Há quase duas décadas, Luiz Marques trocou aquele que foi seu principal campo de pesquisa – a história da arte e, mais especificamente, a arte italiana da Renascença – para abraçar um tema urgente e complexo: a crise ambiental avassaladora, que se configura como o grande desafio existencial do nosso tempo. Seu primeiro livro sobre o tema, Capitalismo e Colapso Ambiental (2015), faz um alentado balanço da situação, compila e destrincha uma quantidade avassaladora de dados e demonstra com clareza a conexão inexorável entre um modo de vida insustentável e seus efeitos absolutamente deletérios sobre a natureza. A obra, que já está em terceira edição e foi mais recentemente traduzida para o inglês, ataca o que Marques define como três ilusões concêntricas: o mito do capitalismo sustentável, a crença de que quanto mais excedente temos, mais segura é nossa existência e, por fim, a ilusão antropocêntrica, uma falsa presunção de superioridade da espécie humana.
Em entrevista à revista, o ex-curador do Masp e professor aposentado da Unicamp fala sobre as crises convergentes e aceleradas que colocam a humanidade diante da necessidade de uma profunda transformação, não sucumbindo a uma paralisia que se assemelha ao pânico.”
Há poucos meses, Marques lançou O Decênio Decisivo – Propostas para uma Política de Sobrevivência, no qual desdobra suas investigações de forma ainda mais propositiva, sublinhando mais uma vez que “o tempo é nosso maior inimigo”. E prepara-se para escrever uma terceira obra, em que pretende abordar as instabilidades mais recentes, o que vê como uma nova fase não prevista pelos modelos climáticos, precipitada pelas guerras.
Em entrevista à revista, o ex-curador do Masp e professor aposentado da Unicamp fala sobre as crises convergentes e aceleradas que colocam a humanidade diante da necessidade de uma profunda transformação, não sucumbindo a uma paralisia que se assemelha ao pânico, e sobre as possibilidades e limites de ação da cultura nessa questão. Afinal, como diz Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas e citado na orelha de O Decênio Decisivo: estamos andando sobre gelo fino.
arte!✱ – Uma primeira curiosidade: o que o levou a fazer essa guinada no seu assunto de interesse, passando da história da arte para a nossa tragédia ambiental?
Já perguntaram muitas vezes isso, acho que é um processo mais ou menos lento. No começo não sabia responder, inventei uma narrativa da qual desisti, porque acho que ela não é muito real. Sei lá, as pessoas mudam. Responderia que não sei porque as outras pessoas não mudaram ainda. É uma situação de tal maneira avassaladora… Você é de tal maneira bombardeado com isso que, ou enterra a cabeça na areia, ou toma alguma atitude.
arte!✱ – Em seu primeiro livro você enfrenta logo dois grandes monstros: a crise ambiental e o capitalismo.
Porque não há dúvida nenhuma de que um sistema como o capitalismo, muito globalizado e expansivo, muito belicoso, é muito destrutivo. Ele se choca contra os limites do planeta. Seja do ponto de vista de recursos, seja do ponto de vista do equilíbrio do planeta. Os sistemas da biosfera têm equilíbrios que são dados. No holoceno você tinha um sistema climático bastante estável, relativamente previsível, com quatro estações ao ano, desde o final do último degelo. Esse sistema permitiu a agricultura, o sediamento de populações cada vez maiores em seus territórios. Ele foi sempre considerado como uma espécie de moldura, um dado das civilizações. Podiam ocorrer alguns eventos climáticos extremos, que às vezes destruíram uma civilização ou outra, mas não era um fenômeno global. Pelo contrário, o sistema climático era benigno para as culturas.
E aí você tem um sistema industrial como esse, que é excepcionalmente expansivo. Peguemos o carvão, por exemplo. Entre meados do século 18 até 1913 – às vésperas da Primeira Guerra Mundial –, a Inglaterra tinha aumentado sua produção 192 vezes. Isso nunca tinha acontecido na história da humanidade. Nunca nenhum sistema foi capaz de crescer a uma taxa exponencial dessas. Estamos já no cheque especial, roubando recursos do futuro. Agora há também a chamada transição para a eletrificação do transporte, levando a uma exploração brutal de todos os insumos para criar baterias.
arte!✱ – É uma falácia a ideia de crescimento sustentável?
Claro. Você tem uma enorme exploração do cobalto, de lítio, em alguns países muito pobres. No caso do cobalto, o acaso quis que grande parte do cobalto mais concentrado esteja na República Democrática do Congo, que está sendo brutalmente espoliada por causa disso. Você tem ainda as últimas fronteiras de recursos no mar e está claramente diminuindo a disponibilidade de recursos.
arte!✱ – Você diz que, quando as pessoas questionam a possibilidade de acabar com o capitalismo, responde: “O que seria mais irrealista: acabar com o capitalismo ou permanecer nele?”.
Exato. É fato que, de uma forma geral, a mentalidade que prevalece é a de que o capitalismo é um sistema dado e sem alternativa possível. Isso se explica em parte pelo fato de que a experiência socialista no século 20 foi muito malsucedida, gerou distorções enormes, crises, massacres. Com o fim da União Soviética e a conversão muito forte da China para o capitalismo, você perde referências históricas importantes ligadas à questão do socialismo. E isso só reforçou uma percepção muito triunfalista do capitalismo. Essa ideia da inevitabilidade do capitalismo tem ainda muito prestígio. Qualquer possibilidade de contestar esse sistema não é considerado exatamente realista, mas infantil, pueril.
arte!✱ – Como um destino manifesto. Você procura desconstruir essa ideia e menciona a existência de três ilusões concêntricas a serem superadas para que pensemos novos cenários.
Basicamente, o que percebemos é que todas as tentativas de corrigir esse rumo, os tratados internacionais da diplomacia, as pressões contra a destruição da biodiversidade, a luta contra a desertificação, tudo isso fracassou. Muito pelo contrário, estamos hoje mais distantes dessas metas do que quando esses tratados foram confirmados. É um fracasso. O que mais caracteriza os nossos dias é a aceleração. Eu diria mesmo que em alguns casos a precipitação, o caos mesmo. O Rio Grande do Sul é um dos exemplos. Se olharmos um pouco mais à volta, para além do Brasil, veremos que acontece exatamente as mesmas coisas em vários lugares do mundo. Os picos de calor hoje são cada vez mais letais. O serviço metrológico norte-americano considera temperaturas acima de 39,4 °C como especialmente ameaçadoras para o organismo humano, uma vez a pessoa exposta a elas por muito tempo. O Washington Post fez agora um artigo bacana sobre isso, mostrando uma série de países e o número de dias em que essas populações ficaram expostas a temperaturas iguais ou superiores a 39°C. E é muito difícil você definir que alguém morreu por hipertermia. Evidentemente a pessoa morre por outras razões, por outras causas que são determinadas em última instância por essa exposição a ondas de calor muito grande, mas a causa mortis não fica bem identificada. Em todo o caso, em 2022 os serviços meteorológicos na Europa – que conta com dados com maior acuidade e transparência – mostrou que 61 mil pessoas morreram no verão de 2022 em decorrência direta de pico de calor.
…não há dúvida nenhuma de que um sistema como o capitalismo, muito globalizado e expansivo, muito belicoso, é muito destrutivo. Ele se choca contra os limites do planeta. Seja do ponto de vista de recursos, seja do ponto de vista do equilíbrio do planeta. Os sistemas da biosfera têm equilíbrios que são dados.
arte!✱ – É uma guerra…
É uma guerra. E é claro que os países com menos recursos vão sofrer mais e antes. Mas acho que é uma grande ilusão achar que os países ricos estão ao abrigo dessas questões, sobretudo se você pegar todos os países do norte do Mediterrâneo, Estados Unidos, Sudoeste americano…
arte!✱ – O que poderia mudar essa consciência? Você falou dessa questão do calor, e me veio à mente algumas imagens recentes dos macaquinhos caindo das árvores do México. Uma imagem terrível. Você acha que o recurso ao apelo visual, pode ajudar as pessoas a adquirirem maior consciência do problema?
Está acontecendo muito isso no Kuwait já há algum tempo, onde muitas espécies – sobretudo as espécies domésticas, gatos, cachorros etc. – não conseguem proteção no verão e morrem de calor. Quanto à questão da imagem, acho que sim. Veja, nunca estudei arte contemporânea, estudava a história da arte num período mais recuado. Portanto meu conhecimento de arte contemporânea é o de um consumidor qualquer, não estou muito enfronhado neste assunto. Minha percepção é que a arte contemporânea só muito recentemente começou a ser atraída por essa questão de uma maneira um pouco mais metódica, um pouco mais generalizada. Claro que você pode dizer que existe o exemplo X, Y, Z. Mas quando você vai numa Bienal, por exemplo, essa questão começa aflorar agora nas últimas edições. Mas mesmo assim são manifestações de muito pouco alcance.
Filmes como esse Não Olhe para Cima ou Wall-E talvez tenham um impacto muito maior do que todos as elaborações estéticas da arte contemporânea. Esse tipo de elaboração tem uma capacidade de impactar, de uma maneira que não é necessariamente deprimente, tem um poder muito grande ação de mostrar a situação.
arte!✱ – Outro exemplo que me ocorre não sei se você viu, mas eu acho que é fascinante, é Caverna dos Sonhos Esquecidos, sobre as cavernas de Chauvet, na França, ao lado de uma usina nuclear, com aquela floresta tropical no meio da França. Aquilo é um retrato perfeito disso que estamos tratando, não?
É um filme super bonito, bem-feito. Eu gostei bastante desse filme também. Mas estamos descobrindo aqui e ali algum filme, não um gênero. O que nós temos hoje, que é de grande audiência, é um gênero pós-apocalíptico. Você tem filmes de distopia do futuro, em que a Terra está completamente detonada. O Preço do Amanhã, por exemplo, é um filme em que as pessoas vendem o seu tempo de vida. É um mundo destruído, essa estética do Cyberpunk. Basicamente uma sociedade de alta técnica e de baixo nível de vida, como Blade Runner, por exemplo. Um filme de 1982 que inaugura efetivamente uma fase importante, uma nova fase em que o futuro é imaginado de uma maneira muito negativa. Por outro lado, a série que talvez tenha feito o maior sucesso na televisão de todos os tempos, é Star Trek (1966), cuja tripulação era composta de várias nacionalidades, tinha um russo, um japonês, um escocês, uma negra, e assim por diante, todos eles liderados pelo Capitão Kirk, que era um americano branquinho e loiro. Tinha até um cara que era semi-humano, o Capitão Spock. Era esse o mundo do pós-guerra, um mundo em que a guerra tinha sido superada, havia um Congresso mundial que havia designado a missão do foguete para ir levar a humanidade para novos limites. Isso fez um sucesso extraordinário e é um dos últimos exemplos de um futuro imaginado positivamente. A partir de Blade Runner temos, ao contrário, uma reversão desse imaginário, que começa a ser pensado sempre cada vez mais de uma maneira mais negativa. E isso virou um novo gênero, muito associado à crise ambiental.

arte!✱ – E que corresponde à percepção geral, não? Se levantarmos os termos usados temos emergência, colapso, hecatombe, falência… A ficção científica está virando realismo?
Então, acho que como ela é muito fortemente produzida por Hollywood, pelo cinema americano – que permanece o cinema mais popular –, ela jamais coloca em questão aquilo sobre o qual nós estamos falando: esse binômio capitalismo x colapso. Não é necessariamente que eles saibam e ignorem. É que eles não pensam assim. A indústria cultural americana tem um limite que é muito claro: a ideia que você tem uma situação de injustiça, que pode ser corrigida no horizonte da democracia americana. E isso faz parte do mundo deles.
arte!✱ – Pode ser oportunista ou pode ser só essa paralisia semelhante ao pânico, que você menciona?
Isso se dá muitas vezes no âmbito do indivíduo ou de um grupo muito restrito de pessoas, que reage a uma situação maior. O que está em jogo é sempre uma tensão entre o indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos e um sistema de forma geral. Sempre aparece um cientista, que alerta para um problema, e governantes não levam em consideração o que ele diz. Mas ele tinha razão. E daí acontece então a catástrofe. Quando ela acontece você tem a mobilização da sociedade americana, que de alguma maneira leva à resolução do problema. Esse sistema é o que temos hoje na indústria cultural e ele é muito aquém de qualquer pretensão à uma análise mais estrutural da situação contemporânea. Essa produção pode ser muito melhorada, mas eu acho que ela tem limites também. E, de outro lado, uma produção mais analítica, mais reflexiva, não tem – ou raramente tem – um alcance, uma audiência de massa.
arte!✱ – Com um papel limitado, portanto?
Eu acho que isso faz parte de uma questão que me é muito cara, que marca muito uma divergência minha com muitos amigos e colegas, que têm um grande apreço pela arte contemporânea. Que é a ideia de que a arte, como fenômeno social, se transformou em algo muito menos relevante do que ela era no século 19 e para trás. Quando você pega uma figura como Nietzsche, por exemplo, que briga de morte com Wagner quando ele faz Parsifal, porque era um tema religioso, um tema cristão, aquilo era muito importante. Era ideologicamente, existencialmente muito importante. Imagine se agora alguém vai fazer uma briga, se um grande filósofo vai brigar com um grande artista por causa do tema que ele escolheu para fazer uma ópera. Você percebe que essa grande abertura, a permissividade, o culto à transgressão do limite, que é típico das artes de vanguarda, da tradição das vanguardas – o termo é um pouco paradoxal, mas é uma tradição – levou a que, de alguma maneira, a transgressão se banalizasse. Você tem, portanto, uma homogeneização de transgressões, e aquilo que é o modelo propriamente dito de uma exposição de arte contemporânea é um monte de estandes em que cada um transgride da sua maneira. Aquilo não é mais transgressivo, porque se você só transgride quando há uma norma. Não estou criticando, nem lamentando…
arte!✱ – Você está analisando essa contradição e os limites de alcance da produção contemporânea?
Peguemos a Divina Comédia, de Dante. É um poema nacional, popular, que as pessoas da geração dos meus pais sabiam de cor. Aquilo é uma arte erudita, é uma arte popular? É os dois ao mesmo tempo. Uma fachada de uma igreja gótica, é uma arte erudita, é uma arte popular? É algo com uma enorme capacidade de criar um senso de identificação, um senso de comunidade naquelas pessoas. Quando as pessoas entravam em guerra, elas iam e queimavam a igreja do outro. Queimar a igreja do outro é fundamental, para afirmar sua própria igreja… Esse tipo de relação entre o imaginário e a energia social é alguma coisa que hoje em dia não temos mais. Temos um entretenimento, que é muito legal, que é muito interessante, mas que não tem mais essa função, essa capacidade de dizer o que a sociedade pensa de si mesma, com a força que aquilo tinha, com a capacidade de levar à guerra. Acho que a arte perdeu essa centralidade. Paciência, aconteceu. Posso estar enganado, posso não estar vendo uma dimensão que talvez recupere isso.
É um fracasso. O que mais caracteriza os nossos dias é a aceleração. Eu diria mesmo que em alguns casos a precipitação, o caos mesmo. O Rio Grande do Sul é um dos exemplos. Se olharmos um pouco mais à volta, para além do Brasil, veremos que acontece exatamente as mesmas coisas em vários lugares do mundo. Os picos de calor hoje são cada vez mais letais. O serviço metrológico norte-americano considera temperaturas acima de 39,4 °C como especialmente ameaçadoras para o organismo humano, uma vez a pessoa exposta a elas por muito tempo. ”
arte!✱ – Talvez ela tenha sido deslocada, pelos conservadores, para o campo a ser combatido? Algo a ser aceito ou descartado de forma unívoca?
In totum! Você está falando aí no caso mais extremo do fascismo, da extrema-direita. Algo como o que Goebbels falava: “Quando eu ouço a palavra cultura, saco meu revólver”. É um pouco essa ideia. No caso da Alemanha dos anos 1930 era um pouco a reação àquilo que eles chamavam de “excesso de cultura”, porque a Alemanha naquele momento era um país fantasticamente embebido em arte, música, literatura, happenings… E o nazismo vai aparecer, portanto, como um destrutor. Mas eles vão fazer também a exposição de Arte Degenerada para mostrar que aquela arte era ruim, mas tinha uma arte boa, da tradição alemã. Ainda assim havia uma reivindicação importante de que a arte como um elemento importante. Na Exposição Universal de 1937, o estande da Alemanha nazista tinha esse lado épico, figuras muito musculosas, heroicas – aliás parecido com o realismo socialista. Acho que essa importância que a arte tinha nos anos 1930 ela já não tem mais. Se você pegar uma feira internacional qualquer, essa questão não está fortemente presente. Os caras vão mostrar o último computador que eles fizeram, a inteligência artificial, performances tecnológicas, basicamente. O imaginário artístico perdeu a sua linguagem. Mas acho que aquilo que você falou, a questão visual é muito importante.
arte!✱ – Sim, pensemos a imagem num sentido mais amplo…
Antigamente era quase a mesma coisa. Agora não é mais. Hoje artes visuais – nome atual do curso de artes plásticas – é um conceito mais amplo, É resultado do fim da academia, uma instituição que definia “até aqui é arte, além daqui não é mais”. Agora não tem mais isso, certo?
arte!✱ – Uma das ilusões que você diz ser fundamental questionar é a ideia do antropocentrismo, que está muito vinculada a essa discussão sobre arte. Faz parte do mesmo processo?
Isso faz parte de um processo que fez com que a antropologia começasse a ser uma disciplina na universidade que englobasse as demais. E a antropologia, que coloca muito fortemente a questão da relatividade entre as culturas, de que não existe uma cultura que a superior às outras, abre a porta para dizer que não existe uma espécie que é superior às outras. E a gente hoje percebe muito claramente. A ciência nos diz hoje que a diferença entre os humanos e as outras espécies, do ponto de vista da capacidade de simbolização, é uma diferença de grau, não é uma diferença de qualidade. Tudo bem, a gente é capaz de fazer uma equação complicada ou de compor uma sinfonia, e a minha gatinha não consegue. Mas a capacidade que as espécies têm de encontrar uma expressão no imaginário está se mostrando cada vez maior. Aliás, saiu no jornal outro dia que os elefantes são capazes de se chamar pelo nome. Eles têm autoconsciência. Temos a famosa declaração de Cambridge que mostrou recentemente a autoconsciência de um conjunto muito grande de espécies, portanto a concepção de ser um indivíduo, de se reconhecer no espelho e assim por diante. A questão do antropocentrismo está sendo cada vez mais identificada com a crise da própria civilização.
arte!✱ – O antropocentrismo também está conectado com essa ideia de arte de que falávamos.
A gente sempre teve uma espécie de sucessão, uma galeria de características que nos distinguiam das demais espécies. A característica mais importante, eu falo isso no livro, é que nós sabemos que vamos morrer. Eu acho que a minha gata não sabe que ela vai morrer. Isso te dá um traço muito distintivo. Outro é a linguagem, óbvio. Essas duas coisas estão muito próximas. E a gente produz lixo. As outras espécies não produzem lixo e sim nutrientes para outras espécies. E a gente produz plástico, produz substâncias químicas que são muito estáveis e, portanto, não são suscetíveis de serem integradas no ciclo de degradação e renascimento. Isso é um traço muito característico nosso. As outras características são compartidas: a gente faz guerra, os outros animais também fazem; a gente tem uma capacidade de simbolização incrível, eles também têm, algumas vezes fantasticamente. Às vezes você vê um peixinho que faz todo um desenho na areia para atrair a fêmea e ela olha para aquilo, não acha bacana e vai procurar outro macho. Ninhos de alguns passarinhos têm uma característica claramente estética… O que estamos percebendo hoje é que tivemos uma enorme ilusão, de que nós éramos uma espécie qualitativamente distinta das outras espécies. E, portanto, o planeta virou um recurso nosso. Temos o direito de dispor do planeta como um meio para o seu fim. Nós somos a finalidade, e isso é claro que é uma ilusão.
arte!✱ – Daí a importância da importância de discursos de quem não está contaminado por essa lógica, como os povos originários?
Acho que um dos grandes elementos que mostram um avanço grande – não tivemos apenas regressão – é a presença do discurso indígena na política brasileira. Dez, 15 anos atrás era motivo discussão entre três antropólogos. Hoje eles têm uma presença, não diria no centro da política brasileira, mas não dá mais para eles serem ignorados. Têm uma voz firme e crescente, a meu ver. Não só os indígenas, mas também os negros, também as mulheres, os LGBT… Você tem um monte de comunidades que são cada vez mais presentes. Minha única reserva é que isso não deveria nos fazer perder de vista uma certa universalidade da espécie. É bacana que você tenha um grito de identidade e que ela se faça ouvir, que a diferença seja considerada uma coisa positiva, mas a diferença não significa necessariamente que você desreconheça o outro como parte de alguma coisa.
arte!✱ – Uma coisa que me intriga bastante é a questão dos “Verdes”. Não há uma certa hipocrisia em apoiar a guerra, o que aparentemente contribuiu para derrota deles nas eleições para o Parlamento Europeu? Será possível assistirmos nesse próximo decênio – que você diz ser decisivo – uma onda nova de renovação?
A gente não sabe. Tem que lutar por isso, tem que apostar no princípio de que isso pode acontecer. Tem alguns sintomas interessantes, como a presença dos indígenas sobre a qual estávamos falando agora, dos quilombolas, em suma, desses segmentos da sociedade que eram considerados marginais e que hoje reivindicam, com razão, uma centralidade e de alguma maneira conseguem se impor. E isso é uma lufada de oxigênio para a gente. Mas vamos conseguir dar um salto? É muito difícil que a gente consiga, embora seja importante apostar nisso. Porque até o século 20 era uma questão de encontrar um modo de vida alternativa ao capitalismo. Claro que isso permanece completamente verdadeiro. Mas há uma questão mais abrangente. O ponto é que somos uma civilização que deve tudo aos combustíveis fósseis. Para sairmos disso é preciso uma mutação civilizacional que é ainda muito maior do que contestar o capitalismo.
arte!✱ – Não é só uma batalha contra o “greenwashing” de grandes conglomerados. É muito mais profundo que isso?
Muito mais profundo. Contestar o capitalismo é uma das estações desse trajeto. Mas não é o ponto final. Porque você pode ter uma sociedade muito mais igual, com maior governança global etc., mas que ainda acredita que pode viver com os níveis atuais de consumo energético. E a gente não pode. E uma sociedade em que aqueles que não têm esse consumo têm que perder a expectativa de ter o consumo dos ricos. Quando a gente fala que a China acabou com 800 milhões de pessoas na extrema pobreza, como não bater palmas para isso? Mas qual é a expectativa do padrão de consumo? É ser todo mundo igualzinho à classe média americana? Não tem planeta para isso! Mas qual é o nível de consumo, o teto que a humanidade pode ter? Falamos muito em renda mínima. É fundamental, tem que ser muito maior do que essa que nós temos aqui. Mas é mais difícil falar na renda máxima. É preciso ter um teto muito mais baixo do que temos atualmente. Você tem que ter um imposto, que hoje o neoliberalismo chama de expropriatório, e que nos anos 1960, 1970 era um imposto normal nos países escandinavos. O Estado ficava com 80% do teu rendimento. Não estou dizendo qual é o número, mas é basicamente essa ideia de que você tem que ter uma sociedade na qual ninguém pode ganhar tanto, porque se esse cara ganha tanto ele tem um poder que é completamente assimétrico em relação a qualquer pretensão de democracia. Considerando uma situação como o Brasil em que você tem cinco ou seis pessoas que ganham mais do que os 50% mais pobres da sociedade brasileira, isso é de uma demência. E nos Estados Unidos é pior. Esse valor tem que desaparecer. Uma civilização na qual você tem mais do que aquilo que você precisa, isso é uma vergonha. Não é um mérito.
arte!✱ – O colapso não é só ambiental. Ele vem casado com o colapso social…
Um colapso da pirâmide de valores, um colapso ideológico. Uma questão que a gente vai ter que pensar, no meu entender, é que, com ou sem religião (não importa a religião, para mim isso é uma questão de convicção pessoal), vamos ter que ressacralizar a natureza. Você que ter um imperativo categórico, você tem que falar “não pode destruir uma floresta”, “não pode destruir um rio”, “não pode pescar demais”… A gente tem que ter um limite, restaurar o conceito de limite. Esse conceito é, a meu ver, a chave da mutação civilizacional. É preciso que o limite vire um valor positivo e não um valor negativo que você tem que transgredir.
arte!✱ – Uma das várias narrativas míticas a que você recorre é o da transgressão das Colunas de Hércules. Ou à imagem de Ícaro como metáfora da humanidade…
Exatamente. Carlos V, no século 16, transforma o conceito de Colunas de Hércules, que era um limite intransponível, para um conceito que ele vai chamar Plus Ultra e que vai ser seu emblema. Ou seja, ele ultrapassou as Colunas de Hércules, e é por isso que ele é meritório. Os gregos conheciam apenas um terço do mundo que nós conhecemos. E, portanto, nós somos melhores que os gregos. É, portanto, essa ideia de matar o modelo civilizacional. Enquanto no frontão do templo de Apolo em Delfos está escrito Nada demais. A ideia de limite, a ideia de que a hybris é fundamental.
arte!✱ – Valorizar essa quebra de limites é o nosso valor fundamental e também o veneno?
E o veneno. É isso que, a meu ver, tem que mudar. É preciso resgatar a ideia da virtude e da prudência novamente. A prudência não é valorizada, foi considerada algo próxima do covarde, o homem que não tem audácia, aquele que não tentou e, portanto, não conseguiu ser mais que os outros… A gente tem que ter uma sociedade em que prudência é uma bela coisa. O autocontrole é um valor tipicamente da Antiguidade. Porque o Júlio Verne tinha uma expressão típica do otimismo do século 19: “Tudo que a mente humana pode conceber, o engenho humano pode realizar”. Maravilha! Mas ele deve realizar? A gente pode imaginar uma coisa, mas temos que pensar que talvez não seja o caso de realizar aquilo que a gente concebeu, porque é imprudente. Você tem que incluir dentro da sua cogitação qual é o perigo, o princípio de responsabilidade, o princípio de precaução. Ícaro é aquele cara que quer voar mais alto do que o pai. E não é para ele fazer. O pai sabe alguma coisa, representa uma tradição, um saber sedimentado. Tem que ter uma tensão entre inovação e conservação e a gente perdeu esse equilíbrio, perdeu essa tensão que era criativa e que agora passa a destrutiva. Se eu sei fazer a fissão nuclear, eu faço uma bomba.
arte!✱ – E eles usam o termo bomba tática, como se não fosse nada.
É bem mais forte do que a de Hiroshima. Estamos voltando para um nível de enfrentamento que é demencial. Discuto muito com os amigos meus sobre a questão da guerra da Ucrânia e, longe de mim, ser um filoputiniano. Pelo contrário, acho que é um ditador sangrento da KGB, mas você tem que entender que existe alguma coisa mais importante, que é a sobrevivência da humanidade, do que saber se a Rússia está certa ou está errada. Ela não devia invadir, está bom, mas também a Otan não devia transgredir naquilo que ela mesma tinha se definido. Não acho que a gente tem que dar medalha de ouro, prata e de bronze para quem é pior, numa espécie de Olimpíada macabra. A gente tem de pensar na paz, que é um valor mais importante do que saber quem tem razão na guerra da Ucrânia. Não importa quem tem razão na guerra da Ucrânia se você tem diante de você uma potencialidade cada vez maior de uma destruição terminal. É uma guerra entre quatro potências nucleares! O conceito de risco está muito desvirtuado.
arte!✱ – Precisamos encontrar novas formas de combate nessa janelinha que você nos deu de dez anos e que é muito pequena. E olha que ela já começou a contar…
Bem menos. O que temos diante de nós é uma ultrapassagem de um crescimento da temperatura global de 1,5º C, cujos impactos foram muito subestimados. O próprio IPCC (International Panel on Climate Change) fala isso. E a cada décimo de grau que você aumenta, o impacto é desproporcionalmente maior do que o último décimo de grau que você ultrapassou. Então o impacto entre 1,5º C e 1,6º C é muito maior do que entre 1,4º C e 1,5º C.
arte!✱ – E quando passamos essas barreiras fica muito mais difícil reverter o estrago…
E você tem o desencadeamento do que eles chamam de alças de retroalimentação. Uma vez que você desencadeia um processo de degelo na Groenlândia não tem maneira de você parar aquilo, entendeu? Há uma irreversibilidade que é catastrófica. Agora, se você consegue atuar de alguma maneira para desacelerar este processo, você ganha tempo para adaptação, que é fundamental. Tempo é a chave da adaptação.

arte!✱ – Seu livro mais recente, O Decênio Decisivo, é uma releitura do Capitalismo e Colapso Ambiental ou são obras distintas?
Eu diria que sim, O Decênio Decisivo parte do Capitalismo e Colapso Ambiental, mas ele é um livro politicamente mais propositivo. A introdução do Capitalismo e Colapso Ambiental falava que não era sua intenção propor alternativas. O ponto do livro era tentar explorar o máximo possível a relação que existe entre um certo modo de produção e um certo efeito desse modo de produção. No segundo livro eu estava tentando fazer exatamente “propostas para uma política de sobrevivência”, que é o subtítulo do livro. E o terceiro livro, que eu estou escrevendo agora – nem sei o título que eu vou dar para ele ainda –, parte da ideia de que nós entramos agora numa outra fase, uma fase de aceleração ou de precipitação, que está nos levando já uma situação em que os impactos são maiores do que os modelos haviam previsto. E, em grande parte, não por culpa dos modelos climáticos e outros, mas porque eles têm por premissa que você mantenha uma certa regularidade do comportamento. E quando você tem uma situação de guerra generalizada, de proliferação de conflito, em que você bloqueia completamente qualquer proposta de cooperação internacional, de governança global, a situação se complica. O que vemos agora, ao contrário, é o estímulo a uma desconfiança cada vez maior entre os grupos sociais. Não sei se você está acompanhando os relatórios do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), que acompanha ano a ano os investimentos em armamentos internacionais. Agora em 2023 eles alcançaram 2,4 trilhões de dólares. No ano de 2022 tinha sido 2,2 trilhões de dólares, ou seja, tivemos um aumento de mais ou menos 200 bilhões de um ano para outro, o maior desde 2019. Isso sem levar em consideração todos os investimentos em orçamentos secretos, aos quais não têm acesso, mas por certo existem.
arte!✱ – E o que eles desovaram com essas duas guerras estão querendo produzir algo mais moderno, a “nova coleção”…
Exatamente, renovar seu guarda-roupa. E isso aí mostra claramente que estamos numa extensão de precipitação muito grande. A guerra é “o” fenômeno através do qual tudo se precipita. Mesmo que a gente não acabe numa guerra nuclear, a destruição da natureza, a intoxicação dos organismos, você mina o terreno, você mina o oceano, você tem efeitos que se prolongam por décadas e impedem qualquer progresso, no bom sentido do termo. Acho que estamos, desde o final do segundo decênio, desde a pandemia mais ou menos, numa nova quadra.
a gente sabe quais são os mecanismos, por que que a gente não é capaz de solucioná-la? A gente tem inteligência para isso, capacidade de educação para isso, a gente aprende rápido, somos seres sociais… Não tem desculpa para a gente simplesmente se deixar desaparecer ou se arruinar completamente por uma coisa que estamos produzindo e não sabemos porque estamos produzindo. É isso que tem que ser a raiz da indignação!”
arte!✱ – Diante desse quadro a pandemia até parece uma coisa fácil, um pequeno tropicão…
A gente já mais ou menos normalizou a pandemia. Eu não sei, por exemplo, por que milagre não houve ainda uma grande zoonose, uma grande nova epidemia na Amazônia. Você desmata aquilo de uma maneira tal, entra em contato com um monte de novos organismos, que são ponte de um monte de vírus que, se conseguirem passar para os humanos, terão ganho a sorte grande.
arte!✱ – Também temos esses vírus que reaparecem com o degelo.
Sim, congelados lá no Ártico, na Sibéria… O antraz, que matou não sei quantas renas lá na Sibéria, matou gente também, foi liberado pelo degelo. Mas aparentemente isso não foi muito divulgado. Tudo bem, é um grupo social muito isolado. Estamos numa situação muito complicada. E falar sobre isso sem tentar ao mesmo tempo propor alternativas é muito niilista. Não é essa a mensagem que tem que ser passada, mas ao contrário: Nós somos os produtores dessa crise. Portanto, somos responsáveis por sermos capazes de superá-la. Não é um meteoro! Se a gente produziu isso, a gente é capaz tem que ser capaz de alguma maneira de colocar um limite.
arte!✱ – É o freio de emergência, expressão com a qual Walter Benjamin define o conceito de revolução e que você cita…
Sim. Porque além de a gente ser o causador disso, a gente sabe que é o causador. O que é diferente de outros povos, que por uma razão ou por outra, desencadearam alguma crise, mas não sabiam de onde ela vinha e faziam estátuas para os deuses para tentar resolver. Não, a gente sabe! O mecanismo através do qual nós estamos colocando em risco a nossa existência. Então a gente produz esse mecanismo, a gente sabe quais são os mecanismos, por que que a gente não é capaz de solucioná-la? A gente tem inteligência para isso, capacidade de educação para isso, a gente aprende rápido, somos seres sociais… Não tem desculpa para a gente simplesmente se deixar desaparecer ou se arruinar completamente por uma coisa que estamos produzindo e não sabemos porque estamos produzindo. É isso que tem que ser a raiz da indignação! ✱