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A civilização em disputa

Imagens criadas por Inteligência Artificial usadas nas redes sociais para divulgar a manifestação realizada em fevereiro de 2024 na Avenida Paulista em apoio a Bolsonaro: mescla perigosa e passadista de conservadorismo, fé e patriotismo

O historiador e professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, João Cezar de Castro Rocha, dedicou-se a examinar o discurso da extrema direita na tentativa de compreender as razões do movimento, suas estratégias e os caminhos que levaram à radicalização, em todo o mundo e particularmente no Brasil. País que, segundo ele, seria “um laboratório mundial de criação metódica da realidade paralela”. Sintetizada em livros como Guerra Cultural e Retórica do Ódio, de 2021, e Bolsonarismo: da Guerra Cultural ao Terrorismo Doméstico, de 2023, sua análise trata o discurso radicalizado como um processo narrativo e sugere caminhos de interpretação e enfrentamento por meio do diálogo e do afeto. Em entrevista à arte!brasileiros, ele fala sobre as origens e desdobramentos do uso da retórica do ódio, que combina negação absoluta da diversidade, caos cognitivo e criação de uma midiosfera perversa, fortalecendo um discurso autoritário e teocrático de poder.

arte!✱ – A Guerra Cultural é uma das marcas da nossa história recente. Como você define o fenômeno?

João Cezar de Castro Rocha – Vamos pensar juntos. A guerra cultural é uma ponta de lança da extrema direita transnacional e é um movimento muito bem articulado. A ideia central é que, para realmente chegar ao poder, é preciso fazê-lo através da conquista de corações e mentes. Ou seja, através da cultura. Daí a extrema direita no mundo inteiro tem como alvos preferenciais a imprensa livre, a arte e a universidade: instâncias críticas de reflexão sobre a realidade. É uma espécie de leitura enviesada, perversa, do conceito de hegemonia do Antonio Gramsci. Em 1992, Pat Buchanan (que se candidatou às primárias presidenciais do Partido Republicano) surpreendeu o mundo ao dizer em seu discurso que aquela não era uma eleição como as outras: “We are fighting for the soul of America”, diz ele literalmente. A comparação aqui seria com a fala de Michelle Bolsonaro na manifestação de 25 de fevereiro último, na Paulista.

arte! – Eles repetem isso o tempo todo, buscando alimentar essa sensação de novidade, pressão e guerra, para que não abaixem a guarda.

O tempo todo. É uma guerra pela cultura. E isso tem consequências tremendas. Porque, se é uma guerra, nós não estamos lidando com o outro, o diferente, o diverso. Estamos lidando com o inimigo. Numa guerra, só há uma forma de lidar com o inimigo. Eliminá-lo.

arte!✱ – E como nós, vistos como inimigo, podemos combater esse ataque? Qual é o seu método?

Em primeiro lugar, temos que ter consciência de que essa guerra está em curso. Isso é importante porque, por vezes, tudo parece tão delirante, tão afastado da realidade, que nossa tendência é não prestar atenção nos discursos articulados. Aqui, eu creio, entra a minha colaboração. Tenho agora discutido muito a Teologia do Domínio. Não sou teólogo, há muitas pessoas no Brasil que conhece o assunto duzentas vezes mais do que eu. A contribuição que eu tento dar é analisar cuidadosamente o discurso e a tradução do projeto por trás daquele discurso. Trabalho os textos minuciosamente, lendo duas, três, cinco vezes, passo às vezes anos pensando, procurando elos que não são visíveis no primeiro momento.

arte!✱ – Seria quase uma análise literária do fenômeno?

O que eu tento fazer é analisar cuidadosamente os discursos e, como eu tenho uma formação de historiador, procuro sempre contextualizá-los no longo prazo, numa longa duração. A guerra cultural, num primeiro momento, é uma reação à contracultura nos Estados Unidos e também na Europa. Na França, por exemplo, é uma reação a maio de 68. Nos Estados Unidos, ao movimento hippie, mas também aos Panteras Negras. A contracultura, como movimento, acabou sendo assimilada pelo próprio capitalismo que contestava. Mas a contracultura como atitude, afetava a base do sistema capitalista. Abria mão da propriedade privada em todos os níveis, especialmente nas relações pessoais; a contracultura considerava como valor máximo a experiência e não a posse, e não a riqueza. Riqueza significava uma experiência rica e não conta de banco. Ela propunha também uma transformação radical nas relações interpessoais, a maneira como mulher se relacionava com o marido, etc. E a contracultura foi identificada na guerra cultural sobretudo à escola de Frankfurt. E isso tem uma razão concreta: na Segunda Guerra foram para os Estados Unidos os mais importantes pensadores da Escola de Frankfurt: Adorno, Horkheimer, Lowenthal, Herbert Marcuse. Se os primeiros voltaram para a Alemanha, Marcuse ficou na California, na Universidade de San Diego. Você sabe quem ele teve como aluna? Angela Davis! Marcuse escreveu obras que foram absolutamente icônicas e fundamentais para o movimento de 68. De novo, o que eu tento fazer é estabelecer esses elos que são quase narrativos, quase uma forma literária de abordar a questão. Steve Bannon tem um documentário, Generation Zero, que discute a bolha financeira, a crise imobiliária. Você sabe de quem é, para ele, a culpa da crise de 2008?

É da Escola de Frankfurt! Por que essa obsessão? Porque Marcuse, no final dos anos 60 era o inspirador da contracultura, o guru da juventude norte-americana, da juventude em Paris. A guerra cultural parte do princípio de que o que está em jogo, de fato, é uma batalha pela definição da civilização. E há aqui um abraço completo: o que se defende é a civilização greco-romana-judaico-cristã, entenda isso como quiser.

arte!✱ – Branca, masculina, que não questiona a escravidão, o capitalismo, o colonialismo, ou seja, tudo que é preciso questionar não se pode.

Isso. Como disse Machado de Assis, “é mais fácil apreciar o chicote quando se tem se tem o cabo na mão”. Quando ele é empunhado, não quando é recebido nas costas. Mas lembremos que guerra cultural é anterior a expansão do universo digital, através da onipresença quotidiana das redes sociais. Agora, a extrema direita é o grande fenômeno político das duas primeiras décadas do século XXI. E é muito importante reconhecer aqui que a extrema direita chega ao poder, pelo menos pela primeira vez, por meio de eleições livres e democráticas. Bolsonaro venceu as eleições em 2018; em 2016, Trump não ganhou no voto popular, mas venceu no Colégio Eleitoral norte-americano; Viktor Orbán, que era de esquerda na sua juventude – imagina isso – também venceu a primeira eleição na Hungria; Javier Milei obteve 55% dos votos na eleição argentina… O que acontece? A extrema direita compreendeu muito antes do campo progressista o potencial inédito das redes sociais. E esse potencial é a produção de caos cognitivo. Caos cognitivo pelo excesso de informação, não pela sua ausência. E as redes sociais, em relação à questão do tempo, produzem algo que se nós não compreendermos, não seremos capazes de enfrentar.

arte!✱ – É como combater uma hidra, da qual você corta uma cabeça e logo nascem mais três?

Você sabe que eu tenho revisitado o Édipo Rei, do Sófocles. Tenho relido muitos clássicos para pensar a situação contemporânea. Édipo decifra a esfinge. Essa é a referência que sempre fazemos, não é? Mas mesmo decifrada a esfinge, o final do Édipo não é feliz. Não basta decifrar a esfinge, ao contrário do que nós pensamos. A hipótese realmente nova que proponho é a seguinte: isso que nós chamamos de humano, como uma forma de operação de tempo e espaço, não existe sem defasagem temporal. O que caracteriza o humano é a necessidade de uma defasagem temporal entre os seguintes atos: uma ação, a sua transmissão, a sua recepção e a sua posterior interpretação. O que as redes sociais estabelecem realmente de inédito na história da comunicação humana é a promessa de uma impossível simultaneidade. Veja, nas redes sociais, um ato, uma ação, antes de ser concluída, já é transmitida; sendo transmitida, ela já é recepcionada; e muitas vezes a interpretação da ação que ainda não foi concluída impacta o curso da própria ação. Esse eixo de simultaneidade produz um colapso hermenêutico. E veja, não existe a menor possibilidade da experiência estética sem a contemplação. Mas a contemplação é uma forma de retardar o tempo. Quantas vezes, diante de um conto, de um poema, de um quadro, de uma sinfonia, de um balé você tem a impressão de que desliga, fecha os olhos. Você precisa de tempo, não é verdade? Porque aquilo que chamamos de hermenêutica é a ideia fundamental de que entre nós, no presente, e a linguagem do passado – embora seja a mesma – abriu-se um buraco. Não existe mais comunicação imediata, o tempo passou, a defasagem temporal é o que nos faz humanos. O mundo está cada vez mais desumano? Sim, porque nessa vertigem de um tempo simultâneo entre ação-transmissão-recepção-interpretação-impacto, a extrema direita nada de braçada.

arte!✱ – O autoritarismo segue uma lógica de aceitação ou negação pura e simples. É maniqueísmo puro.

Isso, o maniqueísmo é a pura verticalidade, não tem nuance. Não tem defasagem temporal. Tudo é aqui, agora, já.

arte!✱ – Você chegou a ver as artes produzidas por inteligência artificial para divulgar a manifestação do dia 25 de fevereiro na Paulista? Foram criadas a partir de um comando básico. O poder do homem branco e do poder divino sobre essa multidão.

Eu vi. Isso foi inteligência artificial?! É Inacreditável! De fato, praticamente só há pessoas brancas. Impressionante. Olha que loucura, que me dei conta agora. Há dois sinais de trânsito fechados, antes do senhor, e depois todos estão abertos, com o horizonte ao fundo.

arte!✱ – Você indica em seus livros que depois da pandemia a guerra cultural já não é a grande e única arma da extrema direita. Poderia explicar?

João Cezar de Castro Rocha – No princípio, a guerra cultural foi a mais poderosa máquina eleitoral do século XXI. No momento em que o campo progressista ainda não compreendia a engrenagem das redes sociais, a extrema direita produziu o caos cognitivo, inicialmente a partir do negacionismo climático. E depois do revisionismo histórico. Na presença do caos cognitivo só há uma resposta possível: é o puro afeto. Então a guerra cultural permite, paradoxalmente, despolitizar a pólis pela hiper politização do cotidiano. O resultado concreto que ninguém mais discute projetos de pólis. Daí a importância da pauta de costumes, muito favorável para a criação de pânico social. As pessoas presas à pauta de costumes não tratam da redistribuição de renda, da desigualdade, da utopia de um mundo mais justo. Não! Na pauta de costumes é assim: “amanhã, a sua filha na escola vai entrar no banheiro e vai ter um homem”, “amanhã, o seu filho vai receber uma aula de ideologia de gênero etc.

Imagem criada por Inteligência Artificial usada nas redes sociais para divulgar a manifestação realizada em fevereiro de 2024 na Avenida Paulista em apoio a Bolsonaro: mescla perigosa e passadista de conservadorismo, fé e patriotismo

 

arte!✱ – Isso relembra o discurso fake da Damares sobre as crianças vítimas de pedofilia de Marajó, por exemplo.

Já que você falou da Damares, veja esse exemplo de dissonância cognitiva coletiva. Em 2013, a Damares Alves – não tenho nenhuma dificuldade de reconhecer que Damares é muito carismática e adorada em certas comunidades evangélicas –viajou o país inteiro como assessora da Frente Parlamentar Evangélica para denunciar a existência do “kit gay”, que nunca existiu. Em 2018, Bolsonaro lança mão dessa denuncia e é como se ele passasse a existir. Em outras palavras, quando uma dissonância cognitiva é tornada coletiva e milhões de pessoas a abraçam, ela se torna real. É como diz Freud ao discutir o erro e a ilusão: o erro é o equívoco objetivo, a ilusão é um equívoco, mas é sobretudo a projeção de um desejo. Se eu projeto meu desejo e esse desejo é também projetado por 58 milhões de pessoas, ele deixa de ser equívoco e se torna realidade política objetiva. O “kit gay” que nunca houve passou a existir e foi importante na campanha de 2018. Todo meu trabalho consiste em tentar entender como é que, discursivamente, do ponto de vista retórico, a extrema direita consegue, em primeiro lugar, transformar o erro em ilusão. Isto é, capturar o desejo. Em segundo lugar, como consegue transformar a ilusão em ilusão coletiva. E como isso pode ser feito? Por meio das redes sociais.

arte!✱ – É quase um diagnóstico psiquiátrico, não? Podemos recorrer a vários autores que pensam os efeitos dessa modernidade para ajudar a refletir sobre esse caos cognitivo?

É, é uma questão psíquica muito difícil. Há muitos pensadores que atribuem à introdução de poderosos novos meios de comunicação transformações de caráter antropológico a longo prazo. Raymond Williams – importante crítico cultural britânico e um dos criadores do Cultural Studies – tem um livro pouquíssimo conhecido no Brasil, On Television. No início desse livro, ele fala algo muito impressionante. Segundo ele, as pessoas pensam que um novo meio de comunicação é apenas uma outra forma de armazenar e transmitir dados. Ele diz que não, que eles podem alterar profundamente a percepção da realidade. E que, portanto, têm consequências antropológicas imprevisíveis. Veja, você tem toda uma geração entre os dez e vinte anos, que passa de dez a 12 horas por dia com o celular nas mãos, você entra no metrô e as pessoas não se olham; você vai no restaurante e há casais que não conversam. Pela primeira vez na história da humanidade há um meio de comunicação que pode estar 24 horas por dia, sete dias por semana sendo usado. O livro não era assim, a televisão não era assim, o cinema nunca foi. Agentes sociais, no universo digital, têm uma capacidade extraordinária de nos manter reféns no seu interior. É a primeira vez que um meio de comunicação realiza isso. Nós precisamos começar a pensar nas consequências antropológicas desse fato. Uma consequência antropológica fundamental é que a arte e a literatura tornam-se absolutamente excepcionais, algo à parte, porque tanto a leitura literária quanto a contemplação estética dependem de uma outra fruição do tempo.

arte!✱ – Ou seja, também o desejo utópico de universalizar a arte é derrotado?

Completamente. Por exemplo, nessas duas imagens que você mostrou é uma espécie de retrocesso inacreditável a uma concepção ou beletrista de literatura ou academicista de arte. É curioso pensar até que ponto a extrema direita tem uma compreensão muito aguda dessa transformação e a utiliza. Porque, em boa medida, a guerra cultural da extrema direita é um braço avançado do neoliberalismo selvagem que vivemos hoje, neoliberalismo que enfrenta pela primeira vez de maneira concreta a necessidade de reconhecer que os recursos naturais não são ilimitados, como se acreditava.

arte!✱ – Vamos falar novamente de Brasil. Além desse tempero novo das redes sociais, temos outra especificidade que é esse eterno regresso à questão da ditadura militar e a força do neopentecostalismo. Você chega a ver um certo enfraquecimento da guerra cultural?

Isso é um pouco a hipótese básica do meu último livro. Desde a campanha, até o início de 2020, o governo Bolsonaro é o governo da guerra cultural. Isto é, uma máquina de produzir narrativas que, com base em “fake news” e teorias conspiratórias, inventa constantemente inimigos que devem ser eliminados. E isso mantém a militância permanentemente mobilizada. A guerra cultural é uma poderosa máquina eleitoral, porque é uma poderosa máquina narrativa de radicalizações: o bem e o mal, o justo e o ímpio etc. Me parece que, com a pandemia, algo de fundamental se quebrou. Porque, no princípio, a reação – tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, Trump e Bolsonaro – era de ou minimizar ou negar a pandemia. No Brasil, a Carla Zambelli teve a coragem de difundir uma “fake news” de que os caixões eram enterrados com pedras e não com corpos. E os bolsonaristas disputavam narrativas sobre a origem do vírus, sobre o número de mortos, sobre estatísticas, como se fosse apenas mais um meme. Acontece que houve um momento no mundo inteiro em que os mortos da covid deixaram de ser números. Eles passaram a ser rostos: o meu primo, um parente próximo, um amigo de infância. Os mortos deixaram de ser disputáveis enquanto objeto narrativo, porque passaram a nos afetar a todos. Quando isso acontece, a guerra cultural ela perde muito na sua vigência, porque não é possível transformar a vida em simples disputa narrativa, especialmente quando morre o seu pai, o seu irmão… Há limite para o caos cognitivo.

arte!✱ – De certa forma, estamos vendo a mesma coisa e na Palestina, não?

É isso! Há um limite para a disputa narrativa e o limite é aquilo que nos tornou humanos: a consciência da finitude. Porque a extrema direita é tão perversa, mas tão inteligentemente perversa, que viceja porque se apropria de duas características diferenciais da condição humana. Veja, se nós falamos de humano, nós necessariamente falamos em narrativa. Não existe um grupo humano contactado por antropólogos que não tenha uma forma especial de descrever um mundo, de descrever a si mesmo, a origem das coisas. É a narrativa como a essência mesmo do humano. Em segundo lugar, a finitude. Quer dizer, a consciência que nós temos de que somos, sim, seres para a morte. A extrema direita lança mão das duas coisas de maneira muito perversa. Na pandemia, a finitude falhou. A guerra cultural deixou de ser a disputa de narrativa e se transformou em forma de vida. Não basta disputar narrativas sobre o número de mortos, é preciso tomar kit cloroquina. Não basta a narrativa sobre caixões enterrados com pedras, é preciso usar máscara de maneira deliberadamente equivocada, na testa, no queixo e nunca nas vias respiratórias. A guerra cultural foi perdendo lugar para a vida.

arte!✱ – Pela própria radicalidade ela se supera?

Isso. Ela passa a ter caráter religioso.

arte!✱ – Chegamos aos adoradores de pneus…

E aos que buscam socorro nos alienígenas. Você lembra que eles colocavam o celular na horizontal sobre a cabeça? Você sabe por que? Porque, se estivesse na vertical como é que os alienígenas iam ler o pedido de SOS?! Dissonância cognitiva na veia. Aconteceu o mesmo nos Estados Unidos. O apoio agora é menos a adoração de um mito político e mais a veneração ao líder religioso. A revista The Economist publicou uma matéria no início do ano dizendo que a maioria dos apoiadores de Trump acredita que ele é escolhido de Deus.

arte!✱ – De certa forma isso aconteceu na manifestação da Paulista, inclusive com essa passagem de bastão de bolso de Jair Bolsonaro para Michelle Bolsonaro?

Sim. Uma coisa muito sintomática: muitos deputados e ex-ministros foram barrados. Não subiram no trio elétrico Mário Frias, Ricardo Salles, Júlia Zanatta, Carla Zambelli, Bia Kicis, Osmar Terra: todos os que são radicalmente bolsonaristas do ponto de vista da guerra cultural. Os que subiram tem uma associação mais forte com o neopentecostalismo, com a religião. A fala da Michelle Bolsonaro é flagrantemente inconstitucional, porque propõe a submissão do estado laico à religião. Se trata da submissão do estado e das políticas públicas à doutrina que ela defende. E você percebe que chega um momento em que a guerra cultural não dá mais conta, porque a categoria que ela trouxe para tratar disso é categoria do mal. O mal é uma questão fascinante, que está na origem de Crime e Castigo de Dostoiévski. É fundamental nos Irmãos Karamazov também. Como compreendê-lo na sua essência, na sua radicalidade? É uma questão filosófica, literária e teológica. O mal enquanto categoria não cabe na política. Porque a política é a arte na pólis de negociar diferenças. Trazer a categoria do mal para a política é negar a política radicalmente. É dizer que o que se deseja é um estado que tenha caráter teocrático e vocação fundamentalista. É a guerra cultural transformada finalmente em batalha espiritual. Não é uma ameaça pequena.

arte!✱ – E como fica a arte nessa batalha?

Ninguém sabe a resposta. O que eu tenho pensado é que nós precisamos de uma perspectiva dupla: a curto e a médio e a longo prazo. O que vou dizer agora não é compreendido por muitos, mas é a vida. Eu quero muito poder em breve dialogar com bolsonaristas numa mesa. De preferência, como dizia Deleuze, numa mesa redonda, que é a mesa própria da filosofia. A médio e longo prazo, a educação, a arte e a literatura serão incontornáveis. Mas a curto prazo, para que o médio e o longo prazo sejam possíveis, para que a perspectiva generosa tenha tempo se desenvolver, eu só vejo uma alternativa: o rigor da lei. Se não houver uma punição rigorosa para os articuladores do golpe, financiadores, policiais militares, generais que agiram por ação ou omissão, nós voltaremos ao eterno dilema da memória mal resolvida da ditadura militar de 1964. Isto é, como os militares nunca foram punidos porque impuseram uma chantagem para permitir a redemocratização, a anistia de agosto de 1979. Se isso se repetir agora, eles retornam muito mais fortes em 2026. Sem essa perspectiva rigorosa, o delírio da extrema direita bolsonarista não conhecerá o ponto fundamental para a sua superação, que é o choque de realidade! Os que estão agora enfrentando penas gravíssimas, compreenderam da maneira mais traumática possível, que o mundo não se limita ao WhatsApp.

arte! – Uma história que me trouxe esperança foi a do terraplanista que, por meio de uma experiência pessoal, descobriu que a terra é redonda. Será que os bolsonaristas com quem você se sentaria à mesa têm essa perspectiva de superação por diante?

Isso, também fiquei inspirado! Quanto aos bolsonaristas, devo me expressar melhor aqui. Proponho que façamos uma distinção entre eleitores de Bolsonaro e bolsonaristas. Bolsonarista é alguém que, por exemplo, idolatra Carlos Brilhante Ustra, que é machista, homofóbico, transfóbico, que não tem nenhuma preocupação com a igualdade em nenhuma instância e que sempre aposta na lei do mais forte. Por isso, é defensor ardoroso do armamentismo. Com essas pessoas, é muito difícil pensar em diálogo, porque praticamente só há diferenças. E não há necessariamente por parte dessas pessoas interesse algum de escutar algo que não seja o espelho das suas convicções. Mas eu creio que nos 58 milhões de votos que o Bolsonaro recebeu no dia 30 de outubro de 2022, que nem sequer 20% se encaixa nessa categoria. E digo com base em algo bem concreto. O momento de maior declínio da popularidade de Bolsonaro durante a pandemia, ele caiu justamente a 20% de aprovação do eleitorado, quando o apoio neopentecostal se tornou decisivo para que ele mantivesse alguma possibilidade política ainda. E eu diferencio esse bolsonaristas do eventual eleitor do Bolsonaro. Este é alguém descontente com o sistema, ou antipetista radical, ou alguém cujo cotidiano efetivamente não melhorou muito nos últimos anos. Porque há uma dificuldade real no cotidiano das pessoas mais vulneráveis no Brasil. Com estes, creio, é possível conversar. Conversar, no entanto, não quer dizer que eles se tornarão eleitores de esquerda. Eles têm todo o direito a serem de direita, de centro, liberais. O problema só surge quando o diálogo se torna inviável pela pretensão do outro de eliminar tudo o que não seja o espelho. Mas vou repetir: para que seja possível no curto prazo, a perspectiva rigorosa é rigorosamente indispensável. Especialmente num país que tem uma memória tão mal resolvida da ditadura militar, um país que não foi capaz – mesmo na redemocratização – de julgar os crimes cometidos pelas forças armadas durante a ditadura. Nesse sentido uma anistia hoje, em 2024, apenas reforçaria a tendência golpista e autoritária dessas mesmas forças armadas e de todos os civis que apoiaram ativamente a articulação golpista.

arte!✱ – Gostaria também de saber como você decidiu embrenhar-se nesse acompanhamento das redes, da midiosfera bolsonarista.

Como historiador de formação, sempre me interessei muito pelo período militar. E li muito sobre o tema. Além disso, na minha universidade, duas colegas que eu sempre respeitei muito pela inteligência, pela correção, pela integridade, começaram a partir de 2017 a enviar mensagens que eu considerava curiosas. Para resumir a história, se tornaram bolsonaristas radicais, o que me surpreendeu muito. Então comecei a me interessar para tentar compreender o fenômeno, como essas pessoas tinham se deixado enredar de maneira tão intensa por teorias conspiratórias tão obviamente equivocadas.

arte!✱ – Você sempre fala que se prometeu não adoecer. O que isso quer dizer?

Esse ponto de não adoecer para mim foi muito importante. Eu não tinha redes sociais, não tinha nem Twitter nem Instagram. Tinha apenas Facebook. Ingressei nos dois em fevereiro de 2020 e comecei a estudar mais a profundamente a guerra cultural. Quando achei que tinha alguma compreensão do que estava acontecendo. decidi começar a participar do debate público mais ativamente. Tomava como um compromisso cívico de decifrar a esfinge bolsonarista. De fato, inicialmente foi uma esfinge, porque não se compreendia exatamente como o homem tão obviamente limitado do ponto de vista cognitivo, do ponto de vista de conhecimentos básicos, como era possível que ele empolgasse a um número tão grande de pessoas, que o viam literalmente como um líder, um mito. Então havia esse desejo inicial de compreensão e esse desejo, uma vez que eu ingressei nas redes sociais, para mim era muito importante não permitir que eu começasse a ter o mesmo comportamento. E creio que muitos companheiros de esquerda nem sempre conseguiram com sucesso evitar o que eu chamo desse adoecimento, ou seja dessa forma necessariamente agressiva, violenta, da incapacidade de escutar o outro, da incapacidade de aceitar que alguém discorde da sua opinião. Ou seja, essa radicalização, esse desejo de reduzir o mundo a espelho, que em última instância a extrema direita realiza. E é curioso, porque a extrema direita tem muitas afinidades estruturais com o próprio universo das redes sociais. Em alguma medida, a operação do algoritmo é a própria visão do mundo da extrema direita. ✱

As milícias da fé, uma estratégia de poder & preconceito

A onipresença de bandeiras do Estado de Israel em uma manifestação recente da extrema-direita na Avenida Paulista, em São Paulo, surgiu como a confirmação de um fenômeno em expansão: a confusão teológica e o charlatanismo bíblico como estratégias de combate ideológico e político. Naquela ocasião, duas mulheres com bandeiras de Israel nas costas, abordadas pelos repórteres, responderam da seguinte forma à questão “Por que vocês estão com Israel?”: “Porque são cristãos como nós”. Na verdade, os cristãos representam apenas 1,9% da população israelense, sendo que os judeus representam cerca de 83% do povo de Israel. Cristo não é reconhecido como o Messias por Israel. Ou seja: Israel não é cristão.

A escalada dessa esquizofrenia que cresce misturando deliberadamente credos e crenças híbridas, que se escora na demonização do outro, no expurgo e na censura para mover perseguições de fundo político, cultural, social e antropológico se dissemina com assombrosa velocidade pelo País e pelo mundo. Não é absolutamente coincidência que, há alguns dias, o ex-presidente norte-americano Donald Trump tenha lançado estrepitosamente a sua própria versão da Bíblia, apelidada de Deus Abençoe os USA, nos Estados Unidos. Em plena campanha pela reeleição, Trump aposta nessa reiteração gospel da supremacia white power para seguir semeando o terror na política internacional. Ato contínuo, o setor de estudos teológicos de Harvard publicou uma alentada análise da estratégia do “Evangelho” de Trump, lembrando que, num passado recente, pastores protestantes utilizaram a Bíblia como forma de ameaçar pessoas negras escravizadas que se rebelassem contra seus algozes. Em 1749, o reverendo Thomas Bacon, um pastor anglicano de Maryland, celebrou um sermão no qual dizia que os escravizados deveriam glorificar seus mestres brancos como se fossem “Superintendentes de Deus”.

No Brasil, a ressonância dessas estratégias já se faz ver desde o avanço da Bancada da Bíblia no Congresso (já com duas centenas de congressistas) até o território da cultura de massas. Chamou atenção o recente embate entre as cantoras Ivete Sangalo e a evangélica Baby do Brasil durante o Carnaval de Salvador, o famoso episódio do “macetar o apocalipse”. E, mais adiante, o embate prosseguiu com a cantora evangélica Claudia Leitte que, também sob argumentos de zelo religioso, mudou ao vivo uma letra de música (também no Carnaval) para promover um “expurgo” de um ícone dos cultos afro. Na música “Caranguejo”, que tem 20 anos de existência, Claudia – que enriqueceu cantando a tradição afro na Bahia – mudou um trecho da letra e substituiu Iemanjá por “Yeshua”, nome de Jesus em hebraico. E o veto ao uso do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, para a turnê de Caetano Veloso e Maria Bethânia, revelado recentemente, opõe duplamente liberdade de expressão e política: o boicote partiu do governador Cláudio Castro, ex-cantor gospel e evangélico que se fez na política sob o guarda-chuvas da fé.

O patíbulo móvel em que se assenta a intolerância religiosa e cultural, ao longo da História do Brasil (e do mundo), promoveu no passado (e segue promovendo) o etnocídio, tornando-se base do extermínio de povos originários. Depois, consolidou-se na perseguição crescente aos cultos de origem africana no Brasil. Alastra-se pelos territórios comportamentais, sitiando gays, mulheres, negros, transgêneros e dissidentes de toda espécie, como os artistas e as manifestações culturais. Arte! Brasileiros publica nesta edição textos que remontam às raízes históricas dessas guerras, buscando esclarecer como as milícias da fé agem – com o beneplácito dos extremistas alocados na ordem política.
Há casos recentes que ilustram como a intolerância religiosa busca se abrigar nas instituições do Estado brasileiro. Em 2021, arte!brasileiros denunciou com exclusividade uma insidiosa manobra no interior do Instituto Brasileiro de Museus e do Iphan: a tentativa, por parte de um representante do extremismo neopentecostal abrigado no governo Bolsonaro, de sabotar a catalogação e o preparo de uma coleção histórica de objetos históricos da cultura afro brasileira – o Acervo Nosso Sagrado.

Manifestação em solidariedade ao povo palestino, Londres, outubro de 2023

A sociedade indiferente pode acabar vitimada por sua inércia. O Brasil é um País laico, a Constituição protege todas as manifestações religiosas e há liberdade de culto. É preciso denunciar e reagir. A denúncia de arte!brasileiros acerca do caso de sabotagem do Acervo Nosso Sagrado teve repercussões positivas da parte da sociedade civil. O IPHAN, atendendo a um pedido do Museu da República, adotou oficialmente o nome da coleção como Nosso Sagrado (sua denominação anterior, cunhada pela Polícia Civil, era Coleção de Magia Negra). Em 2023, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, assinou um convênio com o Museu da República para promover um levantamento de todos os processos no Brasil de apreensão de objetos de cultos afro-brasileiros. Também foi constituída uma gestão compartilhada (a primeira no país) entre o museu e lideranças religiosas de matriz africana (lideradas por Mãe Meninazinha, do Ilê Omolu Oxum, em São João do Meriti). Agora, o pesquisador e ex curador do Instituto dos Pretos Novos, Marco Antônio Teobaldo, está fazendo uma tese pioneira de mestrado (orientado por Mario Chagas, diretor do Museu da República), sobre Museologia de Terreiro, para atualizar a academia sobre a importância para o patrimônio histórico e imaterial dos terreiros. Ele próprio é iaô (filho de santo) do Ilê Omolu Oxum, e já teve outros convênios do Ilê com a faculdade de museologia da Unirio. E, recentemente, em congresso internacional de museus, na Sicília, ele incluiu no documento final do evento a Museologia de Terreiro. A importância disso é o reconhecimento técnico, da parte da museologia, de que não se pode pegar uma peça de terreiro, um artefato sagrado de culto ancestral, e tratá-la com os métodos convencionais europeus: colocar em uma vitrine, classificar e restaurar a partir dos parâmetros tradicionais da museologia. É um avanço significativo.

Os cultos afro têm sido alvo do ódio religioso há séculos, e esse ódio está se renovando nas hostes neopentecostais. Há alguns dias, em Sepetiba, na Zona Oeste do Rio, fiéis do Centro Espírita Ogum Beira Mar encontraram seu terreiro de umbanda revirado e com imagens de santos quebradas, uma ação que vem se repetindo constantemente. Não é uma exclusividade brasileira: há intolerância por todos os lados. Muitas vezes, o medo é aliado dos obscurantistas, como no caso recente de uma universidade no Texas, em Houston, que cancelou a palestra da artista paquistanesa Shahzia Sikander, devido a ataques que ela sofreu por uma escultura de arte pública chamada de Witness, uma figura com chifres de bode e braços tentaculares. Um grupo de extrema direita texano acusava a figura de fazer o elogio de “imagens satânicas”.

Ao avanço do obscurantismo, é preciso responder com informação e ação legal. As trevas sempre se valeram de uma aliança com a violência para chegar ao seu objetivo, que é sem dúvida o estabelecimento de uma teocracia, um Estado teocrático, dogmático e autoritário. Assistimos agora à emergência de uma corrente “evangélica” do tráfico de drogas, o chamado “narcopentecostalismo”, reivindicando protagonismo nas comunidades e morros do Rio de Janeiro. A associação mística entre evangélicos e os símbolos israelenses também se pronuncia nesse contexto – existe até uma área batizada como Complexo de Israel por uma facção criminosa. Complexo de Israel é como está sendo chamado o conjunto de favelas dominadas pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, que domina as áreas de Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau. Ali vivem cerca de 134 mil pessoas. Investiga-se ainda a expansão da quadrilha para duas localidades que nunca foram dominadas por traficantes: a Estrada do Porto Velho e a Rua Lyrio Maurício da Fonseca, na região de Brás de Pina.

A teóloga Romi Bencke, que é pastora da Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil, aponta uma clara polarização em torno da imagem bíblica do Deus da Guerra (ou Deus dos Exércitos), uma imagem que sacraliza a subjugação de um povo sobre o outro e a limpeza étnica; uma anti-imagem do sagrado, contrária à vida, porque autoriza bombardeios, censura e interdita qualquer tentativa de paz. “Há uma tendência de avanço de uma cultura religiosa menos aberta em relação a comportamento, artes e aceitação de outras religiosidades. Isso é perceptível no Brasil por meio de um cristianismo cada vez mais autocentrado e fechado para acolher as novas agendas de direitos humanos e diversidade cultural e religiosa. O moralismo está se sobrepondo à capacidade de acolher, sem censuras prévias, as diferentes manifestações da criatividade humana”, analisou Romi. “Em outros países, como a Índia, vemos o mesmo, só que na versão hinduísta. Penso que, se o Estado brasileiro compreendesse melhor o sentido da laicidade garantida na Constituição, seus agentes poderiam ter um papel relevante na garantia do convívio entre diferentes visões de mundo. Infelizmente, no entanto, os governos tendem a estabelecer uma relação utilitarista com grupos religiosos, tendo como horizonte apenas os possíveis ganhos eleitorais. Isso tanto por parte de partidos que se apresentam como de esquerda ou progressistas, quanto por partidos de direita e extrema direita”.

A censura também se expande. Na esteira da hegemonia informacional, passou-se a fustigar artistas que porventura se expressassem criticamente sobre o conflito em curso no Oriente Médio, particularmente se fosse de forma desfavorável ao Estado de Israel. Atentados contra a livre expressão passaram a ser corriqueiros. Em novembro, o venerável artista chinês Ai Wei Wei teve exposições suas em Londres, Nova York e Paris suspensas após questionar em uma rede social os argumentos da guerra. Outros artistas, como a atriz Susan Sarandon e o cantor Roger Waters, perderam agentes e contratos por causa de sua atitude crítica.

Mas é difícil tapar o sol com a peneira. Na noite dos Oscars de Hollywood, no início de março, superastros da música e do cinema, como Billie Eilish e Mark Ruffalo, ostentavam broches vermelhos em apoio a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Havia protestos também do lado de fora do Kodak Theater, um dos lugares onde a cerimônia dos Oscars era realizada, com centenas de manifestantes pedindo o fim do massacre. E, ao receber seu prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, o britânico Jonathan Glazer, o diretor de Zona de Interesse, filme baseado em uma história do campo de concentração nazista em Auschwitz (baseada em romance de Martin Amis), também chamou atenção para o massacre no Oriente Médio. Subindo ao palco com o produtor James Wilson, Glazer, que é judeu, afirmou: “Todas as nossas escolhas são feitas para refletir e nos confrontar com o presente. Não só para dizer ‘olha o que eles fizeram’, mas também ‘olhem para o que estamos fazendo agora’. Nosso filme mostra que a desumanização nos conduz para o pior”, disse. ✱

Tijuana: violência & cultura

 

A música de protesto Canción Sin Miedo, de Vivir Quintana, trouxe energia ao início da concentração da Marcha das Mulheres em Tijuana, México, no último dia 8 de março. Na voz da cantora local Giuliana, violão em punho, a mensagem contundente da compositora ressoou como um chamado. Com versos como “cada minuto, de cada semana / nos roubam amigas, nos matam irmãs / Destroçam seus corpos, os desaparecem”, Quintana denuncia as injustiças e violências enfrentadas pelas mulheres. Sua música é um chamado à ação e à memória, convocando os políticos e a sociedade a reconhecerem e combaterem essa realidade brutal. Giuliana se diz indignada e está na marcha pelo direito à vida, pela busca incansável das crianças que desaparecem todos os dias, pelas mulheres que são silenciadas e por aquelas que já perderam suas vidas. “Aqui as pessoas cometem crimes e simplesmente escapam impunes, ninguém é responsabilizado”. A canção de Quintana é uma carta de alerta à população e, por isso tornou-se um hino presente em várias manifestações.

Em outro ponto da concentração, encontro uma voz firme e decidida: a ativista e atriz de teatro, Adriana Millanés, que é parte integrante da Fundação Manos Entrelazadas. Esta instituição, há 17 anos dedica-se incansavelmente à prevenção do abuso sexual infantil e da violência intrafamiliar. Adriana, com uma determinação inabalável, destaca: “Aqueles que negam a existência desse problema são, sem dúvida alguma, cúmplices da discriminação e violência contra as mulheres”. Ela compartilha uma estatística alarmante: 1.426 mulheres desapareceram apenas nos primeiros dois meses e meio deste ano. Em um dia significativo para a manifestação, como o Dia Internacional da Mulher, ela ressalta que as pessoas estão nas ruas porque não aceitam mais essa situação. No entanto, ela lamenta que, no dia seguinte, 9 de março, tudo permanecerá inalterado, destacando a contínua crise enfrentada pelas mulheres no México. Após a marcha, Adriana Millanés segue para seu trabalho, subindo ao palco da Antiga Bodega de Papel, um renomado teatro local, onde atua na icônica peça de Eve Ensler, Os Monólogos da Vagina. Assim, após lutar nas ruas, ela continua sua missão de conscientização e empoderamento por meio da arte.

Converso com Ana Hernandez, professora de uma escola elementar que diz ter a esperança de que, ainda este ano, o México tenha uma presidenta que diminua a violência no país. “É um momento especial em nossas vidas, eu acredito na determinação de uma mulher e no seu compromisso de executar o prometido”. A eleição está marcada para 2 de junho e estão no páreo, a ex-prefeita da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, líder com 50,5% das intenções de voto, do mesmo partido (Morena) do presidente Andrès Manuel López Obrador. E a senadora Xóchitl Gálvez, com cerca de 28,8% das intenções de voto. O único homem é Jorge Álvarez Máynes, sem chances na competição com apenas 4,8% de intenção de votos.

Tijuana enfrenta um desafio significativo: o constante fluxo de uma população em movimento, que atravessa a cidade em uma tentativa desesperada de cruzar clandestinamente a fronteira. Muitos buscam emprego nas Maquiladoras, indústrias que contratam trabalhadores por períodos flexíveis – uma hora, uma semana ou um mês – dependendo da demanda. É uma dança frenética de oportunidades e incertezas, onde alguns se estabelecem temporariamente, enquanto outros insistem na busca pelo tão almejado sucesso na travessia da fronteira. Esses indivíduos, enraizados na esperança, constroem uma comunidade vibrante e diversificada em Tijuana. Com seus 130 anos de história, Tijuana se destaca como um centro pulsante, abrigando uma população impressionante de três milhões de habitantes.

Os homens não participam da Marcha, ficam intimidados por sua segurança. Um repórter fotográfico foi atingido por manifestantes com tintas e teve que se retirar. No todo, a manifestação foi controlada, embora um grupo de mulheres vestidas de preto, com rosto coberto portassem nas mãos martelos e tacos de basebol. Com palavras de ordem, entre outras, “Somos más e podemos ser piores”, “Nem uma Mais”, o movimento cumpriu seu propósito. Um dos feitos de impacto foi a exposição de fotos e xerox, na praça das Tijeras (tesouras), dos rostos de estupradores, agressores e exploradores, em cuja lista apareciam professores, padres, políticos, e parentes das vítimas.

Mesmo com seus problemas Tijuana atrai mexicanos de outros estados e latino-americanos de vários países. Ranqueada como a segunda metrópole mais populosa do México é considerada a porta da América Latina. Como uma cicatriz que não fecha, a cidade é cortada por um muro de mais de 700 quilômetros que divide e atravessa também outras cidades. Enquanto os banhistas tentam relaxar na praia de Tijuana, o abominável muro se ergue imponente, dominando todos os ângulos da paisagem e avançando pela areia por mais de cem metros em direção ao mar.

Ao contrário do que ocorria no litoral na Alemanha Oriental, na época da Guerra Fria, onde guardas armados portando binóculos potentes tudo observavam, em Tijuana a vigilância é praticamente monitorada por drones. Parte do muro foi erguido ou restaurado durante o governo de Donald Trump, e outros trechos foram levantados a partir de 1991.
Nas últimas décadas, o governo mexicano colocou em prática um projeto cultural ambicioso, visando amenizar o estigma negativo de Tijuana e apresentá-la também como cidade voltada às artes. Entre outras iniciativas surge o Salão Internacional de Estandarte (1996), idealizado por Marta Palau que participou da 19ª Bienal de São Paulo de 1987, e que depois o transformou em Bienal. Ainda com esse propósito surge InSITE, uma exposição internacional criada pela Intersection Gallery de San Diego, California e que acontecia simultaneamente no Centro Cultural Tijuana (México), construído com um projeto arrojado, dentro desse programa de reestruturação, e inaugurado em 1982. Na opinião de Roberto Rosique artista, crítico, professor e membro do conselho curador da Trienal de Tijuana, InSITE foi impulsionado pela visão empresarial de Michel Krichman y Carmen Cuenca, com recurso do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes (Conaculta), além de empresários norte-americanos. Para legitimar o projeto foram convidados artistas e curadores internacionais. Os críticos brasileiros Adriano Pedrosa, curador da Bienal de Veneza 2024, e Ivo Mesquita, ex-diretor da Pinacoteca do Estado, foram curadores desse evento em edições diferentes.

Com o objetivo de fomentar e promover a arte local, além de estimular o intercâmbio internacional na cidade, Álvaro Blancante, renomado crítico de arte mexicano, foi um dos visionários na concepção da Trienal de Tijuana: 1. Internacional Pictórico, de 2021. Embora não tenha testemunhado sua concretização, tendo falecido em 2021, o projeto floresceu. A segunda edição, que está sendo trabalhada sob a minha curadoria geral, será inaugurada no dia 26 de julho deste ano. O evento contará com a presença de artistas consagrados e emergentes ajudando a Trienal de Tijuana a se consolidar como um marco importante no calendário cultural da região, reafirmando o compromisso da cidade em celebrar e promover a arte em todas as suas formas, com a participação de artistas representando 15 países diferentes.

A universidade, a censura e os cancelamentos

Por Tâmara Abreu

Os cancelamentos a obras literárias e a obras de arte em geral estão em pauta dentro e fora do Brasil. Até aí nenhuma novidade. A censura já levou Flaubert e muitos outros escritores aos tribunais de acusação em diferentes épocas na história da humanidade. As causas e os modos de aplicar a censura vão ganhando novos contornos conforme o tempo e o contexto de produção, recepção e circulação dessas obras. Uma das reações mais interessantes aos ventos proibitórios atuais foi a inauguração, em outubro de 2023, do Museo del Arte Prohibido (Museu da Arte Proibida) em Barcelona. Trata-se do primeiro espaço museológico cujo acervo é composto só por obras de arte censuradas e proibidas ao longo da história. São mais de 200 obras, entre as quais estão Picasso, Goya, Klimt, Andy Warhol e outros proscritos.

Recentemente, dois estados brasileiros ordenaram a retirada de O Avesso da Pele (de Jefferson Tenório) das bibliotecas escolares sob pretextos de ordem moral. A escritora Lia Neiva teve um livro proibido pela Prefeitura de Rio Claro (SP) em 2022, sob a mesma alegação. Consideradas as devidas diferenças, casos de censura institucional guardam relações com a censura informal praticada sob a roupagem do “cancelamento” nas redes sociais. J. K. Rowling, Road Dahl, Camões, Dante, Shakespeare, são apenas alguns casos dentre os clássicos da literatura internacional. Na esfera nacional, o caso mais emblemático e polêmico é o do escritor Monteiro Lobato. A ele vamos nos ater daqui pra frente.

Causou polêmica um post do Instagram publicado recentemente (04/03/2024) na conta oficial do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A estratégia de comunicação adotada pela direção do IEL ao postar o card de divulgação do evento, uma bomba semiótica com alto potencial lacrador para redes sociais, foi a seguinte: uma foto do rosto de Monteiro Lobato vandalizada com a inscrição “RACISTA” riscada na testa do escritor está encimada pela pergunta-título do evento “O IEL deve cancelar Lobato?”. O post informava que, no dia 14 de março, no anfiteatro do IEL, haveria uma mesa de debate na qual se discutiria “se o instituto deve ou não cancelar Monteiro Lobato, cujo acervo encontra-se no CEDAE/Unicamp.” E assim foi. Participaram da mesa professores do IEL e a coordenadora técnica do CEDAE, Roberta Botelho. Desta vez, o que estava em questão era cancelar (ou não) um acervo arquivístico. Temos aqui algumas questões que merecem discussão.

O processo de doação de um conjunto arquivístico pelos herdeiros de um
escritor, até que se formalize a aquisição pela instituição mantenedora, é
juridicamente complexo, trabalhoso, tem uma série de etapas e múltiplos atores

A Unicamp guarda uma parte importante dos arquivos de Monteiro Lobato no Centro de Documentação “Alexandre Eulalio”(CEDAE), situado na entrada do prédio do IEL. O Cedae foi parte do evento que discutiu o cancelamento do escritor. Vamos supor que o IEL admitisse cancelar Lobato, atendendo a reivindicações de alguns alunos e das redes sociais. Isto significaria o quê? Retirar os dois mil documentos do CEDAE e devolvê-los à família? Excluir seus livros da biblioteca da universidade? Riscar o nome de Lobato dos programas de disciplinas dos cursos de Letras (se é que ainda está lá…)? A julgar pelo que vem ocorrendo de uns anos para cá e considerando que a proscrição de obras literárias nas instituições de ensino já é uma realidade, nada mais surpreende. A interdição institucionalizada poderia perfeitamente estar a caminho.

O que está em jogo é maior do que se pensa quando uma universidade discute uma questão tão séria com ares de banalidade. Cabe aqui observar que os arquivos pessoais de um escritor não caem do céu. Tampouco são feitos de papéis aleatórios ou documentos quaisquer, mas de fontes históricas que testemunham o passado e permitem aos estudiosos produzirem a historiografia existente sobre literatura brasileira – que não deixa de ser um produto de seu tempo e estar sempre sujeita a novas interpretações. O processo de doação de um conjunto arquivístico pelos herdeiros de um escritor, até que se formalize a aquisição pela instituição mantenedora, é juridicamente complexo, trabalhoso, tem uma série de etapas e múltiplos atores.

Os documentos que compõem o importante acervo do escritor Monteiro Lobato jamais teriam vindo parar no Cedae sem a iniciativa e o trabalho competente da professora, hoje aposentada, Marisa Lajolo quando esteve à frente do projeto temático “Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros”, financiado pela FAPESP. Em números, estamos falando de mais de dois mil documentos entre livros raros em primeiras edições, folhetos, periódicos, centenas de cartas manuscritas e datiloscritas, fotografias, desenhos e aquarelas, além de sete objetos.

Nas dependências do IEL e do CEDAE, muitos estudantes foram formados para exercer com rigor a pesquisa científica e a docência, todos com projetos de pesquisa aprovados e financiados com recursos públicos pela FAPESP. As pesquisas desenvolvidas neste acervo foram legitimadas por vários prêmios das principais instâncias acadêmicas do país. A partir dele foram produzidos dois livros que são referência para os estudos sobre o escritor. Cito apenas um: Monteiro Lobato livro a livro: Obra Infantil organizado por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini (Ed. Unesp, 2008), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria “Livro do Ano Não-Ficção” e na categoria “Crítica Literária”, além de ter recebido o selo Altamente Recomendável FNLIJ 2009 (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).

Não parece razoável supor que seria a finalidade dos professores envolvidos no evento cancelar quem quer que seja. De fato, o encaminhamento da discussão seguiu o rumo oposto, segundo deram conta as notícias publicadas. Provavelmente, chegou-se à conclusão de que uma universidade não é o espaço adequado à prática de cancelamentos. Se assim fosse, o IEL estaria atentando contra a sua missão institucional de preservação da memória da cultura e da literatura brasileiras, lesando o direito coletivo de acesso a essa memória. Ali estão os acervos de Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Hilda Hilst e muitos outros artistas e intelectuais que podem um dia entrar na berlinda como “o cancelado da vez”.

Usuários de redes sociais cancelam diariamente escritores; instituições de
ensino, não. Influenciadores digitais manipulam as emoções alheias;
professores estudam, debatem, pesquisam, constroem conhecimento

Professores sabem – ou deveriam saber – que acervos são bens de interesse público, assim como a universidade. Arquivos em instituições de guarda como o CEDAE não são “canceláveis”, portanto a discussão, nos termos em que foi posta, carece de mérito e de cabimento. Por sua missão social e educativa, a universidade tem o dever de discutir os cancelamentos das obras literárias e suas consequências, mas espera-se que a condução da discussão parta de uma perspectiva de compreensão do fenômeno e análise das obras em toda a sua complexidade, considerando-se suas dimensões estética, social e histórica.

Não se nega o racismo presente na biografia ou na obra de um escritor ou artista, discute-se. O perigo de as universidades aderirem a estratégias de comunicação de massa próprias às redes sociais é o rebaixamento do nível das discussões, quando o seu papel é qualificar o debate, apresentar argumentos fundamentados em leitura e pesquisa, estimular o pensamento crítico por meio do qual se possa discordar de forma democrática e civilizada.

Usuários de redes sociais cancelam diariamente escritores; instituições de ensino, não. Influenciadores digitais manipulam as emoções alheias; professores estudam, debatem, pesquisam, constroem conhecimento. O simples fato de essa pergunta ser o tema do debate promovido pelo IEL acena para a admissibilidade da ideia do cancelamento, flerta com ele. Além disso, organizar uma discussão que já começa por uma estratégia de divulgação nos moldes dos tribunais de censura da internet amesquinha a universidade. Oxalá o debate tenha sido produtivo e tenha permitido ao IEL sair da camisa de força na qual se meteu. ✱

Tâmara Abreu
(Professora da UFRN)
Março/2024

 


 

1 Para maiores detalhes sobre a história da criação e da organização do Fundo Monteiro Lobato no CEDAE/IEL, ver:: Lajolo, M., Bignotto, C., Tin, E., Bastos, G. S., Chiaradia, K., Camargo, L., Martins, M., Silva, R. A. da ., Abreu, T., & Albieri, T.. (2022). De papéis a documentos: Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros. Revista Brasileira De Literatura Comparada, 24(46), 131–142.
https://doi.org/10.1590/2596-304x20222446mlcbetgbkclcmmrstata

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Em BH, a Galeria Albuquerque Contemporânea inaugura primeira individual de Froiid

Froiid, na Galeria Albuquerque Contemporânea.
Froiid, na Galeria Albuquerque Contemporânea. Foto: Daniel Mansur

Intitulada “Mundaréu”, a individual de Froiid, em cartaz na Galeria Albuquerque Contemporânea, estabelece um diálogo com o escritor, ator, jornalista e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) e as suas “Histórias das Quebradas do Mundaréu”(1973). 

Ao explorar o universo confabulado de uma mesa de bar e referências ligadas às dinâmicas do jogo, o artista multidisciplinar Froiid constrói uma narrativa visual, sonora e sensorial a partir de temas como crime, samba, RAP, futebol, torcidas organizadas, inteligências artificiais e violência. 

“Com esta sala de estar, marcada pelo seu carácter identitário, Froiid desdobra o tempo livre e nos chama para nos aproximarmos mais uns dos outros, para não perdermos as redes sociais físicas e para apreciarmos a profundidade e riqueza do conhecimento popular”, aponta Ana Salazar Herrera no texto curatorial.

A exposição é concebida como um jogo. Ao percorrer a galeria, encontramos obras jogáveis, com destaque para a instalação “É Hora da Onça Beber Água” (2020), uma mesa de bilhar com cerca de 13 metros, que convida o público a criar e jogar com suas próprias regras.

A produção de Froiid se estabelece com uma diversidade de materiais e técnicas, com pinturas, fotografias, desenhos, vídeos e instalações sonoras que exploram a riqueza cultural do Brasil.

SERVIÇO
Albuquerque Contemporânea Galeria de Arte: Rua Antônio de Albuquerque, 885 – Savassi, Belo Horizonte (MG)
Em cartaz até 27 de Abril de 2024
Horário de funcionamento: Segunda a sexta: das 10h às 19h / Sábado, das 10h às 13h30

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Integração é o mote da programação de Inhotim em 2024

Uma retomada de projetos monográficos, exposições solo dedicadas a obras específicas de alguns artistas, além de obras únicas, imersivas, que promovem experiências contundentes. É dessa forma que a diretora artística do Inhotim, Júlia Rebouças, descreve a programação do Inhotim para 2024, anunciada na semana passada. As inaugurações acontecerão em dois meses (abril e outubro), e as duas primeiras estão marcadas para 13/4: integrante do coletivo curatorial da 35ª Bienal de São Paulo, a portuguesa Grada Kilomba leva à Galeria Galpão a obra O Barco. No mesmo dia, o mineiro Paulo Nazareth ocupa a Galeria Praça e outros espaços do museu a céu aberto com obras comissionadas pela instituição.

Exibida em 2021 no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, e na Somerset House, em Londres, O Barco é um trabalho inédito no Brasil, descrito como uma “instalação escultórica ativada por performance”, em que blocos de madeira carbonizada trazem versos de um poema escrito por Grada em seis idiomas (iorubá, kimbundu, crioulo, português, inglês e árabe).

Júlia Rebouças afirma que, ao ser apresentada no país, a obra vai ganhar “um acento local”, e destaca que o trabalho começa agora, mas sua presença no instituto se estende por pelo menos dois anos. “O Barco é acompanhado por um conjunto de performances com dança e música, e, ao longo do ano, faremos oficinas de modo que artistas da região participem do projeto. A obra vai assentando aqui de uma maneira que só poderia acontecer nesse contexto institucional do Brasil, nesse momento histórico e político”.

Já a criação comissionada pelo Inhotim a Paulo Nazareth tira sua inspiração do Palmital, um conjunto habitacional criado em 1984, na cidade de Santa Luzia (MG), onde o artista está sediado. Ela traz elementos caros a Nazareth, como história, território e deslocamentos, e vai se capilarizar em diversas obras, como um bananal plantado em Inhotim, em trabalhos dispostos no caminho até a instituição ou ainda proposições do artista que virão à tona ao longo do período expositivo.

“A produção do Paulo Nazareth parte da ideia de trânsitos, de deslocamentos, uma provocação que a gente quer trazer para a instituição. O que podemos fazer aqui, que não se pode fazer em outro contexto?”, indaga Júlia. “O Paulo respondeu a esse questionamento exatamente com a temporalidade de uma exposição longa. A gente vai inaugurar uma mostra que vai se transformar com as estações. Ao longo de dois anos, em cada sazonalidade, a gente não vai ter necessariamente uma exposição nova dele, mas aparições, obras que chegam e saem, performances etc. A gente vai plantar bananas e, lá na frente, colhê-las, fazer um doce com elas, enfim, qualquer coisa que faça sentido para ele.”

No segundo semestre acontecem as aberturas das exposições da mineira Rivane Neuenschvander, da suíça Pipilotti Rist e da baiana Rebeca Carapiá. Com obra presente no acervo de Inhotim, Rivane levará à Galeria Mata uma panorâmica com trabalhos de épocas diversas, entre instalações, obras audiovisuais, pinturas e esculturas. Neles, ela elabora elementos recorrentes em sua produção, como memória e infância, natureza e ecologia, história e ditadura.

Pipilotti apresentará, na Galeria Fonte, a obra Homo sapiens sapiens, filmada em 2004 nos jardins do Inhotim, mas ainda inédita no instituto.  Exibido na Bienal de Veneza de 2005, quando a artista representou a Suíça, o trabalho traz referências a corpos femininos e à iconografia barroca, entre outras. Segundo Júlia, a instalação, que será mostrada de maneira imersiva, conta um pouco da coleção de Inhotim e de seus comissionamentos, visto que a obra foi realizada no instituto e volta agora, 20 anos depois.

“É um exemplo de trabalho com videoarte da Pipilotti que, a partir daquele momento, entre 2004 e 2005, apresenta um conjunto de novidades na maneira de se expor e lidar com a imagem. A primeira vez que ela o projetou foi no teto de uma igreja, lidando com os seus ornamentos, com uma tese sobre a origem do mundo”, explica Júlia. “É uma obra com um grande apelo imagético, por meio de um efeito caleidoscópico, em que ela ainda retrata um conjunto de corpos femininos numa relação absolutamente intrínseca com a natureza”.

Júlia Rebouças ressalta que a programação de 2024 mescla balanços (como a obra de Pipilotti), um caráter mutante (em Paulo Nazareth), outro monográfico (com Rivane) e um trabalho que lança mão dos recursos de Inhotim, caso do comissionamento feito à artista baiana Rebeca Carapiá, para a área externa do instituto.

“A gente tem um corpo técnico, de oficinas, de ateliês, que é incrível e absolutamente experiente e que vem, ao longo desses 17 anos de instituição, trabalhando diretamente com os artistas. Então convidamos a Rebeca pensando um pouco também nessa artista que pode se beneficiar desse contexto e dessa infraestrutura para experimentar, de maneira conceitual, formal e técnica, em diálogo com o espaço, com uma conversa muito próxima e um apoio que não é somente auxiliar, mas também constitutivo”, diz.

Júlia Rebouças, diretora artística do Instituto Inhotim. Foto: William Gomes
Júlia Rebouças, diretora artística do Instituto Inhotim. Foto: William Gomes

A programação artística de 2024 de Inhotim inclui ainda seu primeiro Festival Internacional de Música – que prevê experiências musicais imersas nos ambientes artísticos e naturais do instituto, em julho – e, no mês anterior, durante a Semana do Meio Ambiente, o projeto Transmutar: Seminário Internacional, em que se destaca a presença de Brigitte Baptiste, bióloga colombiana que se debruça sobre a interseccionalidade entre biodiversidade e teoria queer.

“Ela vem vem fazer uma performance, uma fala e uma ativação e faz parte de um grupo de convidados, entre eles também Ailton Krenak, para experimentar outros jeitos de se fazer os programas públicos, envolvendo os acervos artísticos e botânicos”, explica a diretora artística.

Para Júlia, o conjunto de ações previstas para este seria exemplar de um novo momento do instituto, que tem outro ponto forte na criação da diretoria de educação, sob o comando de Gleyce Heitor, uma “virada importante dentro da instituição”, que vai reforçar o tripé arte, natureza e educação, “lidando com as questões do território, da contemporaneidade, nas múltiplas manifestações possíveis na interseção entre esses três”, conclui.

Júlia, que teve sua primeira passagem pelo Inhotim entre os anos de 2007 e 2015, e voltou ao instituto no ano passado, ressalta ainda que uma das iniciativas emblemáticas das mudanças iniciadas no museu por volta de 2022 seria o projeto em torno de Abdias do Nascimento, realizado em parceria com o IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros).

Ela salienta que foi um programa proveniente de um acervo emprestado, em que Inhotim abrigou também “todo um conjunto de conceitos e práticas desse grande e fundamental intelectual que foi Abdias Nascimento”. Essas práticas, ela afirma, levaram o instituto a se “reposicionar em relação ao acervo, ao programa artístico e curatorial, às práticas de trabalho e ao envolvimento com a comunidade”.

Para Júlia, a experiência se deu por um amadurecimento “desse organismo vivo que é uma instituição como Inhotim”, que permitiu outro modo de se fazer exposição, não apenas a partir do comissionamento ou do colecionismo direto, “mas também de uma parceria entre instituições, que por sua vez reverberou num programa autoral e em outros artistas, outras exposições ao longo dos anos, que não foram só obviamente dedicados ao Abdias, mas que estavam ali, no bojo desse pensamento, que permite esses outros modos de fazer”, conclui.

 

Do Jeca Tatu a Nhô Nito

Amácio Mazzaropi em "Jeca Tatu" (1959)
Amácio Mazzaropi em "Jeca Tatu" (1959)

Com exceção de Manoel Querino (1851-1923), os intelectuais que escreviam sobre as artes visuais durante a Primeira República partiam do seguinte pressuposto: no Brasil desenvolvia-se uma ramificação da arte europeia.

Alguns tentariam propor ou detectar singularidades para a arte aqui produzida, enquanto outros atentariam para a dimensão cosmopolita da arte praticada no país. Para tais reflexões foi decisivo que todos eles conceitualizassem o homem brasileiro, étnica e culturalmente. Refletindo sobre como esses autores pensavam o Brasil e o brasileiro será possível compreender qual era o tipo de arte que eles pensavam ser o mais apropriado para o país, e quais as táticas para alcançá-la.

Ao estudar o fluxo de ideias que transitavam em São Paulo nos anos em torno Semana de Arte Moderna de 1922, identifiquei conexões entre os pensamentos do então jovem intelectual Menotti Del Picchia (1892-1988) – primeira geração de imigrantes italianos – e aqueles emitidos por Monteiro Lobato (1882-1948), outro intelectual atuante em São Paulo, dez anos mais velho, e de família tradicional. Tal questão já havia sido abordada por Annateresa Fabris, em livro publicado em 1994[2], mas ainda restavam dados a serem aprofundados.

Assim, estudando a produção dos dois intelectuais percebi que, de início, há uma identificação de Del Picchia com o pensamento de Lobato que com o tempo será superada e substituída por outros posicionamentos. É significativo estudar tal questão pois ela mostrará o nascimento e/ou a consolidação de certas idealizações do Brasil e do brasileiro que jogarão um papel importante, não apenas na arte e na literatura produzida em São Paulo, mas igualmente em outras áreas.

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Em 1920 Menotti publica uma série de artigos denominada Cartas a Chrispin, dedicado, cada um deles, a um intelectual “novo”. Dentre outros, Menotti traçará o perfil de Guilherme de Almeida (1890-1969), Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e o de Lobato.

Chegando ao final do texto elegante e elogioso dedicado a esse último, Del Picchia arremata: “O que ele é, já o sabes: um dos mais formidáveis estilistas do meu tempo. E, como ele já está consagrado pelos santos óleos da admiração nacional, é tempo de empurrá-lo na Academia…”[3]

Em julho de 1921, comentando a eleição que ocorreria na Academia Brasileira de Letras,  Del Picchia sugere o nome de Lobato, apesar de dizer que não apreciava e não concordava com tudo o que o escritor mais velho produzia. Tal posicionamento, no entanto, não o impedia de afirmar:

Monteiro Lobato foi – no sentido novo que se dá ao termo – um dos nossos primeiros futuristas. Com seus admiráveis artigos esfarelou a tacapadas épicas os estilinhos melosos que triunfavam por aí; com seus diabólicos escritos, arremangados e corrosivos, acabou com a prosa açucarada e melíflua, que tinha a soporífica faculdade de fazer concorrência ao clorofórmio ou à infusão de papoulas.[4]

Del Picchia podia não concordar com tudo o que Lobato escrevia, mas o tinha como um intelectual que rompera com a tradição, e por isso, o qualifica como “um dos nossos primeiros futuristas” – demonstrando o quanto se encontrava ainda fluído, no início dos anos 1920, os limites entre “futuristas” e “passadistas”.

Também na crítica, Del Picchia levava Lobato em conta, afirmando mais de uma vez o quanto deixou-se levar pelo pensamento do autor mais velho. Essa adesão, entre outros exemplos, encontra-se num artigo dele sobre Victor Brecheret (1894-1955): “Eu, que tenho posto todos os meus carrilhões […] a serviço da glória de Brecheret, não podia, entretanto, deixar de tentar meu repique final, uma vez que o grande escultor patrício está em vésperas de ‘deixar de fazer asneiras'”, na frase do Lobato – e ‘cometer o primeiro ato acertado’, isto é, tomar um vapor e zarpar para Paris”[5].

Mais contundente é o texto em que Del Picchia escreve que, durante um tempo, pensou não gostar da pintura de Anita Malfatti (1889-1964), seguindo apenas o que publicara Lobato sobre a exposição protagonizada pela artista, em dezembro de 1917. Del Picchia comenta o quanto aquele artigo havia abalado não apenas a artista, mas todo o público. Querendo que Lobato revisasse seus posicionamentos sobre Anita, ele declara:

Eu, sugestionado também pelo artigalhão de Lobato, sem mesmo ter visto a obra de Malfatti, senão deturpada por umas péssimas reproduções em revistas, me havia encartado entre os negadores da galharda pintora paulista. Um deste dias, porém visitei seu atelier. Saí de lá encantado. E, como sou rudemente sincero e tenho a ilusão de ser justiceiro, não me pejo em fazer aqui minha púbica penitência.

Fazendo-a deixo a Lobato a responsabilidade de meter posto ao mau caminho, no julgamento dos quadros da minha ilustre patrícia, certo de que o autor da Colcha de retalhos fará, logo que reconheça seu erro, sua penitência pública também.[6]

Estabelecidas essas evidências sobre como Del Picchia tinha Lobato como parâmetro, levanto agora outros textos em que se nota a permanência dessa dimensão paradigmática assumida pelo autor de Emília, para Del Picchia – atentando para como os primeiros textos sobre o Brasil e os brasileiros, escritos por Del Picchia, ressoavam o pensamento do intelectual mais velho.

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Publicado por Del Picchia no Jornal do Comércio, em janeiro de 1921, o artigo Matemos Peri é ambíguo: às vezes o autor parece se referir ao personagem do romance O guarani, de José de Alencar, atentando para seu caráter falso e arbitrário, calcado no romantismo europeu. Porém, em outros momentos, Del Picchia esclarece que Peri é falso, não apenas por representar uma moda literária estrangeira, mas por se referir a um tipo de brasileiro que simplesmente não existia:

Nunca acreditei na real existência dos índios, de que os europeus julgam andar cheios nossas praças e avenidas. As notícias que deles tenho, em tratados etnográficos e em documentações de museu, fazem-me pensar neles como na vaga legenda dos primatas, dos antropotecos [sic] dos megatérios e outras cousas crepusculares. Às vezes chego a imaginar que Peri […] nunca passou de uma ficção literária de Alencar.[7]

Ele continua:

O que nos custou, porém, essa blague posta em ópera […], nem a diplomacia de cem Rios Brancos desmancha. Peri foi uma mancha nua e bronzeada a sujar a dignidade nacional. Essa mentira lírica […] chegou a perturbar nossos sociólogos. Admitiu-se essa hipótese romântica como elemento formador da raça, atribuindo-se ao índio vadio, estúpido e inútil, uma função alta no caldeamento do nosso tipo nacional, chegando-se a crer que dele nos vinha a bravura nativa, o espírito de independência selvagem, a altivez reacionária de que somos dotados.

Nada mais falso. Nunca vi índios, mas o que li de sério – […] – sobre a índole dessa gente de tez acapetada, nariz chato, higiene discutível, foi apenas um depoimento psicológico que reverte em séria acusação contra a sua inferioridade étnica e absoluta inadaptabilidade socia […][8]

A figura do indígena era insuportável para Del Picchia em dois sentidos: primeiro, porque, sendo uma criatura animalesca, ele não deveria ter servido como base para a constituição da “raça” brasileira. Por outro, transformado em símbolo do Brasil, depunha contra o país e os “verdadeiros” brasileiros. Era preciso matar Peri para que um Brasil novo finalmente surgisse:

Libertemo-nos dessas faixas que nos peiam, dessas sugestões que nos desfibram, desses temores reverenciais que nos anulam. Demos, à nossa ânsia de originalidade, à nossa vontade de libertação todo o prestígio. As nacionalidades são bem como os indivíduos, os quais só valem quando se afirmam, pessoais e rebeldes, agindo em todas as parcelas das suas forças reveladoras de personalidade. Demos ao Brasil – libertando-o do incubo de Peri – a sua feição de povo moderno, avanduardista, criador e pensador, liberto e original, crisálida saída do casulo para o grande voo no espaço e na luz. Para isso, o surge e ambula do milagre novo, resume-se nesta fórmula profética e simbólica:

Matemos Peri![9]

O posicionamento de Del Picchia sobre o indígena real e o indígena representado na ficção possui como base os textos que deram o início ao reconhecimento de Monteiro Lobato como um dos intelectuais mais significativos de sua geração.

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Lobato publicou o artigo Uma velha praga em O Estado de S. Paulo, no dia 12 de novembro de 1914, e Urupês, no mês seguinte, no dia 23 de dezembro de 1914, no mesmo jornal. Note-se que os dois artigos serão republicados em 1918, no livro de contos Urupês[10]

Uma velha praga fala sobre os incêndios anuais que ocorriam nas florestas paulistas. Lobato compara a devastação causada por esses incêndios à destruição pela qual passava a Europa, assolada pela Primeira Grande Guerra. E vai mais longe: propõe que os brasileiros da cidade deixassem de se preocupar com a catástrofe que ocorria na Europa para refletir sobre aquela que acontecia no interior do país: “Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que, se por lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas florestas com furor não menos germânico…”[11] Sua voz, portanto, é a “voz do sertão”.

Somente após manifestar-se sobre as queimadas e seus malefícios, é que Lobato delatará o responsável por aqueles incêndios: o caboclo, o “caipira”. O autor, portanto, quando se pronuncia como a “voz do sertão”, é, de fato, a voz do proprietário do sertão e não de todos os que ali viviam. Ele se percebe separado do caboclo, pois é esse o responsável por seus males. Para Lobato, aquele agregado de suas fazendas não passava de um parasita, capaz de destruir seu hospedeiro.

Ao mesmo tempo em que o intelectual desqualifica essa figura até então idealizada pela literatura – o “caipira”, o caboclo, misto do indígena com o português – ele também aponta para a existência de dois tipos de brasileiros brancos: aqueles da cidade, alheios à realidade brasileira, e o proprietário rural, talvez o único com uma consciência mais estruturada da realidade. Nota-se aqui, portanto, uma primeira divisão da população brasileira: de um lado, o proprietário de terras e o cidadão, todos brancos; do outro, o caipira, o parasita, o “piolho da terra”.

No artigo seguinte, Urupês, Lobato externará seus preconceitos em relação às potencialidades artísticas e culturais do caipira. Antes de chegar propriamente ao assunto, ele traça um rápido histórico sobre como a intelectualidade branca local vinha pensando o homem brasileiro do campo:

Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar à vinda iconoclasta dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete com reminiscência de Chateaubriand na cabeça […], metem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho.

Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhara Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas que, no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d’alma e corpo.

Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci[12].

Aqui, portanto, encontra-se a origem da argumentação que, quase uma década depois, Del Picchia usará, ao escrever o seu Matemos Peri!. Em Urupês, Lobato afirma que as ações do Exército brasileiro – menção a Rondon –, haviam “matado” a visão idealizada do indígena, mostrando como ele era de fato: “feio e brutesco, anguloso e desinteressante”[13]. Para o autor, o indianismo deixou de ser moda, transformando-se. Assim ele segue:

O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de caboclismo. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocará virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda trochada […]

[…] Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável, independência, fidalguia, coragem, virilidade heroica, todo o rochedo, em suma, sem faltar uma azeitona dos Perís e Ubirajaras[14].

Depois de afirmar que a moda do caboclismo também iria passar, Lobato continua:

[…] Hoje ainda há perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o “Ai Jesus! Nacional”.

[…] Anos atrás o orgulho estava numa ascendência de tanga, inçada de penas de tucano, com dramas íntimos obrigados a flechaços de curare.

Dia virá em que veremos, murchos de prosápia, confessar o verdadeiro avô: – um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco de degredados daqueles tempos, nosso mui nobre e fecundo Mayflower.

Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso[15].

Daí em diante, Lobato conceituará o homem do interior – aquele “incapaz de evolução, impenetrável ao progresso” –, como incapaz de se manifestar até sobre as questões políticas que o afetavam. Lobato afirma que, quando a Lei Áurea “mal esvoaça o florido decreto da Princesa, e o negro exausto larga num uff! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, magina e deixa que do velho mundo venha quem nele pegue de novo”[16]. Ou seja, nem a libertação dos escravizados levaria o caipira a repensar sua situação, permitindo que, ao invés dele, uma nova leva de trabalhadores – os imigrantes europeus –, ocupassem o campo[17].

Lobato segue retirando do caboclo qualquer qualidade. Ele finaliza o texto demonstrando que o caboclo também era incapaz de produzir arte. Eis os últimos parágrafos:

O caboclo é soturno.

Não canta senão rezas lúgubres.

Não dança senão o cateretê aladainhado.

Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.

Não compõe sua canção, como o felá do Egito.

No meio da natureza Brasília, tão rica de formas e cores, onde os ipês derramam feitiços no ambiente e a infolhescência [sic] dos cedros, às primeiras chuvas de Setembro, abre a dança dos tangarás, onde há abelhar de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, visa dionisíaca em escacho, permanente, o caboclo é sombrio urupês de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas.

Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.

Só ele, no meio de tanta vida, não vive…[18]

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Mais para o final dos anos 1910 Lobato pedirá desculpas ao Jeca Tatu pelo fato de que, ao escrever Urupês, não sabia que o homem do campo era doente. Essa retratação virá em 1918, quando o escritor, mais familiarizado com a situação do saneamento básico no país, lançará uma série de artigos sobre o assunto que, ainda naquele ano, voltarão à tona com a publicação de O problema vital, reunindo aqueles artigos.

É possível afirmar, portanto, que, entre 1914 até o final da década, Lobato oscilará perante a figura do camponês e do restante da população brasileira. Em um primeiro momento, enxerga o caipira como o responsável pelas mazelas do campo e o culpa por – agindo como um parasita –, não ter tido capacidade de criar nenhum índice aproveitável de arte e cultura.

Porém, antes de descobri-lo doente e desassistido pelo Estado, Lobato, ao comparar o caipira com o homem das grandes cidades, perceberá que o primeiro, pelo menos, deveria ser reconhecido como defensor das tradições locais, em oposição ao homem das grandes cidades, mais preocupado com a última moda europeia e não com os problemas do Brasil.

O intelectual perceberá a autenticidade do Jeca no mesmo período em que lança uma série de artigos em que se mostra engajado na configuração de uma arte tipicamente brasileira, pautada na representação da geografia física e humana do país. Para Lobato, lutar para que o Brasil ingressasse na grande tradição da arte europeia era aderir ao naturalismo, para ele a única estratégia capaz de introduzir um sotaque característico na arte que o Brasil herdara.

Esta nova postura o levará, em 1919, a publicar um livro com uma série de artigos nacionalistas antes veiculados na imprensa – dentre eles, aquele em que criticava a modernidade que a exposição protagonizada Anita Malfatti trazia[19]. O título do livro, como sabemos, foi: Ideias de Jeca Tatu. Ou seja, se em meados dos anos 1910, Lobato execrava a figura do Jeca Tatu – síntese caricatural do homem do campo brasileiro, responsável pelas queimadas do interior –; mais para o final da década, o criador passa a se identificar com a criatura. As ideias do Jeca tornam-se as suas ideias, uma vez que começa a projetar no Jeca Tatu todo o ideário de criação de uma arte e uma cultura, sem dúvida, de tradição europeia, mas plasmada à realidade física e cultural do Brasil, liberta da produção artística que imperava nas grandes cidades, incaracterísticas.

Creio que com a experiência lobateana mais uma vez se define a divisão que permanecerá no interior da intelectualidade paulista e brasileira em relação à arte e à cultura locais durante boa parte do século XX: tendo como base comum a crença de que éramos herdeiros da tradição artística europeia, por um lado teremos Lobato e seus seguidores, preocupados com a produção de uma arte com sinais precisos de brasilidade; do outro, os “internacionalistas” ou “cosmopolitas”, seduzidos pela tradição e sofisticação da arte e da cultura europeias.

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A importância do mito do Jeca Tatu será tão grande que, em 1919, o jovem Menotti Del Picchia ganhará reconhecimento ao lançar o seu poema Juca Mulato – uma reinterpretação do Jeca Tatu ou, pelo menos, um poema que apenas pode ter sido concebido após o advento da figura do Jeca.

A obra narra a história de um homem do campo – Juca Mulato – que se apaixona pela filha da patroa. Juca se confunde com a própria natureza da qual é fruto, e sua vida começa a ganhar sentido a partir do amor que dedica à garota branca. Insatisfeito, o protagonista tenta criar condições para realizar o sonho de conquistá-la, mas, no final, se dá conta de que não pode deixar o seu destino já traçado: a vida simples e singela na roça.

Em Juca Mulato, ao contrário do Jeca de Lobato, a figura do caboclo está de novo idealizada, tendo sido configurado como um personagem submetido às circunstâncias da vida no campo. Sua suposta inferioridade (social e racial) em relação à amada se dá por essas “fatalidades” e não pelas circunstâncias sociais e culturais que poderiam ser superadas. Juca Mulato aceita essa determinação do destino, desistindo da mulher amada porque sabe que é “inferior” a ela.

Se o Jeca Tatu parecia alheio à sua própria vida, Juca Mulato demonstra-se consciente de sua inferioridade em relação à garota branca. Por outro lado, ele também se difere do Jeca, na medida em que traz para o âmbito da literatura paulista de meados dos anos 1910, a figura do mestiço entre o negro e branco e não aquela do mestiço entre indígenas e brancos.

Juca Mulato não será o único texto de Del Picchia dedicado ao homem do interior. Se nele, o personagem é pensado como um herói que reprime seus sentimentos, por saber-se inferior, em outros textos o autor será irônico e muitas vezes sarcástico com seus personagens. Menotti percebe-os – como aos indígenas – como símbolos do atraso, figuras que deveriam ser varridas da realidade brasileira, assim como da literatura e da arte.

Em 1920, Del Picchia publica o artigo Porque sou Jeca Tatu, uma referência bem-humorada e cínica ao livro de Monteiro Lobato, recém-lançado, Ideias de Jeca Tatu. No texto, Menotti também encarna o caipira e o compara com os homens que trabalham “como escravos”:

O meu corso é um passeio a pé pela estrada até a venda do Belarmino. O meu clube chic é a roda dos meus companheiros, onde ouço e conto mentiras de caça… Por que, então, hei de estragar a vida, matando-me sobre a enxada, se a mandioca tiro-a com as unhas e se não preciso pagar o gás do meu fogão, que é alimentado com gravetos?

Um dia virá em que a necessidade dos outros, dos bandeirantes novos, disputará a fartura das minhas terras. Nessa ocasião, entrarei em luta.

Por enquanto, faço as três cousas que me ensinou Raimundo Correa: pito, durmo e toco viola. O resto fica para depois…

Estas são, também, umas “ideias de Jeca Tatu”. Como as acho razoáveis, subscrevo-as.[20]

Aí está a ironia: se Lobato buscava fundir-se com o Jeca Tatu, por compreendê-lo símbolo do Brasil tradicional, Del Picchia subscrevia as palavras do Jeca, por – como o personagem –, não gostar de trabalhar.

Mais circunspecto, no artigo seguinte, Menotti chamará a atenção para o fato de que o Brasil vivia então um período de entrelaçamento de raças, “criando o tipo humano novo, temperado pelo clima e pela nossa ambiência física”[21]. Nesse cosmopolitismo que caracterizaria o país, os imigrantes que chegavam de todas as partes encontrariam formas de abrasileirar-se integralmente, tornando-se “extratos vivos da nossa nacionalidade”[22]. Assim:

Hoje em dia é uma ilusão irrisória crer na lenda do caboclo… O caboclo, fundo racial puro, passa a constituir uma vaga ficção literária, que se presta à risota dos chalaceiros ou aos berros dos nacionalistas românticos.

O caboclo de hoje é uma colcha de retalhos de nacionalidades. Há caiçaras, morfológica e psiquicamente caiçaras, oriundos de alemães, de italianos, de espanhóis e até de turcos! Conservam, pela força da hereditariedade ambiente, as tradições, as superstições e o modo de vida caipiras. Essas heranças – contágio psíquico de uma índole – alcançam a língua e a dicção. Há caboclos-italianos que, quer pela tez, quer pela fala, podem ser tomados pelos curiosos como expoentes mais expressivos do nosso tipo nacional […]

[…] Essa mescla heteróclita e tumultuária é, pois, o que devemos chamar atualmente de nossa raça.

[…] Nem por isso o Brasil deixará de ser cada vez mais brasileiro; talvez nunca o fosse tanto como agora que começa a criar sua independência industrial e econômica. Nos últimos ranchos que esboroam agonizam os últimos Jecas[23]

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Em 1923, Del Picchia lança um livro de contos e crônicas, intitulado O nariz de Cleópatra[24]. Se em Juca Mulato, ele concedeu ao Jeca um mínimo de dignidade, nesses textos, o caipira surge como uma figura tosca. Tendo explicitado sua aversão em relação ao personagem – que jamais deveria contar para as bases da nacionalidade – restava agora espezinhá-lo crítica e ironicamente.

O primeiro texto de O nariz de Cleópatra, Nhô Nito-Mintira, por exemplo, conta a história de Nito, um mentiroso contumaz. Esse dissimulado finalizava todos os seus casos propondo que o ouvinte perguntasse “ao defunto fulano” se o que ele dizia era verdade ou não. O texto, divertido em alguns momentos, apresenta a mentira como um desvio de caráter, uma prova da essência pouco confiável do caipira que, além de não gostar de trabalhar, também não gostava de falar a verdade.

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Em Uai!, o personagem principal conta que, durante uma viagem ao interior, ao lado de um homem da região que lhe servia de guia, ficou pasmo com a quantidade de terras deixadas sem ocupação. Ele, então, estabelece o seguinte diálogo com Nhô Nico, o “caipira” que o guiava:

Como isto é triste, nhô Nico… Tudo sem plantação.

E ele, como um eco:

É. Tudo sem plantação…

Seguimos. E eu:

– Que terras esquisitas. Isto não dá nada, nhô Nico?

– É como o senhor vê. Não dá nada…

[…]

De repente, como um oásis verde miraculoso, vi no coruto de um morro, um cafezal virente, basto, [ilegível], lindas laranjeiras, afestoadas de frutos, uma roça de milho já colhida, sinais de arrozais vastos, recém-ceifados.

[…]

E perguntei nhô Nico, atrigado:

– Que diabo é isso, nhô Nico. Como é que ali a terra é tão fértil e o cafezal dá que é uma beleza, e atrás tudo é raso, como um campo de maldição?

O homem fez um muxoxo, muito admirado e respondeu, como se dissesse a coisa mais banal do mundo:

– Isso é porque eles prantaro, uai![25]

Um dado interessante é que fica nítido nesse texto como o caipira – que nada planta porque nada faz – começa a ser substituído por um outro tipo de camponês: o imigrante europeu. Esse último transforma a terra em um território de riqueza enquanto o caipira se conforma com a falsa infertilidade do solo. Consciente ou inconscientemente, Del Picchia usa essa estratégia para retirar de cena o caipira, para que novos personagens pudessem protagonizar.

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Esse mesmo posicionamento fica evidente em outros textos do autor em que ele, passo a passo, segue tentando retirar também a importância do indígena para a formação da população brasileira. No ano anterior ao lançamento de O nariz de Cleópatra, Del Picchia publica um texto em que discute as questões estéticas e etnológicas que afetariam a população e a cultura brasileiras:

A nossa debatida questão etnológica cifra-se num fenômeno único, cada dia mais apreciável: na agonia dos antigos fundos raciais diluídos pela mestiçagem e pela fusão dos elementos em jogo no xadrez étnico da nossa nacionalidade.

O elemento autóctone é hoje apenas uma quase memória; caminha para tornar-se uma vaga e literária mitologia, em que ficarão, como o livro do Edda e o Nibelungen, a Confederação dos Tamoios, de Durão; o lírico Guarani, de Alencar, e o heroico e homérico Y-Yuca-Pirama, de Gonçalves Dias.[26]

Ficam evidentes de novo os ecos do que escrevera Monteiro Lobato em 1914 sobre a questão do indígena e do indianismo. E a “presença” de Lobato na base de seu texto é denunciada pelo autor:

Monteiro Lobato, no seu estilo raseante [sic] e cáustico, constatou a morte dos “Peris” e “Moemas” recortados pelos moldes românticos dos “Abencerrages” chateaubrianescos… Ironizou, com sápida verdade, o indianismo inóxio e postiço de um país de costumes e cultura ocidental, que só conhece índios, caciques, pajés pelas gravuras e notícias dos tratados de antropologia e por umas tangas e potes expostos no Museu do Ipiranga.

Del Picchia, que já havia publicado Matemos Peri! no ano anterior, entende o Brasil como “um país de costumes e cultura ocidental”, ou seja, herdeiro da tradição europeia, o que explicaria porque o brasileiro branco percebia o indígena como um ser exótico. Ele continua:

O caboclo molengo e nostálgico substituiu o índio selvagem e épico. Jeca Tatu desbancou Peri e seus demais irmãos de cocar e tacape. O “grito do nambu”, arrancado ao pio de taquara, substituiu a inúbia guerreira: numa pica-pau trochada transformou-se a lança do aimoré. O caiçara aparvalhado, tintilante [sic] de amuletos e bentinhos, de ventre timpanizado pela anquilostomose [sic], herdou do índio a suserania da terra, como expoente etnológico do nosso fundo racial lídimo[27].

Se o indígena agonizava, o Jeca ia pelo mesmo caminho, cedendo lugar a um novo tipo de brasileiro:

Sob as últimas taperas que desmoronam, pulverizam-se os últimos resquícios dos emboabas e dos mamelucos. A infiltração cosmopolita, tangida pelo moderno espírito industrialista e prático, afugenta e esmaga esses restos de sedimentos raciais numa vitória rápida e definitiva. Não entra mais – como ingrediente químico necessário à fixação do tipo étnico nosso – o sangue aborígene no sangue do novel brasileiro, complexo fruto de uma amálgama de raças. São o clima e o ambiente, o milagre de idioma e o contágio das tradições nacionais, de que se impregnam as levas estrangeiras que aqui aportam, que abrasileiram a nova raça, a qual dá um cunho de profundo espírito nacionalista, quase jacobino, à sua descendência.

É esse entrecruzar de tipos humanos – que são geralmente singenéticos […] – que plasma o expoente novo, isto é, o brasileiro atual, nada parecido com o índio prognata e arisco, nem com o caboclo bronzeado e vadio. Ativo, inteligente, belo o brasileiro atual é, etnicamente, um dos mais expressivos e completos representantes de hodierna raça vitoriosa[28].

Menotti Del Picchia nega ao brasileiro autóctone não apenas o protagonismo étnico, mas também aquele de cunho estético. Para ele, deveremos buscar nas novas levas imigrantes as tradições artísticas que nos faltam, pois:

A atuação estética do aborígene é nula, por um simples fato: porque nunca existiu.

Quando Menés, no Egito, fundou Mênfis, ergueu um grande templo a [ilegível]. Os caldeus, os assírios, os babilônicos, os israelitas, todos os povos, na germinação nebulosa da sua cultura, manifestaram sempre suas instintivas preocupações estéticas. O índio, errante e guerreiro, jamais se preocupou com motivos ornamentais e decorativos; a língua, vivendo pela tradição oral, não deixou gravado num [ilegível], numa escorça de árvore, um rudimento de poema. Nem a tentativa iconográfica da antropomorfização de seus Manitôs, Tupãs, Anhangas tentou ele com a lasca de pedra ou com o buril do osso da rês carneada. Não há, pois, resquícios apreciáveis de arte nos ancestrais do mameluco. E Jeca Tatu, inútil e sem fantasia, não pintou, como os etruscos, os seus potes primitivos, nem entalhou a cabo de faca as trípodes rústicas das suas banquetas[29].

Para Del Picchia, nem o indígena, nem o mestiço – o negro está fora desta discussão – conseguiram produzir arte no país, assim: “A nossa arte é, pois, logicamente, uma representação secular da cultura ocidental mais aprimorada, trazida integralmente nos navios que zarpam do continente europeu, representando as finuras e os requintes do seu pensamento”. E prossegue:

É um erro vulgar o acreditar-se que somos tributários servis da arte francesa, alemã ou italiana, porquanto mesmo essas manifestações culturais, que acusam o sabor dessas origens, são frutos espontâneos da nossa raça, feita de um promíscuo xadrez de raças emigradas.

É possível, entretanto, a elaboração lenta de uma estética nacional, feita do que há de mais cristalino nessa cultura, modificada e remoçada pela atuação dos motivos ambientes. A alma europeia, transplantada para os trópicos, sentirá e realizará com a força poderosa da sua sensibilidade atávica, mas há de fatalmente coar essas emoções através dos influxos do clima e da paisagem. Essa, enfim, será a “verdadeira arte nacional”. Ressentir-se-á da tragédia babélica da diversidade das raças sincretizadas no organismo complexo de cada artista. Terá, pois, um sabor novo, diferente, por ser a irradiação polimórfica de vários temperamentos amalgamados numa sensibilidade e imaginação únicas[30].

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Dias depois, também no Correio paulistano, Del Picchia aprofunda seu pensamento sobre a “raça” brasileira, enaltecendo os portugueses no processo de colonização. Para ele, nós brasileiros somos o que somos devido aos portugueses que, ‘povo vigoroso e prodigioso que em pouco mais de quatro séculos [ilegível] ao mundo um dos mais pujantes países do universo'”. Citando José Pires do Rio (1880-1950), afirma ainda: “Outras regiões tropicais, com clima inclemente como o nosso, conquistadas por anglo-saxões, germânicos etc., não passam de simples colônias, onde o elemento autóctone e raças consideradas inferiores constituem a parte mecânica do trabalho”.

Não podemos negar que, desde o Brasil colônia – remontando mesmo aos primeiros albores da fixação geográfica das nossas fronteiras – a ação do elemento lusitano foi absorver o aborígene e, pela mestiçagem, pela lenta plasmação da nova raça, destruir mesmo aqueles elementos etnológicos trazidos da África. Essa providencial ação não criou, dentro do nosso organismo étnico, aquelas vincadas barreiras de raças diversas, que facilmente se observam em certos países de colonização ou conquista recentes. E essas raças antagônicas são hoje entraves quase instransponíveis para a formação de um único neótipo humano, motivando verdadeiras perturbações intestinas no plasma étnico dessas nacionalidades.[31]

Após ressaltar que no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos da América – país que admira – não temos o regime de apartheid da população afro-americana, ele afirma:

O Brasil […] é uma obra-prima de colonização e um milagre de progresso. Com tão curto passado, com uma extensão territorial gigantesca, com um clima hostil, com uma ambiência geológica difícil de ser dominada, representava um baluarte quase inacessível.

É mister, pois, que se faça aos portugueses a justiça que merecem. Só uma raça do vigor da lusitana […] era capaz de gerar a [ilegível] titânica dos bandeirantes, ciclópicos semideuses da aurora da nacionalidade, que renovaram as façanhas dos olímpicos companheiros de Jasão e de Hércules {…}

[…] Povo de guerreiros, aventureiros e traficantes, não se limitou à exploração das jazidas de ouro e diamantes, no comércio aventuroso e andejo de mina em mina: estabilizou-se, formou as lavouras iniciais dos engenhos, organizam-se numa sólida contextura político-social, até criar, com uma rapidez pasmosa, uma consciência nacional autônoma da qual resultou a nossa independência política[32].

E não deixa de comparar os portugueses aos antigos romanos que, no passado, dominaram a Europa:

Qual a miraculosa virtude que fez com que se realizassem tais prodígios? A virtude da estirpe. Foi aquela mesma tenacidade construtiva que levou os romanos a desbordarem do Lácio para irem da Bretanha à Bética, da Mauritânia à Mamitânia, por tudo implantando sua língua, suas leis, seus processos agrícolas e sua organização militar e política[33].

Após novamente cotejar o Brasil com os Estados Unidos, o autor termina o artigo:

O Brasil, porém, representa, incontestavelmente, o mais belo padrão das formidáveis e vitoriosas virtudes construtivas da raça latina. Meditadas estas ligeiras notas sobre o milagre brasileiro, poucos, certamente, renovarão a injustiça de se esquecer da magnitude da obra dos portugueses, reeditando um absurdo pessimismo sobre as nossas qualidades raciais, virtudes tão prodigiosas que, sem elas hoje seríamos apenas uma informa colônia tributária de uma decorativa metrópole.[34]

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Resumindo: Del Picchia parte das considerações de Monteiro Lobato sobre os indígenas brasileiros e sobre o mestiço do indígena com o branco para começar a estabelecer seus próprios parâmetros para pensar a “raça” brasileira e sua produção artística e cultural. Ele aceita a crítica feita por Lobato sobre o indígena, produzida em 1914, mas – apesar do respeito que mantinha pelas ideias do intelectual mais velho –, não se deixa levar por ele, quando Lobato, a partir do final dos anos 1910, concede ao caipira o papel de baluarte da tradição brasileira.

Como lembrou a estudiosa Annateresa Fabris, Del Picchia precisava conectar sua ascendência europeia, latina e italiana, à realidade brasileira. Tal ação seria impossível se, como Lobato, reconhecesse o descendente de indígenas e portugueses como base do homem brasileiro. É por isso que ele supera os mitos do indígena e do caipira para instituir como “novo bandeirante” ao imigrante idealmente atado à origem do Brasil pela latinidade que compartilhava com o português.

Colocando o imigrante e seu filho como os protagonistas do Brasil novo, moderno e cosmopolita, Del Picchia também resolvia outra questão fundamental naquele momento: a especificidade de uma arte brasileira. Para ele era impossível pensar em características específicas da arte produzida no Brasil, uma vez que os fluxos imigratórios rumo ao país ainda continuavam. Assim, e ainda por um bom tempo, a arte que os imigrantes traziam para o Brasil se tornava arte brasileira.

[1] – Este texto serviu de base para a palestra “O BRASILEIRO E OS MODERNISTAS: QUESTÕES SOBRE IDENTIDADE NACIONAL EM MONTEIRO LOBATO E MENOTTI DEL PICCHIA ou DO JECA TATU A NHÔ NITO-MENTIRA: A DESTRUIÇÃO DA IDEIA DO CAIPIRA COMO BASE DA NACIONALIDADE”, ministrada durante o encerramento do III Encontro Nacional de Literatura Brasileira e Sociedade, organizada pela UFPE, UFRPE, UFPB e UFRN (evento online) no dia 10 de novembro de 2023.

[2] – FABRIS, Annateresa. O futurismo paulista. São Paulo: Ed Perspectiva Edusp, 1994.

[3] – Menotti Del Picchia. “Cartas a Chrispim II – Monteiro Lobato”. Correio Paulistano 11 de outubro de 1920. P. 3 IN BARREIRINHAS, Yoshie Sakyama. Menotti Del Picchia, o gedeão do modernismo. São Paulo. Civilização Brasileira, 1983. pág. 159.

[4] – Menotti Del Picchia. “Monteiro Lobato acadêmico”. Correio Paulistano. São Paulo. 14 de julho de 1921 p. 3.

[5] – Menotti Del Picchia. “Ainda Brecheret…”. Correio Paulistano. São Paulo. 21 de abril de 1921, p. 3. IN BARREIRINHAS, … op. cit.p.207,

[6] – Menotti Del Picchia. “Palestra das segundas”. Correio paulistano. São Paulo, 14 de novembro de 1921, p.3 IN BARREIRINHAS, op. cit. p295.

[7] – Menotti Del Picchia. “Matemos Peri!”. Jornal do Comércio, n 83, 23 de janeiro, 1921. P.3. Republicado em Barreirinhas, Yoshie Sakyama, op. cit. p. 194.Mário de Andrade responderá a esse artigo, em “Curemos Peri”, publicado em A Gazeta, em 31.01.1921. (Transcrito em: ALVIM, Fernando J. da Silva e. Mário de Andrade e o romantismo brasileiro.: tradição, imaginário e consciência histórica nacional. São Paulo. Dissertação: FFLCH, 2012 – agradeço à colega Tâmera Abreu pela indicação.) Não é minha intenção aprofundar aqui as ressonâncias do artigo, tanto em relação ao texto que Mário de Andrade publicou contestando-o, quanto em relação a outros tetos em que Del Picchia volta a tratar do assunto. Minha intenção será buscar os “antecedentes” desse artigo em textos de Lobato.

[8] – Idem.

[9] Idem, p. 195.

[10] – LOBATO, Monteiro. Urupês. 15ª. São Paulo: Companha Editora Nacional, 1935

[11] – Idem, p. 13.

[12] – Idem, p.21

[13] – Idem, p,22

[14] – Idem p.23

[15] – Idem p. 24

[16] – Idem, p.24.

[17] – Vale sublinhar que nessa discussão sobre o caipira e – no limite –, sobre o homem brasileiro, o preto é apenas citado em relação à Lei Áurea, sem nenhum protagonismo na formação “racial” do país.

[18] – Idem p.36/37.

[19] – LOBATO, Monteiro. “A propósito da Exposição Malfatti”: São Paulo. O Estado de São Paulo. Republicado como “Paranoia ou mistificação” em LOBATO, Monteiro. Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1919. In Ideias de Jeca Tatu. 9ª. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.

[20] – DEL PICCHIA, Menotti (Helios). “Por que sou Jeca Tatu”. Correio Paulistano. São Paulo. 10 de março de 1920, p. 3. IN BARREIRINHAS p.95

[21] – DEL PICCHIA, Menotti (Helios). “A nossa raça…”. Correio Paulistano. São Paulo.12 de março de 1920, p. 3 IN BARREIRINHAS,

[22] – Idem.

[23] – Idem.

[24]– DEL PICCHIA, Menotti (Helios). O Nariz de Cleópatra. Fantasias e crônicas. São Paulo. Monteiro Lobato & C. Editores, 1923.

[25] – Idem, p. 24.

[26] – Menotti Del Picchia. “O problema estético em face do fenômeno étnico paulista”. Correio Paulistano. São Paulo. 7 de setembro de 1922.p.2.

[27] – Idem.

[28] – Idem.

[29] – Idem.

[30] – Idem.

[31] – Menotti Del Picchia. “Coisas brasileiras”. Correio Paulistano. São Paulo. 24 de outubro de 1923 p,3,

[32] – Idem.

[33] – Idem.

[34] – Idem.

50 anos de conquistas

Raquel Arnaud, no vão do MASP, em 1983. Crédito: Arquivo pessoal
Raquel Arnaud, no vão do MASP, em 1983. Crédito: Arquivo pessoal

Talento, perseverança e atitude marcam a história de Raquel Arnaud, uma mulher determinada, que na década de 1970 rompe a arrogância do mundo masculino do mercado de arte para tornar-se uma das galeristas brasileiras mais bem-sucedidas dos últimos 50 anos.

Raquel nasce em Guaratinguetá, onde faz o primário, e aos 10 anos muda-se com a família para São Paulo, cidade promissora que já naquela época mantinha a Bienal de São Paulo, a segunda manifestação de arte do gênero mais importante do planeta.

Nesse novo cenário, ao mesmo tempo em que cursa o colegial, frequenta o Museu de Arte de São Paulo. “Esse contato com o MASP foi determinante para mim. Lá frequentei as aulas de história da arte com o professor [Wolfgang] Pfeiffer, que me abriu os olhos para o tema”. Em 1954 Raquel ingressa na Escola Livre de Sociologia e Política, experiência que ela rejeita depois de concluído o curso porque preferia a arquitetura, que sempre considerou algo maravilhoso. Com certeza esse aprendizado no campo sociológico amplia sua narrativa e a ajuda forjar o forte caráter que tem como galerista.

Pouco depois ela entra para a família Segall, ao se casar com Oscar, filho do pintor modernista, vai morar com ele na casa projetada pelo arquiteto Gregori Warchavchik, onde hoje funciona o Museu Lasar Segall. “Apesar de breve, o período que convivi com o casal, Lasar e Jenny, foi fundamental para mim, especialmente pelo relacionamento com dona Jenny. Um dia ela me pediu para ajudá-la a organizar os quadros de Lasar Segall (1891-1957) que iriam para uma exposição itinerante no exterior, logo depois da morte dele”.

Em 1968 Raquel se separa de Oscar, trabalha com Alcântara Machado, conhecido organizador de feiras têxteis com desfiles de moda. “Trabalhamos juntos algum tempo e, quando o professor Pietro Maria Bardi, diretor do MASP, soube que eu estava envolvida num setor comercial, não gostou. Ele me disse: “Não quero você trabalhando com pessoas de negócios. O meu museu precisa de alguém que conheça Van Gogh”. Com isso Raquel entra para a equipe do MASP e o professor Bardi foi muito receptivo com ela. “Aos poucos fui assumindo alguns papéis dentro do museu, inclusive nas exposições”.

A Lina Bo Bardi tinha chegado da Bahia e Raquel trabalhou com ela. “Foi um ótimo aprendizado, a gente foi fazendo lentamente um trabalho muito bonito, porque a Lina pertencia à vanguarda da época. Era uma pessoa que já pensava diferente do Bardi, uma arquiteta criativa em todos os sentidos”. Basta lembrar que Unidade Tripartida, obra de Max Bill premiada na 1ª Bienal de São Paulo em 1951, já fora exposta no MASP em 1947, quatro anos antes da Bienal, quando a Lina dava aula sobre Bauhaus, movimento ao qual o artista suíço estava engajado.

Raquel tinha planos pessoais fora dos limites do museu e em 1973 deixa o MASP e se une a Mônica Filgueiras, uma jovem de energia contagiante, que ela conheceu em sua passagem pela casa de leilões Collectio. Juntas abrem o Gabinete de Artes Gráficas, na Haddock Lobo, trabalhando com papeis, gravuras e desenhos. Em paralelo, Raquel também atuava na Arte Global, galeria que pertencia à Rede Globo.

Essa experiência foi expressiva naquele momento, mas ela perseguia uma carreira solo, então em 1980 anuncia sua nova galeria, o Gabinete de Arte Raquel Arnaud, na Av. 9 de julho. “Foi um momento muito bom para mim quando passei a expor artistas contemporâneos importantes”. O dinamismo estético dos geométricos a contamina e o impulso teórico convincente de Willys de Castro a convence e abraçar o movimento artística e comercialmente. Afinal, toda vontade de vencer tem que identificar-se com algo forte. Assim, ela se acerca da obra de Sérgio Camargo, Franz Weissmann, Tomie Ohtake, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Arthur Luiz Piza, Anna Maria Maiolino, Leon Ferrari, Carmela Gross, entre tantos outros.

Em 1977, lança um dos marcos de seu trabalho intelectual, a obra Caixa Preta, com desenhos de Julio Plaza, artista espanhol radicado em São Paulo e poemas do escritor Augusto de Campos, recitados em disco por Caetano Veloso. Seu caminho construído com elenco de proa, se consolidara. Os anos seguintes são de sucesso com muitas exposições e debates. Em 1980 incorpora, como dimensão de suas referências, uma safra de jovens artistas já conhecidos no mercado. “Foi quando passei a trabalhar com José Resende, Waltercio Caldas, Tunga, entre outros talentos”.

Todo profissional tem sempre como referência um personagem que admira, com Raquel não foi diferente. Como muitos galeristas internacionais ela se encanta com o trabalho da lendária Denise René, alter ego das artes em Paris nos anos de 1950/1960. A grande dama foi uma das apoiadoras da arte cinética, fato que influenciou Raquel. Sob o carisma da amiga exibe obras de dois expoentes da arte cinética, os artistas venezuelanos Cruz-Diez e Jesus Soto.

Um dos projetos que Raquel tem muito orgulho é a criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC). Com ele, ela define um espaço social ampliado. “A ideia é a disponibilizar para a pesquisa uma documentação sobre a obra de artistas brasileiros, além de promover seminários, curso e exposições”.

Hoje, com sua galeria instalada em um agradável espaço na Vila Madalena, ela mantém seu modelo conceitual de lidar com a arte. Continua a construir pontes com o rigor formal nas escolhas de obras e artistas, especialmente aqueles ligados ao geométrico, sem deixar de lado algumas fantasias reparadoras trazidas por outras vertentes menos ortodoxas.

EXPOSIÇÃO ILUSTRA UM PROCESSO

Um longo caminho marca a história da Galeria Raquel Arnaud que, por 50 anos, vem contribuindo para a arte contemporânea de forma singular, como atestam as mais de 500 exposições realizadas entre 1974 e 2023. A recém-aberta coletiva Galeria Raquel Arnaud – 50 anos, com a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e da curadora adjunta Marina Schiesari, traz um caráter documental ao registrar todas as mostras e os artistas exibidos pela galerista ao longo dos anos.

Embora o circuito de arte enfrente hoje um público emancipado, que entende muito mais de arte do que há 50 anos, Jacopo Crivelli Visconti optou por uma exposição quase pedagógica em que o espectador pode acompanhar, sem susto, o percurso de uma produção voltada praticamente ao abstracionismo geométrico.

O que parece desacordo é um ganho. A mostra não foi pensada apenas para experts, mas desenhada especialmente para o visitante ativo e participativo, disposto a conhecer artistas que hoje em dia seria difícil associar a sua passagem pela galeria. Fica latente na montagem que a preocupação principal da galerista, em todo seu percurso, foi manter a preservação e a catalogação das obras, principalmente nos últimos 20 anos. A exposição constitui-se como documento vivo sobre um projeto coerente que demostra como Raquel defendeu a classe artística. Um dos exemplos é a criação do IAC – Instituto de Arte Contemporânea criado para manter as obras dos artistas protegidas.

A ideia da exposição nasce para celebrar a Raquel galerista o que Jacopo garante ter seguido estritamente. A coletiva tenta ser objetiva, imersiva e funcional ao mergulhar no arquivo que se converte em material documental, com o qual se criou um discurso expositivo com diversas linguagens experimentadas por grande parte dos artistas brasileiros de renome. Por trás de cada registro das obras há um número considerável de fotografias, cartas, catálogos, convites de exposições.

A escolha da linha do tempo como processo expositivo deu um caráter singular à mostra. Nela estão todos os títulos de todas as exposições realizadas ao longo da trajetória de Raquel Arnaud, além de todos os artistas que expuseram nesses 50 anos. Raquel lamenta que, de alguns deles ela não conseguiu a documentação completa. “No início de meu trabalho como galerista praticamente não existia a prática de catalogação, assim parte do que foi exposto naquela época estava na minha cabeça”.

A coletiva reúne documentos importantes como os textos de críticos, artistas e curadores que passaram pela galeria. Jacopo ressalta que justamente tudo isso compõe a segunda parte do projeto, que é a publicação de um livro, uma compilação de textos que deve sair no final da mostra, em maio próximo, quando se comemoram de fato os 50 anos da galeria. “Também queremos ilustrar a edição com imagens da exposição. A publicação será um contraponto à mostra e vai ser feita a partir de uma grande seleção porque Raquel trabalhou, com a maior parte dos artistas, críticos e curadores brasileiros, de vários períodos”. Ele considera essa compilação até mais importante do que a exposição.

A coletiva utiliza a linha do tempo, com opção de seriação cronológica, que no início do percurso funciona no sentido anti-horário. Os documentos mais antigos, a partir de 1974, estão perfilados sobre a parede e dão a volta no piso térreo. Seguem pela escada que leva o visitante ao piso superior e, neste ponto, é adotado o sentido horário que se desenvolve até chegar ao ano de 2023. Na verdade, esses dois sentidos se encontram diante das obras de Arthur Piza (1974) e de João Trevisan (2023), numa trama densa de continuidade, com um trabalho na frente do outro. Como fita de Möbius, que se refere ao símbolo do infinito, as obras estão assentadas em um traçado sem começo nem fim.

No processo da dinâmica expositiva, “é praticamente impossível fazer uma exposição com todas as obras, então a tentativa também foi manter um certo equilíbrio”, como observa Jacopo. O que une grande parte desses trabalhos é o olho da imaginação, a matriz de uma paixão geométrica que Raquel abraçou por influência de Willys de Castro, no início de tudo. No elenco estelar, há artistas que foram fundamentais para ela no plano pessoal como Hercules Barsotti e Sérgio Camargo, dois amigos que ela considera quase irmãos. Num exercício dentro do processo conceitual, aparecem artistas que foram simbólicos nessa trajetória e agregados por analogias de conceitos. Raquel cita Regina Silveira que se abriu para várias discussões. Há ainda tantos outros como Nuno Ramos, Carlito Carvalhosa, e Frida Baraneck.

A flecha atravessa décadas, aponta para a tendência internacional do mercado sempre tensionada pelo novo, como atesta a obra do Tunga que dialoga simultaneamente com diversas linguagens. “Há obras que foram inscritas na galeria, depois foram embora, agora voltaram e, na medida do possível, a gente conseguiu incorporá-las”, comenta Jacopo. Com montagem atípica, os trabalhos instalados esparsamente pela galeria estão contextualizados com os documentos expostos na parede. Para o curador, o mais importante da mostra está justamente na parede.

Há destaques históricos da década de 1970 quando tudo fluía com rapidez. Jacopo lembra que a média das exposições desse período era de três semanas, e ainda com catálogos caprichados, como os de Antônio Manoel e Regina Vater. “O clima do mercado de arte paulistano daquela época era mais lúdico e menos competitivo”, acrescenta Raquel.

Com o lançamento do livro, novas releituras sobre a arte geométrica e seus desdobramentos devem colocar na pauta personagens emergentes, confrontações, conquistas e reflexões sobre as origens desse movimento, que tem alguns protagonistas brasileiros e hispano-americanos reconhecidos internacionalmente.