"Comigo Ninguém Pode", 1983, de Regina Vater. Foto: Divulgação

Nos últimos anos tem sido crescente o número de exposições que lidam com a arte produzida por mulheres. Evidenciar discursos em defesa da igualdade, atacar preconceitos estabelecidos e contribuir para trazer à luz produções relegadas à sombra são algumas das motivações por trás dessas mostras. Além de inserir-se nesse contexto de revisão de um circuito de arte ainda fortemente dominado pelos homens, a exposição Comigo Ninguém Pode, inaugurada na Galeria Jaqueline Martins, toca em um problema fundamental muitas vezes negligenciado nesse esforço de dar maior visibilidade à arte feita pelas mulheres: a necessidade de superar as categorias estanques e considerar essa produção ignorando os estereótipos mais comuns. Definir a priori o que significa ser mulher, ou como deve ser uma arte feminina/feminista seria ceder a uma visão essencialista do feminino e reduzir as possibilidades a categorias muito estreitas, acredita Mirtes Marins de Oliveira, curadora da exposição. “Procuramos estabelecer confrontos, combinar artistas de diferentes campos, de diferentes gerações. Queríamos ampliar esse processo, problematizar, desconstruir categorias”, explica ela.

O resultado é um panorama bastante amplo, que conta com a presença de trabalhos de cerca de 20 participações, espalhadas por três andares da galeria. Há um número significativo de artistas com um trabalho histórico importante, que inclui nomes de destaque como os das brasileiras Amélia Toledo, Leticia Parente, Regina Vater e Lydia Okumura, ou da argentina Marta Minujín. Também há na mostra um conjunto de registros de performances célebres, criadas por figuras relevantes como Tricha Brown, que convivem com experiências mais contemporâneas, de artistas e autoras mais jovens – como Ana Mazzei e Flora Rebollo –, criando um emaranhado de poéticas e experimentos. Performance, pintura, escultura, pesquisas gráficas (UBU editora) e de moda (Isabela Capeto) convivem sem hierarquias. Há uma busca proposital pela diversidade, sem criar núcleos fechados. Até mesmo quando uma artista comparece com mais de um trabalho, eles estão dispersos no espaço. Como define a curadora, o intuito foi criar um “diálogo dissontante”. Procuramos “criar situações mais de ambiguidade do que de confronto”, explica.

“In Front of Light”, 1977, de Lydia Okumura. Foto: Divulgação

O título da exposição, Comigo Ninguém Pode, deriva de um trabalho homônimo que Regina Vater começou a desenvolver nos anos 1980 e que comparece em uma de suas últimas versões na mostra. Ao perceber a presença marcante da planta de mesmo nome em diferentes contextos da vida pública e privada nacional, Regina passou a incorporar imagens e referências do vegetal. Além de funcionar como uma metáfora de persistência (devido a sua elevada capacidade de adaptação a situações e ambientes adversos) e arma para o combate ao mau-olhado, comigo-ninguém-pode torna-se também símbolo do caráter resistente do povo brasileiro. E pouco a pouco vai tornando-se também uma armadura simbólica, espiritual, uma reserva de energia que se espraiaria por toda a seleção. Afinal, as ideias de resistência e persistência permeiam qualquer tentativa de se contrapor a modelos preestabelecidos como ocorre de forma mais ou menos explícita nas obras da seleção.

Como exemplo de ação que segue na contracorrente dos lugares comuns, Mirtes Oliveira cita o trabalho de Lydia Okumura, brasileira radicada em Nova York, que foi duplamente prejudicada por uma visão instrumentalizada da arte feminina. Se no início – no final dos anos 1980 – sua obra racional, abstrata e experimental, baseada em uma geometria que problematiza e conquista o espaço, destoava da ideia do feminino como algo delicado, doméstico e intuitivo, hoje ela tampouco se adequa à defesa quase hegemônica de que a boa arte feminina deve conter uma dose grande de visceralidade. A pintura potente, de viés surrealista, de Clara Rebollo, também serve como contra-argumento. Um tanto deslocada dos modelos hegemônicos do que é hoje considerado uma arte “de mulheres”, surge para problematizar a questão de uma visão estereotipada da arte produzida por mulheres, demonstrando a importância de ampliar o olhar para além de determinados discursos.

Comigo Ninguém Pode
Galeria Jaqueline Martins – Rua Doutor Cesário Mota Junior, 433, Vila Buearque, São Paulo
Até 24 de janeiro de 2020

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