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Casa do Povo reabre sua biblioteca após 40 anos

Biblioteca da Casa do Povo
Livros do acervo da Biblioteca da Casa do Povo. FOTO: Divulgação

Após uma crise de cerca de 30 anos, com o encerramento da maior parte de suas atividades, a Casa do Povo – centro cultural fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro – vivenciou uma intensa e vigorosa retomada a partir do início desta década. Em poucos anos se consolidou como espaço cultural prolífico, palco para vivências e práticas artísticas nas mais variadas áreas, voltado tanto para a produção experimental e contemporânea quanto para a preservação da memória.

Com a reabertura de sua biblioteca no último sábado, 11 de maio, a Casa do Povo dá mais um importante passo no sentido de retomar sua história e, ao mesmo tempo, se abrir à sociedade como polo de convivência e produção de conhecimento. Com cerca de 8 mil livros (metade deles escritos em ídiche) e um vasto arquivo de documentos, fotos e publicações, a biblioteca reabre após quase 40 anos fechada – desde o encerramento das atividades do Ginásio Israelita Scholem Aleichem, que funcionou no edifício dos anos 1950 até 1981.

“Já passaram por aqui várias gerações, inclusive muitas pessoas que já morreram, mas a gente tem esse acervo, esse arquivo, que é o núcleo duro da Casa. É o que conta a história”, afirma Marilia Loureiro, curadora e programadora da Casa do Povo. A partir dos anos 1980, com a crise, a biblioteca foi preservada pelo trabalho voluntário de duas associadas, Marina Sendacz e Leda Tronca, que, mesmo sem recursos, conseguiram manter o acervo. “Se não foi possível tornar isso público antes, elas conseguiram não deixar entrar em decadência. Então eu diria que elas são as heroínas invisíveis dessa história”, diz Loureiro.

Livros do acervo durante trabalho de triagem realizado na Casa. Foto: Divulgação

A biblioteca reúne acervos de diferentes instituições que já passaram por ali, como o Clube Cultura e Progresso, o Clubinho I. L. Peretz e o colégio Scholem Aleichem, além de livros trazidos por imigrante judeus fugidos da Segunda Guerra Mundial e coleções pessoais doadas por intelectuais como, por exemplo, o arquiteto Ernest Mange, que projetou o prédio modernista em que está a Casa, inaugurado em 1953. Agora, se somam ainda os acervos de alguns dos mais de 20 grupos e coletivos que habitam o espaço atualmente: as modelagens do Ateliê Vivo, as tipografias do Ocupeacidade, os pôsteres e publicações do Parquinho Gráfico e as partituras do Coral Tradição, entre outros.

A reformulação e reabertura da biblioteca foi possibilitada pela aprovação do projeto “Arquivo Vivo” no PROAC-ICMS, em 2016, que resultou na captação de 160 mil reais entre empresas e pessoas físicas principalmente no bairro do Bom Retiro. A aprovação desencadeou também um intenso debate entre diretores, associados e os grupos que utilizam a Casa, como conta Loureiro: “Nossa proposta é lidar com os espaços de modo flexível, coletivo, sem que ninguém seja dono de nenhum espaço e todos possam transitar entre eles. Então alguns grupos ficaram incomodados e colocaram perguntas muito pertinentes, que fizeram a gente aprofundar a reflexão: onde vai ficar essa biblioteca? Ela vai trancar o espaço? Algum grupo vai ter que sair do lugar que costuma usar? Quem vai ler esses livros em ídiche? Qual o sentido de reabrir esse acervo hoje?”.

Móvel da biblioteca projetado pelo Grupo Inteiro. FOTO: Marcos Ferraz

Depois de quase seis meses de discussões internas, ficou clara a necessidade de ouvir pessoas com maior expertise na área. Um seminário que havia sido pensado para marcar a abertura da biblioteca foi antecipado, e representantes das bibliotecas do Centro Cultural São Paulo, do Centro de Memória do Museu Judaico, do Assentamento Povo Sem Medo (MTST) e do Sesc Bom Retiro foram convidados para falar sobre suas experiências. Diversos debates foram levantados, entre eles discussões sobre como atrair leitores; qual o perfil do público do Bom Retiro; como trabalhar com livros em ídiche; como fazer uma biblioteca móvel – que possa ser facilmente montada e desmontada; e como fazer a biblioteca ser não só um espaço de silêncio, mas também de realização de leituras e atividades abertas.

Segundo Loureiro, o seminário resultou em alguns insights importantes. Primeiro, a percepção de que os acervos dos coletivos que habitam o espaço também deveriam ser parte da biblioteca, de modo que ela não ficasse “imobilizada” e desconectada do que é a Casa hoje. Além disso, ficou claro que para formar público – “já que uma biblioteca sem leitores é um depósito” – era importante envolver as pessoas já no processo de realização da biblioteca, como foi feito. E, por fim, a constatação de que o acervo não precisaria estar todo em um só lugar, fisicamente estático.

Vozes ancestrais/Como ler uma biblioteca
Imagem de simulação do projeto “Vozes ancestrais/Como ler uma biblioteca”, da artista Mariana Lanari. FOTO: Divulgação

Para concretizar essa ideia, o Grupo Inteiro – coletivo que atua nos campos da arquitetura, design e artes visuais – foi chamado para pensar os móveis da nova biblioteca. Uma configuração que pode ser expandida por todo o andar ou retraída em apenas um canto do salão foi concebida, de modo que a biblioteca não se tornasse um obstáculo para o funcionamento flexível da Casa.

A abertura da biblioteca contou com uma conversa com Gita Guinsburg, diretora da Editora Perspectiva. Em julho, uma grande atividade de ativação da biblioteca – que se soma a outras que já foram realizadas, como uma primeira triagem dos livros – acontecerá a partir da instalação Voz Ativa: Biblioteca Social, da artista Mariana Lanari. Os 8 mil livros do acervo serão distribuídos no maior salão do prédio, replicando o mapa de alguns quarteirões do Bom Retiro e, durante um mês, os visitantes poderão participar de um grande “mutirão de leitura”. “Vamos chamar pessoas e grupos para lerem esses livros e o áudio das leituras será mixado ao vivo pela artista, fazendo disso uma performance coletiva que mapeia os assuntos da biblioteca, forma público e ao mesmo tempo funciona como motor que coloca em movimento esse acervo,” diz Loureiro.

 

Reabertura da Biblioteca da Casa do Povo

Rua Três Rios, 252 – Bom Retiro, São Paulo

Dia 11 de maio, a partir das 10h.

 

 

Brasileiros participam da coletiva GLASSTRESS em Murano

Obra de Denise Milan na exposição Glasstress.

Estabelecida desde 2009 como um dos eventos que acontecem simultaneamente à Bienal de Veneza, a exposição GLASSTRESS chega a sua sexta edição este ano. A iniciativa é uma realização da Fondazione Berengo, em Murano, dirigida por Adriano Berengo, e fica em cartaz até o dia 24 de novembro. Edições esporádicas foram realizadas também em outras cidades do mundo, como Nova Iorque, Londres e Beirute.

GLASSTRESS é um projeto que visa valorizar a arte contemporânea produzida com vidro, especialmente pelo fato de que a ilha veneziana de Murano é conhecida por sua técnica ancestral da produção de cristais, artesanalmente e artisticamente. As mostras são sempre resultados de encontros de artistas com artesãos da região no Berengo Studio, com obras produzidas a partir dessa experiência. A edição de 2019 da mostra tem curadoria do belga Koen Vanmechelen e do brasileiro Vik Muniz, este último convidou os artistas a pensarem em “como o vidro redefine nossa percepção de espaço”.

Dentre dezenas de artistas participantes figuram nomes conhecidos como Ai Weiwei, Tony Cragg e Monica Bonvicini, e também de obras dos próprios curadores. Além de Muniz, a exposição deste ano traz uma série de artistas brasileiros que estreiam na coletiva, são eles: Denise Milan, Artur Lescher, Saint Clair Cemin e Valeska Soares. Além deles, a germano-brasileira Janaina Tschäpe.

Esta GLASSTRESS também convida os visitantes a assistirem mestres da artesania com vidro de Murano trabalhando em estúdio e entender os esforços da instituição em preservar essa arte dos antepassados.

Rafael Pagatini abre exposição “contra o colapso da memória” em Berlim

Rafael Pagatini, Bem-vindo, presidente!, 2015-2016

Após passar pela SP-Arte, mostrando seus trabalhos no setor Solo, com a Galeria OÁ, Rafael Pagatini desembarca em Berlim para uma exposição individual no European Center for Constitutional and Human Rights, a partir do dia 18 de maio. Na abertura da mostra, o artista conversa com Renata Campos Motta (Freie Universität Berlin) e Wolfgang Kaleck (diretor do ECCHR).

Natural de Caxias do Sul, mas vivendo e trabalhando em Vitória, no Espírito Santo, Pagatini traz em sua obra uma pesquisa que se debruça sobre Rafael arquivos, investigando e levantando questões sobre a violenta história política do Brasil. Ele mostra as manipulações e estratégias de poder da ditadura militar brasileira (1964 – 85) e revela as continuidades das antigas estruturas.

Nesta exposição no ECCHR, Pagatini destaca o papel problemático dos atores corporativos, uma questão de “relevância duradoura hoje em tempos de Jair Bolsonaro”. Para o curador Diego Mattos, que assina o texto de crítico da exposição, “contra o colapso da memória que está e marchadiante da pulverização de notícias falsas e da vontade de reescrita da história por parte da extrema direita e dos setores reacionários da sociedade, a escolha das imagens que são ponto de partida dos trabalhos não é meramente arbitrária, trata-se de um gesto político”.

 

Solar dos Abacaxis, um modo de pensar

Fachada do imóvel onde está sediada a instituição.(FOTO: Renato Mangolin)

Importante casarão no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, o Solar dos Abacaxis despertou, em meados de 2016, a atenção de um grupo muito interessado em revitalizar o espaço para fomentar um projeto cultural. De lá para cá, surgiu e cresceu o Solar dos Abacaxis que, segundo Bernardo Mosqueira, curador e um dos fundadores do espaço, “é um modo de pensar e fazer cultura, relações”.

Já passaram pela programação do Solar artistas como Adriana Varejão, Cinthia Marcelle, Ernesto Neto, Antonio Dias e Anna Bella Geiger, mas também nomes que vêm despontando em tempos mais atuais, como Jaime Lauriano, Maxwell Alexandre, Juliana Santos e Anna Costa e Silva.

Em entrevista à ARTE!Brasileiros, Mosqueira conta sobre o espaço, a proposta institucional e financiamento do projeto, dentre outras coisas. Confira abaixo:

ARTE!Brasileiros: Como surgiu a ideia do Solar dos Abacaxis? Qual seria a “missão” do Solar?

Bernardo Mosqueira: Havia algum tempo que eu tinha o desejo de criar um espaço independente aqui no Rio. Eu não sabia se seria um espaço para exposições ou residências, nem onde seria, nem como se daria. Então, fui apresentado ao arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça pela artista Marina Simão. Adriano era um dos filhos de um dos 13 proprietários de um tal imóvel vazio e tinha vontade de ocupa-lo de alguma maneira, talvez com ateliês. Anteriormente, já havia desenhado um projeto de hotel para o lugar, mas naquele momento desejava ateliês ou residências. Fomos visitar o espaço que estava quase em ruínas, e eu fiquei encantado. Sonhamos juntos, passamos meses desenhando o projeto e viajando para apresentar aos proprietários. No final das contas, conseguimos um acordo com a família e começamos a negociar um contrato. Os proprietários são tantos e tão dispersos, que mesmo o Adriano sendo parte da próxima geração da família, nunca teve nenhum privilégio por isso em relação ao uso da casa. Pelo contrário. Sempre fomos um pouco alienígenas para a família. Logo no início Adriano convidou a produtora Maria Duarte e eu convidei o educador Bruno Balthazar (mestre e amigo de longa data) e o curador Ulisses Carrilho (que havia trabalhado comigo em outras ocasiões como a exposição Encruzilhada, no Parque Lage). A Maria tinha a vontade de abrir uma escola e vinha de uma experiência à frente do Projeto Portinari. O Bruno era educador havia 20 anos e tinha vivência e pesquisa enorme sobre cultura e pensamento afro-brasileiro, além de ter sido DJ e produtor. O Ulisses era curador e super pesquisador de arte, cultura e ativismo. Essa formação com nós 5 durou por muito tempo. Depois, os três se desligaram em momentos diferentes e entrou a produtora Duda Medeiros. Podemos dizer que o Solar (como ele é hoje) é fruto do encontro lindo entre esses 5 membros iniciais. Fizemos tudo juntos e a partir do nada, do espaço vazio e caixa zero. O Solar robusto em gestação reflete em muito o pensamento e a força da Duda. Devemos dizer também que o Solar é fruto da colaboração de todos os artistas, mestres, interlocutores, músicos, curadores, advogados, dançantes, visitantes, parceiros de todo tipo que entregaram um pouco de si para a construção do Solar. É o resultado do encontro de lutas, desejos, reflexões e trabalhos de muitxs.

Passamos um tempo pesquisando a história da casa. Ela era chamada de “Casarão do Cosme Velho”, “Mansão do Cosme Velho”, “Casa dos Abacaxis” e muitos outros nomes. Escolhemos então a expressão “Solar dos Abacaxis” para batizar o projeto, pois nos interessava a ideia de uma instituição solar e nos inspiravam os múltiplos sentidos e simbologias do abacaxi. Abacaxi poderia ser sinônimo de problema ou desafio, mas para os britânicos é sinal de abundância e hospitalidade radical. Por ser uma infrutescência, poderia ser símbolo da coletividade. É certamente uma marca da tropicalidade, uma bromélia estranha, com origem aqui no Brasil, na América Latina, e que conquistou o planeta sendo espinhosa por fora e doce por dentro. Nos interessava ser uma casa solar desses abacaxis. Então surgiu o Solar dos Abacaxis com a missão de catalizar o encontro entre indivíduos e coletivos comprometidos em pensar e experimentar novas formas de estar no mundo, mais justas, saudáveis e afetuosas. Entendemos e construímos o Solar como um espaço de convergência para artistas, criadores, pensadores e todos os tipos de agentes que vêem o novo Sol nascer no horizonte das margens. É um espaço para liberdade. Mas não só liberdade na arte. Entendemos que há outros lugares do exercício experimental da liberdade – cultivamos todos eles. 

A!B: Existe alguma história por trás do prédio?

BM: O Solar dos Abacaxis tem como sede atual esse imóvel. É uma casa de 1000m² de 1843, com 1000m² de jardim e área externa e mais de 4000m² de floresta, mata atlântica preservada. O edifício é um chalé neoclássico que alguns dizem ser o primeiro edifício neoclássico desenhado por um arquiteto brasileiro, o Jacintho Rebello, um dos principais discípulos do Grandjean de Montigny. Projetou a casa com 22 anos. A casa foi encomendada pelo comendador Borges da Costa que, não se sabe como, perdeu o imóvel que se tornou uma casa de cômodos. Sua neta, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, conseguiu recomprar a casa e fez uma grande reforma (em que foram adicionados os abacaxis de ferro nas sacadas). Ela e seu marido Marcos habitaram o espaço como um centro de encontro para intelectuais, artistas e políticos naquele começo da segunda metade do século XX. Com o falecimento dos dois, o tempo e por brigas familiares, a casa ficou abandonada. Quando chegamos, tinha mais de 40 goteiras desfazendo a casa. Fizemos muitas e muitas obras para conseguir manter a casa em pé. Obras caríssimas e praticamente invisíveis. Telhado, vigas, escoramentos, pisos, proteções, testes, laudos. Mas valeu muito a pena. Aquela antiga proprietária, Anna Amélia, foi uma importante feminista e defensora dos direitos das mulheres e dos estudantes. Ela escreveu um poema nos anos 50 sobre a casa chamado “Utopia” em que começava dizendo “Essa casa vai ser algum dia / um centro de ciência e de arte / um refúgio da história e da poesia / aqui os jovens virão sonhar (…) e eu não verei, e eu não verei “. Durante esses 3 anos, nós pudemos ver.

 

A!B:  Quais são as principais atividades do espaço? É uma instituição?

BM: O Solar é um modo de pensar e fazer cultura, relações. Não sei se é um “espaço”, pois poderia estar em outro lugar, em nenhum lugar, se manifestar em outra coisa. Não sei se é “independe”, pois ninguém o é – e nos interessa mais a liberdade do que a independência. Não chamaria de “instituição”, pois temos muita consciência de nossa constante mutação e de nossa perenidade. Nos últimos 3 anos, fizemos mais de 40 ações. 30 delas foram exposições. Um dos grandes interesses do Solar recai sobre a criação de outros modelos de atividade cultural para além dos entendidos como “tradicionais”. Há, por exemplo, o FuzuErê (que é um programa para crianças e famílias, com atividades propostas por artistas), o ÀRoda (que é um programa de debates, lançamentos de livro etc. que parte do modelo relacional da roda para gerar interações), a Grandiosa Junina de Santo Antonio do Abacaxi (uma exposição em que todas as obras são inspiradas nos elementos tradicionais da festa de São João), o Baile da Aurora Sincera (uma exposição em que todos os trabalhos dos artistas são ao mesmo tempo peças de Carnaval) etc. O mais famoso desses modelos é o MANJAR, uma forma de criar reflexão para a qual convidamos colaboradores artistas, músicos e chefs de cozinha. O resultado é uma exposição, que é ao mesmo tempo mostra, celebração e jantar, com todos mirando a construção de uma experiência de pensamento. O Solar sempre foi muito interessado em conseguir atrair e reunir públicos que não fossem o público específico das artes visuais. Nosso desafio e desejo sempre foi misturar os públicos. Por isso, a diversidade dos colaboradores (em suas práticas e próprias vidas) sempre foi importante misturar públicos no Solar. Essas mostras duram apenas um dia (ou 2 ou 3 no máximo). Essa temporalidade específica do Manjar faz com que todos os públicos tenham de fato de estar no Solar quase que ao mesmo tempo. Além disso, se normalmente as pessoas têm experiências nas exposições de poucos minutos, no MANJAR as pessoas ficam 3, 4, 6, 10 horas na exposição. Dá tempo de ver, rever, conversar, mudar de opinião, mudar de estado de consciência, sentir novamente, repensar. Os resultados disso são muito poderosos. As formas de montar exposições e iluminar e sinalizar no Solar são muito incomuns (usamos a mata, os banheiros, as alturas, os cantos de todas as maneiras, com as luzes mais loucas), mas a operação na temporalidade das exposições talvez seja nosso gesto mais radical e de efeitos mais profundos. Nos Manjares, participaram mais de 100 artistas. 80% das obras foram inéditas. A gente tem noção das potências e dos problemas da efemeridade e, por isso, pensamos muito em memória e legado. Se 80% dessas obras inéditas foram parcial ou completamente comissionadas, algumas dessas obras oferecemos como doações às coleções públicas do MAR e do MAC. Somos obcecados com registro das mostras.

A!B: Como é o financiamento para viabilizar a proposta?

BM: Todas as mostras e todas as obras de estrutura da casa foram custeadas com pequenas doações na entrada e com venda de bebida nos nossos eventos. Nos nossos eventos, na entrada informamos quanto foi o custo de produção de cada exposição e, a partir de nossa média de visitação, dizemos quanto cada um deveria pagar para cobrir os custos da ação. Quem não pode pagar, entra sem pagar nada. Quem pode pagar por dois, paga por uma pessoa que não pode pagar. Quem pode pagar mais e quer apoiar o projeto, paga mais. Foi dessa forma e com venda de bebidas que custeamos tudo o que fizemos. Nos interessa muito o estudo de novas economias, novas formas de troca e organização. No início nós mesmos (e os amigos) éramos todas as equipes (de limpeza, montagem, produção, segurança, montávamos o som, vendíamos as bebidas). Hoje em dia, são quase 50 pessoas trabalhando para cada Manjar acontecer, por exemplo.

A!B: Quais são as principais atividades que ocorreram até então? Pode citar nomes de artistas que passaram por lá?

BM: Passaram pelo Solar desde artistas mais estabelecidos (como Adriana Varejão, Anna Bella Geiger, Antonio Dias, Carlos Vergara, Cinthia Marcelle, Ernesto Neto, Helio Oiticica, Laura Lima, Lucia Laguna, Marcos Chaves, Rivane Neuenschwander), muitos brasileiros de fora do sudeste (como o gaúcho Fernando Lindote, o paraense Armando Queiroz, o maranhense Thiago Martins de Melo, o baiano Tiago Sant’Ana), estrangeiros do Sul Global (como o colombiano Carlos Motta, o cubano Carlos Martiel, o dominicano Engel Leonardo, a Nigeriana Karima Ashadu) além de inúmeros artistas jovens (como Jaime Lauriano, Maxwell Alexandre, o coletivo Opavivará, Vivian Caccuri, o coletivo Mariwo, Rafael Bqueer, Lais Myrrha, Barbara Wagner, Jonathas de Andrade, Juliana Santos, Ivan Grilo, Ismael David, Anna Costa e Silva etc.). São muitos e muitos artistas responsáveis pela construção do Solar. Entre as pessoas que já vieram participar de rodas ou aulas, estão Suely Rolnik, Eduardo Viveiros de Castro, Peter Pal Pelbart, Tatiana Roque, Mariama Bah (do Gâmbia), Charly Kongo (Congo) e muitos outros. Entre os curadores, colaboramos com Catarina Duncan, Pollyana Quintella e Bernardo de Souza.

A!B:Existe uma equipe principal responsável pelo Solar? Quem faz parte?

BM: Eu, o arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça e a produtora Duda Medeiros. Ana Clara Simões Lopes é nossa curadora assistente e Clara Reis nossa comunicação. Ainda como colaborador o educador Bruno Balthazar e a curadora Beatriz Lemos. Cada uma das atividades no Solar tem suas equipes extras. Há ainda muitos profissionais voluntários como advogados, arquitetos e administradores.

A!B:Existe uma programação para este ano? Se sim, qual?

BM: De hoje até o final do ano, teremos uma regularidade um pouco menor de exposições no Solar. O principal motivo é o fato de que o atual modelo de relação com os proprietários do imóvel chegou a seu limite, e nós entendemos que o Solar vai ter de se tornar, em pouco tempo, o proprietário de sua sede. Por isso, nós estamos ao lado de alguns colaboradores desenhando estratégias e buscando investidores ou apoiadores para adquirirem o imóvel, de forma que o Solar possa se expandir, se aprimorar e sobretudo se tornar um espaço de liberdade de forma mais perene na cidade. Ou seja, há mudanças bastante radicais no horizonte do Solar e vamos precisar de toda a ajuda!

A descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba

Performance “Trilogy of Illusions: Geography/ Mathematics/ Biology”, 2016, de Grada Kilomba

Texto publicado originalmente em 2016, quando Grada Kilomba participou da Bienal de São Paulo. A artista vem ao Brasil em 2019 para lançar o livro Memórias da Plantação (Editora Cobogó), sobre a  violência do racismo diário, na FLIP.

*por Suely Rolnik

 

Esta conversa aconteceu por Skype num domingo de final de julho (2016). A imagem do rosto de Grada, seu sorriso, seus gestos, o timbre de sua voz não aparecem no texto escrito. No entanto, são essenciais para acessar o lugar em que esta artista se coloca diante dos problemas que movem seu pensamento. Peço ao leitor que faça um esforço de imaginação para impregnar as palavras de Grada com a atmosfera de sua presença.

Suely Rolnik – Pelo pouco que vi de seu trabalho, e que me deixou encantada, sei que é um trabalho xamânico-psicanalítico. O que você está preparando para a Bienal?

Grada Kilomba – Estou a preparar dois projetos para a Bienal. Um chama-se O Projeto Desejo, que é uma instalação de vídeo, e o outro é Ilusões, que é uma performance, uma lecture-performance. São dois formatos diferentes, e isso eu já gosto. Gosto dessa ideia de estar ocupada com um tema, e não ter uma disciplina concreta, e depois o tema aparece em diferentes formatos e em diferentes disciplinas. É totalmente transdisciplinar. E isso para mim é muito importante: essa liberdade, essa flexibilidade de não estar agarrada a uma disciplina, mas focada em um tema, apaixonada e envolvida por ele, e depois, enquanto nós vamos trabalhando nele, é que aparece o formato, a visualização. Para mim, isso faz parte da descolonização do conhecimento. O Projeto Desejo é uma instalação de vídeo que cria três momentos: o público entra num espaço e vai percorrer uma pequena trajetória para ver três filmes diferentes e três estórias diferentes, mas que tem o mesmo som; e o som é uma bateria ritmada, um tambor que faz lembrar um pouco os ritmos africanos. Com o mesmo som eu recebo informações diferentes e vejo coisas diferentes. E o que eu trabalhei aqui foi que nesses três vídeos não há imagens, é o texto que se torna a própria imagem. Trabalho só com o texto, palavras, ritmos e vozes. São narrativas silenciadas a chegarem à voz, a se fazerem escutar, a contarem a sua estória. Essa é a trajetória: os três momentos exploram essa ideia de alguém que quer chegar à voz. É isso O Projeto Desejo: o que eu quero, o que eu desejo, o que é preciso, como eu quero contar a minha estória.

S.R. – É então um ensaio, no sentido da experimentação, sobre como encarnar o desejo, como não abrir mão do desejo, como não sucumbir ao silenciamento. E que estórias você vai contar?

G.K. – Eu comecei com o projeto que mostrei em São Paulo, quando nós nos conhecemos, que era um pequeno vídeo que se chamava While I Write (Enquanto eu escrevo),  apenas com palavras. Esse foi o início do projeto, e eu o continuei: Enquanto eu Falo, Enquanto eu Caminho. Há três momentos nessa trajetória. Ela fala exatamente sobre as narrativas que foram silenciadas e como nós conseguimos chegar à voz, e como conseguimos dar voz à nossa história, ou recolher a nossa história, que está fragmentada. São três momentos diferentes que falam sobre isso, e em cada momento o público vai se sentar, ver o vídeo, passar para o próximo vídeo, ver de novo, e depois passar para o terceiro vídeo, ver de novo. Para mim, essa é uma trajetória espiritual e refletiva, porque quero trabalhar com o ritmo, as vozes, a música e o texto e é uma coisa que se sente no nível corporal também, no nível emocional.

S.R. – Os próprios tambores marcam territórios sonoros, os ritmos marcam território e, com isso, já somos levados para esse outro lugar que você chama de espiritual.

G.K. –  Exatamente. Trabalhei com a ideia de que as narrativas são silenciadas porque outras vozes falam mais alto; não é que nós não estamos a falar, mas sim que nossa voz não é escutada. Então não é que a gente não tenha estado a produzir conhecimento e narração.  A gente sempre fala, a gente sempre entrega conhecimento, mas não escutam nossa narração, não escutam nossa história. Então, eu fiz uma série de gravações em lugares públicos e uso no início do filme essas vozes de fundo que são mais altas do que nossa própria voz, para brincar com essa dialética de que não é que a gente não fala, é a voz que não é escutada. E eu só posso me tornar sujeito falante se a minha voz também for ouvida. Esse é o jogo no início. Essas vozes depois desaparecem enquanto o ritmo e a bateria aparecem cada vez mais altos. E cruzam-se assim. Mas eu queria trazer toda essa teoria que está por trás de falar e silenciar num só projeto, quase simultâneo, pois falar e silenciar vão juntos: eu só posso falar se a minha voz de fato for escutada, e os que são escutados são aqueles que pertencem. Os que não pertencem são aqueles que ninguém escuta. Eu quis trabalhar esse jogo só através do som, e é dessa maneira que ele aparece nesse Projeto Desejo, através da metáfora da bateria e da música. É essa brincadeira entre o escutar, o falar e o silenciar.

S.R. – Esse plano sonoro é uma bela solução: o plano do vozerio de fundo, o plano da voz junto com a palavra, o plano do ritmo dos tambores. Então se a pessoa não estiver totalmente neurotizada, ou seja, se sua subjetividade não estiver totalmente submetida ao antropo-falo-ego-logocentrismo da cultura moderna ocidental, quando ela se deparar com o trabalho, ela dificilmente ficará só no conteúdo das palavras. Ela vai ser afetada pelo ritmo, pela textura das vozes emergindo do vozerio e se fazendo mais audíveis. Com isso você traz uma dimensão muito importante do modo de presença dos negros em toda as ex-colônias da América Latina que tiveram escravos. É que, embora eles tenham sido e continuem sendo totalmente silenciados, como se não existissem, eles ocuparam o espaço sonoro e o continuam ocupando integralmente. A gente não se dá conta, mas ele está lá.

G.K. – É exatamente esse espaço sonoro de que tu falas. É lindo. Como é que se fala dessa dialética do falar e do silenciar, sem falar, sem explicar, mas através do espaço sonoro? Como se transporta esse conhecimento através do espaço sonoro? Essa é a experiência desse projeto. Então eu pensei: vou trabalhar só com os ritmos, só com a percussão, só com as vozes. E, depois, em vez de termos o visual com imagens, como nós estamos habituados, eu vou trazer a palavra que nós imprimimos no papel e que se torna visual. É uma troca de formatos e de lugar das coisas, é isso O Projeto Desejo. Faz sentido para ti?

S.R. – Faz total sentido; a ideia é linda. Isso me remete ao que você disse antes sobre a necessidade do transdisciplinar em seu trabalho. Isso que você chama de tema, algo já tem uma forma e um significado, eu chamaria de um estado que está em nosso corpo, que é real, mas indizível e invisível; um estado que resuta dos efeitos das forças do mundo, de toda memória do mundo em nosso corpo, desde o atual golpe de estado no Brasil ou o perigo de Donald Trump tornar-se presidente dos Estados Unidos até toda a história da escravidão, passando pela Inquisição na Península Ibérica, indo lá para trás… É essa experiência que nos leva a criar algo que a torne sensível e, para fazê-lo, o desejo nos conectará com distintas coisas até começar a se compor algo que traga à luz aquele estado do mundo que nos habita. No teu caso, este estado resulta dos efeitos da violência colonial no teu corpo, especialmente em tua negritude, que te leva a conectar-se com os tambores, o timbre das vozes, te leva a tirar a imagem e a colocar texto em seu lugar, etc. Atraídos por essa experiência que você quer trazer à existência, todos esses elementos entram na composição de seu trabalho. Então, como esse processo pode encaixar-se numa disciplina ou partir dela, se o ponto de partida é uma experiência que não tem palavra, nem som, nem imagem, nem gesto e inventá-los é precisamente o trabalho a ser feito?

G.K. – É exatamente isso. É o que possibilita depois trabalhar com outros artistas que buscam criar sentido para uma experiência que tem ressonância com a nossa e, por isso, nossos caminhos se cruzam.

S.R. – E como é o outro trabalho que você está preparando para a Bienal?

G.K. – O outro trabalho chama-se Ilusões. Era um sonho que eu tinha; eu queria fazer uma performance, ou uma lecture-performance, não sei como chamá-lo. Eu queria trabalhar com a tradição oral, eu sou muito encantada pelos contos de estórias africanas, aquela tradição de contar, trazer o conhecimento através da oralidade, contar estórias. Pensei que é mesmo o que eu quero fazer, contar estórias, trazer essa tradição africana num espaço contemporâneo e muito minimalista, com texto, narração e projeção de vídeo que traz memórias, às vezes imagens do imaginário; é assim simples, bem simples. O que me fez escrever essas estórias é que às vezes sinto que já não há mais nada para contar. Por exemplo, em relação à história colonial, nós queremos desmontá-la, mas estamos sempre a contar a mesma estória. Vivemos numa quádrupla ignorância em relação a essa história: a gente não sabe, não precisa saber, não deve saber e não quer saber. Então em Ilusões decidi contar uma outra história. São duas estórias ligadas a dois mitos: o mito do Narciso, a estória de amor de Narciso com Eco, que eu recapitulo em um contexto colonial, um Narciso que está virado para si próprio e que só representa sua própria imagem, só vê sua própria imagem refletida no lago.

S.R. – É aquele que fala mais alto e não ouve.

G.K. – Exatamente. E Narciso, que só olhava a si próprio, também foi condenado porque não amava ninguém, e foi condenado com a sentença de que ele iria se apaixonar por alguém que não corresponderia ao seu amor. Ele chega ao lago, olha para a imagem e apaixona-se por ela, não sabendo que é ele próprio refletido na água. Portanto, ele nunca recebe o amor recíproco, e ele continua a pedir por esse amor olhando petrificado aquela imagem do lago, pensando que é uma outra pessoa que não lhe responde. E depois vem Eco, que confirma as palavras dele porque ela também foi condenada a não poder dizer mais palavras do que as últimas que ela ouve, porque ela falava demais. Ela só pode repetir as últimas palavras que lhe são ditas. Enquanto Narciso fala consigo próprio dizendo “eu amo-te, volta para mim”, Eco responde “volta para mim, volta para mim, eu amo-te, amo-te”. Ela só repete as últimas palavras de Narciso. Em Ilusões eu brinco um pouco com essa mitologia, com essas histórias como metáforas da tragédia colonial. É uma repetição infinita e uma representação infinita de si próprio que não representa a realidade, mas só aquela imagem colonial, branca, patriarcal que se repete constantemente e que está apaixonada por si própria e se idealiza a si própria, e condenada porque não vê mais nada a não ser sua própria representação. É uma representação, um tipo de enunciado em que as outras pessoas não existem. E ao mesmo tempo também tem a confirmação e o consenso de Eco, que está tão fixada no Narciso que sempre repete e confirma aquilo que ele diz. Neste narcisismo colonial e patriarcal em que nós vivemos, como vamos recuperar outras narrações e outras histórias? O trabalho é uma performance em que conto estas estórias tradicionais.

S.R. – É um dispositivo incrível para trazer à tona a relação colonial em sua pulsação viva, e não em sua representação ideológica. É a experiência da presença viva do outro no corpo, que na subjetividade branca ocidental está totalmente anestesiada e, com isso, o outro é uma mera representação, ele não existe. Para mim, é isso o que define fundamentalmente o que chamo de inconsciente colonial-capitalístico. É como um feitiço, que atravessa todas as relações em nossas sociedades e não só entre colonizador e colonizado. Quebrar esse feitiço é a questão e penso que é isso o que você busca em seu trabalho.

G.K. – É isso mesmo. E é tão difícil quebrar esse feitiço, sair desses lugares. É engraçado como a psicanálise está presente em nosso trabalho; eu vejo essa conexão em todas as dimensões de que estamos a falar. E neste Ilusões tem uma outra dimensão importante para a qual eu trago o conto de Édipo. É a dimensão da lealdade. A quem nós somos leais? Por que é tão difícil transformar? E isso aliado a outra pergunta: o que é que estamos a defender? A quem é que nós temos que defender? Então eu estou a fazer uma passagem para falar dos temas pós-coloniais através de várias estórias, de vários contos, e tento fazer uma ligação entre um e outro.

S.R. – E como Édipo entra nesse trabalho?

G.K. – Tem uma parte de que eu gosto muito, porque me fez pensar na violência, especialmente contra a população negra. De onde vem essa violência? Por que o corpo negro é o recipiente de tanta agressividade, de tanta violência? E depois eu consegui ligar com a estória do Édipo, a estória da lealdade, do rival, do verdadeiro rival, as fantasias da agressão contra a figura paterna, contra a figura materna. Fantasias que não se pode exercer porque senão se perde o acesso ao poder, e por isso elas vão ser performadas, executadas no corpo que eu construo como outro. Nesse outro corpo eu posso então exercitar toda a violência e toda a agressividade e assim mantenho a família e a estrutura colonial saudáveis, em segurança e em seus lugares, civilizadas. E toda essa agressividade é uma performance que é feita fora de casa, e é para isso  que são criados os outros. É nesse momento que fiz a ligação com o Édipo. De onde vem esta violência? O que nós estamos a defender? Ah, claro, se eu me revoltar, se eu executar essa agressividade dentro do espaço da casa, serei expulsa…

S.R. – E aí que entra a lealdade, mas como submissão e obediência; conservação do status quo.

G.K. – Exatamente. Por que eu não posso ter uma outra narrativa, um outro vocabulário diferente de minha casa paterna? Por que eu não posso falar diferente de meu pai ou de minha mãe? A quem sou leal? Por que essa lealdade? E aí eu acho que faz muito sentido contar as estórias e fazer a ligação com o Édipo. É também uma forma bonita de entrar nessa temática. Achas que faz sentido para ti?

S.R. – Faz total sentido. Quando a subjetividade está reduzida à sua experiência enquanto sujeito e desconectada daquela outra experiência, a dos efeitos das forças do mundo no corpo, como é o caso em nossa cultura, o sujeito interpreta aquela desestabilização que decorre destes efeitos como uma ameaça de fim do mundo, quando, na verdade, é aquele mundo que está chegando ao fim porque um outro mundo está germinando. E para essa subjetividade que ignora o saber-do-corpo, a ameaça da desagregação daquele mundo é também ameaça da desagregação de si mesmo, pois é naquele mundo que Narciso se espelha. Então, para conservar aquele mundo e a si mesmo, a subjetividade tem que projetar a causa de seu mal-estar em um outro, tem que criar um outro como tela para essa projeção e os atores que protagonizam este personagem do outro vão variando ao longo da história. Mas faz tempo demais que o negro está nesse papel…

G.K. – Isso nos leva de volta à ignorância de que nós falávamos. Eu não sei, não preciso saber, não devo saber e não quero saber. E aí estamos sempre no mesmo sítio, não nos desenrolamos dessa história colonial, patriarcal, racista, homofóbica, etc., exatamente por causa desse narcisismo e dessa lealdade. É esse narcisismo e essa lealdade que eu quero explorar nessas Ilusões, mas no formato de contar estórias, de trazer o conhecimento através da tradição oral. Estou a trabalhar com vídeo e imagens e queria recolher também algumas imagens de arquivo. Ainda estou a trabalhar nessas ilusões, nessa performance, mas eu queria fazer uma coisa bem minimalista, bem simples. Eu gosto de focar no contar estórias como no outro projeto, sem muito barulho e muito espetáculo, e acho que isso também é um outro formato, uma outra forma de usar a performance. Eu ainda estou a recolher as imagens.

S.R. – Que imagens você já recolheu?

G.K. – Eu encontrei, por exemplo, uma carta do meu bisavô português, uma carta que ele escreveu quando ele chegou a Angola, para a minha bisavó e para minha avó, que já estava nascida. Ele foi a Luanda como cozinheiro e ele vinha de uma aldeia. Ele descreve na carta a viagem e o que ele vê em Luanda, descreve as pessoas com todo aquele vocabulário colonial, racista. É bem complicado. E eu tenho outra carta, mais recente, de meu pai quando chegou a Angola, e esta tem outra narrativa. E tenho também um documento da minha avó em São Tomé e Príncipe quando seu nome lhe foi retirado. Eu estou a tentar criar uma narrativa, e acho muito bonita essa parte do documento, Suely, porque é do tempo em que a colonização portuguesa usava a assimilação como estratégia: tornar-se o mais similar possível ao colonizador. Por isso, nós temos todos o mesmo nome e uma das formas de assimilação foi a proibição do uso dos nomes africanos. Meu nome Quilomba é o nome da minha avó. Quilomba, como quilombo também, vem do quimbundo, que é uma das línguas mais importantes em Angola.

S.R. – E o que quer dizer quilombo? Porque aqui, como você deve saber, esta palavra tem um sentido político de comunidades de negros que conseguiam fugir da escravidão. E houve centenas de quilombos durante o período colonial, alguns inclusive se juntaram e formaram verdadeiras cidades.

G.K. –Quilombo em quimbundo quer dizer aldeia, ajuntamento, mas depois foi transformado em um termo político, mas guardando o mesmo sentido .

S.R. – E Quilomba era o sobrenome ou o nome dela?

G.K. – Era sobrenome. Nós tínhamos dois nomes, Buzie e Quilomba. Buzie era do meu avô e Quilomba era da minha avó, e Grada era o prenome da minha outra avó. Mas os nomes africanos foram todos anulados durante o tempo colonial. Eu fui ao arquivo em São Tomé e Príncipe procurar os documentos, porque minha avó e minha mãe me contaram como o nome delas foi proibido e desapareceu. E eu encontrei os documentos em que a mãe da minha avó ainda tinha o nome Quilomba e foi retirado, porque ela como muitas outras pessoas foram tiradas do continente à força para São Tomé e Príncipe para trabalhar nas plantações de cacau e de café. Elas vinham de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, e foram levadas para São Tomé e Príncipe, isoladas em plantações diferentes, com línguas diferentes e os nomes foram anulados. É por isso que temos quase todos o mesmo nome, no Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, GuinéBissau, São Tomé e Príncipe, Goa, Timor-Leste. Viramos todos os Fernandes, da Silva, Ferreira, etc., e não se sabe de onde cada um vem.

S.R. – E qual é seu nome de nascimento?

G.K. – Eu tenho uma série de nomes civis. Tentei colocar oficialmente o nome anterior de minha família, Buzie Quilomba, mas a Constituição não está preparada para a história colonial, só é permitido mudar o nome por casamento, divórcio ou adoção. A história colonial não faz parte da Constituição, ela não tem solução para isso, não há sequer um parágrafo sobre como se lida com isso, que, no entanto, diz respeito a uma população inteira. Não se pode recuperar um nome que foi anulado. Então, uns bons anos atrás, eu decidi recuperar meus nomes originais, mas como nomes artísticos, porque, apesar de serem meus nomes, não posso tê-los no passaporte.

S.R. – E qual seu nome no passaporte?

G.K. – Tenho todos os nomes portugueses no passaporte, tenho Ferreira, Pereira… E Grada é o meu prenome que é, como disse, o de uma de minhas avós. Todos os outros nomes eu escolhi. Por exemplo, Quilomba, o nome de minha outra avó. Então eu tenho dois nomes de mulheres no meu nome. Mas o que é bonito nessa história do nome é que, como no Brasil, ela faz parte da nossa história colonial.

S.R. – Você já fez algum trabalho sobre isso?

G.K. – Eu já escrevi uma estória que agora queria incluir no livro que estou preparando, Performing Knowledge (Performando Conhecimento), e essa estória do nome é uma das que aparecem lá.

S.R. – É incrível ter a memória do nome anulada; uma anulação que resulta da violência ao trauma e que continua a se perpetuar na impossibilidade de resgatá-lo.

G.K. – É isso mesmo e não é só o trauma. Tem também a alienação: eu só posso ser eu, ter o meu nome registrado, oficial, civil, sendo o nome do colonizador, ou seja, eu só posso ter uma existência civil oficial através da identidade do colonizador, através de seu nome. Nós não podemos esquecer que durante muito tempo, até os anos 60, eu não consigo me lembrar agora exatamente até quando, a população negra não tinha direito a uma identidade, a uma nacionalidade. Agora eu estou a fazer esse trabalho de arquivo para buscar com que imagens trabalhar para contar essa estória da Ilusões, o que é e o que não é, e quem é que eu posso ser, quem é que eu tenho que ser, para eu me tornar visível. Então tem essa brincadeira com as Ilusões. Como eu recupero essa história?

S.R. – E qual é a origem de seu pai?

G.K. – O meu pai é português e vem de uma zona, Coimbra, em que são todos judeus; havia perseguição em toda aquela região e toda a comunidade judia foi obrigada a mudar de nome. É o caso da família de meu pai. Todos os nomes portugueses que acabam em eira, Macieira, Pereira, Ferreira, são judeus.

S.R. – Então você também tem um pedaço judaico, via seu pai cristão-novo. Assim como tenho um pedaço de negritude, via Brasil. Compartilhamos o trabalho com esses dois traumas.

G.K. – Acho mesmo muito bonito conseguir, em nosso trabalho, fazer essa ponte com o passado, com o corpo e o conhecimento, através do corpo e de sua memória, com essa dimensão espiritual e com tantas outras dimensões.

S.R. – Para mim, a volta ao passado não é a volta às formas de viver, aos sistemas de comportamento e suas representações, aos sistemas morais, a uma certa filosofia. É muito mais a volta a essa conexão com o saber-do-corpo, e, quanto mais se vai para à memória do passado no corpo, mais você se sente autorizada e estimulada a ativar essa conexão. É o que nós fazemos cada uma à sua maneira em nossos trabalhos. É uma espécie de amor pela vida e pelas pessoas, grupos e comunidades que se mantiveram e se mantêm em contato com a vida e a tomaram nas mãos movidas pelo desejo de cuidá-la.

G.K. – É amor mesmo, é por isso talvez que a gente fala de coisas sérias e com uma calma e um sorriso.

S.R. – Esse sorriso vem daí. Mas a gente teve que lutar bastante por esse sorriso. Esse sorriso estava lá desde sempre, mas não parava de levar porrada, de ficar na dúvida, de sumir, até que ele foi se impondo.

G. K Trago esse sorriso na cara porque já chorei demais.

S.R. – Então chega, não é?

G.K. – É mesmo. Já falamos sobre tanta coisa. Foi tão lindo falar contigo, muito obrigada.

S.R. – Eu é que te agradeço, Foi tão bom te escutar.

 

Conversa de Bar(r)

Retrato de Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Alfredo Mesquita, por Luis Bueno D'Horta, 1981.

Foi Ana Candida Avelar (hoje professora na Unb, antes minha orientanda na USP) quem me apresentou o artigo de Lourival Gomes Machado, “Conversa de Barr”, publicado no Suplemento Literário do Estadão em 19 de outubro de 1957. O texto fazia menção à polêmica que acompanhou a escolha e premiação dos artistas brasileiros da 4ª. Bienal de São Paulo, ao mesmo tempo em que criticava, de forma elegante, mas contundente, as declarações de Alfred Barr sobre a arte brasileira vista naquela edição da Bienal (Supl. Literário, 28 de setembro de 1957). Não era pouca coisa o artigo: Barr tinha sido o grande formulador do Museu de Arte Moderna de Nova York (esteve presente na instituição de 1929 a 1968) e, mais do que isto, um dos curadores mais influentes do século XX. Bonito ver o crítico brasileiro batendo de frente na prepotência e no desconhecimento do norte-americano sobre a arte brasileira daquela década.

Porém, apesar da excelência e da pertinência do artigo de Machado, confesso que o que mais apreciei no artigo foi, de fato, o título: “Conversa de Barr”. Com essa expressão tão simples, com esse trocadilho aparentemente tão barato, Lourival Gomes Machado sintetizou muito bem o que pensava sobre a polêmica em pauta e sobre o posicionamento de Alfred Barr a respeito da arte local: não passavam de conversas de bar. E para Machado, “conversa de bar” denunciava um estado de espírito muito comum no ambiente artístico de São Paulo: “um estado de espírito, aliciante e jeitoso, camarada e exclusivista, inteligente e concessivo, brilhante e inconsequente…”.

Quando Patricia Rousseaux me convidou para manter uma coluna em ARTE!Brasileiros, sugerindo que eu pensasse em um nome para a mesma, logo me veio o título do texto de Machado: por que não nomear a coluna “Conversa de Barr”? Sem dúvida uma homenagem a Lourival Gomes Machado – que com o título do artigo provou não ser um dos “chato-boys”, como Oswald de Andrade nomeou o grupo ao qual pertencia Machado no início da carreira (o pessoal do grupo da revista Clima).

Por outro lado, apropriar-me do título, além da homenagem, significava também propor uma espécie de conversa de bar aos leitores da ARTE!Brasileiros, e isso porque acredito que – ao contrário do que pensava Machado no artigo – muito do que se conversa numa mesa de bar não morre ali, pressionada pela própria inconsequência. Pelo contrário: a conversa pode ser leve e aparentemente inócua, mas, se possui alguma fundamentação, tende a permanecer na cabeça dos interlocutores que a ruminam até que ela se modifique, ganhe corpo novo, transforme-se em novas ideias, projetos, obras.

Fechada a escolha do título – Conversa de bar –, me perguntei se deveria ou não retirar a referência a Alfred Barr. Por fim, cheguei à conclusão de que manter seu nome no título da coluna significava perpetuar o genial trocadilho de Machado. O que, por sua vez, ampliava a homenagem que queria fazer com aquela escolha. Explico: se Lourival Gomes Machado e sua geração significaram muito para a minha formação, não resta dúvida de que o papel exercido por Alfred Barr junto ao Museu de Arte Moderna de Nova York (além de seus livros e textos) também teve um grande significado para mim. Manter no título da coluna para a ARTE!Brasileiros referências a nomes significativos para minha formação profissional (e para a de tantos outros colegas) seria um lastro importante a se preservar, mesmo que, no caso do intelectual norte-americano, ele apenas seja referido no “r” entre parênteses – uma espécie de chiste que deverá ser levado a sério. Pelo menos por mim.

*Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). 

Fábio Baroli e Monica Piloni inauguram individuais na Zipper Galeria

Pintura de Fabio Baroli. FOTO: Divulgação

A Zipper Galeria apresenta simultaneamente, a partir deste sábado, dia 11 de maio, as mostras dos artistas Fábio Baroli e Monica Piloni, na primeira vez em que ambos expõem individualmente na casa paulistana.

Intitulada SELVA-MATA, a exposição de Baroli – nascido em Uberaba e sediado em São Paulo – reúne uma série de pinturas que têm como ponto de partida as paisagens características da Mata Atlântica. A partir delas, o artista propõe uma reflexão sobre a ação do homem no meio ambiente, como ele explica no texto de apresentação: “O intuito é estabelecer a intercomunicação, por meio da arte, entre as complexas e sensíveis relações do ser humano e suas ocupações, em seu amplo sentido de posse, ofício e lugar”.

A curitibana Monica Piloni, por sua vez, apresenta a mostra Ciclo, com uma série de esculturas que distorcem o corpo humano com desmembramentos, omissões ou multiplicação de elementos, “gerando formas não naturais, frequentemente incômodas”, segundo o texto de apresentação.

A partir de moldes produzidos em seu próprio corpo, a artista modifica a anatomia original, chegando a figuras que muitas vezes deixam de ser identificados como corpos e se tornam objetos misteriosos. “O dado do irreconhecível é algo que me move. Investigo se há um prazer por trás do medo. Meu trabalho depende da reação do público. Eu preciso desta resposta, deste espelho”, diz ela.

 

Ciclo (Monica Piloni) e SELVA-MATA (Fábio Baroli)

Zipper Galeria – R. Estados Unidos 1494, Jardim América, São Paulo

De 11 de maio a 8 de junho

Mostra aborda questões indígenas sob referência de livro de xamã

Poraco, obra da série Oamu.

Ailton Krenak, Claudia Andujar, Poraco, Cildo Meireles e Paz Errázuriz são só alguns dos 21 nomes de artistas e pensadores que têm seus trabalhos expostos em A Queda do Céu, aberta à visitação para o público a partir de 8 de maio, na Caixa Cultural de Brasília. A mostra com curadoria de Moacir dos Anjos busca refletir sobre as consequências do contato involuntário dos povos indígenas com o colonizador branco.

A exposição foi apresentada pela primeira vez em 2015 no Paço das Artes, indo para o Sesc Rio Preto no ano seguinte, ambas instituições em São Paulo. Agora em Brasília, o projeto que faz referência ao livro homônimo do xamã yanomami Davi Kopenawa, escrito a quatro mãos com o antropólogo Bruce Albert.

De acordo com o curador, a mostra “quer aproximar e articular trabalhos artísticos que prenunciam, evidenciam e combatem a progressiva despossessão sofrida por populações indígenas” ao longo dos anos. Isso vai de encontro à reflexão sobre o caráter predatório de ações do homem branco ao conhecer esses povos, seja em relação ao território ou à cultura, presente no livro.

A Queda do Céu fica em cartaz até 30 de junho e ocupa três salas da Caixa Cultural de Brasília: as Galerias Principal e Piccolas I e II. Além dos nomes já citados, participam da exposição Anna Bella Geiger, Armando Queiroz, Bené Fonteles, Fabio Tremonte, Fred Jordão, Harun Farocki, Jaime Lauriano, Jimmie Durham, Leonilson, Lourival Cuquinha, Maria Thereza Alves, Matheus Rocha Pitta, Miguel Rio Branco, Paulo Nazareth, Regina José Galindo e Vincent Carelli.

Museu Afro inaugura mostra dedicada à Bahia

Tapeçaria de Genaro de Carvalho. FOTO: Divulgação

Com pinturas, gravuras, tapeçarias, porcelanas, esculturas, fotografias e filmes, uma grande mostra no Museu Afro Brasil, em São Paulo, homenageia a Bahia e os baianos. Com abertura nesta terça-feira, dia 7, A Cidade da Bahia, das Baianas e dos Baianos Também tem curadoria de Emanoel Araújo e reúne trabalhos produzidos em diferentes épocas, desde o barroco até a modernidade.

“Essa exposição fala de alguns fatos e pessoas, sobretudo dos artistas, dos homens e das mulheres. Mulheres que fizeram da Bahia essa mágica, inusitada e preciosa cidade, de todos os santos, de muita sensualidade e de pouco pudor, que se esvai pelas ladeiras e ruas sinuosas”, diz Araújo no texto de apresentação.

O núcleo central da mostra é dedicado ao modernismo baiano, representado por nomes como Carlos Bastos, Genaro Antônio Dantas de Carvalho, José Adário dos Santos e Rubem Valentim. Em outra seção, fotografias, revistas e publicações homenageiam baianas ilustres como Carmen Miranda, Marta Rocha e Helena Ignez. Há ainda fotos e pinturas de Jorge Amado, Dorival Caymmi e Mãe Menininha do Gantois, além de bustos em gesso dos heróis da Revolta dos Alfaiates, também conhecida como Conjuração Baiana.

A arte barroca baiana ganha espaço com pinturas do século 18 de Joaquim da Rocha, Teófilo de Jesus e Veríssimo de Freitas, além de azulejos e objetos de época. A exposição conta ainda com um conjunto de fotografias de Mário Cravo Neto e aquarelas do século 19 da artista inglesa Maria Graham, retratando o cotidiano das baianas de Salvador. Completam a mostra filmes de Glauber Rocha e Trigueirinho Neto, entre outros.

A Cidade da Bahia, das Baianas e dos Baianos Também

Museu Afro Brasil – Parque Ibirapuera – Av. Pedro Álvares Cabral, s/n.

Até 1° de setembro de 2019

Cartas de Cuba #4

Qual é a transcendência da Bienal de Havana depois de 30 de atividade? O maior evento cultural de Cuba  tem passado por diferentes períodos sócio-politico-culturais desde sua criação em 1984. Sobrevive com exposições de qualidade e outras que cumprem o calendário com grande dificuldade, como é o caso da 13ª Bienal. A Bienal reúne sete curadores, todos cubanos: Nelson Herrera Ysla, José Manuel Noceda Fernández, Margarita González Lorente, Nelson Herrera Ysla, Margarita Sánchez Prieto, José Fernández Portal, Ibis Hernández Abascal e Lisset Alonso Compte, além dos convidados internacionais que integram a programação de conferências e exposições. Nelson Herrera Ysla lembra que a Bienal foi criada em 1984 adotando um modelo tradicional para ganhar experiência de curadoria, produção, montagem. “Dois anos depois  abriu  as portas aos países em desenvolvimento e se inscreveu na história da arte como a primeira Bienal global a convidar artistas da África, Ásia e Oriente Médio, para juntar-se aos do Caribe e América Latina. Ele concorda que ainda não fizeram  mudanças substanciais, mas acredita nelas em um futuro próximo. “Hoje a novidade é a inserção de outras cidades cubanas como vias de investigação e busca de novos públicos”. A Bienal de Havana exercita o ativismo do trabalho coletivo e colaborativo, todas as instituições da cidade podem ser acionadas. Nelson diz se sentir hoje mais animado diante de novas ideias, em termos de estrutura e modelo. “Atualmente posso fazer coisas que pareciam impossíveis ou distantes anos atrás”. O  traço fundamental do evento é lançar artistas saídos da Escola Superior de Arte (ISA), com expressiva formação teórico- conceitual.

Nesta última Carta de Cuba coloco foco em quatro artistas, filhos legítimos da Bienal que ganharam o mundo:  Kcho (Alexys Leyva Machado), Carlos Garaiocoa, Los Carpinteros e René Francisco Rodriguez. Todos com carreiras estabelecidas e poéticas identificáveis e, nesta edição da Bienal, reunidos na mostra Museus Interiores, no Museu Nacional de Bellas Artes.

Kcho é a cara de Cuba: criativo, inquieto, alegre e senhor de si. Constrói e codifica visualmente objetos, retirando-os de seu cotidiano e fazendo-os dialogar com o espaço. A nostalgia que interliga terras distantes domina Regata, instalação de 1993 e realizada aos 23 anos, um ano antes de Kcho entrar para o acervo do Museu Reina Sofia, em Madri, e integrar o elenco da galeria Barbara Gladstone, de Nova York, com 24 anos. O predomínio do barco em sua obra, símbolo recorrente no imaginário coletivo dos cubanos, é traduzido tanto em desenhos gestuais como em esculturas ou instalações feitas de aglomerados de objetos que se nutrem de várias poéticas. O mar funciona como o farol de sua imaginação, matriz de uma paixão que Kcho alimenta até hoje, aos 49 anos. Ir de uma margem a outra é muito natural para quem é ilhado duplamente: ele nasceu na Ilha da Juventude, um estado de Cuba. Como diz Foucault: “Em civilizações sem barcos, os sonhos secam” .

Ao analisar os princípios da obra de Kcho chega-se às arquiteturas primárias, arquétipas, que críticam as técnicas formais. Nesta viagem a Havana visitei mais uma vez seu Centro de Arte e Ateliê Romerillo. Internamente o museu particular abriga parte de suas obras em papel e materiais perecíveis e a céu espaço, as esculturas agigantadas e que recentemente foram expostas na Itália. Numa perspectiva poética, a obra de Kcho em 2002 tomou todo o MUBE – Museu Brasileiros da Escultura em São Paulo, em 2002, com a retrospectiva El Huracón (O Furacão), com  minha curadoria. O trabalho de Kcho mantém camadas de inter-relação com o sistema de arte. Com menos de trinta anos entra para o acervo do MoMA de NY, do MoCA de Los Angeles e do Reyna Sofia, de Madri, entre outros. O elemento chave do crescimento de Kcho foi o interesse despertado por críticos como Pierre Restany, Harald Szeeman e Achille Bonito Oliva que o apoiaram fortemente.

Como afirmou o geógrafo Milton Santos, a arte de rua, naturalmente urbana e pública, traz forte carga política por ocupar espaços fora dos campos institucionalizados da arte e por tocar as realidades sociais de perto.

Carlos Garaicoa reconfigura o cotidiano das cidades com recortes de espaço e tempo, do sujeito e do objeto. Partitura (2017) é a síntese desse pensamento, uma sinfonia que toma grande sala do Museu Nacional de Bellas Artes de Cuba. Desenvolvida ao longo de dez anos, a instalação que já foi exposta em São Paulo, tem a participação de mais de 70 músicos de rua, de Madri e Bilbao. O encontro dos intérpretes se materializa na instalação composta por 70 suportes de partituras. Tabletes e fones de ouvido presos a eles exibem desenhos criados por Garaicoa, inspirados nas melodias. Trata-se de uma grande orquestra com 35 vídeos de músicos ambulantes tocando peças diversas. Uma partitura final, elaborada pelo músico cubano Esteban Puela, como fechamento deste conglomerado de sonoridades citadinas, é transmitida para uma grande tela digital que assume a direção da orquestra. Com essa obra Garaioca homenageia as cidades, lugar de vivências, afetos, derrotas, improvisos. Também exalta o músico de rua, símbolo da máxima “arte é vida”.

Los Carpinteros, em uma de suas últimas atuações como dupla, coloca em Alacenas, de 2016, uma visão crítica do resultado das fortes tormentas que invadem o Caribe. Os sons emitidos pelos furacões foram gravados e reproduzidos a partir de desgastados armários de cozinha de onde se escuta o barulho aterrador dos furacões. Eu mesma pude experimentar em Havana essa sensação em 2006, quando estive próxima ao epicentro do Furacão Kate, ranqueado como um dos mais fortes deles. Os armários de cozinha, velhos e vazios, incorporam outras questões como a situação de escassez e precariedade.

Grandes mostras podem ser mediações entre o artista e o mercado. René Francisco Rodríguez também se notabilizou ainda jovem, a partir de suas experimentações na Bienal de Havana. O sentimento que impregna sua instalação Talles de Reparación, um de seus trabalhos mais significativos, está mais forte na versão atualizada. Ele armazena experiência, interação dos objetos e pessoas neste diário pessoal e profissional. Ao longo de sua vida foi incorporando à sua obra uma coleção de testemunhos materiais e simbólicos que vão se acumulando no local de trabalho. Esta instalação acumulativa é uma obra in progress muito próxima a do brasileiro Paulo Brusky.

Os quatro artista formam um núcleo lógico e de consenso, mas vale lembrar que há pelo menos duas dezenas de outros artistas, igualmente resolvidos profissionalmente, que gravitam por exposições internacionais.