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Projeto feminista é destaque na BIENALSUR

Recuperemos
Vista da exposição Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, no Centro de Expresiones Contemporáneas de Rosario

O Projeto NUM é um grupo de artistas feministas, gestores e escritores que compilaram um livro documental sobre os impulsos criativos gerados em torno das mobilizações nacionais lideradas originalmente pelo movimento #NiUnaMenos. O projeto ocupa o Centro de Expresiones Contemporáneas, em Rosário, na Argentina, como parte da BIENALSUR.

A mostra, intitulada Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, se propõe a ser “um arquivo vivo, em constante movimento, que relaciona obras muito contemporâneas, criadas no calor da ação feminista, que não apenas denunciam a cisheteronorma (matriz de nosso sistema), mas possibilitam alternativas e releituras”. Uma outra proposta que também destaca o empoderamento  feminino foi inaugurada em Tucumán no último fim de semana de maio, a mostra Heroínas, com obras que incluem fotografias históricas das Mães da Plaza de Mayo.

A seguir confira entrevista com Mai Lumi, integrante do coletivo que realiza o Projeto NUM:

Quando o projeto começou? Como se organizam?

O Project NUM é um arquivo coletivo e documental que captura os impulsos criativos gerados e continua gerando os primeiros #NiUnaMenos, em 3 de junho de 2015. Somos Nina Kunan, Lucia Reissig, Laura Harness, Eugenia Salama e Mai Lumi, e trabalhamos no projeto desde meados 2015. Nos autoconvocamos com a idéia específica de captar este conteúdo em um livro, para dar espaço para as criações nascidas da nossa subjetividades neste contexto.

De onde surgiu a ideia de trabalhar artisticamente as questões do movimento NiUnaMenos?

Percebemos que o contexto de urgência sociopolítica nos desafiava individual e coletivamente e que as manifestações surgiram para além da própria militância. Era inevitável não ver como as ruas e as redes sociais estavam cheias de conteúdo. Nossa missão era condensar e arquivar esses trabalhos sem hierarquias. O movimento Ni Una Menos constitui politicamente uma experiência muito mais vasta do que a que realizamos no Proyecto NUM.

A ideia de trabalhar com a problemática feminista surge, no início, a partir do que vivia nos momentos anteriores ao primeiro dia 3 de junho. Neste contexto, com uma pulsão amorosa, criativa e rebelde que foi gerada nos meses antes e após os primeiros #NiUnaMenos apareceram fora do museu – na rua, na praça, nas salas de aula e nas redes sociais – imagens e narrativas que trouxeram à tona questões relacionadas à sexualidade, gênero e violência sexista. O Projeto NUM procurou juntar essas coisas, motivado pela crença de que a imaginação tem o poder de mudar a História, pela certeza de que, em cartazes, murais, curtas, reflexões, performances urbanas, intervenções em marchas há um grande potencial transformador e desestabilizador não apenas do cânone literário e artístico, mas da tradição heterossexista e patriarcal.

Quando surgiu a proposta de trabalhar com a bienal?

Enviamos a proposta para a chamada da BIENALSUR e fomos selecionadas. Nós sempre trabalhamos de autogestão. Na verdade, o livro foi financiado coletivamente com um Ideame [plataforma de financiamento coletivo]. Sempre quisemos reunir fisicamente os trabalhos em uma grande exposição e estávamos procurando uma ligação que pudesse atender às nossas necessidades. Mas a produção deixou muito a desejar e, desde o projeto, acabamos pedindo muitos recursos materiais e econômicos.

Quais são os temas relevantes nos trabalhos do projeto? E quais os formatos?

Há artes visuais, registro de desempenho, fotos, literatura, vídeo e instalações. O trabalho é feito por artistas e não artistas. Isso é importante: o projeto NUM nasceu do desejo de expressar impulsos criativos em resposta a um momento específico. Nesse sentido, este projeto tem uma carga muito forte em sua diversidade: pulsa o desejo de imaginar e refletir a partir da arte. Somos muitos e muito diferentes, mas esse desejo desafia todos nós, e é disso que trabalhamos. Tanto a arte quanto o feminismo são infinitos em sua subjetividade, não pretendemos representar um movimento inteiro ou manifestar uma mensagem especial, apenas possibilitar um espaço. Portanto, há artistas de trajetória como Ana Gallardo ou Fátima Pecci Carou e também professores de artes plásticas, trabalhadores da arte, da cultura, jornalistas, ativistas, estudantes, etc. As obras são coletivas e individuais.

As artes visuais adentram a Flip

Laura Vinci
Laura Vinci, No Ar, exposta no Mube em 2017, será adaptada para a Flip deste ano - foto Nelson Kon/ Divulgação

A tradicionalíssima Festa Literária Internacional de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, que este ano ocorre entre os dias 10 e 14 de julho, nunca deixou de se reinventar e de explorar novidades para compor suas estruturas. Esta será a 17a edição do evento e tem curadoria da jornalista e editora Fernanda Diamant, uma das criadoras da revista Quatro Cinco Um, especializada em literatura. O homenageado da vez é o escritor e jornalista carioca Euclides da Cunha (1866-1909), autor do aclamado livro Os Sertões, considerado por muitos uma obra que inicia o jornalismo literário no país, muito antes do termo existir.

Dentre as transições e as novidades, a organização da Flip, que tem direção geral de Mauro Munhoz, anunciou um desejo de fomentar o desenvolvimento de atividades ligadas às artes visuais no itinerário do evento, para além daquilo que já acontece espontaneamente pela cidade. É desta forma que foi apresentado o projeto Terra Nova, um módulo de artes visuais que pretende realizar intervenções que se integrem de certa forma à Paraty: “Desde o começo, a Flip tem a intersecção entre as artes em seu DNA. Ano após ano, fomos construindo uma aproximação entre diferentes experiências artísticas, inclusive as artes visuais. Agora, sentimos a necessidade de fazer essa relação se manifestar de maneira mais visível. O Terra Nova é um dispositivo artístico para iluminar questões que permeiam o território da cidade, seus moradores e seus visitantes. Uma das missões da Flip é investigar como a arte pode ajudar a qualificar o olhar das pessoas para as relações humanas produzidas em espaços públicos, e o Terra Nova vai propor mecanismos de percepção deste território e de suas complexidades através da arte”, disse Mauro à ARTE!Brasileiros.

O projeto foi lançado no início de junho durante evento na Casa do Parque, em São Paulo, onde foi apresentado o programa de patronos especialmente desenvolvido para essa iniciativa. O plano de mecenato é voltado a pessoas físicas e é a forma principal e exclusiva de viabilizar essa ideia. As pessoas que desejarem contribuir com o projeto terão alguns benefícios como ingressos, acesso preferencial à programação principal da Flip que ocorre no Auditório da Matriz, convites para outros eventos realizados pela organização da feira e obras exclusivas de Laura Vinci, artista confirmada para participar da primeira intervenção do Terra Nova.

Convidada pela curadora, Vinci irá apresentar a sua instalação No Ar, apresentada pela última vez em 2017, no MuBE, em São Paulo, e que já passou por diversos lugares, inclusive por alguns países na Europa. Outras intervenções ainda estão sendo discutidas por questões de viabilização orçamentária, até mesmo por isso a apresentação do programa de patronos foi crucial para que tudo começasse a ser estabelecido.

A escolha de No Ar para integrar a estreia do projeto foi discutida entre a artista e a curadora: “É um trabalho que tem essa caraterística de se adaptar muito, ele se reinventa no lugar. Ele é um trabalho que é bruma, é só vapor. Então ele se adere fácil à situação espacial. Tem trabalhos que exigem espacialidades específicas e o No Ar não, ele só precisa de água”, conta a artista. A fluidez do vapor na obra de Laura faz com que o público possa descobrir formas diversas nas variações que a fumaça cria no espaço, além da característica do trabalho em si transformar o local onde está.

Sobre a interdisciplinaridade que permeia a Flip e a proposta de inserir as artes de maneira mais pontual, Laura não tem dúvidas de que é o país vive um momento em que colaboração entre as áreas é algo necessário: “Isso é uma coisa muito importante para nós, ampliar isso e fortificar essas relações”, ela diz. Para ela, existem algumas áreas que se vinculam de forma mais pontual e forte com a literatura, como o cinema. “Nas artes visuais isso não é tão claro, mas acho que a gente pode começar a achar esses encontros”, ela comenta ao citar como exemplo dessa confluência a sua obra Máquina do Mundo, que se debruça sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade.

O poema também é ponto de partida para outra intervenção que será realizada na Flip: Máquinas do Mundo, uma performance do núcleo de arte da mundana companhia de teatro, do qual Laura faz parte junto a Roberto Audio, Flora Belloti, Yghor Boy, Guilherme Calzavara, Beatriz Camelo, Diogo Costa, Alessandra Domingues, Wellington Duarte, Ivan Garro, Luah Guimarães, Flora Kountouriotis, Cesar Lopes, Renato Mangolin, Rafael Matede, Mariano Mattos Martins, Diego Moschkovich, Rogério Pinto, Joana Porto, Tarina Quelho, Roberta Schioppa, Marília Teixeira e José Miguel Wisnik. A iniciativa tem como proposta “diminuir a distância entre narrativa e arte visual, entre a instalação e a ação de atores”.

Artes visuais no Auditório da Matriz

Na programação mais disputada da Flip, que acontece em um auditório montado dentro da Igreja Matriz da cidade de Paraty, as artes visuais também estarão presentes em diversos formatos. Na quinta, 11 de julho, a fotógrafa Maureen Bissiliat será entrevistada por Miguel de Castillo e Rita Palmeira na mesa 6, intitulada Serra Grande.  A  fotógrafa inglesa radicada no Brasil dedicou-se ao encontro entre a palavra, a imagem e a geografia ao longo de sua trajetória, conhecida especialmente por seus trabalhos com os povos do Xingu.

Na mesa 12, Mata de Corda,  a artista Grada Kilomba é interrogada por Kalaf Epalanga e Lilia Schwarcz sobre as questões que rondam seu livro Memórias da Plantação, a ser lançado durante o evento pela editora Cobogó. Nele, a artista discute temas como raça, classe, gênero e pós-colonialismo, já muito presentes em sua obra. Em seguida, na mesa 13, Ailton Krenak e José Celso Martinez Correa conversam sobre a valorização da cultura, terras férteis para a arte e a diversidade, com mediação de Camila Mota. As atividades ocorrem no dia 12 de julho e, no dia seguinte, mesas com Ismail Xavier, Miguel Gomes, Grace Passô, Marina Person e José Miguel Wisnik também trarão as artes visuais à feira em suas discussões em torno de cinema, dramaturgia, arte e literatura.

Uma Curadoria

Vista de parte da exposição que está em cartaz no SESC 24 de Maio.
Vista de parte da exposição que está em cartaz no SESC 24 de Maio.
*Por Aracy Amaral

 

Uma curadoria não é tarefa fácil de ser concebida. Sobretudo se o número de participantes for extenso, o espaço difícil, e grande a relutância em deixar de lado tudo o que poderia ser selecionado. Em especial quando se enfoca uma exposição como À Nordeste, atualmente no SESC 24 de maio. Região vasta em criatividade, o anseio, percebe-se, foi incluir tudo! Mesmo se com dificuldade de apreensão pelos visitantes daquilo que está exposto. A ideia que passa é que nada deveria poder escapar aos curadores, mesmo se não digerível pelo visitante. Que se sente envolvido num redemoinho que lhe empurra olhos e ouvidos abaixo todas as expressões de criadores nordestinos não distinguindo nenhum em particular. Assim, expressões populares, cordel, pintura figurativa, pintura concreta, arte conceitual, vídeo, em todos os níveis e dimensões envolvem violentamente o visitante. Que se sente física e visualmente tragado pela dificuldade do espaço atravancado em tentar – em vão – privilegiar um ou outro criador com olhar que se perde pela montagem labiríntica que nos é proposta.

O sistema de display acumulativo é preferência de alguns curadores – mas não de todos. E temos dúvidas sobre o acerto desse ponto de vista. A boa visibilidade de uma obra incluída deveria ser uma preocupação. Assim, descobrir subitamente, em meio a uma exposição como esta do Sesc 24 de Maio, os Retirantes de Portinari, da coleção do MASP, é uma surpresa. Assim como ver um pequeno Sérvulo Esmeraldo ao mesmo tempo em que confessamos a dificuldade em localizar Brennand, João Câmara, ou Miguel dos Santos.

E de repente encontramos Montez Magno, entre uma multidão de criadores diversificados inesperados, sem qualquer lógica de apresentação no espaço. O oposto ao didatismo aguardado de exposição que atrai uma multidão de visitantes heterogêneos que mereceriam uma orientação clara para sair com uma noção sobre a expressão artística em região tão extensa e ampla em sua criatividade. Talvez esta mostra se configure antes como não se deve fazer uma exposição (e não poderia ter sido dividida em etapas de acordo com a diversidade de linguagens?). Para quem deseja se aprofundar na reflexão curatorial ou desenvolver um trabalho acadêmico sobre o tema, vale considerar a opção de ghostwriter wien.

Na verdade, uma curadoria não é tarefa fácil de ser concebida.

2019 | 58a Bienal de Veneza se esvazia em “tempos interessantes”

SUN&SEA
Sun&Sea (Marina), opera-performance por Rugile Barzdziukaite, Vaiva Grainyte e Lina Lapelyte no pavilhão da Lituânia na Bienal de Veneza 2019, Foto: Andrej Vasilenko

Pela primeira vez, a Bienal de Veneza, criada nos modelos das exposições universais, ou seja, onde cada país mostra o que tem de melhor, apresenta um pavilhão para artistas refugiados. Neverland, do artista turco Halil Altindere, seria esse espaço, mas ele é apenas uma fachada, que se torna uma metáfora nos tempos das fake news, um dos temas de May you live in interesting times (que você viva em tempos interessantes), título da 58ª Bienal de Veneza.

Altindere já trabalhou com esse tipo de crítica social em Wonderland (2013), um clipe de hip hop que abordava os processos de gentrificação em Istambul, premonitório por ser feito pouco antes das manifestações contra a destruição da praça Taksim, na capital turca. O trabalho se tornou uma febre nas mostras de arte contemporânea, incluindo as bienais de Istambul, em 2013, e São Paulo, em 2014.

Muro Ciudad Juárez
Teresa Margolles. Muro Ciudad Juárez, 2010

Agora em Veneza, contudo, Altindere parece reafirmar o óbvio: mentira e disparidade social são chaves do tempo presente, não há inclusão viável nas sociedades do século 21 e seu trabalho é um mero comentário estetizante dessa catástrofe.

Neverland estaria inserida em uma das temáticas desta edição da Bienal, as fake news, definidas por seu curador, o norte-americano Ralph Ruggof. O nome da bienal já aponta isso, pois “que você viva em tempos interessantes” seria uma expressão citada como um provérbio chinês por figuras como Hillary Clinton, mas, segundo ele, é dessas traduções culturais que não se confirmam. Que tédio.

Se a frase em si já é sem graça, a Bienal cai em simplificações rasteiras, como a mais famosa e comentada desta edição que é, sem dúvida, Barca Nostra, do suíço Christoph Büchel. Ele levou à Veneza um navio naufragado, em 2015, que transportava quase mil refugiados e apenas 28 sobreviveram. Segundo um texto no site egípcio Mada, escrito por Alexandra Stock, o custo total para transportar o navio para a mostra chegou a imorais 33 milhões de euros.

Com trabalhos que carregam esse tipo de contradição, onde para se tratar de um assunto premente gastam-se valores absurdos e a formalização reduz o conteúdo à mera ilustração, esta bienal já parte de um nível baixo. Mesmo uma artista com uma obra contundente, como a mexicana Teresa Margolles, acabou nessa mesma toada, ao exibir partes de um muro de concreto cheio de balas, transportado de Ciudad Juarez, metrópole que faz divisa com os Estados Unidos. A obra, de 2010, já falava dos muros muito antes do governo Trump, mas em Veneza perde força ao se tornar uma ilustração das propostas atrasadas do presidente norte-americano.

Doppelgänger

Além das fake news, outra temática dessa edição de Veneza, são os duplos, o que significa tratar de com questões como cópia e clonagem. Nesse sentido, um dos bons trabalhos da mostra é o novo vídeo de Stan Douglas, Doppelgänger, sobre a astronauta Alice que é teletransportada para uma nave espacial, mas não age como sua figura original, em uma encenação futurista.

Stan Douglas, Doppelganger, 2019

A ideia de duplo se materializa também no conceito curatorial no espelhamento dos dois grandes espaços da mostra, Arsenale e Pavilhão Central, no Giardini, ambos com os mesmos artistas. A dupla projeção Doppelgänger, por exemplo, está no Pavilhão Central, enquanto no Arsenale Douglas é visto com fotos encenadas da série Scenes from the Blackout. A cenografia exagerada do Arsenale, aliás, com imensas chapas de madeira aparente, escondendo a grandiosidade do local, é outro ponto baixo da mostra.

Representações nacionais

Em anos de mostra principal fraca, as representações nacionais costumam compensar. Não foi o caso agora em 2019, salva raras exceções, entre elas o Brasil e o pavilhão vencedor da Lituânia, uma ópera que se passa em uma praia falsa, ao longo de oito horas, mas que dura uma hora. Sun et Sea (marina), de Rugilé Barzdziukaité, Vaiva Grainyté e Lina Lapelyté, é uma performance sobre a simplicidade de estar à beira do mar, desde passar protetor solar até reclamar de não conseguir relaxar. Basicamente ela é sobre o nada, mas cantado como se tudo fosse importante.

Ao transitar de forma delicada entre o espetacular e a simplicidade, a performance ganhou merecidamente Leão de Ouro, misturando quinze cantores com outros vinte e poucos figurantes, entre eles diversas crianças, em uma ação que segue um roteiro, mas está repleta de improvisações.

Já Bárbara Wagner & Benjamin de Burca, com Swinguerra, empoderam um Brasil marginal a partir da cultura popular do nordeste do país, especificamente de um movimento chamado swingueira. O vídeo apresenta várias narrativas, criadas em parceria com os integrantes desse grupo, misturando sonho e realidade, mostrando como esses espaços da música e da dança são locais que contradizem todo o atual discurso oficial do país de exclusão e preconceito.  A arte no pavilhão do Brasil não é ilustração, mas uma experiência vital de resistência e compreensão do humano, tudo o que faltou na mostra principal. 

O desafio do possível dá fôlego à 13ª Bienal de Havana

David Magna, T3c36, 2019. acrílico colorido.
David Magna, T3c36, 2019. acrílico colorido

“Os peixes não sobrevivem em águas limpas”. A máxima de Mao Tsé Tung lembra o navegar turbulento da Bienal de Havana ao longo de 30 anos, com dificuldades financeiras e burocráticas, mas não suficientes para naufragá-la. O tema da 13ª edição, O Desafio do possível sintetiza a luta que toca no imaginário e tenta dar rosto ao impossível. O evento segue na busca de maiores correspondências entre a criação e as práticas de vida, ou a pontos convergentes. Com um ano de atraso, por conta do furacão Irma, a mostra coincide com as comemorações dos 500 anos da fundação de Havana e os quase 30 da Bienal.

Qual é a transcendência do maior evento cultural da Ilha? Há muitas mediações sobrepostas na Bienal de Havana desde a sua fundação em 1984:  arquitetura do lugar, carga histórica, crise financeira local e a dos países participantes, fricções ideológicas variadas, críticas dentro e fora de Cuba, achaque de galeristas e colecionadores vorazes que chegam à Ilha a procura de arte de qualidade a preços muito abaixo do mercado internacional.

Se comparada às edições anteriores a 13ª Bienal não está entre as melhores. O mesmo sucede às últimas bienais de São Paulo, Veneza e à Documenta de Kassel. Em Havana, a curadoria é assinada por sete curadores cubanos capitaneados pelo crítico e intelectual Nelson Herrera Ysla, além dos 21 estrangeiros convidados.

O momento é de reflexão, transição, desconforto e mudanças, com alguns curadores assumindo cargos em outras instituições culturais ou simplesmente partindo para uma carreira solo. As bienais fazem história desfazendo as realizações e significações anteriores. Mas, que singularidades ainda podem provocar surpresas em meio ao acúmulo excessivo de bienais, feiras, festivais, residências? As obras distribuídas por toda Havana, além de Matanzas, Sancti Spiritus, Cienfuegos e Camagüey estão aplainadas pelo momento internacional.

Manaf Halbouni, Uprooted
Manaf Halbouni, Uprooted, 2014. Carroceria de automóvel, livros e outros objetos

Na sede da Bienal, a performance Tejido Colectivo de Alexia Miranda polariza as atenções e ocupa o átrio do Centro Wifredo Lam. Com a ideia de responder ao presente, com possíveis noções de futuro, alerta para a urgência de transformações sociais. Os círculos trançados coletivamente, em vários padrões e ritmos, são ferramentas na tentativa de restaurar momentos de paz no violento El Salvador. A gentrificação das grandes metrópoles chegou a Dresden, cidade alemã onde mora Manaf Halbouni, artista sírio, de 34 anos. Como seu sonho de morar em uma casa nunca se concretizou, ele transforma o carro em residência-ateliê, “onde resolvo tudo”, exposto na Bienal de Havana como arte.

O país também está na pauta de Lais Myrrha com Cronografia dos Desmanches, obra in progress que  desenvolve desde 2012. “O trabalho surge quando percebo o boom da especulação imobiliária ao andar pelas ruas e me deparar com cinco casas destruídas de uma única vez ”. São imagens de demolições, locais abandonados, bustos, portos, algumas não identificadas”.

A Bienal de Havana aposta nos jovens artistas. Nesse contexto se encontra Ruy Cézar Campos, cearense que trabalha diferentes temporalidades em três vídeos: Circunvizinhas, A Chegada de Monet e Pontos Terminais Emaranhados. Todos integrantes da série A Rede Vem do Mar, pesquisa de um ano entre Brasil, Angola e Colômbia.  “Tento estabelecer vínculo fenomenológico entre a infraestrutura dos cabos submarinos e as plataformas de desembarque dos mesmos. Fortaleza é a cidade mais importante na rede do Atlântico Sul com as quais está conectada, Sangano, em Angola e Barranquila, na Colômbia”. Operando entre tecnologia e estética, o artista se expressa entre performance, documentário e ficção, com viés político social.

Em Matanzas, novo território da Bienal, Marilá Dardot faz valer a utopia de diluição da arte na vida cotidiana. “Meu trabalho é um segmento da residência que fiz no México, em 2015, no momento do episódio dos estudantes desaparecidos. Escolhia manchetes de jornais e diariamente intervinha com escritos executados com água sobre um muro de concreto. À medida em que os escrevia iam se apagando”. Em Matanzas, optou pela performance Volver, em que escreve repetidamente com água a frase A la esperanza vuelvo em uma parede na rua. O trabalho de Marilá mudou nos últimos anos, “passando de uma visão otimista ligada à literatura, poesia, ficção e natureza, para uma visão mais pessimista diante de fatos políticos do Brasil. “Houve um despertar político em minha geração, assim como em mim mesma”.

Haver, Sem Horizonte
Haver, Sem Horizonte, 2019. Chapas de alumínio

Por último, três artistas cubanos com carreiras estabelecidas e poéticas identificáveis, reunidos na mostra Museus Interiores, no Museu Nacional de Bellas Artes.  Kcho (Alexys Leyva Machado), Carlos Garaicoa e Los Carpinteros. O vôo internacional de Kcho começa com Regata, instalação de 1993, feita aos 23 anos, um ano antes de entrar para o acervo do Museu Reina Sofia, em Madri, do MoMa e do elenco da galeria Barbara Gladstone, de Nova York. Barco, símbolo do imaginário coletivo dos cubanos, aparece em desenhos gestuais, esculturas ou instalações com objetos que se nutrem de várias poéticas.

Como afirmou o geógrafo Milton Santos, a arte de rua, naturalmente urbana e pública, traz forte carga política por ocupar espaços fora dos campos institucionalizados da arte e por tocar as realidades sociais de perto. Partitura, instalação de Carlos Garaicoa, desenvolvida por dez anos, sintetiza esse pensamento. A obra tem a participação de 70 músicos de rua, de Madri e Bilbao. Trata-se de uma orquestra com 35 vídeos de músicos de rua executando peças diferentes. A partitura final, do músico cubano Esteban Puela, enfeixa as variadas sonoridades e é transmitida para a grande tela digital que assume a direção da orquestra. Los Carpinteros, em uma de suas últimas atuações como dupla, coloca em Alacenas, de 2016, crítica sobre a devastação das tormentas que invadem o Caribe. Os sons emitidos pelos furacões são gravados, reproduzidos e colocados em velhos armários de cozinha que emitem o barulho aterrador do fenômeno.

Esses artistas formam um núcleo lógico e de consenso, mas vale lembrar que há pelo menos duas dezenas de outros, igualmente respeitados profissionalmente, que gravitam em mostras internacionais.

Mostra na Pinacoteca revela projeto indigenista de Ernesto Neto

Acima, Ernesto Neto, O Sagrado É Amor, 2017
Ernesto Neto, O Sagrado É Amor, 2017

Poucos artistas conseguem atualizar a radicalidade da produção artística brasileira, onde o corpo fazia parte da obra, nos anos 1960 e 1970, como Ernesto Neto. É o que se pode comprovar na mostra Sopro, em cartaz na Pinacoteca do Estado até 15 de julho.

Em suas obras e de forma original, Neto consegue reunir tanto as propostas de vivências coletivas de Hélio Oiticica (1937 – 1990) em seus Penetráveis, quando buscava criar espaços de convivência, quanto às ativações do corpo por meio de experiências com diferentes materiais, como propunha Lygia Clark (1920 – 1988) em seus Objetos Relacionais.

Contudo, enquanto há 50 anos essas práticas buscavam reformular as bases da arte, Neto, já livre deste fardo, vem trabalhando em uma agenda mais atual e necessária: um “projeto de indigenização da vida”, na definição de Els Lagrou, antropóloga e professora da UFRJ, no catálogo da mostra.

Na Pinacoteca, essa prática se consubstancia na instalação do octógono, Cura Bra Cura Té, que acolhe cinco ativações participativas abertos ao público ao longo do período expositivo. As próximas ocorrem no próximo sábado, dia 1 de junho, e depois nos dias 29 de junho e 13 de julho.

A relação do artista com a questão indígena vem sendo tema de debates, nos últimos anos, especialmente quando de sua participação na Bienal de Veneza, há dois anos. As polêmicas se resumem na questão: Qual a legitimidade de um artista branco apropriar-se do discurso de outras povos e culturas? Entender o lugar de fala é, atualmente, um dos desafios de qualquer tipo de discurso que busca “representar” o outro.

Sem dúvida é um tanto estranho quavndo artistas se autorretratam como índios e vendem ou expõem essas pinturas sem qualquer compromisso maior com a questão. Estamos aí no terreno da mera representação, e foi exatamente contra esse tipo de postura que Oiticica e Clark se rebelaram.

Desde 2013, contudo, Neto tem se envolvido com o povo huni kuin, no Acre, de forma engajada, participando de seus rituais e os incorporando a suas mostras, no Brasil e no exterior, como ocorreu em Veneza.

Em Sopro essa participação ocorre no octógono, nas ativações em torno de um grande tronco “que precisa ser curado” e, para tanto, vai sendo engolido por um imenso pingente.

“Somos filhos de três continentes, mas sabemos de um, só nos ensinam um, só valorizamos um”, escreve Neto nas paredes da mostra, explicitando o deslumbre com a cultura europeia dos “toscos brasileiros”, como brilhantemente definiu Christian Dunker em texto para ARTE!Brasileiros.

“Chegou a hora de ouvir a espiritualidade de nossa terra, de nossas plantas, rios e árvores, chegou a vez de ouvir”, defende o artista. É aqui que se explicita o tal projeto de indigenização, já que os chamados povos das florestas buscam a qualidade intrinsicamente relacional de todo ser, humano e não humano, o que Lagrou define como “estética relacional ameríndia”.

“Chegou a hora de ouvir pajés, babalorixás, yalorixas”, prega Neto, e a programação das ativações abrange essas vozes silenciadas na história do Brasil, mas que nas últimas décadas vem conquistando espaço. Estarem agora na Pinacoteca é não só uma proposição do artista, mas consequência da luta que esses povos vêm empreitando.

Sopro, no entanto, vai muito além do octógono e, nos diversos espaços onde ela ocorre, revela-se como faz sentido na carreira de Neto a poética que ele defende agora.

Essa sintonia com uma cosmogonia indigenista, onde humano e não humano são vistos como parte de um todo, afinal é central em suas diversas instalações, que pedem a presença do outro, que contaminam o ambiente com odores, que propiciam o encontro, que tocam, acariciam e envolvem.

O plasticismo que se vê nas obras dos anos dos anos 1980 à primeira década do século 21 é deslumbrante: nas formas, nos materiais, nos volumes e nas dimensões. Há uma estruturação orgânica em sua linguagem confortável a todos sentidos, o que é até raro em arte contemporânea. Mas a potência máxima chega agora nesse “projeto indigenista”, politizando de vez o que era discreto, e transformando Ernesto Neto em uma espécie de xamã nos tempos da cólera.


Ernesto Neto: Sopro
30 de março a 15 de julho de 2019
Pinacoteca de São Paulo
Praça da Luz 2, São Paulo, SP
pinacoteca.org.br


Testemunhas do mal, do bem, da vida

O assassinato de Piersanti Mattarella, Governador da Sicília, em 1980.
O assassinato de Piersanti Mattarella, Governador da Sicília, em 1980. Foto: Letizia Battaglia

No Instituto Moreira Salles de São Paulo, duas exposições dedicadas a importantes fotógrafos estrangeiros: a italiana Letizia Battaglia (1935) e o chileno Sergio Larrain (1931-2012).

A mostra Letizia Battaglia: Palermo reúne cerca de 90 imagens, publicações e filmes, com foco especial na atuação da fotógrafa no jornal L´Ora. Ela começou seu trabalho como fotógrafa, em 1971, em Milão, ao mesmo tempo em que escrevia, como freelancer, para várias publicações, como o Le Ore, um jornal sensacionalista e o ABC, uma publicação intelectual.  Foi convidada pelo L’Ora para voltar para Palermo, onde havia nascido, e foi lá, durante quatro décadas, que documentou a guerra da máfia, especialmente nos anos 1970 e 1980. Isso sem ignorar o cotidiano da cidade e seus habitantes.

Nas palavras da fotógrafa, “com a máquina fotográfica a tiracolo, me tornei testemunha de todo o mal que estava ocorrendo. Foram anos de guerra civil: sicilianos contra sicilianos. Foram assassinados os melhores juízes, os jornalistas mais corajosos, os políticos avessos à corrupção”. Com curadoria de Paolo Falcone, a exposição já passou por Palermo, Roma e pelo IMS do Rio antes de chegar a São Paulo.

A mostra Sergio Larrain: um retângulo na mão, por sua vez, traça um panorama da obra do chileno, que atuou como correspondente da agência Magnum durante a década de 1960. A exposição apresenta mais de 140 fotografias, um vídeo e publicações, contemplando os períodos de produção de Larrain em Santiago, o trabalho como correspondente na Europa e América do Sul e a sua volta à terra natal. Com curadoria de Agnès Sire, a mostra já passou por Arles, na França, por diversas cidades chilenas, por Buenos Aires e pelo IMS do Rio.

Nesta versão que está no IMS, foi acrescentado o trabalho que Larrain fez, na segunda metade da década de 1950,  para a revista brasileira Cruzeiro Internacional, de Assis Chateaubriand. Dono da revista Cruzeiro — publicação de sucesso e responsável pela implantação do fotojornalismo por aqui com fotógrafos como José Medeiros, Pierre Verger, Luiz Carlos Barreto, Marcel Gautherot —, Chateaubriand ao lançar sua versão internacional queria concorrer com americana Life e com a francesa Paris Match.

Fotos: Sergio Larrain/Magnum Photo

A revista foi lançada em 1957, Larrain produziu para ela pouco mais de uma dezena de reportagens entre 1957 e 1959. Foi, então, convidado por Cartier-Bresson para trabalhar na Magnum, em Paris. A Cruzeiro Internacional acabou fechando em 1965 por falta de anunciantes.

Na França, Sergio Larrain, que era amigo de Julio Cortázar, um dia revelando os filmes que tinha feito pelas ruas de Paris viu, ao fundo em uma foto, um casal. Ampliou o negativo e viu que o casal fazia amor, encostado em um muro. Encontrou-se, mais tarde, com o escritor argentino e mostrou-lhe a ampliação. A foto serviu como inspiração para o conto Las babas del diablo, um dos cinco publicados em 1959 no livro Las armas secretas. O conto, por sua vez, inspirou o diretor italiano Michelangelo Antonioni que fez o hoje clássico e inspirador Blow-Up.

Nas palavras de Sire, a curadora da mostra, que trabalhou na Magnum desde 1982 e é diretora e uma das fundadoras da Fundação Cartier-Bresson, “para Larrain a fotografia era  poesia, não era de modo algum uma questão documental.”

Em uma carta que escreveu a um sobrinho em 1982, Sergio Larrain disse: “Siga o seu gosto e mais nada, acredite apenas no seu gosto… Quando tiver algumas fotos realmente boas, amplie e faça uma pequena exposição ou um livrinho. Mande encadernar. E, com isso, vá firmando um chão. Ao mostrá-las, você se dá conta do que são, ao vê-las diante dos outros é aí que você as sente. Fazer uma exposição é dar algo, é como dar de comer, é bom para os outros mostrar-lhes algo feito com trabalho e gosto. Não é se exibir, faça bem feito é saudável para todos”.

Letizia Battaglia: Palermo
Até 22 de setembro
Sergio Larrain: um retângulo na mão
Até 25 de agosto

Instituto Moreira Salles – av. Paulista, 2424
Entrada gratuita

 

 

 

Nazareth Pacheco: a criação como triunfo da vida

Nazareth Pacheco
Nazareth Pacheco

* Por Miriam Chnaiderman

O nome da exposição Registros/Records é significativo. Traz registros, rastros, marcas, fissuras…

No corpo, as marcas de bisturis e violações autorizadas e até desejadas. Assim é Nazareth. Seu corpo expressa um mundo onde sobreviver é imperativo categórico. Sua obra é a expressão dessa força de vida.

Essa exposição acompanhou o lançamento de um livro que reúne a obra de Nazareth e textos que marcaram suas exposições. É uma exposição que carregou a história de uma vida de criação. Ou a criação como possibilidade única de vida.

Intervenções cirúrgicas sucessivas para corrigir defeitos congênitos foram necessárias desde o seu nascimento. Em outras exposições, as marcas no corpo tornaram-se obras impactantes, sedutoras. Os vestidos construídos com lâminas cortantes e giletes afastam e fascinam. O jogo entre o impenetrável (referência clara a Hélio Oiticica) e o erótico impossível foi tema constante. A questão do corpo feminino sempre foi tema para Nazareth. Na última exposição, o tema é o luto de seus pais, mortos há cinco anos. A capacidade de elaborar dores tão atrozes através de sua linda produção comove.

Escrevi o texto do catálogo de sua exposição de 2003 na Galeria Brito Cimino, quando fiz o documentário “Gilete Azul”. Nessa exposição um imenso cortinado de giletes e navalhas rodeava a cama de acrílico. Agora, nessa exposição, os cortinados são feitos das radiografias que seus pais fizeram no decorrer do câncer que cada um viveu, com pouquíssima diferença de tempo. Foi quando os irmãos levavam as cinzas da mãe para Paris que souberam que o pai apresentava sintomas já avançados de um câncer. Nazareth conta sobre como era ligada ao pai. Na exposição na galeria Kogan Amaro, os instrumentos de trabalho de seu pai – que era neurologista – tornam-se esculturas de bronze. Homenagem tocante onde os gestos de um pai são eternizados. Como em todas as suas exposições, aqui também existe a presença de seu corpo: uma sequência de fotos que acompanham a plástica que fez ocupa uma das paredes da galeria. Em Nazareth há um constante renascer. Em outra parede, a carta que um cirurgião escocês escreveu a seu pai sobre o que deveria ser feito, Nazareth ainda pequena. Uma corrente é construída com as pulseirinhas que Nazareth usou nesse percurso pelos médicos. Alma sensível violentada pelas intervenções necessárias, agora Nazareth escolheu cuidar de seu rosto. Essa força de vida me encantou desde que a conheci.

Foi o que me levou a fazer o documentário “Gilete Azul”.

Trago aqui uma pequena amostragem do texto que está no livro que foi lançado na exposição Registros/ Records.:


* Miriam Chnaiderman é psicanalista e cineasta, produziu o documentário Gilete Azul, confira:

Inventando corpos e/ou desvelando o erótico em inquietante devassidão: o encantamento dolorido

É em nosso corpo que experimentamos a obra de Nazareth Pacheco: somos tomados pela vertigem de um mundo que nos estraçalha, esparramando vísceras em orgasmos bizarros entre a dor e o êxtase. É o nosso corpo que fica desnudado diante dos objetos agudos e cortantes. É a própria noção de sujeito psíquico que fica questionada, o jogo de espelhos se inverte, perdemo-nos do olhar que nos constituiu, tornamo-nos ferida exposta. Desruptor movimento de campos do desejo, esvaindo contornos, degelando montanhas. É essa a radicalidade do trabalho de Nazareth Pacheco: instaurar um corpo-carne naquele que olha seu trabalho. E, ao fazer assim, obriga a um trabalho de recostura do próprio eu. Nisso, vários eus se tornam possíveis, vários corpos podem acontecer. Nazareth Pacheco trabalha com a questão do gozo, desse gozo que é barrado pelo desejo. Isso implica em romper barreiras, um enfrentamento com os limites. O gozo é do campo do que não cabe na palavra, do que não pode ser nomeado. Gozo tem a ver com pura intensidade, forças em redemoinho. Gozo força a barreira do princípio do prazer, e, portanto, questiona o interdito. Nazareth Pacheco propõe uma mais além do desejo, um encontro com o que é originário no erotismo. Transgride, indo em direção a um real pulsional. Libertinagem contemporânea, invenção de uma linguagem que faz coincidir sentido e signo. Não há metáfora possível, estamos no nível do real, das paixões do corpo. E o real está além do bem e do mal. A obra de Nazareth Pacheco busca desalienar nossa imagem, sempre construída a partir de um olhar que nos olha. Somos obrigados a refazermo-nos como sujeitos de nossos desejos.

275 vezes Nordeste

Juliana Notari, Mimoso, 2014
Juliana Notari, Mimoso, 2014

Do encontro entre as pesquisas dos curadores Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos nasceu uma grande vontade de realizar um projeto para uma exposição que reunisse obras que representassem o Nordeste do Brasil não em sua forma caricata, mas em sua totalidade, adentrando os imaginários em torno dele. O projeto para isso já tinha aproximadamente dez anos quando, há quase dois, foi aprovado pelo Sesc para ser realizado na unidade 24 de Maio. Assim, os três curadores passaram a realizar viagens por todos os estados que compõem a região nordeste para atualizar essas pesquisas. O resultado pode ser conferido agora na exposição À Nordeste, até 25 de agosto.

As viagens para atualização começaram no segundo semestre de 2018, contam Marcelo e Clarissa. Algumas delas foram feitas em trio, outras em dupla e outras apenas um deles conseguia realizar. “O projeto é a vitalidade da região, que nos mostrou outras coisas, e não só aquilo que já conhecíamos”, destaca Campos. Ele conta que as viagens coincidiram com um momento muito pulsante do Nordeste, por conta do cenário político das últimas eleições presidenciais. Isso fez com que a energia de novos artistas contemporâneos se sobressaísse de alguma forma.  O momento foi muito importante também para que eles pudessem observar uma série de transformações ocorridas na região durante os últimos anos.

Os curadores estiveram atentos para que não caíssem em uma armadilha que é muito fácil de se escorregar quando se trata da região: a folclorizante: “Dizíamos que não era a nossa intenção fazer um retrato da região, nem um panorama. Em nenhum momento fizemos, por exemplo, uma estatística”, contou Marcelo. Desta forma, os curadores foram se deixando atravessar por assuntos que foram desencadeados, no fim, em núcleos da exposição. São eles: Futuro, Insurgência, (De)colonialidade, Trabalho, Natureza, Cidade, Desejo e Linguagem.

Ao mesmo tempo, a mostra não foi concebida de forma que fugisse dos preconceitos que são voltados à região e ao nordestino, de forma que mostrá-los é uma forma também de não normalizá-los: “Esses preconceitos são parte de uma experiência de estar à nordeste”, comenta Clarissa, explicando que o encontro é provocativo e atiça uma série de conceitos e preconceitos.

À Nordeste traz 275 obras de 160 artistas, entre elas trabalhos ilustres como Retirantes, de Cândido Portinari, que faz parte da coleção do MASP, e o Manto de Apresentação, de Arthur Bispo do Rosário. Artistas mais contemporâneos com trabalhos de peso, como Juliana Notari, que apresenta o vídeo Mimoso no setor Desejo, também se fazem muito presente na teia construída pelos curadores. Um dos destaques é a obra Memelito, do coletivo Saquinho de Lixo, que surgiu como uma página de memes nas redes sociais. O vídeo traz uma série de imagens conhecidas na internet. Também muito contemporânea, a obra Não é sobre sapatos, de Gabriel Mascaro, reflete sobre as questões em torno das manifestações que ocorrem no país nos últimos anos, pegando como ponto de discussão as manifestações de 2013, que iniciaram todo um processo mais latente de participação da população nos rumos do país. Para a mostra, foram comissionadas 12 obras inéditas, como A gente combinamos de não morrer (2019), de Jota Mombaça (capa desta edição). O comissionamento foi, segundo Marcelo, uma forma de quebrar a verticalização da arte. Além de Mombaça, artistas como  Daniel Santiago (PE), Gê Vianna e Márcia Ribeiro (MA), Ton Bezerra (MA), Isabela Stampanoni (PE), Pêdra Costa (RN), Marie Carangi (PE) e Alcione Alves (PE) também realizaram novos trabalhos.

SESC 24 DE MAIO

Localizado em uma região muito central da cidade de São Paulo, onde passam milhares de migrantes e imigrantes por dia, o Sesc 24 de Maio traz um caráter geopolítico muito forte em suas raízes. A unidade foi inaugurada em 2017 e já sediou grandes exposições que celebraram aquilo que vem de fora de São Paulo, como Jamaica Jamaica, que se debruçou sobre a cultura e a política jamaicanas, e Lasar Segall: ensaio sobre a cor, que apresentou um grande apanhado de obras do artista lituano radicado no Brasil.

Assista ao vídeo sobre a exposição À Nordeste.


++MAIS
Leia crítica
escrita por Aracy Amaral sobre a exposição, publicada na ARTE!Brasileiros 47.
Os curadores de À Nordeste escreveram resposta à crítica, confira aqui.

Fora dos limites que travam as ações

Max Perlingeiro
Max Perlingeiro foi considerado a personalidade atuante no meio artístico pela ABCA em 2019

No sistema brasileiro de arte sempre houve áreas de escape, desde a primeira edição da Bienal de São Paulo em 1951, quando o deserto cultural brasileiro foi surpreendido por uma avalanche internacional de diretores de museus, críticos, galerias, artistas e obras inimagináveis. Nas décadas seguintes, o aprendizado estimulou o surgimento de jovens empreendedores dispostos a enfrentar o incipiente sistema brasileiro de arte, entre eles Max Perlingeiro. O terreno era demarcado por história própria, influência europeia, crítica reduzida e raríssimas galerias profissionais. Com o tempo o cenário se alargou, e hoje Perlingeiro atua como empresário, editor, curador, organizador de cursos de arte e administrador de coleções. Sua história prova que lidar com arte é também um processo de territorialização. Em janeiro de 1979, cria a Pinakotheke Cultural no Rio de Janeiro, mais de duas décadas depois, em 2002, inaugura a filial em São Paulo. Antes disso, em 1987, abre as portas da Multiarte, em Fortaleza, uma espécie de ponte entre a Pinakotheke e o Nordeste.

Ao desempenhar múltiplas funções com objetivo de formação, pesquisa, questionamento, Perlingeiro gera conhecimento aplicado em várias plataformas de difusão da arte brasileira. O resultado dessa performance lhe valeu este ano o prêmio Ciccilo Matarazzo, da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA). Hierarquicamente, parece não haver uma tarefa que suplante outra no cotidiano do empresário, demarcado pela coexistência entre todas as atividades com as quais está envolvido. Pesquisar é, para ele, peça fundamental, o que o torna crítico da superficialidade de alguns trabalhos curatoriais. Aprofundar o conhecimento é tornar o campo da arte em um espaço complexo e dinâmico, mas nem sempre é assim. “Quando surge uma exposição há curadores que aplicam o processo do copy/paste, em trabalhos já editados. Não se preocupam com um texto sério, profundo e de conteúdo”. Adotando o mesmo procedimento para sua atuação como editor de livros de arte, ele é enfático: “Não faço álbum de figurinhas, livros têm que ter conteúdo”. Em sua atuação no mercado livreiro tenta a mudança desse cenário com um conjunto de estratos de informação. “A consulta em nosso banco de dados conta com 1516 itens e a pesquisa é intensa”. Em Fortaleza, a Multiarte mantém 120 alunos divididos em 10, 12 por turma. “Com esse trabalho criamos conteúdos para publicação e formamos pessoas. Hoje a instituição recebe cerca de 200 visitantes por semana”.

Bruno Giorgi, Retrato de Leontina Giorgi
Bruno Giorgi, Retrato de Leontina Giorgi, década de 1970 – Foto Jaime Acioli

A historiografia da arte brasileira se compõe, em grande parte, de textos curtos publicados em jornais e revistas, além de catálogos, que nem sempre apresentam ensaios de fôlego. O buraco ainda persiste. Perlingeiro se especializou em edição de livros exclusivamente voltados para a história da arte brasileira, dos séculos 19 e 20, com extensa investigação. Entre as publicações vale destacar: Antônio Bandeira 1922-1967; Coleção Airton Queiroz Fortaleza/Ceará; Frans Post; Coleção Edson Queiroz – catálogo, entre outras. O reconhecimento editorial veio com o Prêmio Jabuti, atribuído pela Câmara do Livro em três anos diferentes, além de outras láureas na área de artes.

Hoje o sistema de arte participa diretamente das leis do sistema midiático e econômico. Para dar conta de sua agenda, Perlingeiro criou uma plataforma que divide com seus filhos Amanda, Max e Victor. “Um terço do meu tempo é empregado na administração de 18 coleções particulares e institucionais importantes, locadas em Fortaleza, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo. Meus filhos se ocupam das exposições, dos livros e de outras questões mais particulares”.

Com trabalho prospectivo em setembro próximo Perlingeiro, galerista de longa data, vai revelar em exposição o que motivou Antonio Dias a seguir e colecionar a produção de Leonilson, cuja representação preferida é o universo dele mesmo. Perlingeiro é o co-curador da mostras: “O principal é Antonio Dias”, diz ele com o humor de quem lida com artistas desde a década de 60. Esta mostra é o desdobramento do projeto iniciado com Bruno Giorgi e Alfredo Volpi agora em cartaz na Pinakotheke do Rio, que envolve amigos artistas e suas afinidades vivenciais e artísticas. Vamos aguardar.