam uma tecelagem. Cheguei a um padrão que pode ser reconhecido em outras culturas, há similaridades”.

Ao reunir narrativas díspares, propõe união dos artistas e se coloca contra as noções de individualismo e separação defendidas pela modernidade ocidental, que enfatiza a autonomia do artista e a suposta falta de propósito das obras de arte. Ao contrário, ela prioriza, especialmente, a experiência coletiva e a superação ou destruição das fronteiras.

Suas instalações estão mergulhadas em espiritualidade esotérica, celebrando todas as conotações que vêm do artesanal, criando objetos talismânicos que sugerem a presença humana ao seu redor. Suas peças de parede de cerâmica, algumas com nomes como Tao Magic, têm formas e superfícies que lembram algo entre o astrológico e o geológico.

Em sua exposição no Camden Arts Centre, Let it Down, título retirado de um livro de Shakespeare, ela criou uma performance com dançarinos contemporâneos que atuam sobre as esculturas executadas em cristal, colocadas no chão. “ Usei peças sobre o piso como plataformas para explorar a alma no limbo e para ter coreografias e então os objetos no espaço se tornem ativados”, explica Jennifer Tee. A artista usa o cristal porque é uma superfície que pode se multiplicar.

Trienalle di Milano de 2017 recebeu mostra sobre migrações que vão além da arte

"Hope", Adel Abdessemed. Foto: Gianluca Di Ioia

Enquanto a 57a. edição da Bienal de Veneza evita questões atuais, não muito distante de lá, um dos ex-curadores da mostra, o italiano Massimiliano Gioni, apresenta, em Milão, La Terra Inquieta, uma ampla investigação sobre artistas e trabalhos que abordam a problemática dos refugiados, um dos pontos nevrálgicos dos países europeus e dos Estados Unidos há décadas.

A exposição, em cartaz no edifício da Triennale di Milano, reúne 70 participantes, em sua maioria artistas, mas também trabalhos afins, como dos quatro fotógrafos que receberam o prêmio Pulitzer em 2016 por imagens feitas para o The New York Times, caso de Daniel Etter, Tyler Hicks, Sergey Ponomarev e do brasileiro Mauricio Lima.

A presença de fotojornalistas aumenta a temperatura da exposição, já que seus autores retratam cenas atuais, como na imagem de centenas de imigrantes acompanhados pela polícia para o registro em um acampamento na Eslovênia, em 2015, realizada pelo russo Ponomarev. Naquele ano, 764 mil migrantes da Síria, Iraque e Afeganistão atravessaram a chama rota dos Balcãs Ocidentais, um recorde até então, acompanhado de perto por Ponomarev e Lima, em um projeto conjunto.

No alto, “Mapa Mundial” de Alighiero Boetti, abaixo “Mar Morto” , de Kader Attia. Foto: Gianluca Di Ioia

Por outro lado, Gioni selecionou também fotógrafos hoje vistos como “históricos”, caso dos norte-americanos Augustus Sherman (1865 – 1925), Lewis Wickes Hine (1874 – 1940) e Dorothea Lange (1895 – 1965), todos trabalhando no registro documental. Sherman retratava imigrantes que chegavam aos Estados Unidos, Hine destacou-se por denunciar o trabalho infantil e Lange por abordar migrantes durante a Grande Depressão, nos anos 1930.

Com isso, o curador dá um caráter perspectivo à crise dos refugiados, relembrando que fluxos migratórios são constantes na história humana, como se vê também na série de capas do jornal italiano La Domenica del Corrieri que, em 1901, retratava em ilustração a migração italiana rumo aos EUA, tema constante da edição de domingo do diário.

La Terra Inquieta chega ainda a ganhar um tom dramático quando se vê o acervo reunido pelo Comitato 3 Ottobre, uma associação sem fins lucrativos de Lampedusa, a ilha italiana ao sul da Sicília. Foi lá que, em outubro de 2013, uma embarcação com 520 imigrantes afundou, provocando a morte de 368 pessoas.

Criado para dar suporte legal e humanitário aos imigrantes que buscam entrar na Europa, o Comitato exibe em Milão objetos dos refugiados mortos no naufrágio, assim como os pertencentes a outras 52 vítimas de sufocamento em um barco que saiu do Egito, em 2015. Dispostas em vitrines como peças de arte, contudo, esses objetos – celulares, bolsas, documentos – tornam-se por demais museificados, sendo evidente que outro dispositivo expositivo poderia ser menos fetichizante.

Mas o display não compromete a mostra, que reúne muitas obras de arte que abordam a questão das migrações e fronteiras tanto em trabalhos recentes, como em peças já emblemáticas, caso do Mapa Mundial de Alighiero Boetti (1940 – 1994), realizado por tecelões afegãos a seu pedido, com o seguinte texto bordado na margem: “Paquistão no outono de 1992 este novo mundo instável e ainda mais racionado e pulverizado”.

A obra histórica torna-se mais eloquente com a instalação Mar Morto (2015), de Kader Attia, exibida à sua frente e composta por dezenas de roupas dispostas, como a lembrar os corpos mortos no Mediterrâneo nas últimas décadas.Assim sucedem-se os trabalhos de arte, alguns mais explícitos em relação à temática da mostra, outros mais poéticos, como Static (2009), de Steve McQueen, um curta realizado em torno da Estátua da Liberdade, o local onde milhares de migrantes chegaram aos Estados Unidos, ou então Western Union: Small Boats (2007), uma videoinstalação de Isaac Julien que já há dez anos atrás abordava a Sicília como porto de imigração.

Outro dos trabalhos mais sensíveis da mostra é a instalação de Francis Alys, Don’t cross the Bridge Before You Get to the River (2008), uma colaboração com crianças dos dois lados do estreito de Gibraltar, o canal que separa África e Europa por apenas 13 quilômetros em seu ponto mais curto. Na obra, crianças de Tanger, no Marrocos, e Tarifa, na Espanha, criam barcos de sandália de plástico com o objetivo de criar uma ponte humana entre os dois continentes, uma ação que trata mais de esperança do que realidade.

Enquanto tragédias como as mortes do naufrágio em Lampedusa se sucedem, ao menos obras de arte são capazes de permitir algum tipo de otimismo no meio do caos do começo do século 21.

Junho de 2013 – Reflexões sobre a multidão

Foto: Camila Picolo

Por Fernanda Cirenza

Orecado veio das ruas e deixou todo mundo atônito diante da torrente de insatisfações que tomaram conta do País. O momento era inesperado, ao se considerar a expectativa da Copa das Confederações e os indicadores sociais e econômicos. A taxa de desemprego é de 5,8%, a menor desde 2002. A distribuição de renda melhorou significativamente nos últimos 15 anos. Os investimentos em educação aumentaram, assim como os de saúde. A expectativa de vida do brasileiro também subiu, enquanto houve queda nos índices de mortalidade infantil. Em março, pesquisa CNI/Ibope apontou 63% de aprovação do governo da presidenta Dilma Rousseff. No entanto, não foi apenas o futebol que ocupou o interesse popular. O Brasil queria, pediu e continua pedindo mais, motivado pelo desgosto com problemas crônicos que não amenizam com a boa condição do País.

Confira a nossa página sobre as manifestações de 2013 

Luiz Eduardo Soares (antropólogo, cientista político, escritor e professor da UERJ) escreveu em seu blog (http://www.luizeduardosoares.com/hora-zero-no-relogio-popular/): “A massa rompeu expectativas e a tradição de apatia, e inventou um movimento que será, por suas lições e seus efeitos, o verdadeiro legado às gerações futuras. A narrativa passou a ser escrita, nas ruas e nas redes virtuais, por milhões de mãos e vozes, desejos e protestos, inscrevendo seus autores na cena global, em diálogo com outras praças, outras multidões, outras lutas. A sociedade virou o jogo.”   

De fato, a pressão popular fez algumas conquistas pontuais, a começar pela revogação do aumento das tarifas dos transportes públicos em diversas cidades – aliás, a reivindicação inicial promovida pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo, que, segundo o próprio, é social e apartidário. Na sequência, o governo do Estado de São Paulo brecou o aumento do preço dos pedágios. No Planalto Central, questões complexas começaram a ser discutidas. Primeiro, derrubou-se a polêmica PEC-37, que, a grosso modo, limitava os poderes do Ministério Público de investigação criminal.

Depois, o Senado ratificou, em caráter emergencial, o projeto que poderá tornar a corrupção crime hediondo. O Judiciário também trouxe resposta ágil, determinando a prisão de Natan Donadon, o primeiro deputado federal a ser detido em pleno exercício do cargo desde a Constituição de 1988 – ele foi condenado a mais de 13 anos pelos crimes de formação de quadrilha e peculato.

A presidenta Dilma Rousseff abriu-se para o diálogo e propôs um pacto nacional com cinco itens – responsabilidade fiscal nas três esferas de poder, pacto pela saúde, transporte público e educação, e reforma política por meio de um plebiscito. Em encontro inédito e histórico, Dilma convocou 27 governadores e os prefeitos das 26 capitais para debater os temas, a maioria deles ainda em discussão e, provavelmente, assuntos que estarão na pauta política dos próximos meses. Os partidos de oposição ao governo reagiram, classificaram como “manobra diversionista” a proposta do plebiscito. Na avaliação do PSDB, do DEM e do PPS, o governo está “criando subterfúgio para deslocar a discussão dos problemas reais do País”.

Em meio a tanta informação, houve vozes de alerta. No blog Mídiafazmal (http://midiafazmal.wordpress.com/), de Marilene Felinto (escritora, tradutora e ex-colunista da Folha de S. Paulo), a filósofa Marilena Chauí escreveu: “Convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência”.

Enquanto isso, a presidenta Dilma insistiu no diálogo como forma de gestão e convocou reuniões também com movimentos populares. O sociólogo Manuel Castells, em entrevista à revista IstoÉ (que, posteriormente foi amplamente compartilhada nas redes sociais), cravou: “Dilma é a primeira líder mundial a ouvir as ruas”. Castells falou mais: “Ela mostrou que é uma verdadeira democrata, mas está sendo esfaqueada pelas costas por políticos tradicionais”. Não é pouca coisa, ao se observar como reagiram recentemente governos que passaram por pressões semelhantes.

Foto: Luiza Sigulem

Na Etiópia, em encontro com lideranças mundiais que discutiam o combate à fome, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também falou sobre os protestos que se espalharam pelo Brasil e disse que as manifestações, em parte, são resultado do que foi feito no Brasil nos últimos dez anos: “Feliz é o povo que tem liberdade de se manifestar. E mais feliz ainda é o país que tem um povo que se manifesta e vai para as ruas querendo mais”.

Em entrevista exclusiva a Hélio Campos Mello e Luiza Villaméa, respectivamente diretor de redação e repórter especial da Brasileiros, publicada a seguir, Lula reafirmou que não se lançará candidato à Presidência em 2014. “Dilma é uma excelente presidenta da República. Conheço muita gente neste País. Conheço muito político neste País. E conheço pouquíssimas pessoas com a competência da Dilma. Portanto, ela será a minha candidata em 2014. E eu serei seu cabo eleitoral. É isso que vai acontecer.” 

As manifestações também vivenciaram a reação truculenta da polícia e de atos de vandalismo. Dezenas de pessoas foram presas. Confrontos foram registrados em vários pontos do País, resultando em mortes. Um saldo lamentável e trágico da discussão democrática. Ainda há um longo caminho a ser percorrido. O debate agora não tem a menor possibilidade de recuo. Ainda bem.

Nas próximas páginas, além da entrevista exclusiva de Lula à Brasileiros, você vai ler a opinião de Nina Cappello e Vitor dos Santos Quintiliano, representantes do MPL, diante dos acontecimentos. Especialistas, estudiosos e formadores de opinião também analisam os episódios de junho. Os artigos estão publicados em ordem alfabética, considerando-se o nome dos autores. O momento pede reflexão.

Revolta solidária

A Revolta do Buzu Protesto de 2003 na Bahia inspirou movimento
A Revolta do Buzu Protesto de 2003 na Bahia inspirou movimento. Foto: Marcelo de Troi

Por Antonio Risério*

primeira coisa que digo às pessoas da minha geração (por volta dos 60 anos de idade), com relação às manifestações pela tarifa zero no sistema público de transporte, é: parem de ser nostálgicos e de idealizar seu próprio passado. Porque as pessoas usam 1968 como critério. É uma tolice. Naquela época, embora nos achássemos “marxistas”, alimentávamos socialismos utópicos. Hoje, a conversa é outra. A luta não é explicitamente contra a “ditadura dos patrões”, como a POLOP gritava na década de 1960.

Se meus amigos de esquerda, teleológicos ou escatológicos, não entendem o que está acontecendo, menos ainda nossos governantes, independentemente de suas posições no tabuleiro ideológico de nossos dias. Claro que eu jamais esperaria qualquer coisa de Geraldo Alckmin. Aquilo é um direitista incorrigível. Direitista, provinciano e incapaz até dos voos mais rasteiros do pensamento. Mas Fernando Haddad parecia pássaro de outra plumagem. Pelo visto, não é. Ele não tinha de ficar “monitorando” as coisas desde Paris. Tinha de ter tomado um avião e ido para as ruas encontrar a garotada. Longe disso, Haddad se revelou um hesitante, quase um banana. Ficou mais parecido com Alckmin do que com o estudante que ele foi, nos tempos do Largo de São Francisco.

Deitado no sofá da sala à meia-noite, em busca de um improvável sono, zapeando canais de televisão, vejo um primeiro horizonte. Um documentário sobre o que está acontecendo na Turquia. É engraçado. Há mais ou menos um ano, eu tinha uma boa dose de admiração pelo primeiro-ministro turco, com aquele nome que mais parece marca de remédio: Erdogan. Achava que Erdogan conduzia o país no caminho da democracia, seguindo o velho Kemal Atatürk. Mas me enganei. Arrogante e autoritário, ele começou a promover uma islamização da Turquia. A peça mais reacionária possível.

Em Ancara e Istambul, a população se revoltou. Não é um movimento que tenha se espraiado pelo país. É um lance essencialmente urbano, centrado nas duas principais cidades turcas. E o que vejo no documentário: pessoas de várias idades – mas, sobretudo, jovens – que, em vez de gritar palavras de ordem contra a islamização, dizem que a cidade é deles e não de Erdogan, do Islã ou de qualquer ditadura: “Istambul é nossa!”. Esta é a coisa mais profunda que um cidadão pode dizer: a cidade é minha, a cidade é nossa. E logo em Istambul, um dos lugares mais lindos do mundo.

E é justamente isso o que sinto que moradores de São Paulo estão dizendo: “São Paulo não é dos empresários de ônibus e dos políticos que eles bancam (juntamente com o setor imobiliário) – São Paulo é nossa”. O que essa garotada quer, com o apoio de muitos mais velhos, é o direito constitucional de ir e vir. O direito de se deslocar, de se mover. Em suma: o direito à cidade. Se cada cidade do planeta se manifestar assim (Barcelona é nossa! Berlim é nossa! São Paulo é nossa!), o mundo muda.

Pouco importa que o ponto de partida seja a passagem de ônibus? Não. É significativo. É por onde a população se move. Claro que a barra ainda é mais pesada do que se pensa: segundo o IBGE, 37,3% dos habitantes do Brasil andam a pé, por não terem dinheiro para andar de ônibus, trem ou metrô. É um índice altíssimo. Anda mais gente a pé, no Brasil, do que em transporte coletivo (29,1%) ou carro individual (30,4%). Querem maior atestado de exclusão? E essa luta é antiga. Há quase uma tradição, no País, da população protestando contra aumentos no preço das passagens. É que isso aqui é um país de gente muito pobre, ao contrário do que dizem tantas propagandas públicas e privadas.

Houve um quebra-quebra baiano em inícios da década de 1980, quando centenas de ônibus foram incendiados, em 1981, por causa do aumento abusivo na passagem. E o jornalista Gonçalo Junior me lembra de que o Movimento Passe Livre, que hoje toma as ruas de São Paulo, nasceu na Bahia. Lê-se na internet: “A revolta popular que originou o Movimento Passe Livre aconteceu em Salvador, capital da Bahia. Em 2003, milhares de jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras fecharam as vias públicas protestando contra o aumento da tarifa. Durante dez dias, a cidade ficou paralisada. O evento foi tão significativo que se tornou um documentário, chamado A Revolta do Buzu. As mobilizações tiveram fim quando entidades estudantis tradicionais (como a UNE e a UJS) se colocaram como lideranças da revolta que não haviam iniciado e foram negociar com a Prefeitura em sala fechada”. Fala-se, então, de uma espécie de traição feita por “entidades estudantis tradicionais”, coisa que também ajuda a entender a movimentação de agora, em sua recusa de velhas normas e canais.

Acho apenas ridículo quando me dizem que a garotada que luta contra o aumento da tarifa não precisa pegar ônibus ou metrô. É uma garotada classe mediana, motorizada. Se isso é verdade, melhor ainda. Significa que a juventude brasileira de classe média está recuperando, enfim, sua noção de solidariedade, que parecia irremediavelmente perdida. Lembro então aos saudosistas que, na década de 1960, lutávamos até por reforma agrária. E nenhum de nós tinha sequer um palmo de terra fora dos muros da cidade. Eu costumava dar esse exemplo para falar de uma solidariedade que julgava não mais existir. E agora me vejo na feliz obrigação de retirar o que dizia. É simplesmente maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se moverem gratuitamente em nossos espaços urbanos.

Acho ridículo quando dizem que a garotada classe média que luta contra o aumento da tarifa não precisa pegar ônibus ou metrô.

Se é verdade, melhor ainda

Agora, que ninguém pense, também, que a grande questão nacional é o preço da passagem em nossos sistemas supostamente públicos de transporte. Não é. A insatisfação é bem mais generalizada. Talvez a gente possa falar de uma espécie de insatisfação difusa, disseminando-se pelo conjunto da sociedade. Uma insatisfação geral com o País depois das celebrações narcísicas do “take of” anunciado pela Economist, em 2010. É na pauta dessa insatisfação, de resto, que ouço a vaia em Dilma Rousseff no estádio Mané Garrinha, em Brasília, na abertura da Copa das Confederações. Claro que nós, brasileiros, sempre gostamos de vaiar autoridades. Há um desrecalque sociologizável nisso. Mas não foi só. A vaia em Dilma expressou uma reação de alta classe média contra a situação atual do País. Situação atual que também mobiliza o protesto de estudantes e trabalhadores, com apoio de donas de casa.

Continuamos com desigualdades sociais escandalosas. O fantasma da inflação ronda feiras e “supermercados”. O dinheiro é pouco. Mas há a enxurrada de milhões de reais na corrupção dos políticos. A gastança do governo. E o esbanjamento em função de uma Copa das Confederações que será seguida por uma Copa do Mundo. Em Belo Horizonte, no dia de um jogo medíocre (Nigéria e Taiti), milhares de manifestantes tentam se aproximar do Mineirão, com balões amarelos, cartazes e faixas. Querem dinheiro para a saúde, por exemplo. Querem dinheiro para atender às necessidades básicas e reais da população.

Mas há mais. O Brasil parece querer uma nova hora e um novo senso do fazer político. José Dirceu percebeu isso, publicando artigo sobre o assunto. Diz ele que é hora de os governos do PT mudarem sua forma de se comunicar e se abrirem para novos projetos políticos. Mas se há uma coisa que essas manifestações deixam para trás são a ronda de fantasmas como Dirceu. E se os governos se abrirem para as novas formas da política, que agora se esboçam nas ruas, vão ser subvertidos em todas as direções e até mesmo desde dentro. Haddad, por exemplo, vai ter de ser outro cara em São Paulo e não o prefeito canônico e tradicional que tem sido até aqui.

Mas vamos ampliar o foco. O Brasil, hoje, parece um país triplamente acomodado. Acomodado no âmbito governamental. Acomodado no terreno de sua oposição política. Acomodado no conjunto da sociedade. “Acomodado” no sentido da carência de uma nova visão estratégica e de projetos correspondentes. É preciso reencontrar o rumo da transformação. E quem sabe essa meninada nas ruas nos ajude a fazer isso: recuperar a ambição nacional, no sentido mesmo do clichê de ser um país menos injusto e que possa se ver como nação plena.


Mestre em Antropologia pela UFBA, poeta, compositor e autor dos livros Avant-Garde na Bahia e A Cidade no Brasil

Em defesa da política

momento histórico Em 17 de junho, os protestos contra o aumento das tarifas de ônibus aconteceram em várias cidades do País. Foto: Camila Picolo

Por Maria Victoria Benevides*

“Foi bonita a festa, pá!” Para os jovens que não a viveram e para os “coroas” esquecidos – e hoje temerosos ou entusiasmados com a mobilização iniciada pelo Passe Livre –, vale a pena lembrar a luta política contra o regime civil-militar instalado com o golpe de 1964. Boa parte da oposição se organizava através de movimentos sociais, organizações de base, sindicatos, igrejas, imprensa, associações profissionais e culturais, universidades, meio artístico, entidades de direitos humanos, partidos, abrangendo um amplo arco das esquerdas aos liberais, ambos de vários matizes. Pela primeira vez em nossa história, tivemos uma efetiva participação popular no processo constituinte (plenários, comitês locais, audiências públicas, milhões de emendas populares, manifestações), que desembocou na Constituição vigente. E essa Carta acolheu instrumentos de democracia direta, agora legitimamente evocados.

Quero chamar a atenção dos atuais manifestantes, dos quais muitos expressam certo “nojo” pela política (sobretudo devido aos partidos), para o fato de que, embora aquela árdua luta pela democratização, principalmente depois da Anistia, tenha se dado em um momento de transição da ditadura para o Estado de Direito, em vias de uma ruptura institucional, não se renegou o caminho necessário da política, com clareza dos objetivos e dos meios. No caso específico da Constituinte, o objetivo era participar do processo decisório, de forma organizada e com instrumentos adequados e eficazes, para não dar uma carta branca para os legisladores. E isso foi feito, haja vista, entre outros, o capítulo avançado sobre direitos sociais. É evidente que as garantias desses direitos ainda são precárias, mas o passo decisivo foi dado e a luta continua. Democracia é processo, é conflito, é direito da maioria com respeito às minorias e à diversidade, é participação, é soberania popular no contexto das leis legitimamente elaboradas.

A mobilização de hoje quer, com toda a razão, tudo a que tem direito: transporte, saúde, educação, moradia, segurança… E é contra tudo que identifica como a política dos partidos, dos poderes constituídos, da corrupção “generalizada”. Mas é claro que esse povo nas ruas está fazendo política – o que é bom –, mas está perdendo o rumo e repudiando mediações políticas – o que é perigoso. Daí a necessidade imperiosa de refletirmos sobre aquilo com que nós, cientistas sociais e juristas, podemos contribuir.

Depois de dias de perplexidade, a presidenta Dilma saiu da defensiva e retomou a liderança política – o que é bom – e vem a público prometer reforma no sistema de representação e apresentar outras propostas ousadas e polêmicas – o que exige ampla discussão. A proposta inicial, de debater com a sociedade uma Assembleia Constituinte para um tema específico, é um contrassenso. O poder constituinte originário é soberano: pode tudo, a começar por revogar a Constituição vigente. A convocação de um plebiscito para aprovar tal “constituinte temática” fica, pois, comprometida. Perante as dificuldades jurídicas, o próprio governo logo indicou que esse não era um bom caminho. A reforma política é necessária e pode ser feita por mudanças na lei partidária e eleitoral. É saudável consultar a vontade do povo. Mas não é preciso mexer daquela forma na Constituição.  No entanto, não há dúvidas de que a presidenta abriu um caminho promissor para enfrentar duas questões cruciais neste momento de crise: a reforma política, sempre chamada de “a mãe das reformas” e nunca decidida; e o recurso aos instrumentos constitucionais para a participação direta do povo, a começar pelas consultas populares. 

Quanto a isso, não será preciso inventar a roda. Já existe um considerável debate, na academia, no meio jurídico e parlamentar, sobre o tema. Já tivemos referendos nacionais e consultas locais. Vários projetos podem ser desengavetados no Congresso.   

Desde a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, iniciada pela OAB, em 2004, com apoio de várias entidades, estão atualmente em tramitação propostas que versam sobre mecanismos de democracia direta, não como “usurpação” do poder Legislativo, mas como aperfeiçoamento da democracia representativa. Entre essas destaco: 1. Emenda constitucional sobre referendo revocatório de mandatos eletivos ou recall (recentemente defendido pelo ex-ministro Rubens Ricupero) no Senado, no 73/2005; 2. Projeto de Lei sobre plebiscito, referendo e iniciativa popular, também no Senado, no 01/2006; 3. Proposta de emenda constitucional sobre revisão da Constituição, atualmente em deliberação no Conselho Federal da OAB. Aliás, o caminho mais útil para acelerar a decisão seria levar a voto o projeto de lei no 4.718 que está na Câmara por iniciativa da Comissão de Legislação Participativa, com o constante estímulo da deputada Luiza Erundina. Tal projeto, como o que está no Senado há menos tempo, objetiva tornar viável o recurso a consultas populares e à iniciativa legislativa, a fim de corrigir o enfoque extremamente rígido da regulamentação de 1997, que mais bloqueia do que incentiva a participação popular.    

O povo não se acomodou deitado no “berço esplêndido” e se levantou, como em vários outros momentos de nossa história. Aos 70 anos – idade da “juventude acumulada” – participei de quase todos. Estou convencida de que essa mobilização de hoje, por mais heterogênea que seja, pode favorecer o exercício da cidadania ativa democrática, assim como alcançar respostas positivas dos governantes. Mas pode também abrir caminho para saídas autoritárias e elitistas.

Fora da política não há salvação. Só a violência.


*Socióloga e professora titular da USP

Mais um manifesto anarquista

Cena Cavalaria da PM ocupa parte da Avenida Paulista, São Paulo, no dia 11 de junho
Cena Cavalaria da PM ocupa parte da Avenida Paulista, São Paulo, no dia 11 de junho. Foto: Camila Picolo

Por Antonio Bivar*

Já que aqui se importa tudo, sou a favor da importação de médicos. O convívio com colegas de profissão locais será produtivo. Sou também a favor de importar políticos que deram certo lá fora para exercerem cargos de escol em Brasília. Tipo “senador honorário”. Importaria Tony Blair (agora que virou católico) e Bill Clinton, que curte uma pelada. No País do Futebol, não seria uma boa jogada?

É que sou anarquista por natureza desde antes do punk. Só sei que não dá mais para ficar em cima do muro – corre-se o risco de levar bala e bomba. Qualquer descuido pode ser fatal. E já que está na ordem do dia mudar tudo, que as mudanças comecem de baixo e não de cima. Eu, no meu direito de cidadão, e já que moro num subúrbio e faço uso do transporte coletivo, reivindico melhoria radical no asfalto e corredores para ônibus. Tenho levado mais de duas horas para ir ao centro e outro tanto ou mais, na volta pra casa. Os ônibus são verdadeiras máquinas de tortura nazista. E para que tanta catraca, se depois de subir os íngremes degraus o usuário já quica o passe?! Estou falando dos ônibus em São Paulo, já que os do Rio são mais racionais – não têm degraus, são planos e com ar condicionado. Não sei quem bolou os ônibus paulistanos. São mal ajambrados, assentos apertados, desconfortabilíssimos. O metrô, por outro lado, ainda que superlotado, é muito bom. Mesmo o usuário viajando feito sardinha enlatada, a viagem flui bem, é rápida e logo você pode suspirar aliviado ao descer na sua estação.

Como também sou pedestre, outra coisa que incomoda é constatar a crescente demografia de moradores de rua, os sem-teto. Além de ser uma coisa muito triste, é anti-higiênica. Não existem WCs para tanta gente. Conversei com uma miserável, até muito bem informada, e ela me mostrou a pele toda carcomida por ácaros e outras bactérias que atacam os moradores das ruas do Centro e, por tabela, os transeuntes que passam perto. Disso parece que as autoridades nem tomam conhecimento. Por mais que uns e outros da brigada pão & circo promovam novos locais de arte e lazer bonitinhos, no geral o que se vê é uma concentração de gente mal protegida por caixotes de papelão. O Centro da capital é a coisa mais abandonada da baixa América. Por isso, viva aos manifestantes.

É preciso mudar tudo e começar de baixo, desde o preço das passagens. Governador, prefeito e políticos em geral já viajaram nos coletivos. Sim, uma vez e outra, durante a campanha, para dar a impressão de que são gente como a gente, mas garanto que nessas viagens de marketing fizeram vista grossa e bunda leve para o desconforto do povo em geral.

 


*Escritor e dramaturgo

A primeira greve selvagem metropolitana no Brasil maior

açao e reação Polícia paulista reprimiu os primeiros quatro atos, usando spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha
açao e reação Polícia paulista reprimiu os primeiros quatro atos, usando spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha. Foto: Luzia Sigulem

Por Giussepe Cocco*

Na edição de maio do Le Monde Diplomatique(1), escrevemos que “não existe amor no Brasil Maior” e explicitamos: “O ‘amor’ só existe na prática das lutas e da democracia, ou seja, na organização autônoma do conflito (e não da harmonia). Somente homens livres constituem a paz, e a ‘causa mais livre é aquela interna’, imanente às lutas por uma cidadania total”. Falamos também que “na crise da representação e da política, o único horizonte que interessa é o da mobilização radicalmente democrática, por difícil e enigmática que seja hoje essa equação”. Em maio, quando foi publicado, o artigo parecia conter posições totalmente destoantes do consenso que vigorava em torno do projeto de construir um Brasil Maior, ou seja, um país rico e sem pobres, povoado por uma “nova” e gigantesca classe média consumidora de carros.

Em São Paulo, o “amor” tinha sido decretado e um jovem prefeito encarnava o “novo”. A política de patrocínio cultural já tinha seus circuitos e os jovens nas “viradas”. De repente, tudo veio a baixo. Passadas as eleições municipais, os prefeitos de direita e de esquerda do todo o País aplicavam os aumentos de tarifas. Em Natal, o protesto foi massivo e violento. As passeatas em São Paulo e no Rio pareciam destinadas a marcar ritualmente as mobilizações que o Movimento pelo Passe Livre promovia – com justa determinação – há anos.

A polícia paulista reprimiu com a truculência costumeira. O resultado foi um incêndio generalizado, que ainda continua e se propaga. O protesto contra os 20 centavos se constituiu em um Kayrós formidável da primeira grande greve selvagem das metrópoles brasileiras. A questão da mobilidade urbana agregou a multiplicidade de lutas que resistiam ao rolo compressor do Brasil Maior.

Depois da crise do capitalismo global e do aprofundamento da crise da representação, o PT e o governo Lula/Dilma passaram a acreditar de maneira cada vez mais autorreferencial em suas propagandas eleitorais e nas pesquisas de opinião. A grande novidade no Brasil era a “nova classe média” e para ela é preciso subsidiar os Global Players nacionais (aquela que seria a grande indústria nacional) e multiplicar megaobras (barragens, centrais e submarinos nucleares) e megaeventos: o Brasil Maior teria, assim, não apenas uma base social (a classe média), mas também a reciclagem de um modelo, o nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de “neo”. Enfim, para os jovens inquietos, o circuito do “amor” e para os outros, o cassetete das PMs: é o que foi reservado para os favelados removidos, os camelôs reprimidos, os índios do Xingu, os quilombolas e para todos aqueles que ousassem contestar o processo de gentrificação das cidades.

O que o movimento hoje afirma, de maneira que ninguém pode evitar de ver, é que no capitalismo contemporâneo, além de não haver capital nacional (a não ser o falido Império Eike Batista, que hoje se constitui na maior bomba a efeito retardado da crise), não há classe média coisa nenhuma. A mobilidade social proporcionada pelo governo Lula/Dilma diz respeito à mobilização de outro tipo de trabalho, um trabalho que acontece nas metrópoles e para o qual a “cidade”, os serviços e suas qualidades são não apenas fundamentais, mas seu terreno de luta e organização.

Lula organizava as greves selvagens dos metalúrgicos e hoje as greves selvagens do trabalho imaterial acontecem nas metrópoles. Com a diferença que, na era do novo sindicalismo, havia uma relação entre composição técnica da classe (o operariado massificado das grandes plantas de produção fordista) e suas formas de recomposição política. Embora o PT – inicialmente – tenha sido uma inovação da forma de partido, no sentido de conter uma dose muito maior de pluralismo do que os tradicionais partidos socialistas e/ou comunistas, ele foi se organizando em torno de uma organicidade e de uma liderança bem definidas (o próprio Lula).

Não significa o “fim” dos partidos. A crise diz que a verticalidade e as instituições só fazem sentido quando têm relação viva com a fonte horizontal

Hoje, a greve metropolitana se auto-organiza e deve sua potência à ausência de organicidade e liderança. O que não significa que não tenha linha, muito pelo contrário. O PT, e a esquerda de governo que lhe está atrelada, não entenderam essa transformação não somente porque puxaram o pragmatismo até o oportunismo do aparelho, mas porque o que sobra de “esquerda” (sobretudo com a Dilma) é uma visão teleológica do progresso e a crença que a política se faz a partir do Estado: não produzir outros valores, mas gerir mais rapidamente e mais racionalmente (de olho nas planilhas dos custos) a mesmíssima linha de progresso, as mesmas barragens, os mesmos consumos, os mesmos valores da direita.

Quem se opõe é um obstáculo, eventualmente arcaico, eventualmente a ser cooptado ou, cada vez mais, a ser reprimido. A esquerda de oposição errou (e o episódio das bandeiras lhe mostrou que ela não está fora da crise da representação) porque pensa que a oposição a esse desenho, a esse pragmatismo oportunista viria de fora, da manutenção de um ideal e, pois, de uma crítica negativa e fundamentalmente moralista desse modo de governar.

O levante da multidão metropolitana nos mostra de maneira generalizada o que os índios, os operários das barragens, os professores e estudantes do Reuni já tinham antecipado: a luta e a revolta vêm de dentro desses deslocamentos. Dentro e contra o Brasil Maior, havia um sem-número de brasis menores (indígenas, favelados, negros, estudantes, mulheres, queers, LBGT) e hoje eles estão aí: um MundoBraz(2), um devir-mundo do Brasil e um devir-Brasil do mundo que explicitam na potência das redes e ruas a transmutação de todos os valores.

É nesse horizonte potente dos possíveis que é preciso ver que a crise da representação não apenas chegou ao Brasil, mas atravessa as esquerdas. Essa crise não significa o “fim” dos partidos e tampouco a extinção de todo o tipo de verticalidade e instituição. Ela apenas diz – e isso já é muito – que a verticalidade e as instituições só fazem sentido quando elas têm uma relação viva com sua fonte horizontal, constituintes.

 


(1) http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1413
(2) Giuseppe Cocco, Mundobraz, Record, 2009

*Professor da UFRJ e autor de MundoBraz (Record, 2009) e coautor de GlobAL (Record, 2005), com Antonio Negri

Por que o Brasil e agora?

Por Juan Arias*

Está gerando perplexidade, dentro e fora do País, a crise repentina que eclodiu no Brasil com o surgimento de manifestações de rua, primeiro em cidades ricas, como São Paulo e Rio, estendendo-se por todo o País e envolvendo brasileiros no exterior.

No momento há mais perguntas para se entender o que está ocorrendo do que respostas. Há apenas um consenso de que o Brasil, até agora invejado internacionalmente, vive uma espécie de esquizofrenia ou paradoxo que ainda precisa ser analisado e explicado.

Iniciemos com as perguntas:

Por que surge agora um movimento de protesto como os que vêm ocorrendo em outros países do mundo, quando durante dez anos o Brasil viveu anestesiado pelo seu sucesso compartilhado e aplaudido mundialmente? O Brasil está pior hoje do que há dez anos? Não, está melhor. Pelo menos está mais rico, tem menos pobres e aumenta o número de milionários. Está mais democrático e menos desigual.

Como se explica, então, que a presidenta Dilma Rousseff, com um consenso popular de 75% – recorde que chegou a superar o do popular Luiz Inácio Lula da Silva –, foi vaiada repetidamente na abertura da Copa das Confederações em Brasília por 80 mil torcedores da classe média que puderam dar-se ao luxo de pagar até US$ 400 o ingresso?

Por que saem para a rua para protestar contra o aumento de preços dos transportes jovens que não usam esses meios de transporte porque têm carro, algo impensável há dez anos?

Por que protestam estudantes vindos de famílias que até há pouco não teriam sonhado em ver seus filhos pisarem em uma universidade?

Por que a classe C aplaude os manifestantes, essa classe C que veio da pobreza e que pela primeira vez em sua vida conseguiu comprar uma geladeira, uma TV e até um carro usado?

Por que o Brasil, sempre orgulhoso do seu futebol, parece estar agora contra o Mundial, chegando a empanar a abertura da Copa das Confederações com uma manifestação que resultou em feridos, detenções e medo nos torcedores que chegavam ao estádio?

Por que esses protestos, em alguns casos violentos, em um país invejado até pela Europa e Estados Unidos pelo seu quase desemprego zero?

Por que se protesta nas favelas onde os habitantes viram sua renda duplicada e recuperaram a paz que lhes fora roubada pelo narcotráfico?

Por que, de repente, levantaram-se em pé de guerra os indígenas que já têm 13% do território nacional?

Os brasileiros são mal agradecidos àqueles que melhoraram sua vida?

A resposta a essas perguntas que deixam muita gente, a começar pelos políticos, perplexa e assombrada, poderia se resumir em poucas questões: em primeiro lugar, pode-se dizer que, paradoxalmente, a culpa é de quem deu aos pobres um mínimo de dignidade: uma renda não miserável, a possibilidade de ter uma conta em um banco e acesso ao crédito para poder comprar o que sempre foi um sonho para eles.

Talvez o paradoxo se deva a isso: ter colocado os filhos dos pobres na escola, da qual não desfrutaram seus pais e avós; ter permitido aos jovens, brancos, negros, indígenas, pobres ou não, ingressar na universidade; ter dado a todos acesso gratuito à saúde; ter libertado os brasileiros do antigo complexo de culpa de “cachorros de rua”; ao ter conseguido tudo aquilo que converteu o Brasil em apenas 20 anos em um país quase do primeiro mundo.

Querem o impossível? Não. os brasileiros insatisfeitos com o já alcançado querem que os serviços públicos sejam como os do primeiro mundo

Os pobres que chegaram à nova classe média conscientizaram-se de que deram um salto qualitativo na esfera do consumo e agora querem mais. Querem serviços públicos de primeiro mundo, que não há; querem uma escola que ofereça um ensino de boa qualidade, que não existe; querem uma universidade moderna, viva, que os prepare para o trabalho futuro. Querem hospitais com dignidade, sem meses de espera, sem filas desumanas.

E querem tudo o que ainda lhes falta politicamente: uma democracia mais madura, em que a polícia não continue agindo como na ditadura; querem partidos que não sejam, na expressão de Lula, um “negócio” para enriquecer; querem uma democracia onde exista uma oposição capaz de vigiar o poder.

Querem políticos menos corruptos; querem menos desperdício em obras que consideram inúteis quando ainda faltam casas para oito milhões de famílias; querem uma justiça com menos impunidade; querem uma sociedade menos abismal nas suas diferenças sociais. Querem ver na prisão os políticos corruptos.

Querem o impossível? Não. Ao contrário dos movimentos de 1968, que queriam mudar o mundo, os brasileiros insatisfeitos com o já alcançado querem que os serviços públicos sejam como os do primeiro mundo. Querem um Brasil melhor. Nada mais.

Escutei alguns afirmarem: “Mas o que mais quer essa gente?”. A pergunta me lembra a de algumas famílias onde, depois de darem tudo aos filhos, segundo elas, eles se rebelam.

Os pais esquecem às vezes que faltou algo que, para o jovem, é essencial: atenção, preocupação pelo que ele deseja e não pelo que às vezes lhe é oferecido. Necessitam não apenas ser ajudados e protegidos, conduzidos pela mão, querem aprender a ser eles próprios os protagonistas.

E aos jovens brasileiros, que cresceram e tomaram consciência não só do que já têm, mas do que ainda podem alcançar, está faltando justamente isso: que os deixem ser mais protagonistas da sua própria história, ainda mais quando demonstram ser tremendamente criativos.

Que o façam, isso sim, sem mais violência, pois violência já sobra nesse maravilhoso País que sempre preferiu a paz à guerra. E que não se deixem cooptar por políticos que tentarão se envolver no seu protesto para esvaziá-lo de conteúdo.

Podia-se ler em um cartaz, ontem: “País mudo é um país que não muda”. E outro, dirigido à polícia: “Não disparem contra meus sonhos”.

Alguém pode negar a um jovem o direito de sonhar?

 


Este texto foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 19/6/2013

*Jornalista correspondente do jornal espanhol El País, escritor e autor do blog Vientos de Brasil

Nas ruas

Largo da Batata. Foto: Camila Picolo
Largo da Batata. Foto: Camila Picolo

Por Lincoln Secco*

As manifestações que se sucederam no Brasil deixaram todos perplexos. Alguns falaram em revolução, outros em golpe, alguns em civismo. E há até aqueles que culparam o Movimento Passe Livre.

O primeiro aspecto a ser considerado é sua diversidade regional. É possível que, no futuro, pesquisas mostrem uma variedade social maior no Rio de Janeiro, a presença do tema da Copa do Mundo mais fortemente no Nordeste e a pauta tipicamente de direita com mais força em São Paulo. Embora tudo isso esteja em todos os lugares em combinações diferentes.

O segundo aspecto a considerar é a conjuntura internacional. Não parece coincidência que os levantes brasileiros se deem depois das rebeliões que ocorreram no mundo árabe e no sul da Europa, nem que ambas tivessem uma direção fragmentária e pautas apressadas que fizeram o movimento perder ímpeto e não conseguir mudar a lógica eleitoral subsequente. É possível que no Brasil se dê a mesma coisa?

O terceiro aspecto é a composição social dos manifestantes. Pelo menos até o fim de junho, tratou-se de uma rebelião da classe média com a participação um pouco maior de pobres em poucas regiões do País. Lembremos que cidades pequenas e estados de diferentes indicadores sociais tiveram manifestações e elas não foram homogêneas. Apesar disso, as grandes manifestações nas capitais foram de jovens com ensino superior.

Ora, o crescimento do número de alunos de universidades no Brasil deve ter tido algum impacto no movimento de 2013. O Brasil tem 6,5 milhões de universitários, segundo o Ministério da Educação (MEC). Houve um avanço de 110% em relação ao total de matrículas em cursos de graduação registrado em 2001! Segundo a Folha de S. Paulo, 84% dos manifestantes do dia 17 de junho não tinham preferência partidária, 71% participaram pela primeira vez de um protesto e 53% têm menos de 25 anos. Os estudantes eram 22% entre os manifestantes e pessoas com ensino superior, 77%.

A composição social determina a agenda do movimento? A classe média é uma classe em trânsito. Como em um ônibus, alguns querem entrar. Mas diferentemente de um ônibus lotado, muitos têm medo de descer. Só uma pequena parcela acredita mesmo que vai ascender rapidamente à classe superior. Ora, uma classe em trânsito é uma classe em transe. Ela é capaz de unir programas opostos em um mesmo movimento. Ela pode oscilar para a esquerda e a direita. Nas manifestações de 2013, é possível que estivessem jovens da classe média tradicional com medo de descer e jovens resultantes das melhorias sociais e econômicas induzidas pelo governo Lula. Esses querem “entrar no ônibus” porque suas expectativas subiram mais do que sua condição social.

O fato de que a direita midiática tenha conseguido por algum tempo sequestrar um movimento que também tinha potencialidade de esquerda comprova que, apesar de a maioria dos jovens manifestantes usarem a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação. A comunicação em rede já estava propagada desde o século 19, quando Karl Marx criou seu círculo de correspondência europeu. Mas, antes, ela se dava de maneira escrita ou falada e só as pessoas mais inclinadas a se politizar atendiam a esses apelos. O impresso era a forma de mediação. A internet é um espaço de interação entre indivíduos, mediada pelo mercado de consumo. E os desejos de consumo de produtos ou ideias são induzidos pela propaganda dos monopólios.

É preciso dizer que os militantes da esquerda no Brasil são, basicamente, de classe média. Assim como a direita. Essa condição de classe orienta as direções de toda a esquerda a buscar no movimento de junho suas contradições para disputá-lo. É natural que a esquerda acredite que ali está seu celeiro de novos membros. Ocorre que, do ponto de vista político, um movimento fragmentário pode ter várias direções e leituras. Mas do ponto de vista do teatro de operações, ou nesse caso das ruas, só há dois lados. Se a direita (que está nas alturas da grande imprensa) conseguiu sequestrar o movimento, qual caminho restou à esquerda? Não seria mais ali a disputa e, sim, no lugar em que o governo liderado pelo PT até agora não quis travá-la: o da democratização dos meios de comunicação de massa.


*Professor do Departamento de História da na Universidade de São Paulo (USP)

A rebelião das massas

Manifestantes ocupadam a fachada no Congresso em manifestação de 2013. FOTO: Mídia Ninja

*Almir Pazzianotto Pinto

Tomo de empréstimo a Ortega y Gasset o título do artigo. Estamos, de fato, perante surpreendente, mas inevitável rebelião das massas, sofridas, abandonadas, pisadas por sucessivos governos, não importa de que partido político.

Não se trata de puro vandalismo, conquanto vândalos se aproveitem de situações caóticas para extravasar instintos anárquicos e destruidores. O que se percebe é a repentina e incontrolável erupção vulcânica, que faz aflorar o sentimento cívico de jovens estudantes ou pacíficos trabalhadores e servidores públicos, supostamente indiferentes e apáticos perante a corrupção.

O povo ocupou ruas e avenidas porque se convenceu de que não dispõe de canais de comunicação válidos e confiáveis com autoridades municipais, estaduais ou federais, pertençam elas ao Executivo, Legislativo, Judiciário. Deu-se conta de que, apesar de existirem 30 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral, não existem partidos e políticos que o represente e defenda com empenho, coragem, honestidade. Do PMDB, registrado sob o no 1, ao Partido Ecológico Nacional – PEN, cujo número de registro é 30, passando por PTB, PDT, PT, DEM, PCdoB, PSB, PSDB, PP, PSD e todos os demais, são meras siglas sem posição ideológica, que se digladiam para a conquista do poder pelo poder, ou na busca de ministérios, cargos, estatais, sociedades de economia mista.

Desamparado, ao povo restou sair às ruas, enfrentar cassetetes, gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral e balas de borracha, deixando vir à tona a indignação de que está possuído, perante a ininterrupta onda de impunidade. Não por acaso, entre os cartazes exibidos pelos manifestantes, muitos cobram condenações efetivas para os réus do “mensalão”, pelo temor de que o Supremo engate marcha a ré e os absolva.

O encarecimento do bilhete único foi apenas o estopim de revolta que tardou acontecer. Estopim porque, entre todos os serviços públicos, em São Paulo e nas grandes capitais, o transporte coletivo é seguramente o pior. Não se trata de saber se o município subsidia ou não, se o valor cobrado é razoável, qual a porcentagem de aumento. O que há, entre os usuários, é a sensação de serem tratados como gado, e de que todas as promessas feitas, em repetidas campanhas, jamais serão cumpridas.

Se o aumento do bilhete único foi o estopim, a construção de fantásticos estádios para a Copa do Mundo, com dinheiro surrupiado dos contribuintes, forneceu a pólvora. Embora tivessem garantido, quando o Brasil foi escolhido como sede do campeonato, que tudo seria feito com recursos da iniciativa privada, o que se sabe é coisa radicalmente distinta, conforme dados publicados constantemente pela imprensa. Habituado a denúncias de superfaturamento e favorecimento, as obras da Copa do Mundo, de acordo com os números conhecidos, ultrapassaram todos os limites, e provocam a justa ira da população espoliada, como se viu em Brasília, no Estádio Mané Garrincha, quando a presidenta Dilma e o cartola multinacional Joseph Blatter foram estrepitosamente vaiados.

Entender as origens da rebelião não é tarefa difícil. Basta olhar a fisionomia dos participantes, na esmagadora maioria jovens sob a liderança de outros jovens, e conhecer minimamente a realidade.

O encarecimento do bilhete único foi só o estopim da revolta, que tardou a acontecer. Entre os serviços públicos, o transporte coletivo é o pior

As surpresas correm à conta do comportamento das autoridades. Nenhuma se mostrou à altura dos acontecimentos, deu demonstrações de haver entendido a gravidade do que se passava, ou competência para não perder o controle da situação. A participação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo (PT), foi patética e reveladora do espírito oportunista de S. Ex.a. Procurou lançar a culpa sobre o governo do Estado, esquecido de que parte considerável do transporte público é de responsabilidade do prefeito Fernando Haddad, do PT, autor, por sinal, do aumento de 20 centavos.

O velho PMDB, de Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Freitas Nobre, Nelson Carneiro, Orestes Quércia, Pedro Simon e o PT representavam, na década de 1980, as esperanças de mudanças, após a derrota do regime militar. Hoje, inexistem, ou melhor, se divorciaram das raízes, confundem-se com os demais e não conseguem se comunicar com o povo. Descontados os excessos inevitáveis quando as lideranças estão divididas e diluídas no interior da massa, é indispensável reconhecer a importância das manifestações. O sucesso alcançado perderá sentido, entretanto, se for apenas passageiro. A partir de agora cabe aos jovens manifestantes a responsabilidade de se integrarem efetivamente na vida política, com o propósito de revitalizar os partidos, desalojar ultrapassados dirigentes e influir no resultado das próximas eleições. Se conseguirem, todos os sacrifícios serão válidos, e o Brasil brevemente se transformará no país desejado pelo povo.

 


*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho