"A Casa da Mãe", de Randolpho Lamonier. Foto: Karina Bacci
“A Casa da Mãe”, de Randolpho Lamonier. Foto: Karina Bacci
*Por Alexia Tala
Alexia Tala – Quando observo tua obra vejo que há uma profunda procura por suportes e formatos. Você usa artes gráficas, fotografia, audiovisual, textil etc. Essa versatilidade faz com que tua obra não se limite a uma estética particular. Como é o processo em que você opta por trabalhar uma ideia, num suporte ou outro? Randolpho Lamonier — Desde o princípio de minha pesquisa em arte venho lidando com muita experimentação e o ato de improvisar se tornou uma de minhas principais metodologias de trabalho. Foi algo que eu assimilei de forma totalmente intuitiva como resposta a uma série de barreiras e faltas, porque quando comecei a produzir não dispunha de dinheiro para materiais, conhecimentos técnicos ou referências do mundo da arte. Então comecei observando o que estava ao meu redor e improvisando com as situações que minha realidade me oferecia. Isso marcou em mim a sensação de que posso trabalhar com qualquer material, mídia ou suporte, desde que haja necessidade e desejo.
Como e qual foi a influência que deu começo a teu fazer artístico? Cresci na periferia de Contagem/MG, num contexto onde não tínhamos acesso a praticamente nenhum aparelho cultural. Fui criado assistindo TV enquanto minha mãe trabalhava fora. Acredito que a estética dos blockbusters da Sessão da Tarde, os programas sensacionalistas da tv brasileira dos anos 90 e os videoclipes da MTV foram os primeiros estímulos que poderiam se aproximar de uma influência dita “artística”. Ainda na infância, ajudava meus tios numa pequena empresa familiar de filmagens de casamentos, festas e outros eventos. Então a captura e reprodução de imagem através do VHS também foi algo que me chamou muito a atenção. Mais tarde, enquanto já começava a explorar o campo das artes visuais, comecei a estudar teatro e logo estava trabalhando em algumas companhias. Minha curta passagem pelo Grupo Oficina Multimedia, em Belo Horizonte, foi uma de minhas principais influências naquele momento, por sua intrínseca relação com as artes visuais e sua arrojada pesquisa com videoinstalações, objetos cênicos, figurinos e cenografias. Depois comecei a fotografar meus amigos, quase todos do teatro, e as propostas narrativas e estéticas que criávamos para fotografar me levaram a me interessar pela foto-performance e a produção em vídeo.
Muito interessante teu processo. O que surge primeiro, o assunto ou o encontro com a matéria? Não há uma regra, mas, de modo geral, primeiro surge uma questão, depois eu encontro a matéria, a forma e a linguagem através das quais irei explorá-la. Acabei chegando a uma ideia de “oposição” que quase sempre norteia minhas escolhas, como as crônicas sangrentas de minhas memórias de Contagem narradas em pequenos bordados feitos à mão; ou as bandeiras de Profecias, feitas com trapos de cama, mesa e banho, para tratar de assuntos públicos e questões sociais referentes ao Brasil. Em última instância, me autorizo a experimentar com qualquer tipo de material ou processo, como se errando muito eu aprendesse mais.
Falando de Profecias, quando vi pela primeira vez tua obra, me remeteu imediatamente à historia recente da América Latina e ao peso histórico e simbólico que tem o uso têxtil e os bordados nas obras de resistência. Que aspectos do têxtil te interessam na tua obra? Meu contato com o têxtil começou em casa vendo minha avó costurar. Minha mãe já trabalhava na indústria costurando bancos de carros para a Fiat e, bem antes disso, meu avô paterno foi alfaiate. Mas foi depois de conhecer os bordados da Violeta Parra que eu comecei a me interessar pelo têxtil como possibilidade expressiva. A partir do trabalho dela conheci a tradição das Arpilleras chilenas e elas me impactaram fortemente. Me senti desde então muito influenciado, sobretudo pelo aspecto de denúncia social e política que esses trabalhos evidenciam. Aos poucos fui conhecendo o trabalho de outros artistas como o Bispo do Rosário, Louise Bourgeois, Tracey Emin, Leonilson, Sônia Gomes e Feliciano Centurión, cuja influência me levou a explorar um outro aspecto da produção têxtil, mais emocional e afetiva, quando a intimidade se torna política.
Na tua obra parece misturar-se o íntimo e privado, o que acontece nos espaços cotidianos pessoais e o que acontece na rua. Para você há uma indiferenciação entre o público e o privado que você busca que se manifeste nas imagens/obras? Tento explorar no território dos assuntos íntimos tudo que possa haver de relevante para a esfera pública, e da mesma forma o contrário, me envolvo com os assuntos de ordem pública com um engajamento muitas vezes sentimental e catártico. De modo que estou sempre borrando as barreiras entre esses dois universos na tentativa de criar um terceiro espaço onde eu circule com o máximo de liberdade possível.
Teu trabalho fala sobre violência, opressão e algumas lutas sociais relativas ao subdesenvolvimento e a marginalidade. Como o teu trabalho está assimilando a atual situação brasileira? Como um artista interessado em contar histórias e dialogar com as questões do meu tempo, seria impossível não me sentir totalmente atravessado pela crise geral que o Brasil está vivendo. Eu já fazia ideia de como o mundo interfere em meu trabalho e agora estou aprendendo de quais formas ele responde ao que produzo. É uma concepção de responsabilidade que tem ampliado minha consciência em relação à potência de tudo quanto pode a subjetividade. Estou buscando todo o desejo, irreverência e coragem que se pode extrair desses dias de puro horror.
"Judith Slaying Holofernes", de Imri Sandström, 2010
Desde 2016, o Masp vem articulando sua programação em torno de “Histórias”, iluminando nesse processo relações complexas entre a arte e segmentos sociais historicamente preteridos. A cada ano, um tema – como Histórias da Sexualidade e Histórias Afro-Atlânticas – norteia as exposições e atividades organizadas pelo museu. Agora é a vez das mulheres. Repensar a relação entre elas e as artes visuais, jogando luz sobre a estrutura desigual do sistema de produção artística, é algo urgente, necessário e que pode ser feito a partir de uma múltipla abordagem, como mostra a estratégia ampla adotada pelo museu, que envolve ciclos de debate, exposições monográficas de importantes artistas do século XX e publicações impressas. Neste processo tem importância fundamental o trabalho de concepção e realização de pesquisa curatorial. Em função do volume de material e da complexidade do tema, a grande mostra do ano foi desdobrada em duas montagens extensas e diferentes, porém complementares. Histórias das Mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000 são faces independentes, porém integradas, de uma estratégia de mapeamento da criação plástica de autoras em diferentes momentos históricos.
A primeira das exposições volta-se para o passado, desvenda o perverso processo de apagamento a que as pintoras mulheres foram submetidas ao longo de séculos, tendo sido relegadas a uma posição de inferioridade na cena artística internacional, apesar de terem uma produção capaz de rivalizar em termos de igualdade com seus pares masculinos. A segunda se debruça sobre o momento atual, mostra as estratégias e embates das autoras para produzir uma arte capaz de lidar com questões centrais no mundo contemporâneo.
Histórias das Mulheres, que ocupa o primeiro andar do museu, reúne quase 90 trabalhos, de 50 autoras, realizadas entre os séculos XVI e XIX. A curadoria tríplice ficou a cargo de Julia Bryan-Wilson, Lilia Schwarcz e Mariana Leme. O conjunto revela uma erudição e virtuose técnica que se chocam frontalmente com os dados concretos que atestam o papel marginal destinado à mulher na história da arte, como, por exemplo, o fato de que a maioria das telas provém de coleções particulares (apenas uma das doze pinturas da primeira sala, dedicada ao século XVI, pertence a um museu), o desaparecimento de parcela significativa da obra dessas autoras (De Cornelia van der Mijn, por exemplo, existe apenas uma obra identificada) e a pouca visibilidade dessa produção.
Esse conjunto impressionante foi garimpado em diversos acervos pelo mundo e exigiu uma série de deslocamentos, já que boa parte dos trabalhos estavam guardados nas reservas técnicas e não estão ainda disponibilizados nos sites e acervos online. A própria coleção do Masp é um exemplo interessante: do período contemplado pela exposição (anterior a 1900), o museu possui apenas três obras de autoras mulheres. A situação melhora ao adentrar o século XX, mas em termos gerais ainda há uma grande sub-representatividade, já que a participação feminina no acervo está em torno de 22%.
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"Still Life with Flowers", 1762, Cornelia van der Mijn
"Portrait of a young girl", de Mary Beale
"Still life with fish, oysters and shrimps", 1607, Clara Peeters
Nameless and Friendless, 1857, de Mary Osborn
Se de forma geral o conjunto é de grande interesse, a mostra torna-se ainda mais sedutora quando o visitante se debruça sobre a trajetória e produção de cada uma dessas mulheres. Ali estão representadas histórias fascinantes, como a de Elisabeth Louise Vigée Le Brun, que alcançou uma popularidade excepcional no século XVIII, tornando-se a primeira pintora de Maria Antonieta, ou de Eva Gonzalès, a única aluna, tanto mulher quanto homem, aceita por Manet. Entremeadas nesse rico conjunto de obras, reveladoras tanto de talentos individuais como de histórias e costumes de um amplo período de tempo, a exposição contemplou também um tipo de arte normalmente associado ao feminino: o trabalho têxtil. O mais antigo exemplar de tecido na mostra é uma peça pré-colombiana e data do século I. Mas ao longo da mostra o público pode apreciar bordados de diferentes épocas e regiões, do império Otomano às colchas de retalho norte-americanas (quilts). A contraposição entre pinturas de um lado e tecidos e bordados – tradicionalmente símbolos do feminino – têm como objetivo desmascarar esse lugar da artesania como lugar da mulher e ao mesmo tempo contribuir para ampliar a ideia de arte. “Não se trata aqui de entender o feminismo como a busca de igualdade num sistema de opressão e sim de dissolver essas hierarquias. Trabalhar a diferença de gênero é muito mais do que falar sobre mulheres”, afirma Mariana Leme.
Há também na seleção contemporânea uma presença importante do fazer têxtil. A trama do tecido e do bordado passa a ser utilizada como forma de transpor as barreiras, muitas vezes insidiosas e mascaradas, impostas pelo patriarcado. Carolina Caycedo, por exemplo, borda nomes de mulheres que admira em roupas que coleta de pessoas próximas e as transforma em grandes estandartes. Também está presente na mostra o vestido de noiva criado pela Daspu com lençóis de motéis da zona de prostituição do Rio de Janeiro, sobre os quais foram impressos desenhos eróticos e que foi apresentado originalmente na 27ª Bienal de São Paulo.
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"Mujeres en mi", 2010, de Carolina Caycedo
"Bixinha", 2019, de Lyz Parayzo
Obra de Virgínia de Medeiros
"Estatuas (Ella volverá en cualquier momento)", 2012-2014, de Monica Restrepo
Vestido de noiva Daspu, 2006
Histórias Feministas: artistas depois de 2000, que ocupa o subsolo do museu, reúne trabalhos de 30 autoras, que iniciaram suas práticas artísticas já neste século e que de certa forma incorporam práticas ativistas. São obras que, de forma geral, “trabalham urgências por uma perspectiva feminista”, sintetiza Isabelle Rjeille. Produções que tangenciam temas candentes, como a questão da moradia nos centros urbanos, como faz Virginia de Medeiros, ou a questão da transfobia e da vulnerabilidade do corpo, abordada por Lyz Parayzo na obra Bixinha, objeto desmontável que remete também aos Bichos, de Lygia Clark. Em outras palavras, são artistas que ampliam o alcance crítico de suas poéticas para além da questão de gênero, mostrando como a teia de invisibilidade que atinge as mulheres normalmente vem associada a outras formas de exclusão, relacionadas a questões raciais, econômicas e geopolíticas. “O feminismo vai muito além da arte”, lembra Isabelle.
Histórias das Mulheres e Histórias Feministas MASP – Av. Paulista, 1578 – Bela Vista
Até 17 de novembro
“Os arquivos, por si só, não têm memória. É com eles que você constrói memória”, afirma a pesquisadora e curadora Ana Pato. E neste processo de leitura, interpretação e significação de documentos e registros – tradicionalmente associado à prática acadêmica de historiadores e outros pesquisadores – os artistas têm papel fundamental, defende Pato, curadora da exposição Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura.
A partir desta constatação, a mostra em cartaz no Sesc Belenzinho, criada em parceria com o Memorial da Resistência, reúne trabalhos inéditos de nove artistas, concebidos a partir de pesquisas em diferentes arquivos públicos e privados sobre a ditadura brasileira. “Porque colocar em movimento uma documentação passa sempre por um processo de mediação”, diz a curadora. Os mediadores, neste caso, são os artistas e coletivos Ana Vaz, Grupo Contrafilé, O Grupo Inteiro, Giselle Beiguelman, Ícaro Lira, Mabe Bethônico, Paulo Nazareth, Rafael Pagatini e Traplev.
As obras, em variados suportes e linguagens, colocam em movimento informações e materiais que escancaram as violências perpetradas pelo regime militar ao longo de 21 anos em diferentes âmbitos da vida nacional. A prática artística surge – com suas peculiaridades – como prática historiadora, a partir de um desejo de tornar públicas histórias pouco conhecidas e de, muitas vezes, questionar a historiografia oficial. Pois, como ressalta Giselle Beiguelman em trabalho exposto na mostra, a memória é sempre uma construção. “O que você esqueceu de esquecer? O que você esqueceu de lembrar? O que você lembrou de esquecer? O que você lembrou de lembrar?”, questionam as frases escritas em neons.
Obra de Giselle Beiguelman. Foto: Junior Pacheco
A própria artista, na instalação Gaveta de Ossos, “lembra de lembrar”, através de fotos e áudio, do trabalho de reconhecimento feito com as ossadas na Vala de Perus, onde foram enterrados clandestinamente diversas pessoas assassinadas pela ditadura. Paulo Nazareth, em Inquérito, discute a criminalização dos negros a partir da leitura de inquéritos policiais encontrados pelo artista e transformados em áudios – em trabalho feito em colaboração com Michelle Matiuzzi e Ricardo Aleixo.
Em Escola de Testemunhos, o Grupo Contrafilé reproduz em fones de ouvido – situados em uma “mesa-lousa” rodeada de cadeiras escolares – relatos de ex-presos políticos e seus familiares pertencentes ao arquivo do programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da Resistência. O trabalho, assim como o de Nazareth, explicita um desejo da exposição de expandir o conhecimento sobre quem foram os personagens atuantes na luta contra a ditadura, como explica Pato: “Quisemos descolar um pouco desse imaginário de que a resistência à ditadura foi feita basicamente por homens, brancos, jovens, de classe média e estudantes da USP que entraram na guerrilha. O trabalho do Contrafilé traz uma visão mais ampla, que inclui o movimento operário, movimento de mulheres e mães da periferia, por exemplo”.
A expansão também da noção geográfica sobre a resistência à ditadura – para além do Sudeste ou de casos famosos como a Guerrilha do Araguaia – se dá no trabalho de Ícaro Lira sobre o Crítica Radical, movimento formado nos anos 1970 em Fortaleza. Atuante ainda hoje, o grupo teve uma trajetória multifacetada, com papel fundamental na luta feminista e passagens pela política institucional, pela guerrilha e, posteriormente, assumindo uma luta contra o voto e o capitalismo.
Trabalho de Rafael Pagatini. Foto: Patricia Rousseaux.
Em outra história pouco conhecida, Rafael Pagatini segue sua pesquisa sobre o papel das instituições culturais durante o regime militar, mostrando meandros das relações entre o governo e três instituições paulistanas: Sesc, MASP e Pinacoteca. Imagens de ditadores em aberturas de exposições impressas em tecidos, por exemplo, revelam como essas instituições ajudavam a dar certo ar de normalidade para o regime – “era como um escudo”, diz o artista –, já que mostras continuavam acontecendo e a arte seguia tendo seu espaço institucional, com aval do governo.
Desenvolvido por Traplev a partir de extensa pesquisa em arquivos – entre eles os que resultaram no livro Brasil: Nunca Mais, realizado clandestinamente por setores da sociedade civil durante os anos finais da ditadura (1979-1985) e que revelou uma série de crimes cometidos pelo regime – a instalação Arma da Crítica/ Orientação para a Prática apresenta dois grandes organogramas, um das organizações de esquerda e outro dos órgãos da repressão, situados em lados opostos da sala expositiva. O artista apresenta ainda um trabalho sobre o educador Anísio Teixeira, morto em 1971 após ser preso por agentes da ditadura.
Em duas grandes instalações feitas em tricô, Texto-Tecido-Teia, O Grupo Inteiro se utiliza de palavras encontrados nas apostilas de formação dos agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI). Os manuais, que serviam para orientar a repressão às organizações de esquerda, incluíam dicionários de gírias e expressões que poderiam ser necessárias nas sessões de interrogação e tortura. Logo ao lado, um vídeo da artista Ana Vaz , intitulado Apiyemiyekî? [Por quê?], aborda o genocídio do povo Waimiri-Atroari durante a marcha para o centro-oeste na década de 1970, quando terras indígenas foram invadidas para a construção da BR-174 e para a instalação de uma mineradora. Ilustrações criadas pelos indígenas sobre o período revelam a história traumática vivida pela população, remetendo-nos aos dias atuais.
Trabalho de Mabe Bethônico. Foto: Julio Kohl
Por fim, Mabe Bethônico pesquisa a relação das empresas de mineração com a ditadura militar a partir de um projeto de doutorado que descobriu sobre o assunto. A artista convidou a autora da pesquisa, Ana Carolina Reginatto, para lhe dar aulas sobre o tema e registrou o processo em vídeos. A obra final, intitulada Elite Mineral [Gabinete de Aprendizado] é outra que, segundo a curadora, nos remete diretamente aos acontecimentos recentes do país. “Com o trabalho da Mabe, fica mais claro o que está acontecendo em Brumadinho. Quando você olha o trabalho da Ana Vaz, entende melhor o que está acontecendo na questão indígena. Então nós vamos fazendo ligações que parece que não fizemos no Brasil”, diz Pato.
Revisionismo e aprendizado
Se o grupo de trabalho criado por Ana Pato com os artistas para pesquisar a memória da ditadura surgiu em 2018, foi a partir do início deste ano, já após a posse de Jair Bolsonaro, que o processo de produção das obras se intensificou. A temática entrou ainda mais na pauta do dia num contexto em que o presidente da República defende o regime militar, elogia torturadores e incentiva a comemoração da data do golpe de 1964. “Estamos vivendo um momento de revisionismo da nossa História oficial. Porque a ditadura militar está na nossa História oficial, não parecia ser uma narrativa que a gente tinha exatamente que comprovar. Mas as coisas mudaram”, diz a curadora.
“A impressão que eu tenho é que a gente é meio desconectado de quem somos, da nossa construção de nação. Então, para entender o que estamos vivendo, nada melhor do que olhar para o passado, aprender com a História para ficarmos mais conscientes do presente”, diz ela, reforçando o papel pedagógico de Meta-Arquivo – especialmente em tempos de negação de fatos históricos e disseminação de informações falsas. Não à toa, explica Pato, a mostra tem o subtítulo Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura. “Acho que a exposição é um lugar de aprendizado. Me parece que se estamos precisando voltar à realidade, de alguma forma o artista pode ser esse caminho do simbólico para que voltemos a olhar para o real.”
Vista da exposição. Foto: Julio Kohl.
Ao tornar públicas histórias pouco reveladas, surge também a possibilidade de alguma reparação ou, ao menos, de lidar com as feridas do passado. “No Brasil, nós não fizemos um reconhecimento das nossas dívidas, da nossa história traumática. E os genocídios da população negra, indígena, isso permanece. É o próprio conceito de trauma, o passado que não quer passar, aquilo que está sempre voltando”, diz Pato. Nesse sentido, a curadora se refere a uma história que começa muito antes da ditadura militar, com raízes profundas que vêm desde a chegada dos colonizadores e do período da escravidão. Para ela, é só a partir desta complexidade histórica que se pode entender o atual “dualismo e cisão da sociedade brasileira”.
Em um vasto galpão do Sesc Belenzinho, a mostra se apresenta como um espaço de diálogo entre as obras, montadas entre estruturas metálicas aparentes e pequenas superfícies de madeira, permitindo a sobreposição das histórias apresentadas. Sobre o projeto expográfico de Anna Ferrari, a curadora explica: “Tem a ver também com a ideia de arquivo, para perverter a própria ideia das caixas. Eu queria poder ver qualquer trabalho de qualquer ângulo. Mas o ponto é esse: você nunca vai ter o ângulo perfeito, você vai sempre ter o outro lado”.
Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura Sesc Belenzinho – R. Padre Adelino, 1000 – Belenzinho, São Paulo
Até 24 de novembro
Entrada gratuita
Estação de Metrô São Paulo - Morumbi, do escritóorio 23 SUL. Foto: Pedro Kok
“Paisagens Espontâneas”, do Studio Associates
Até algum tempo atrás, um arquiteto esperaria ter projetado a grande obra de sua carreira para poder enviá-la para uma bienal, afirma a curadora e pesquisadora Vanessa Grossman. Projetos em escalas menores – como intervenções pontuais em cidades ou residências – e debates aparentemente muito específicos – sobre a manutenção de edifícios ou o impacto dos hábitos alimentares no espaço construído, por exemplo – pareceriam pouco significativos para serem expostos em uma grande exposição internacional. Pois a 12a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 8 de dezembro, rompe radicalmente com essa ideia.
Intitulada Todo Dia, a mostra se volta para o cotidiano e para as práticas (aparentemente) banais para discutir questões de relevância global, como a sustentabilidade, a preservação dos bens construídos e as desigualdades social, racial e de gênero. Dividida em duas exposições montadas em “edifícios-manifesto do cotidiano”, o CCSP (projetado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles) e o Sesc 24 de Maio (de Paulo Mendes da Rocha), a edição tem curadoria de Vanessa Grossman e Ciro Miguel, brasileiros, e da francesa Charlotte Malterre-Barthes, todos sediados atualmente na Suíça. É a primeira vez que a curadoria do evento é selecionada através de um concurso público, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-SP).
“Nós percebemos que havia uma espécie de volta ao cotidiano na arquitetura. Isso não é algo novo, mas na última década os arquitetos falam cada vez mais sobre o cotidiano como uma dimensão temporal e espacial que é pertinente para a disciplina”, explica Grossman. “Em geral, arquitetos têm uma certa megalomania de que, se pudessem, projetariam o mundo todo. Mas acho que há cada vez mais uma percepção de que herdamos um mundo já construído e que uma forma impactante de modificá-lo é trabalhando nessa dimensão do cotidiano.” Ao mapear as práticas contemporâneas, diz a curadora, nota-se então uma certa “ética e estética da simplicidade”, uma outra forma de operar o mundo.
“Nova República”, trabalho de Hélio Menezes e Wolff Architects montado entre o Sesc 24 de Maio e Galeria do Reggae. Foto: Divulgação
Nesta percepção, falar sobre o que é servido à mesa de jantar, a reforma de uma casa ou a manutenção diária de espaços públicos e privados pode ser tão relevante quanto falar sobre a construção de uma grande obra pública. E isso não exclui, segundo os curadores, discutir as questões de escala urbana ou global, mas trata-se de entender a conexão entre as diversas esferas. O tema do cotidiano surge, portanto, como uma espécie de denominador comum para discutir as muitas formas de intervenção, segundo Grossman.
Para tratar deste vasto universo, os curadores estruturaram duas mostras com características distintas. Enquanto no CCSP são apresentados 74 trabalhos selecionados entre os 710 enviados em uma chamada aberta – projetos em diferentes escalas e apresentados em variados suportes –, no Sesc são expostos dez “dispositivos” – espécies de instalações – comissionados, criados na maioria por equipes multidisciplinares. Se a primeira aposta em um formato expositivo mais tradicional, como explica o presidente do IAB-SP, Fernando Túlio, a segunda “dialoga com uma mostra de arte contemporânea, em termos de linguagem, com projetos site-specific que se espalham por lugares inusitados do edifício”.
Ambas as mostras dialogam com os três eixos temáticos definidos pela curadoria. O primeiro, “relatos do cotidiano”, refere-se principalmente à produção e aos usos do espaço ligados a questões sociais. Envolve tanto as sutilezas e belezas do dia a dia quanto as violências, desigualdades e segregação que afetam as sociedades, tratadas a partir de temáticas raciais e de gênero, entre outras.
Estação de Metrô São Paulo – Morumbi, do escritório 23 SUL. Foto: Pedro Kok
Para Túlio, “essa Bienal quer destacar e sensibilizar a opinião pública para a perspectiva de colocar os cidadãos em primeiro lugar no planejamento das cidades. Especialmente os cidadãos que estão em situação de maior vulnerabilidade”, afirma. “Em São Paulo, por exemplo, temos pessoas que vivem em situações análogas a de refugiados urbanos, sem uma moradia digna. Então é preciso adotar mecanismos que consigam qualificar a vida.”
O segundo eixo, “materiais do dia a dia”, aborda questões de sustentabilidade em um mundo que vive a era do Antropoceno – conceito usado por diversos cientistas para definir uma nova era geológica, a atual, considerando todo o impacto causado pelo homem no planeta. Neste eixo surgem temas ligados ao uso dos materiais construtivos, assim como um diálogo mais direto com o mundo rural e com as temáticas indígenas, em um esforço de não restringir o debate às questões urbanas que costumam pautar eventos de arquitetura.
Aparecem aí trabalhos que abordam o comer, por exemplo, e outras práticas do dia a dia. “Até algum tempo atrás pensava-se que apenas os grandes projetos impactavam a humanidade, mas que o cotidiano estava um pouco isento de participar dessa cadeia. E hoje a gente consegue perceber as coisas de uma forma mais atrelada, até pela globalização e pelas tecnologias disponíveis”, diz Grossman. “Então há muitos arquitetos, atualmente, pensando sobre como trabalhar sem causar mais impactos no planeta.”
“Apanhador de Nuvens”, no topo do Sesc 24 de maio, trabalho de BRUDER (Alexandre Theriot e Stéphanie Bru)
O terceiro eixo, “manutenções diárias”, lida com uma dimensão intrínseca à arquitetura, mas muitas vezes vista como menos importante do que a construção ou edificação. “A manutenção é um assunto da ordem do dia, especialmente quando vemos casos como o incêndio do Museu Nacional, no Rio, ou o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo. Temos um problema crônico de manutenção no Brasil, mas podemos falar também da Notre-Dame, em Paris, que pegou fogo por falta de manutenção”, diz a curadora. Neste eixo, a mostra procura adentrar ainda a manutenção em outras escalas e dimensões, seja o cuidado diário com o corpo até a preservação da memória coletiva.
No intuito de democratizar a Bienal e alcançar um público mais amplo do que o nicho dos arquitetos, a edição procura tratar todos os eixos temáticos de modo multidisciplinar e multimídia. O evento coloca a arquitetura em diálogo com a História, a Antropologia e as artes visuais e expõe os trabalhos através de áudios, instalações e uma grande quantidade de vídeos – não apenas plantas arquitetônicas, textos e fotos de projetos. “O tema do cotidiano é um tema tangível”, diz Grossman, “e tentamos abordá-lo de forma didática”.
Para Túlio, o uso de novos formatos expositivos é também uma necessidade nos tempos atuais. “Antes, para conhecer um projeto de fora de sua cidade você teria que ter acesso a uma revista, que era cara e de mais difícil acesso. Hoje está tudo na internet. Então aquele modelo de feira, de apenas apresentar projetos, se esgotou. Por isso o desafio de flertar com novas linguagens e formatos, para poder sensibilizar o público. Acho que essa bienal avança nesse sentido, mas é um desafio permanente”.
“Jardim do Ócio”, série de fotografias de Pedro Motta
Outro aspecto importante no sentido da democratização foi a escolha dos dois edifícios que abrigam a mostra, localizados em áreas centrais da cidade e com grande circulação de pessoas de todas as idades e classes sociais. É a terceira edição da Bienal de Arquitetura fora do Pavilhão do Ibirapuera. O presidente do IAB-SP destaca, por fim, o que chama de papel primordial da vida em sociedade, “a dimensão civilizatória”, e o papel fundamental da arquitetura neste sentido. “Nesse contexto de crise da democracia, a arquitetura também tem o papel de reconstituir os valores e a dimensão republicana da coisa pública.”
E ele volta, uma vez mais, ao cotidiano: “Uma pessoa que vive na cracolândia, por exemplo, o problema dela não é só a falta de moradia; não é só a falta de apoio médico; não é só a falta de emprego; nem é só a falta de acesso a equipamentos da assistência social ou de cultura. São todos esses problemas integrados, além de questões mais íntimas, da família, por exemplo. Então a história do cotidiano vem muito no sentido de lançar luz sobre isso. Porque quando você consegue entender o cotidiano de uma pessoa, consegue entender esses aspectos múltiplos”, conclui Túlio.
Todo dia
Sesc 24 de Maio – Rua 24 de Maio, 109, Centro, São Paulo
Até 29 de setembro de 2019
Arquiteturas do cotidiano
Centro Cultural São Paulo (CCSP) – Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso, São Paulo
Até 8 de dezembro de 2019
Bebê André. FOTO: Arcervo instituto Vladimir herzog.
Vlado Herzog tinha 38 anos quando foi morto, sob tortura, nas instalações do Doi-Codi, no ano de 1975, em São Paulo. Na época era editor do programa Hora da Notícia, da TV Cultura, e havia ido voluntariamente prestar depoimento. A partir daí montou-se uma farsa, na tentativa de encobrir o assassinato transformando-o em suicídio, e teve início uma luta acirrada para que a verdade viesse a tona, transformando o jornalista numa espécie de símbolo contra a opressão e em defesa da democracia, cujo último capítulo foi a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2018. É a ele que o Itaú Cultural dedica a 46ª edição do projeto Ocupação, que vem ao longo de anos revisitando a obra e biografia de grandes figuras da cultura brasileira. Acertadamente, a exposição vai além do drama político do biografado. O ponto de partida não é o final dramático, mas um entremeado de referências a sua vida pública e privada, um percurso que de certa forma explica porque foi tratado de forma brutal como inimigo do Regime. Resgata a história de uma figura multifacetada, profundamente interessada pelos rumos do país num momento particularmente violento de sua história e que via na arte, sobretudo no cinema – campo de seu maior interesse – um caminho de ação e reflexão.
Logo no início, os visitantes se deparam com uma seleção cuidadosa das fotografias que ele tirava de forma obsessiva e rigorosa. Nos acervos da família, foram encontradas mais de 70 caixas de slides, cuidadosamente identificados, contendo imagens que vão de registros pessoais da viagem a experimentações de grande riqueza formal, composições marcadas por um olhar agudo e o uso de ângulos e enquadramentos inusitados, como aquele que mostra seu filho André, ainda bebê, em meio a um roseiral de intenso tom vermelho. A mulher que o segura, provavelmente sua mulher Clarisse, praticamente sai da cena para tornar a imagem mais intensa e perturbadora.
Esse primeiro núcleo, denominado de Vlado Multimídia, traz também uma série de documentos, depoimentos de amigos e companheiros de jornada, bem como textos de autoria de Herzog sobre o cinema, testemunhando tanto uma ação real neste campo como um interesse jornalístico em defesa de um uso social da linguagem. Infelizmente, só conseguiu dirigir um curta metragem, intitulado Marimbás, mas já se preparava para a realização de um documentário sobre Canudos. Tanto as fotos feitas durante sua pesquisa de campo na Bahia como Marimbás, fazem parte da mostra. O catálogo também é dedicado exclusivamente a relação dele com o cinema.
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Herzog entrevista moradores de canudos em 1975. FOTO: Instituto Vladimir Herzog
Vlado trabalhando. FOTO: Instituto Vladimir Herzog
publicação de 1975 fala sobre a luta da esposa de vlado, clarice herzog, para obter respostas sobre o marido
publicação de 1975 fala sobre a luta da esposa de vlado, clarice herzog, para obter respostas sobre o marido
publicação de 1975 fala sobre a luta da esposa de vlado, clarice herzog, para obter respostas sobre o marido
Sua vida pessoal, o trabalho jornalístico e sua permanência como um símbolo de luta contra a opressão (representado em trabalhos como a ação de Cildo Meireles, que carimba notas de dinheiro com a pergunta: “Quem matou Herzog?”) constituem os outros núcleos da mostra. Ao longo de dois anos de pesquisa, que envolveu uma equipe de oito pesquisadores, além da equipe do Itaú Cultural e do Instituto Vladimir Herzog – parceiros na produção da mostra –, milhares de dados e documentos foram coletados. Espalhados pelo espaço expositivo o visitante se depara com uma série de ricos elementos como fac-símiles de seus artigos para vários veículos, cartazes e livros póstumos em homenagem a ele, documentos importantes relativos ao Caso Herzog como a decisão do juiz Márcio José de Moraes que, em 1978, reverteu a versão oficial de suicídio, em meio a objetos de cunho simbólico como sua máquina de escrever e sua câmera fotográfica. São especialmente tocantes itens como o registro de entrada da família Herzog, em 1946, no Brasil e uma carta que seu pai lhe escreveu narrando a vida da família durante a Segunda Guerra Mundial, quando se refugiaram na Itália fugindo da Iugoslávia e do antissemitismo. Ou ainda a fotografia da redação do Estado de S. Paulo, completamente vazia, no dia de seu enterro.Um testemunho visual da enorme solidariedade e comoção causadas pelo seu assassinato pelo regime militar.
“Foi um verdadeiro garimpo. Isso que vemos aqui é apenas a superfície”, conta Luis Ludmer, do Instituto Herzog e co-curador da mostra juntamente com Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural. A ideia é que todo esse material sirva, no futuro,de base para a construção de um site, tornando permanente o acesso a todo esse volume de material, que tende a tornar-se ainda mais amplo com divulgações como esta mostra cuja função não é apenas a rememorar o passado e resgatar a figura do intelectual engajado, fazendo com que ele nunca seja esquecido, mas também construir um modelo de resistência importante em momentos de recuo dos direitos humanos como o que vivenciamos hoje. “Não queríamos nada fúnebre”, afirmam os curadores. Daí a opção por uma museografia aberta, com os vários núcleos em diálogo, marcada por uma certa leveza e rusticidade.
Ocupação Vladimir Herzog
Itaú Cultural – Av. Paulista, 149 – Bela Vista, São Paulo
Até 20 de outubro
Roupa íntima encontrada dentro de sepultura estudada na EAAF (Equipe de Antropologia Forense) em Buenos Aires. Foto: João Pina / Condor
Seja em Portugal, sua terra de origem, ou nos vários países da América Latina onde trabalhou, o fotógrafo João Pina, 38, dedicou boa parte de seus 20 anos de carreira a fazer “com que histórias não caiam no esquecimento”. Da família herdou o interesse pela política – os avós, militantes comunistas, foram presos políticos durante o regime salazarista. Compreendeu, também, a importância da memória e de conhecer o passado tanto para entender o presente quanto para reparar traumas e injustiças históricas.
Não à toa, Por Teu Livre Pensamento, seu primeiro trabalho autoral, foi uma espécie de acerto de contas com a própria história, a partir de registros de sobreviventes da perseguição política em Portugal. Condor, projeto que demorou nove anos para ser concluído e resultou em um livro e uma série de exposições ao redor do mundo, investigou a Operação Condor, articulação entre seis ditaduras militares sul-americanas (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) organizada para reprimir a oposição de esquerda.
Vieram ainda outros projetos em Portugal, em Cuba, na Colômbia (sobre as FARC), no Rio de Janeiro (46750, que leva no nome o número de homicídios ocorridos na cidade entre 2007 e 2016), entre outros. Atualmente, o fotógrafo desenvolve um trabalho sobre Tarrafal, campo de concentração criado pelo governo português em Cabo Verde nos anos 1930, e começa a se debruçar sobre a herança escravocrata em Portugal. Infelizmente, segundo Pina, olhar para o passado é um trabalho ainda pouco feito tanto no Brasil quanto em seu país – apesar de que lá as discussões sobre o colonialismo e a ditadura começam a se tornar mais presentes.
No caso brasileiro, mais preocupante para o fotógrafo, o resultado é, entre outros, a eleição de um presidente, Jair Bolsonaro, que elogia “um torturador que deveria ter sido preso por crimes de lesa-humanidade”. Além disso, no caso do Rio de Janeiro, “não tenho dúvidas de que o fato de a Polícia Militar matar em média mil pessoas por ano tem a ver com essa cultura que vem da ditadura”, afirma.
Em cada projeto, a partir de longa pesquisa e investigação, Pina constrói narrativas sobre histórias escancaradas ou escondidas, presentes ou passadas. A violência que aparece explícita nas cenas atuais de ações policiais no Rio surge, de outro modo, silenciosa em uma sala vazia que foi utilizada para sessões de tortura na Argentina ou, ainda, nos rostos de sobreviventes de tortura nos países sul-americanos.
Com atuação cada vez maior fora do fotojornalismo, onde iniciou a carreira, Pina passou a expor, ao longo dos anos, em museus e galerias, além de ter publicado três livros. “Está completamente fora do meu controle e não me interessa como o mercado ou a academia classificam meu trabalho – se é fotografia documental, artística, jornalística. O que me interessa é contar histórias. Posso me classificar apenas como um autor que tem uma voz e coisas a dizer.” Leia abaixo a íntegra da entrevista.
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Famílias de desaparecidos políticos durante o julgamento sobre "Campo de Mayo", no qual o ex-presidente Reynaldo Bignone foi condenado a 25 anos de prisão. Argentina, 2010. Foto: João Pina/ Condor
Em 2012, ex-militares escondem seus rostos durante o julgamento no qual estão sendo acusados de crimes contra a humanidade pela atuação durante a ditadura argentina (1976-1983). Foto: João Pina/ Condor
Em Buenos Aires, sala usada para sessões de tortura durante a ditadura. 2007. Foto: João Pina/ Condor
Restos dos corpos de desaparecidos políticos analisados no laboratório do EAAF (Equipe de Antropologia Forense), em 2012, em Buenos Aires. Foto: João Pina/ Condor
Homem que perdeu o braço com a explosão de uma granada durante atuação da Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970 no Brasil. 2011. Foto: João Pina/ Condor
Em 2007, enterro de um militante de esquerda desaparecido na Argentina em 1977. Foto: João Pina/ Condor
ARTE!Brasileiros — Muitos de seus projetos lidam com acontecimentos de um tempo que você não viveu. Como utilizar a fotografia, que capta o momento presente, para tratar destes fatos do passado. Quer dizer, quais artifícios você utilizou e utiliza? João Pina – Alguns artifícios dos quais eu sou consciente e outros não. O trabalho passa pela investigação, por ouvir fontes primárias para chegar a pistas, lugares, pessoas e objetos, digamos assim. Eu acho que tem a ver com isso, com estudar, pesquisar, entrevistar e, depois, perceber como é que se pode contar histórias do ponto de vista visual. Então eu vou seguindo as pistas desta visualização do passado no presente. E a partir disso vou criando.
Parece sempre existir o desejo de tornar públicas essas histórias apagadas, muitas vezes esquecidas. Faz sentido pensar assim? Sim, acho que isso é a minha missão, conseguir ampliar essas vozes e fazer com que essas histórias não caiam no esquecimento. Essa é minha grande preocupação, especialmente nesse momento que estamos vivendo, no qual parece que estamos reescrevendo e reinterpretando a história de acordo com quem está no governo. Isso para mim é muito assustador.
Em 2016, quando ainda estava em curso o processo de impeachment de Dilma Rousseff, você disse que o fato de o Brasil não ter discutido seu passado – e de as Forças Armadas e alguns políticos continuarem fazendo apologia ao golpe – era muito preocupante, porque semeava o terreno para que abusos pudessem voltar a acontecer. Um desses políticos, Jair Bolsonaro, foi eleito presidente. Como enxerga esse momento? Esse processo de não olhar para a memória no Brasil é muito semelhante ao que acontece em Portugal, então isso não me é estranho. Mas eu olho com mais preocupação para o caso brasileiro porque sinto que as instituições em Portugal são um pouco mais sólidas ou, pelo menos, existe menos instrumentalização política das instituições neste momento. E este esquecimento no Brasil, associado a outros problemas de populismo – que propõe receitas fáceis para problemas profundos –, deu nisso que estamos vendo, com a eleição do Bolsonaro, com uma polarização enorme e um aumento exponencial de violências que se pensavam resolvidas.
As violências herdadas da ditadura? Porque as coisas não se resolvem por osmose, por si próprias, elas têm que ser faladas, mexidas, sanadas e só depois é que se pode encerrar um processo. No Brasil, tal como em Portugal, onde esse processo de resolução não existiu, muitas pessoas achavam que isso estaria resolvido. Mas o fato é que o Brasil continua a ter quartéis com os nomes dos ditadores e que tivemos um deputado, agora presidente, dedicando seu voto no impeachment a um torturador que deveria ter sido preso por crimes de lesa-humanidade. E uma boa parte da população acha que isso é normal. Portanto, enquanto essas condições objetivamente existirem é normal que esse tipo de resultado aconteça. As consequências são as que estamos vendo.
Com a anistia veio essa ideia de que era preciso esquecer para seguir em frente. É preciso, na verdade, lembrar para seguir em frente? É difícil dar uma receita. Tenho lido livros inclusive sobre o direito de esquecer, não só do direito de relembrar. Mas definitivamente acho que ignorar o problema não é uma receita. A história deve ser lembrada para se entender como é que as coisas chegaram onde chegaram. E no Brasil esse exercício é muito pouco feito. Esse exercício nunca foi feito dentro das Forças Armadas, que continuam defendendo que houve uma revolução libertadora que salvou o Brasil do comunismo, esse bicho-papão que come criancinhas. De outro lado, boa parte da esquerda também não evoluiu seu discurso. Não podemos esquecer que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve 12 anos no poder e fez muito pouco para discutir estes assuntos. Houve uma Comissão Nacional da Verdade, mas o que se seguiu a isso, na prática, foi absolutamente nada. E com o atual panorama político, então, será menos que nada, será o retrocesso, o reescrever da história.
Esse discurso de um governo que vem salvar o país do comunismo, de 1964, é muito semelhante ao que elegeu Bolsonaro… Exatamente como em 1964, quando dizia-se que tudo era comunismo. Ou seja, quem diz que tudo é comunismo não sabe sequer o que é comunismo. Comunismo, fascismo, são palavras que entraram no léxico distorcidas. Inclusive a esquerda comete este erro quando acusa qualquer um de fascista. Às vezes chama de fascistas pessoas que são neoliberais, o que é completamente diferente. Mas enfim, é uma discussão longa, que tem a ver com a falta de educação política e cívica. Temos que pensar como se pode ultrapassar isso. O Brasil sofre muito com a falta de educação formal, digamos assim, e a história se torna mais manipulável. E se muitos brasileiros, mesmo na escola, não aprendem de fato o que aconteceu em 1964, em 1968, na Guerrilha do Araguaia etc., isso é preocupante.
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Jovens do Terceiro Comando presos em ação policial no Rio em 2008. Foto: João Pina/ 46750
Jovens envolvidos no tráfico param para rezar em favela no Rio de Janeiro. Foto: João Pina/ 46750
Moradores da Mangueira assistem abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. Foto: João Pina/ 46750
No Morro do Dendê, no Rio, jovem traficante para jogar pebolim. Foto: João Pina/ 46750
E nos outros países da América do Sul que você pesquisou, o quadro é muito diferente? As situações são distintas. A Argentina é um país onde essas questões são muito presentes, porque logo após a ditadura a sociedade civil mobilizou-se muito – e as vítimas também eram muitas. Então isso passou a estar na ordem do dia e houve condições políticas para a discussão caminhar. De algum modo, é um caso exemplar. Acho que seria impensável na Argentina uma figura adotar um discurso como o de Bolsonaro sobre a ditadura e ter tamanha popularidade e destaque.
Por fim, passando para o projeto 46750, sobre a violência no Rio de Janeiro, parece haver um diálogo forte – talvez não tão explícito – com o que se vê em Condor, já que a violência policial no Brasil é ainda resquício direto da violência repressiva da ditadura. Faz sentido? Faz todo o sentido. Eu comecei Condor em 2005 e o 46750 em 2007, em uma fase em que eu estava muito focado em entender esses processos de violência, não só do passado quanto do presente. E muito rapidamente para mim essa violência do presente começou a mostrar suas nuances que vinham lá de trás. E, no caso do Rio, não tenho dúvida nenhuma de que o fato de a Polícia Militar matar em média mil pessoas por ano tem a ver com essa cultura que vem da ditadura. Na verdade, o que se vê ali é também resultado da impunidade implementada pelos portugueses quando chegaram ao Brasil, da escravidão, e depois da ditadura militar. O fato de a polícia brasileira ser uma polícia militar, a que mais morre e que mais mata no mundo, isso não vem de ontem, mas de 500 anos.
Existe uma discussão muito presente hoje no universo artístico de quanto as artes visuais podem ser também um artifício potente para tratar da história. Como você vê essa questão? Acho que mesmo na academia hoje há uma preocupação crescente em tratar as coisas também fora do texto, usando a linguagem visual para isso. E eu percebi isso com Condor. Ao utilizar imagens para tratar deste assunto, rapidamente comecei a ser contatado por professores e acadêmicos, e a ser chamado para fazer conferências acerca do assunto. Acho que começou a se perceber melhor, 200 anos depois do surgimento da fotografia, o poder do visual e os contributos que ele pode dar inclusive para a academia, seja em uma aproximação apenas documental ou mais artística, poética, mais livre.
Você acredita que a arte, e mais especificamente a fotografia, pode ter alguma virtude reparadora? Quer dizer, tanto para as vítimas de violências quanto mesmo para a sociedade, trabalhos como esses que você faz podem ter também um papel de cura, digamos assim? Não sei, talvez seja muito pretensioso ou utópico pensar desta maneira. Não acho que uma imagem em si vá sanar, curar ou dar justiça a quem quer que seja. Mas acho que ela pode sim contribuir, tal como o texto, a pintura e a música, para que exista alguma espécie de justiça, reparação e mais bem-estar para as vítimas. E, também, mais mal-estar para os culpados, que ao se verem retratados possam talvez repensar o que foram suas atitudes, perceber as consequências do que fizeram.
Público no seminário 'A arte como construção de mundos' (2019), realizado em parceria com a FAMA. Foto: Daniela Noronha
O seminário internacional A Arte Como Construção de Mundos, realizado pela Fábrica de Arte Marcos Amaro, com apoio da Galeria Estação e organização da ARTE!Brasileiros aconteceu no último dia 7 de setembro na sede da FAMA, em Itu. Quatro especialistas de diferentes áreas que trabalham a Art Brut (ou Outsider Art) expuseram em suas falas experiências à frente de instituições, representação de artista e também a partir de uma visão da Psicologia e da Filosofia, considerando o trabalho produzido por artistas com sofrimento psíquico.
Com introdução de Marcos Amaro e Raquel Fayad, respectivamente presidente e diretora da Fundação Marcos Amaro, o seminário contou com mediação de Ricardo Resende, curador da Fundação e do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. As palestrantes convidadas foram Elisabeth Telsnig, representante da obra do artista Josef Hofer e curadora de sua individual em cartaz na Galeria Estação; Tania Rivera, psicanalista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Solange de Oliveira, pós-doutoranda no Depto. de Filosofia da USP, onde estuda artista Judith Scott e outros artistas outsiders; e Raquel Fernandes, médica psiquiatra e diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
Público assista à apresentação de Solange de Oliveira. FOTO: Daniela Noronha
Passaram pelo seminário cerca de 400 pessoas. Entre os presentes estavam galeristas, artistas, representantes de instituições, arte-educadores, professores e estudantes. A crítica de arte Aracy Amaral, a artista Nazareth Pacheco e o artista Gilberto Salvador foram alguns dos nomes que acompanharam as palestras. O público foi composto de pessoas vindas da capital paulista, de Itu, do Rio de Janeiro e também de cidades vizinhas, como Sorocaba e Indaiatuba.
Ao final das falas, todos puderam desfrutar de um dia na Fábrica de Arte Marcos Amaro, onde no momento sete exposições estão em cartaz, entre elas mostras de Bispo do Rosário, Nazareth Pacheco, de Louise Borgeois, de Samuel de Saboia e Pola Fernandez.
A retrospectiva Carlos Moreira – Wrong so Well ocupa três andares no Espaço Cultural Porto Seguro, em um caudaloso apanhado da obra do artista que também foi professor de fotografia. Como tal participou da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) de 1971 a 1974 e, de novo, em 1979 até 1990.
Ainda 1990, ele criou a Escola de Fotografia M2 Studio, junto com Regina Martins, que hoje integra o time de curadores da exposição.
O título, Wrong so Well, vem de uma anotação feita pelo artista entre suas fotos digitais: “I like when you do it right. But I like much more when you do it wrong so well” (Eu gosto quando você acerta. Mas gosto muito mais quando você erra tão bem).
Moreira dedica-se à fotografia autoral, à fotografia de rua e à fotografia de viagens. Suas fotos são registradas com muito cuidado, sensibilidade e prazer.
O prédio da Porto Seguro no bairro dos Campos Eliseos, que abriga a obra, já se tornou um dos centros importantes da arte em São Paulo e a mostra de Carlos Moreira é a mais recente das 16 exposições lá apresentadas, série que começou com Grandes Mestres — Leonardo, Michelangelo e Rafael, que inaugurou o espaço no começo de 2016.
Nesta retrospectiva são cerca de 400 fotos, escolhidas pelos curadores Fábio Furtado, Regina Martins e Rodrigo Villela — que é diretor executivo e artístico do Espaço Cultural —, em um trabalho de curadoria que começou em janeiro e mergulhou nos arquivos de mais de 50 anos do trabalho do fotógrafo.
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Foto de Carlos Moreira no Litoral Central de São Paulo, 1991
Foto de Carlos Moreira tirada em 1997
Foto de Carlos Moreira em São Paulo
Foto de Carlos Moreira no Guarujá, 1981
Foto de Carlos Moreira em São Vicente, 1989
Para os curadores, a “exposição nasceu diante de alguns desafios consideráveis ainda que maravilhosos… Foram inventariados mais de 150 mil fotogramas coloridos – imagens inéditas que agora podem ser vistas pelo público pela primeira vez. A parte em preto e branco, embora já catalogada e organizada previamente, representa outros 80 mil fotogramas, aproximadamente. Se juntarmos a isso sua produção digital, desde o começo dos anos 2000 até agora, o volume, no mínimo, duplica. Sem falar no delicioso risco de se ter uma nova e extraordinária sequência de imagens feita por Carlos a cada dia, no decorrer do processo”.
Nascido em São Paulo em 1936, Carlos Moreira começou a fotografar no começo dos anos 60, quando encantou-se com Cartier-Bresson, de quem a influencia mais tarde se afastou. Atualmente o fotógrafo reconhece “uma certa ‘dureza’ em Cartier-Bresson” que hoje o incomoda, “mas foi importante na minha formação”.
Moreira formou-se pela Universidade Mackenzie, em Economia, e optou pela fotografia em 1964, abandonando a nem mal iniciada economia.
Conhecido por suas fotos analógicas em preto e branco, produzidas em cidades por onde passou, nas paredes do Espaço Cultural Porto Seguro também estão expostas 250 fotos inéditas de suas fases cor e digital. Dividida em núcleos, a exposição reúne desde as fotos do começo da carreira até imagens digitais recentes. Carlos Moreira já expôs em Paris (1983), Washington (1986) e Nova York (1988). Suas fotos estão em acervos importantes, como o do Pompidou.
Também são interessantes suas escolhas técnicas neste momento onde a vertiginosa transição tecnológica que nos assola há décadas, além do dito progresso, provoca também discussões onde nem os ícones são poupados. Recentemente, Sebastião Salgado provocou burburinho nas redes sociais ao disparar que, para ele, as “imagens de celular não são fotografia”.
A obra de Carlos Moreira vem à luz através de câmeras e técnicas escolhidas de maneira saudavelmente eclética.
Ele fotografa com Leicas, analógicas e digitais, com as práticas Canon Powershot e também com os, ainda menos complexos, aparelhos celulares. Suas fotos são impressas em preto e branco, em cores e em vários suportes que incluem até cadernos, tipo Cícero e Moleskine.
E, a respeito disto, é importante a frase incluída na expografia da mostra: “… fica claro que para ele o cerne da fotografia não está no dispositivo em si, mas naquilo que ele proporciona ao artista em sua relação com o mundo”.
Carlos Moreira – Wrong so Well Espaço Cultural Porto Seguro
Até 27 de outubro
Entrada gratuita
Sérgio Sister, Esticados, 1967, tinta acrílica sobre tela 97 x 130 cm
Oportuna a mostra que Sérgio Sister realiza na Galeria Nara Roesler, em São Paulo (até 5 de outubro), apresentando pinturas que realizou no final da década de 1960 e desenhos produzidos na prisão, entre 1970 e 1971. Oportuna por dois motivos, pelo menos: em primeiro lugar porque, nesses dias em que tentam negar os desmandos cometidos pela última ditadura civil-militar brasileira (sendo que alguns buscam negar que ela tenha de fato ocorrido), é didático colocar o público frente a testemunhos de vítimas daquele período que jamais será apagado da história do país; um segundo motivo para a relevância da mostra é que ela apresenta os dois primeiros momentos da trajetória de um artista então muito jovem (Sister nasceu em 1945) e que, com o passar dos anos, viria a ser reconhecido como uma das principais referências da pintura no Brasil.
Visitando Imagens de uma juventude Pop: pinturas políticas e desenhos da cadeia, o que de início chama a atenção são as diferenças de abordagens plásticas usadas por Sister nas pinturas e nos desenhos.
No primeiro grupo é espantosa a vivacidade que emana daquelas pinturas que, atentas ao burburinho da metrópole, aos flagelos da sociedade de massa e aos perigos da ditadura, (que aos poucos mostrava sua cara), demonstram a crença no fazer pictórico, acreditam no que denunciam e em como denunciam. Nelas é notável como Sister – a exemplo de alguns colegas de geração – conseguia filtrar e torná-los seus, os códigos das vertentes então mais em voga (a Pop, a Nova Figuração etc.), tudo crivado por um tipo de arquitetura do campo plástico que – passível de ser associada à estrutura das paginas de histórias em quadrinho –, nada me tira da cabeça que poderia ser debitada igualmente à experiência concreta, ainda forte em São Paulo à época (talvez o mesmo débito de Claudio Tozzi, em suas primeiras produções).
Essa concepção forte, no entanto, como que se liquefaz nos desenhos produzidos por Sister no período em que passou no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo, de triste memória. Se nas pinturas imediatamente anteriores havia como que uma afirmação do discurso, um voluntarismo juvenil repleto de vivacidade e ironia, nos desenhos agudos realizados na prisão, a arquitetura das cenas tende a se esvair, escoando pelos cantos (neste sentido, um desenho em especial, que mostra a bandeira do Brasil em processo de diluição, me parece emblemático). O plano do papel recebe inúmeras situações, como que registradas à socapa. São várias cenas produzidas à maneira de colagens, em que o artista atesta o cinismo, a barbárie, a tortura – cenas trágicas e – pasmem! – repletas de um quase humor ferino e triste.
Apesar de graves e importantes como testemunhos instransponíveis da atuação do estado sobre o cidadão comum, esses desenhos são mais do que isso, e não se encaixam como emblemas solenes daquela situação em que o artista foi uma vítima entre tantas. São documentos de um crime, é certo, mas também sua própria superação. Atuam como a melhor resposta ao arbítrio porque o ridiculariza ao mesmo tempo em que questionam a si mesmos. Esses desenhos se recusam a significar meros documentos sobre a barbárie sofrida, para atuarem como reelaborações críticas das maldades que apontam, não se deixando abater por elas. São armas de resistência.
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Como mencionado, passadas cinco décadas, a obra de Sérgio Sister é apontada como uma das principais referências da pintura brasileira atual e, aparentemente, não possui nenhuma referência daquelas produções de início de carreira: nem o denuncismo de suas primeiras pinturas, nem o teor crítico de seus desenhos. Será?
Nos últimos anos, a produção de Sister tem se caracterizado como uma afirmação de certos elementos constitutivos da pintura, reverenciados na modernidade, como estratégias para a delimitação de seu próprio campo: a reiteração da bidimensionalidade, a ênfase no ato de pintar e o uso planejado do monocromático a enfatizar todas essas peculiaridades. Nenhuma representação – a pintura não representa o real, ela se apresenta como um novo dado –; nenhuma cor mais estridente – os tons mais baixos tendem a reforçar a dimensão planar da pintura e a realçar os índices da ação do pintor sobre a superfície.
Porém, a distância entre os dois momentos da produção de Sister tende a encurtar-se quando se analisa a estruturação que o artista fazia de suas pinturas no início de carreira. Ali, talvez os ensinamentos das correntes construtivas brasileiras informassem a maneira como o artista arquitetava o campo pictórico, dividindo-o num tipo de gradeado que ressoava as estruturas daquelas vertentes, dividindo o campo do suporte em áreas comunicantes, porém autônomas. Agora, observando suas pinturas recentes, parece que Sister foca sua atenção e trabalha em cada uma dessas áreas em particular, destacando-as do corpo geral da grade, fazendo com que alcancem seu protagonismo.
Difícil sustentar esse liame proposto para os dois momentos do artista? Pode ser, uma vez que se trata aqui de uma questão aparentemente de puro interesse formal, como que para justificar a suposta falta de engajamento atual de Sister frente à situação política e social.
Engano. As pinturas austeras e rigorosas que hoje Sister produz guardam, das pinturas e sobretudo dos desenhos do seu período inicial, o mesmo papel de armas de resistência. Ao afirmar as especificidades da linguagem pictórica – tão caras à modernidade – a produção mais recente do artista parece se colocar numa distância crítica em relação à cooptação que sofre a prática da pintura nas últimas décadas, quase sempre fácil presa do processo de alienação a que vem sendo submetida – índice mais do que plausível do processo de alienação e embrutecimento que nossa sociedade sofre na atualidade.
Adriana Varejão, Proposta para uma Catequese - Parte I - Díptico Morte e Esquartejamento (1993) [Foto por Eduardo Ortega]
A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal reacende as indagações sobre o barroco e a colonização brasileira sob o olhar aguçado da artista carioca. Exposta no Mamam – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, a mostra reúne 25 trabalhos produzidos entre 1992 e 2018 e faz emergir pontos obscuros da história brasileira.
O interesse suscitado por estas obras, já conhecidas do eixo Rio/São Paulo, ocorre agora da combinação acertada do recorte da curadora Luisa Duarte, com obras pontuais inseridas no Nordeste, território fortemente influenciado pelo barroco. Acima de tudo, local privilegiado para pensar a colonização que fez uso forçado da mão de obra escrava, na exploração massiva da cana de açúcar. Basta lembrar que a Capitania de Pernambuco, em 1534, era a mais rica e poderosa entre as 14 criadas pelos portugueses. Experimentar esse confronto é fazer voltar à superfície impressões submersas de um vasto passado ainda não digerido.
A exposição começa com o visitante sendo conduzido, naturalmente, à sala de projeção onde Transbarroco, videoinstalação de autoria e direção da artista e Adriano Pedrosa, é exibido em grande tela. Cenas escolhidas de quatro filmes, com projeções simultâneas, mostram fragmentos de igrejas do barroco brasileiro. A excitação visual das imagens funciona como organismo vivo, umas entrando nas outras, de tal maneira que o espectador não permanece em estado contemplativo. A trilha sonora mistura percussão do Oludum, acordes de órgão da Igreja de Mariana, toques de sinos, ritmos de samba. Quase como um sussurro, ouve-se a voz ao escritor angolano José Eduardo Agualusa falando trechos de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Transbarroco é uma interpretação livre que coloca o visitante em meio à fotografia, cinema e instalação, reforçando Mário Pedrosa: “a arte é um exercício experimental da liberdade”.
ele Tatuada à Moda de Azulejaria, 1995. FOTO: Jaime Acioli
A arquitetura do Mamam, como plano espacial, suspende o tempo em devaneio poético e abraça a exposição sem interferências. Algumas obras, nascidas em temporalidades distintas, dialogam com o contemporâneo como a pintura Incisões a la fontana, 2000, que deixa exposta a matéria interna, carne humana viva, inspirada na famosa tela do artista ítalo-argentino Lucio Fontana. No percurso de uma revisita ao colonialismo, vale refletir sobre Proposta para uma catequese – Parte 1 diptico: Morte por esquartejamento, de 1993. Só esse trabalho dá conta do conceito de contracatequese, defendido por Varejão. Em um detalhe da obra, um homem é empalado, método de tortura e execução que consiste na inserção de estaca no corpo da vítima, até a sua morte. A transgressão da cena reposiciona os sentidos e abre um novo lugar para sentir e pensar a violência no Brasil atual e sua herança colonial.
Há uma forte marca autoral nas obras de Varejão inspiradas em azulejos, ícone da cultura portuguesa, pela sistematização do movimento de repetição e multiplicidade de formas geométricas, presentes tanto em trabalhos mais antigos quanto nos mais recentes. A série Ruínas de charque, de 2000, simula pedaços de arquitetura com pinturas desses azulejos, entremeadas pela representação da carne de charque. Ao longo de sua pesquisa Adriana colecionou mais de seis mil deles registrados por ela desde 1988, com imagens que a inspiram.
Consumir poéticas diversas, digerir e devolvê-las em uma obra autoral, faz parte do registro do real e da fantasia que povoa a produção de Varejão e quase toda arte brasileira. O marco inaugural do antropofagismo nacional pode ser o episódio em que o padre Don Pero Sardinha é devorado pelos índios Caetés, em 1556, em um ritual canibal no litoral do Nordeste. Isso ocorreu 372 anos antes do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade ser lançado em 1928.
Azulejão (Neo-concreto), 2016. FOTO: Vicente de Mello
O interesse de Varejão pelo barroco vem do seu início nas artes, quando a conheci em 1988, na galeria Thomas Cohn no Rio de Janeiro. Ela fazia sua primeira individual aos 23 anos e dizia que as pinturas expostas eram resultado de uma viagem a Minas, onde se surpreendeu com o barroco das igrejas. Essa inspiração que persiste até hoje, a levou a estudar e pesquisar em Salvador e Cachoeirinha, (Bahia), Recife (Pernambuco), Mariana (Minas Gerais) e, posteriormente, em Portugal. Hal Forster, em seu texto O artista como etnógrafo, fala sobre o protagonismo que a antropologia como discurso exerce sobre a produção contemporânea, considerando como virada etnográfica o crescente interesse pelo Outro.
A mostra deVarejão foi inserida pelo Mamam no seu projeto Exposição Individual de Artistas Mulheres, sendo a terceira da série. A diretora Mabel Medeiros comenta que neste momento o museu está reestudando o acervo com atenção na produção feminina, ainda escassa na coleção. A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal deve seguir até o final do ano para outros estados brasileiros fora do eixo Rio/São Paulo.