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2019 | 58a Bienal de Veneza se esvazia em “tempos interessantes”

SUN&SEA
Sun&Sea (Marina), opera-performance por Rugile Barzdziukaite, Vaiva Grainyte e Lina Lapelyte no pavilhão da Lituânia na Bienal de Veneza 2019, Foto: Andrej Vasilenko

Pela primeira vez, a Bienal de Veneza, criada nos modelos das exposições universais, ou seja, onde cada país mostra o que tem de melhor, apresenta um pavilhão para artistas refugiados. Neverland, do artista turco Halil Altindere, seria esse espaço, mas ele é apenas uma fachada, que se torna uma metáfora nos tempos das fake news, um dos temas de May you live in interesting times (que você viva em tempos interessantes), título da 58ª Bienal de Veneza.

Altindere já trabalhou com esse tipo de crítica social em Wonderland (2013), um clipe de hip hop que abordava os processos de gentrificação em Istambul, premonitório por ser feito pouco antes das manifestações contra a destruição da praça Taksim, na capital turca. O trabalho se tornou uma febre nas mostras de arte contemporânea, incluindo as bienais de Istambul, em 2013, e São Paulo, em 2014.

Muro Ciudad Juárez
Teresa Margolles. Muro Ciudad Juárez, 2010

Agora em Veneza, contudo, Altindere parece reafirmar o óbvio: mentira e disparidade social são chaves do tempo presente, não há inclusão viável nas sociedades do século 21 e seu trabalho é um mero comentário estetizante dessa catástrofe.

Neverland estaria inserida em uma das temáticas desta edição da Bienal, as fake news, definidas por seu curador, o norte-americano Ralph Ruggof. O nome da bienal já aponta isso, pois “que você viva em tempos interessantes” seria uma expressão citada como um provérbio chinês por figuras como Hillary Clinton, mas, segundo ele, é dessas traduções culturais que não se confirmam. Que tédio.

Se a frase em si já é sem graça, a Bienal cai em simplificações rasteiras, como a mais famosa e comentada desta edição que é, sem dúvida, Barca Nostra, do suíço Christoph Büchel. Ele levou à Veneza um navio naufragado, em 2015, que transportava quase mil refugiados e apenas 28 sobreviveram. Segundo um texto no site egípcio Mada, escrito por Alexandra Stock, o custo total para transportar o navio para a mostra chegou a imorais 33 milhões de euros.

Com trabalhos que carregam esse tipo de contradição, onde para se tratar de um assunto premente gastam-se valores absurdos e a formalização reduz o conteúdo à mera ilustração, esta bienal já parte de um nível baixo. Mesmo uma artista com uma obra contundente, como a mexicana Teresa Margolles, acabou nessa mesma toada, ao exibir partes de um muro de concreto cheio de balas, transportado de Ciudad Juarez, metrópole que faz divisa com os Estados Unidos. A obra, de 2010, já falava dos muros muito antes do governo Trump, mas em Veneza perde força ao se tornar uma ilustração das propostas atrasadas do presidente norte-americano.

Doppelgänger

Além das fake news, outra temática dessa edição de Veneza, são os duplos, o que significa tratar de com questões como cópia e clonagem. Nesse sentido, um dos bons trabalhos da mostra é o novo vídeo de Stan Douglas, Doppelgänger, sobre a astronauta Alice que é teletransportada para uma nave espacial, mas não age como sua figura original, em uma encenação futurista.

Stan Douglas, Doppelganger, 2019

A ideia de duplo se materializa também no conceito curatorial no espelhamento dos dois grandes espaços da mostra, Arsenale e Pavilhão Central, no Giardini, ambos com os mesmos artistas. A dupla projeção Doppelgänger, por exemplo, está no Pavilhão Central, enquanto no Arsenale Douglas é visto com fotos encenadas da série Scenes from the Blackout. A cenografia exagerada do Arsenale, aliás, com imensas chapas de madeira aparente, escondendo a grandiosidade do local, é outro ponto baixo da mostra.

Representações nacionais

Em anos de mostra principal fraca, as representações nacionais costumam compensar. Não foi o caso agora em 2019, salva raras exceções, entre elas o Brasil e o pavilhão vencedor da Lituânia, uma ópera que se passa em uma praia falsa, ao longo de oito horas, mas que dura uma hora. Sun et Sea (marina), de Rugilé Barzdziukaité, Vaiva Grainyté e Lina Lapelyté, é uma performance sobre a simplicidade de estar à beira do mar, desde passar protetor solar até reclamar de não conseguir relaxar. Basicamente ela é sobre o nada, mas cantado como se tudo fosse importante.

Ao transitar de forma delicada entre o espetacular e a simplicidade, a performance ganhou merecidamente Leão de Ouro, misturando quinze cantores com outros vinte e poucos figurantes, entre eles diversas crianças, em uma ação que segue um roteiro, mas está repleta de improvisações.

Já Bárbara Wagner & Benjamin de Burca, com Swinguerra, empoderam um Brasil marginal a partir da cultura popular do nordeste do país, especificamente de um movimento chamado swingueira. O vídeo apresenta várias narrativas, criadas em parceria com os integrantes desse grupo, misturando sonho e realidade, mostrando como esses espaços da música e da dança são locais que contradizem todo o atual discurso oficial do país de exclusão e preconceito.  A arte no pavilhão do Brasil não é ilustração, mas uma experiência vital de resistência e compreensão do humano, tudo o que faltou na mostra principal. 

O desafio do possível dá fôlego à 13ª Bienal de Havana

David Magna, T3c36, 2019. acrílico colorido.
David Magna, T3c36, 2019. acrílico colorido

“Os peixes não sobrevivem em águas limpas”. A máxima de Mao Tsé Tung lembra o navegar turbulento da Bienal de Havana ao longo de 30 anos, com dificuldades financeiras e burocráticas, mas não suficientes para naufragá-la. O tema da 13ª edição, O Desafio do possível sintetiza a luta que toca no imaginário e tenta dar rosto ao impossível. O evento segue na busca de maiores correspondências entre a criação e as práticas de vida, ou a pontos convergentes. Com um ano de atraso, por conta do furacão Irma, a mostra coincide com as comemorações dos 500 anos da fundação de Havana e os quase 30 da Bienal.

Qual é a transcendência do maior evento cultural da Ilha? Há muitas mediações sobrepostas na Bienal de Havana desde a sua fundação em 1984:  arquitetura do lugar, carga histórica, crise financeira local e a dos países participantes, fricções ideológicas variadas, críticas dentro e fora de Cuba, achaque de galeristas e colecionadores vorazes que chegam à Ilha a procura de arte de qualidade a preços muito abaixo do mercado internacional.

Se comparada às edições anteriores a 13ª Bienal não está entre as melhores. O mesmo sucede às últimas bienais de São Paulo, Veneza e à Documenta de Kassel. Em Havana, a curadoria é assinada por sete curadores cubanos capitaneados pelo crítico e intelectual Nelson Herrera Ysla, além dos 21 estrangeiros convidados.

O momento é de reflexão, transição, desconforto e mudanças, com alguns curadores assumindo cargos em outras instituições culturais ou simplesmente partindo para uma carreira solo. As bienais fazem história desfazendo as realizações e significações anteriores. Mas, que singularidades ainda podem provocar surpresas em meio ao acúmulo excessivo de bienais, feiras, festivais, residências? As obras distribuídas por toda Havana, além de Matanzas, Sancti Spiritus, Cienfuegos e Camagüey estão aplainadas pelo momento internacional.

Manaf Halbouni, Uprooted
Manaf Halbouni, Uprooted, 2014. Carroceria de automóvel, livros e outros objetos

Na sede da Bienal, a performance Tejido Colectivo de Alexia Miranda polariza as atenções e ocupa o átrio do Centro Wifredo Lam. Com a ideia de responder ao presente, com possíveis noções de futuro, alerta para a urgência de transformações sociais. Os círculos trançados coletivamente, em vários padrões e ritmos, são ferramentas na tentativa de restaurar momentos de paz no violento El Salvador. A gentrificação das grandes metrópoles chegou a Dresden, cidade alemã onde mora Manaf Halbouni, artista sírio, de 34 anos. Como seu sonho de morar em uma casa nunca se concretizou, ele transforma o carro em residência-ateliê, “onde resolvo tudo”, exposto na Bienal de Havana como arte.

O país também está na pauta de Lais Myrrha com Cronografia dos Desmanches, obra in progress que  desenvolve desde 2012. “O trabalho surge quando percebo o boom da especulação imobiliária ao andar pelas ruas e me deparar com cinco casas destruídas de uma única vez ”. São imagens de demolições, locais abandonados, bustos, portos, algumas não identificadas”.

A Bienal de Havana aposta nos jovens artistas. Nesse contexto se encontra Ruy Cézar Campos, cearense que trabalha diferentes temporalidades em três vídeos: Circunvizinhas, A Chegada de Monet e Pontos Terminais Emaranhados. Todos integrantes da série A Rede Vem do Mar, pesquisa de um ano entre Brasil, Angola e Colômbia.  “Tento estabelecer vínculo fenomenológico entre a infraestrutura dos cabos submarinos e as plataformas de desembarque dos mesmos. Fortaleza é a cidade mais importante na rede do Atlântico Sul com as quais está conectada, Sangano, em Angola e Barranquila, na Colômbia”. Operando entre tecnologia e estética, o artista se expressa entre performance, documentário e ficção, com viés político social.

Em Matanzas, novo território da Bienal, Marilá Dardot faz valer a utopia de diluição da arte na vida cotidiana. “Meu trabalho é um segmento da residência que fiz no México, em 2015, no momento do episódio dos estudantes desaparecidos. Escolhia manchetes de jornais e diariamente intervinha com escritos executados com água sobre um muro de concreto. À medida em que os escrevia iam se apagando”. Em Matanzas, optou pela performance Volver, em que escreve repetidamente com água a frase A la esperanza vuelvo em uma parede na rua. O trabalho de Marilá mudou nos últimos anos, “passando de uma visão otimista ligada à literatura, poesia, ficção e natureza, para uma visão mais pessimista diante de fatos políticos do Brasil. “Houve um despertar político em minha geração, assim como em mim mesma”.

Haver, Sem Horizonte
Haver, Sem Horizonte, 2019. Chapas de alumínio

Por último, três artistas cubanos com carreiras estabelecidas e poéticas identificáveis, reunidos na mostra Museus Interiores, no Museu Nacional de Bellas Artes.  Kcho (Alexys Leyva Machado), Carlos Garaicoa e Los Carpinteros. O vôo internacional de Kcho começa com Regata, instalação de 1993, feita aos 23 anos, um ano antes de entrar para o acervo do Museu Reina Sofia, em Madri, do MoMa e do elenco da galeria Barbara Gladstone, de Nova York. Barco, símbolo do imaginário coletivo dos cubanos, aparece em desenhos gestuais, esculturas ou instalações com objetos que se nutrem de várias poéticas.

Como afirmou o geógrafo Milton Santos, a arte de rua, naturalmente urbana e pública, traz forte carga política por ocupar espaços fora dos campos institucionalizados da arte e por tocar as realidades sociais de perto. Partitura, instalação de Carlos Garaicoa, desenvolvida por dez anos, sintetiza esse pensamento. A obra tem a participação de 70 músicos de rua, de Madri e Bilbao. Trata-se de uma orquestra com 35 vídeos de músicos de rua executando peças diferentes. A partitura final, do músico cubano Esteban Puela, enfeixa as variadas sonoridades e é transmitida para a grande tela digital que assume a direção da orquestra. Los Carpinteros, em uma de suas últimas atuações como dupla, coloca em Alacenas, de 2016, crítica sobre a devastação das tormentas que invadem o Caribe. Os sons emitidos pelos furacões são gravados, reproduzidos e colocados em velhos armários de cozinha que emitem o barulho aterrador do fenômeno.

Esses artistas formam um núcleo lógico e de consenso, mas vale lembrar que há pelo menos duas dezenas de outros, igualmente respeitados profissionalmente, que gravitam em mostras internacionais.

Mostra na Pinacoteca revela projeto indigenista de Ernesto Neto

Acima, Ernesto Neto, O Sagrado É Amor, 2017
Ernesto Neto, O Sagrado É Amor, 2017

Poucos artistas conseguem atualizar a radicalidade da produção artística brasileira, onde o corpo fazia parte da obra, nos anos 1960 e 1970, como Ernesto Neto. É o que se pode comprovar na mostra Sopro, em cartaz na Pinacoteca do Estado até 15 de julho.

Em suas obras e de forma original, Neto consegue reunir tanto as propostas de vivências coletivas de Hélio Oiticica (1937 – 1990) em seus Penetráveis, quando buscava criar espaços de convivência, quanto às ativações do corpo por meio de experiências com diferentes materiais, como propunha Lygia Clark (1920 – 1988) em seus Objetos Relacionais.

Contudo, enquanto há 50 anos essas práticas buscavam reformular as bases da arte, Neto, já livre deste fardo, vem trabalhando em uma agenda mais atual e necessária: um “projeto de indigenização da vida”, na definição de Els Lagrou, antropóloga e professora da UFRJ, no catálogo da mostra.

Na Pinacoteca, essa prática se consubstancia na instalação do octógono, Cura Bra Cura Té, que acolhe cinco ativações participativas abertos ao público ao longo do período expositivo. As próximas ocorrem no próximo sábado, dia 1 de junho, e depois nos dias 29 de junho e 13 de julho.

A relação do artista com a questão indígena vem sendo tema de debates, nos últimos anos, especialmente quando de sua participação na Bienal de Veneza, há dois anos. As polêmicas se resumem na questão: Qual a legitimidade de um artista branco apropriar-se do discurso de outras povos e culturas? Entender o lugar de fala é, atualmente, um dos desafios de qualquer tipo de discurso que busca “representar” o outro.

Sem dúvida é um tanto estranho quavndo artistas se autorretratam como índios e vendem ou expõem essas pinturas sem qualquer compromisso maior com a questão. Estamos aí no terreno da mera representação, e foi exatamente contra esse tipo de postura que Oiticica e Clark se rebelaram.

Desde 2013, contudo, Neto tem se envolvido com o povo huni kuin, no Acre, de forma engajada, participando de seus rituais e os incorporando a suas mostras, no Brasil e no exterior, como ocorreu em Veneza.

Em Sopro essa participação ocorre no octógono, nas ativações em torno de um grande tronco “que precisa ser curado” e, para tanto, vai sendo engolido por um imenso pingente.

“Somos filhos de três continentes, mas sabemos de um, só nos ensinam um, só valorizamos um”, escreve Neto nas paredes da mostra, explicitando o deslumbre com a cultura europeia dos “toscos brasileiros”, como brilhantemente definiu Christian Dunker em texto para ARTE!Brasileiros.

“Chegou a hora de ouvir a espiritualidade de nossa terra, de nossas plantas, rios e árvores, chegou a vez de ouvir”, defende o artista. É aqui que se explicita o tal projeto de indigenização, já que os chamados povos das florestas buscam a qualidade intrinsicamente relacional de todo ser, humano e não humano, o que Lagrou define como “estética relacional ameríndia”.

“Chegou a hora de ouvir pajés, babalorixás, yalorixas”, prega Neto, e a programação das ativações abrange essas vozes silenciadas na história do Brasil, mas que nas últimas décadas vem conquistando espaço. Estarem agora na Pinacoteca é não só uma proposição do artista, mas consequência da luta que esses povos vêm empreitando.

Sopro, no entanto, vai muito além do octógono e, nos diversos espaços onde ela ocorre, revela-se como faz sentido na carreira de Neto a poética que ele defende agora.

Essa sintonia com uma cosmogonia indigenista, onde humano e não humano são vistos como parte de um todo, afinal é central em suas diversas instalações, que pedem a presença do outro, que contaminam o ambiente com odores, que propiciam o encontro, que tocam, acariciam e envolvem.

O plasticismo que se vê nas obras dos anos dos anos 1980 à primeira década do século 21 é deslumbrante: nas formas, nos materiais, nos volumes e nas dimensões. Há uma estruturação orgânica em sua linguagem confortável a todos sentidos, o que é até raro em arte contemporânea. Mas a potência máxima chega agora nesse “projeto indigenista”, politizando de vez o que era discreto, e transformando Ernesto Neto em uma espécie de xamã nos tempos da cólera.


Ernesto Neto: Sopro
30 de março a 15 de julho de 2019
Pinacoteca de São Paulo
Praça da Luz 2, São Paulo, SP
pinacoteca.org.br


Testemunhas do mal, do bem, da vida

O assassinato de Piersanti Mattarella, Governador da Sicília, em 1980.
O assassinato de Piersanti Mattarella, Governador da Sicília, em 1980. Foto: Letizia Battaglia

No Instituto Moreira Salles de São Paulo, duas exposições dedicadas a importantes fotógrafos estrangeiros: a italiana Letizia Battaglia (1935) e o chileno Sergio Larrain (1931-2012).

A mostra Letizia Battaglia: Palermo reúne cerca de 90 imagens, publicações e filmes, com foco especial na atuação da fotógrafa no jornal L´Ora. Ela começou seu trabalho como fotógrafa, em 1971, em Milão, ao mesmo tempo em que escrevia, como freelancer, para várias publicações, como o Le Ore, um jornal sensacionalista e o ABC, uma publicação intelectual.  Foi convidada pelo L’Ora para voltar para Palermo, onde havia nascido, e foi lá, durante quatro décadas, que documentou a guerra da máfia, especialmente nos anos 1970 e 1980. Isso sem ignorar o cotidiano da cidade e seus habitantes.

Nas palavras da fotógrafa, “com a máquina fotográfica a tiracolo, me tornei testemunha de todo o mal que estava ocorrendo. Foram anos de guerra civil: sicilianos contra sicilianos. Foram assassinados os melhores juízes, os jornalistas mais corajosos, os políticos avessos à corrupção”. Com curadoria de Paolo Falcone, a exposição já passou por Palermo, Roma e pelo IMS do Rio antes de chegar a São Paulo.

A mostra Sergio Larrain: um retângulo na mão, por sua vez, traça um panorama da obra do chileno, que atuou como correspondente da agência Magnum durante a década de 1960. A exposição apresenta mais de 140 fotografias, um vídeo e publicações, contemplando os períodos de produção de Larrain em Santiago, o trabalho como correspondente na Europa e América do Sul e a sua volta à terra natal. Com curadoria de Agnès Sire, a mostra já passou por Arles, na França, por diversas cidades chilenas, por Buenos Aires e pelo IMS do Rio.

Nesta versão que está no IMS, foi acrescentado o trabalho que Larrain fez, na segunda metade da década de 1950,  para a revista brasileira Cruzeiro Internacional, de Assis Chateaubriand. Dono da revista Cruzeiro — publicação de sucesso e responsável pela implantação do fotojornalismo por aqui com fotógrafos como José Medeiros, Pierre Verger, Luiz Carlos Barreto, Marcel Gautherot —, Chateaubriand ao lançar sua versão internacional queria concorrer com americana Life e com a francesa Paris Match.

Fotos: Sergio Larrain/Magnum Photo

A revista foi lançada em 1957, Larrain produziu para ela pouco mais de uma dezena de reportagens entre 1957 e 1959. Foi, então, convidado por Cartier-Bresson para trabalhar na Magnum, em Paris. A Cruzeiro Internacional acabou fechando em 1965 por falta de anunciantes.

Na França, Sergio Larrain, que era amigo de Julio Cortázar, um dia revelando os filmes que tinha feito pelas ruas de Paris viu, ao fundo em uma foto, um casal. Ampliou o negativo e viu que o casal fazia amor, encostado em um muro. Encontrou-se, mais tarde, com o escritor argentino e mostrou-lhe a ampliação. A foto serviu como inspiração para o conto Las babas del diablo, um dos cinco publicados em 1959 no livro Las armas secretas. O conto, por sua vez, inspirou o diretor italiano Michelangelo Antonioni que fez o hoje clássico e inspirador Blow-Up.

Nas palavras de Sire, a curadora da mostra, que trabalhou na Magnum desde 1982 e é diretora e uma das fundadoras da Fundação Cartier-Bresson, “para Larrain a fotografia era  poesia, não era de modo algum uma questão documental.”

Em uma carta que escreveu a um sobrinho em 1982, Sergio Larrain disse: “Siga o seu gosto e mais nada, acredite apenas no seu gosto… Quando tiver algumas fotos realmente boas, amplie e faça uma pequena exposição ou um livrinho. Mande encadernar. E, com isso, vá firmando um chão. Ao mostrá-las, você se dá conta do que são, ao vê-las diante dos outros é aí que você as sente. Fazer uma exposição é dar algo, é como dar de comer, é bom para os outros mostrar-lhes algo feito com trabalho e gosto. Não é se exibir, faça bem feito é saudável para todos”.

Letizia Battaglia: Palermo
Até 22 de setembro
Sergio Larrain: um retângulo na mão
Até 25 de agosto

Instituto Moreira Salles – av. Paulista, 2424
Entrada gratuita

 

 

 

Nazareth Pacheco: a criação como triunfo da vida

Nazareth Pacheco
Nazareth Pacheco

* Por Miriam Chnaiderman

O nome da exposição Registros/Records é significativo. Traz registros, rastros, marcas, fissuras…

No corpo, as marcas de bisturis e violações autorizadas e até desejadas. Assim é Nazareth. Seu corpo expressa um mundo onde sobreviver é imperativo categórico. Sua obra é a expressão dessa força de vida.

Essa exposição acompanhou o lançamento de um livro que reúne a obra de Nazareth e textos que marcaram suas exposições. É uma exposição que carregou a história de uma vida de criação. Ou a criação como possibilidade única de vida.

Intervenções cirúrgicas sucessivas para corrigir defeitos congênitos foram necessárias desde o seu nascimento. Em outras exposições, as marcas no corpo tornaram-se obras impactantes, sedutoras. Os vestidos construídos com lâminas cortantes e giletes afastam e fascinam. O jogo entre o impenetrável (referência clara a Hélio Oiticica) e o erótico impossível foi tema constante. A questão do corpo feminino sempre foi tema para Nazareth. Na última exposição, o tema é o luto de seus pais, mortos há cinco anos. A capacidade de elaborar dores tão atrozes através de sua linda produção comove.

Escrevi o texto do catálogo de sua exposição de 2003 na Galeria Brito Cimino, quando fiz o documentário “Gilete Azul”. Nessa exposição um imenso cortinado de giletes e navalhas rodeava a cama de acrílico. Agora, nessa exposição, os cortinados são feitos das radiografias que seus pais fizeram no decorrer do câncer que cada um viveu, com pouquíssima diferença de tempo. Foi quando os irmãos levavam as cinzas da mãe para Paris que souberam que o pai apresentava sintomas já avançados de um câncer. Nazareth conta sobre como era ligada ao pai. Na exposição na galeria Kogan Amaro, os instrumentos de trabalho de seu pai – que era neurologista – tornam-se esculturas de bronze. Homenagem tocante onde os gestos de um pai são eternizados. Como em todas as suas exposições, aqui também existe a presença de seu corpo: uma sequência de fotos que acompanham a plástica que fez ocupa uma das paredes da galeria. Em Nazareth há um constante renascer. Em outra parede, a carta que um cirurgião escocês escreveu a seu pai sobre o que deveria ser feito, Nazareth ainda pequena. Uma corrente é construída com as pulseirinhas que Nazareth usou nesse percurso pelos médicos. Alma sensível violentada pelas intervenções necessárias, agora Nazareth escolheu cuidar de seu rosto. Essa força de vida me encantou desde que a conheci.

Foi o que me levou a fazer o documentário “Gilete Azul”.

Trago aqui uma pequena amostragem do texto que está no livro que foi lançado na exposição Registros/ Records.:


* Miriam Chnaiderman é psicanalista e cineasta, produziu o documentário Gilete Azul, confira:

Inventando corpos e/ou desvelando o erótico em inquietante devassidão: o encantamento dolorido

É em nosso corpo que experimentamos a obra de Nazareth Pacheco: somos tomados pela vertigem de um mundo que nos estraçalha, esparramando vísceras em orgasmos bizarros entre a dor e o êxtase. É o nosso corpo que fica desnudado diante dos objetos agudos e cortantes. É a própria noção de sujeito psíquico que fica questionada, o jogo de espelhos se inverte, perdemo-nos do olhar que nos constituiu, tornamo-nos ferida exposta. Desruptor movimento de campos do desejo, esvaindo contornos, degelando montanhas. É essa a radicalidade do trabalho de Nazareth Pacheco: instaurar um corpo-carne naquele que olha seu trabalho. E, ao fazer assim, obriga a um trabalho de recostura do próprio eu. Nisso, vários eus se tornam possíveis, vários corpos podem acontecer. Nazareth Pacheco trabalha com a questão do gozo, desse gozo que é barrado pelo desejo. Isso implica em romper barreiras, um enfrentamento com os limites. O gozo é do campo do que não cabe na palavra, do que não pode ser nomeado. Gozo tem a ver com pura intensidade, forças em redemoinho. Gozo força a barreira do princípio do prazer, e, portanto, questiona o interdito. Nazareth Pacheco propõe uma mais além do desejo, um encontro com o que é originário no erotismo. Transgride, indo em direção a um real pulsional. Libertinagem contemporânea, invenção de uma linguagem que faz coincidir sentido e signo. Não há metáfora possível, estamos no nível do real, das paixões do corpo. E o real está além do bem e do mal. A obra de Nazareth Pacheco busca desalienar nossa imagem, sempre construída a partir de um olhar que nos olha. Somos obrigados a refazermo-nos como sujeitos de nossos desejos.

275 vezes Nordeste

Juliana Notari, Mimoso, 2014
Juliana Notari, Mimoso, 2014

Do encontro entre as pesquisas dos curadores Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos nasceu uma grande vontade de realizar um projeto para uma exposição que reunisse obras que representassem o Nordeste do Brasil não em sua forma caricata, mas em sua totalidade, adentrando os imaginários em torno dele. O projeto para isso já tinha aproximadamente dez anos quando, há quase dois, foi aprovado pelo Sesc para ser realizado na unidade 24 de Maio. Assim, os três curadores passaram a realizar viagens por todos os estados que compõem a região nordeste para atualizar essas pesquisas. O resultado pode ser conferido agora na exposição À Nordeste, até 25 de agosto.

As viagens para atualização começaram no segundo semestre de 2018, contam Marcelo e Clarissa. Algumas delas foram feitas em trio, outras em dupla e outras apenas um deles conseguia realizar. “O projeto é a vitalidade da região, que nos mostrou outras coisas, e não só aquilo que já conhecíamos”, destaca Campos. Ele conta que as viagens coincidiram com um momento muito pulsante do Nordeste, por conta do cenário político das últimas eleições presidenciais. Isso fez com que a energia de novos artistas contemporâneos se sobressaísse de alguma forma.  O momento foi muito importante também para que eles pudessem observar uma série de transformações ocorridas na região durante os últimos anos.

Os curadores estiveram atentos para que não caíssem em uma armadilha que é muito fácil de se escorregar quando se trata da região: a folclorizante: “Dizíamos que não era a nossa intenção fazer um retrato da região, nem um panorama. Em nenhum momento fizemos, por exemplo, uma estatística”, contou Marcelo. Desta forma, os curadores foram se deixando atravessar por assuntos que foram desencadeados, no fim, em núcleos da exposição. São eles: Futuro, Insurgência, (De)colonialidade, Trabalho, Natureza, Cidade, Desejo e Linguagem.

Ao mesmo tempo, a mostra não foi concebida de forma que fugisse dos preconceitos que são voltados à região e ao nordestino, de forma que mostrá-los é uma forma também de não normalizá-los: “Esses preconceitos são parte de uma experiência de estar à nordeste”, comenta Clarissa, explicando que o encontro é provocativo e atiça uma série de conceitos e preconceitos.

À Nordeste traz 275 obras de 160 artistas, entre elas trabalhos ilustres como Retirantes, de Cândido Portinari, que faz parte da coleção do MASP, e o Manto de Apresentação, de Arthur Bispo do Rosário. Artistas mais contemporâneos com trabalhos de peso, como Juliana Notari, que apresenta o vídeo Mimoso no setor Desejo, também se fazem muito presente na teia construída pelos curadores. Um dos destaques é a obra Memelito, do coletivo Saquinho de Lixo, que surgiu como uma página de memes nas redes sociais. O vídeo traz uma série de imagens conhecidas na internet. Também muito contemporânea, a obra Não é sobre sapatos, de Gabriel Mascaro, reflete sobre as questões em torno das manifestações que ocorrem no país nos últimos anos, pegando como ponto de discussão as manifestações de 2013, que iniciaram todo um processo mais latente de participação da população nos rumos do país. Para a mostra, foram comissionadas 12 obras inéditas, como A gente combinamos de não morrer (2019), de Jota Mombaça (capa desta edição). O comissionamento foi, segundo Marcelo, uma forma de quebrar a verticalização da arte. Além de Mombaça, artistas como  Daniel Santiago (PE), Gê Vianna e Márcia Ribeiro (MA), Ton Bezerra (MA), Isabela Stampanoni (PE), Pêdra Costa (RN), Marie Carangi (PE) e Alcione Alves (PE) também realizaram novos trabalhos.

SESC 24 DE MAIO

Localizado em uma região muito central da cidade de São Paulo, onde passam milhares de migrantes e imigrantes por dia, o Sesc 24 de Maio traz um caráter geopolítico muito forte em suas raízes. A unidade foi inaugurada em 2017 e já sediou grandes exposições que celebraram aquilo que vem de fora de São Paulo, como Jamaica Jamaica, que se debruçou sobre a cultura e a política jamaicanas, e Lasar Segall: ensaio sobre a cor, que apresentou um grande apanhado de obras do artista lituano radicado no Brasil.

Assista ao vídeo sobre a exposição À Nordeste.


++MAIS
Leia crítica
escrita por Aracy Amaral sobre a exposição, publicada na ARTE!Brasileiros 47.
Os curadores de À Nordeste escreveram resposta à crítica, confira aqui.

Fora dos limites que travam as ações

Max Perlingeiro
Max Perlingeiro foi considerado a personalidade atuante no meio artístico pela ABCA em 2019

No sistema brasileiro de arte sempre houve áreas de escape, desde a primeira edição da Bienal de São Paulo em 1951, quando o deserto cultural brasileiro foi surpreendido por uma avalanche internacional de diretores de museus, críticos, galerias, artistas e obras inimagináveis. Nas décadas seguintes, o aprendizado estimulou o surgimento de jovens empreendedores dispostos a enfrentar o incipiente sistema brasileiro de arte, entre eles Max Perlingeiro. O terreno era demarcado por história própria, influência europeia, crítica reduzida e raríssimas galerias profissionais. Com o tempo o cenário se alargou, e hoje Perlingeiro atua como empresário, editor, curador, organizador de cursos de arte e administrador de coleções. Sua história prova que lidar com arte é também um processo de territorialização. Em janeiro de 1979, cria a Pinakotheke Cultural no Rio de Janeiro, mais de duas décadas depois, em 2002, inaugura a filial em São Paulo. Antes disso, em 1987, abre as portas da Multiarte, em Fortaleza, uma espécie de ponte entre a Pinakotheke e o Nordeste.

Ao desempenhar múltiplas funções com objetivo de formação, pesquisa, questionamento, Perlingeiro gera conhecimento aplicado em várias plataformas de difusão da arte brasileira. O resultado dessa performance lhe valeu este ano o prêmio Ciccilo Matarazzo, da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA). Hierarquicamente, parece não haver uma tarefa que suplante outra no cotidiano do empresário, demarcado pela coexistência entre todas as atividades com as quais está envolvido. Pesquisar é, para ele, peça fundamental, o que o torna crítico da superficialidade de alguns trabalhos curatoriais. Aprofundar o conhecimento é tornar o campo da arte em um espaço complexo e dinâmico, mas nem sempre é assim. “Quando surge uma exposição há curadores que aplicam o processo do copy/paste, em trabalhos já editados. Não se preocupam com um texto sério, profundo e de conteúdo”. Adotando o mesmo procedimento para sua atuação como editor de livros de arte, ele é enfático: “Não faço álbum de figurinhas, livros têm que ter conteúdo”. Em sua atuação no mercado livreiro tenta a mudança desse cenário com um conjunto de estratos de informação. “A consulta em nosso banco de dados conta com 1516 itens e a pesquisa é intensa”. Em Fortaleza, a Multiarte mantém 120 alunos divididos em 10, 12 por turma. “Com esse trabalho criamos conteúdos para publicação e formamos pessoas. Hoje a instituição recebe cerca de 200 visitantes por semana”.

Bruno Giorgi, Retrato de Leontina Giorgi
Bruno Giorgi, Retrato de Leontina Giorgi, década de 1970 – Foto Jaime Acioli

A historiografia da arte brasileira se compõe, em grande parte, de textos curtos publicados em jornais e revistas, além de catálogos, que nem sempre apresentam ensaios de fôlego. O buraco ainda persiste. Perlingeiro se especializou em edição de livros exclusivamente voltados para a história da arte brasileira, dos séculos 19 e 20, com extensa investigação. Entre as publicações vale destacar: Antônio Bandeira 1922-1967; Coleção Airton Queiroz Fortaleza/Ceará; Frans Post; Coleção Edson Queiroz – catálogo, entre outras. O reconhecimento editorial veio com o Prêmio Jabuti, atribuído pela Câmara do Livro em três anos diferentes, além de outras láureas na área de artes.

Hoje o sistema de arte participa diretamente das leis do sistema midiático e econômico. Para dar conta de sua agenda, Perlingeiro criou uma plataforma que divide com seus filhos Amanda, Max e Victor. “Um terço do meu tempo é empregado na administração de 18 coleções particulares e institucionais importantes, locadas em Fortaleza, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo. Meus filhos se ocupam das exposições, dos livros e de outras questões mais particulares”.

Com trabalho prospectivo em setembro próximo Perlingeiro, galerista de longa data, vai revelar em exposição o que motivou Antonio Dias a seguir e colecionar a produção de Leonilson, cuja representação preferida é o universo dele mesmo. Perlingeiro é o co-curador da mostras: “O principal é Antonio Dias”, diz ele com o humor de quem lida com artistas desde a década de 60. Esta mostra é o desdobramento do projeto iniciado com Bruno Giorgi e Alfredo Volpi agora em cartaz na Pinakotheke do Rio, que envolve amigos artistas e suas afinidades vivenciais e artísticas. Vamos aguardar.

“A gente combinamos de não morrer”, 2019

Detalhe da obra "A Gente Combinamos De Não Morrer", de Jota Mombaça, 2019

O título do nosso editorial vem emprestado do nome da obra de Jota Mombaça, cujos detalhes publicamos na capa desta edição. O trabalho foi realizado em colaboração com Musa Michelle Mattiuzzi, Cíntia Guedes, Ana Giza, Adrielle Rezende, Juão Nin e Paulet Lindacelva, e forma parte de uma sequência de performances na Casa do Povo em São Paulo, inspirada em conto homônimo de Conceição Evaristo. A ação consistiu dentre outras coisas em manufaturar facas com barbantes, galhos e vidros hoje expostos no SESC 24 de Maio na mostra À Nordeste, comentada nesta edição pela jornalista Jamyle Rkain e criticada pela historiadora e curadora Aracy Amaral.

É notória a presença ou a alusão à violência em várias das entrevistas ou exposições que acompanhamos nos últimos tempos. Nas obras é latente a iminência de perigo, a sensação de desamparo, a necessidade de encontrar respostas e resistir, encontrar formas de cura para o sujeito e o ambiente.  Estamos perpassados por um momento de enorme violência. A violência de uma sociedade que agride o não igual; de cidadãos e políticos que defendem colocar armas a disposição de uma população cujas dificuldades e intolerância só aumentam. A violência de ter que mendigar educação, trabalho, saúde e assistir a cada vez maior precarização da qualidade de vida. A violência da pós-verdade e da pós-mentira.

A violência de não se fazer nada para impedir a violência. A artista paraense Berna Reale, no seu vídeo Americano, 2013 e a artista Cinthia Marcelle, no Chão de Caça, 2017 apresentaram no Pavilhão Brasileiro nas Bienais de Veneza de 2015 e 2017, respectivamente, obras de denúncia às condições de indigência e de superpopulação carcerária no país. Elas antecipavam, com suas imagens, diversas rebeliões e a carnificina que implodiu nestes dias nos cárceres de Manaus, deixando dezenas de mortos. Quase numa alegoria ao livro Crônica de uma morte anunciada do escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez.

A arte costuma cumprir seu papel, uma espécie de espelho e de alerta permanente sobre tudo que nos rodeia. Cildo Meireles, um dos maiores artistas contemporâneos brasileiros, já disse: “Não se faz um trabalho político em arte. Ele se torna político”.

Capa da ARTE!Brasileiros 47

Em contrapartida à institucionalização da barbárie, uma espécie de ode à morte que torna o dia obscuro, nós aderimos à vida e à arte, e a usamos como símbolo de potência e da força com que a pulsão de vida e de morte aparece nela… “Trata-se de uma morte-vida. Sempre que um artista proclama a morte da arte, novo salto é dado, e a arte acumula forças para uma nova etapa.” Dizia Frederico de Morais em Contra a arte afluente. O corpo é o motor da obra, 1970.

No mês de maio o Instituto Tomie Ohtake, por meio de seu núcleo de Cultura e Participação em parceria com o filósofo, ensaísta e tradutor Peter Pál Pelbart convidou um dos mais atuantes pensadores da atualidade, o filósofo francês e professor da Sorbonne (Paris I) David Lapoujade. Ao longo de quase duas horas ele discorreu sobre um texto intitulado “A Força da arte” apresentando ideias de Nietzsche e de Deleuze que refletem sobre o quanto a arte nos proporciona uma “promessa”, “uma crença neste mundo aqui”, não uma crença teológica, já que não deveríamos acreditar em nada quando estamos com a obra e, ao finalizar disse:

“Ou seja, a força da arte – quando ela a tem – é poder se auto justificar (e nos justificar) melhor que qualquer outra forma de realidade, poder adquirir, exclusivamente por sua força, uma razão de existir e de nos fazer existir. Se tivesse de resumir numa palavra (para concluir) em que consiste a força da arte, diria, portanto, que essa palavra é: justiça.”

Uma Crítica

Rodrigo Braga, Provisão, 2009
*Por Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos

A “confessada dificuldade” da crítica Aracy Amaral em encontrar, na exposição À Nordeste, as obras de “Francisco Brennand, João Câmara ou Miguel dos Santos” é compreensível: elas não estão lá. A apontada “relutância [da curadoria] em deixar de lado tudo o que poderia ser selecionado” ou a “ideia de que nada poderia escapar aos curadores” revela, no comentário publicado na edição #47 da ARTE!Brasileiros, os fundamentos de sua própria contradição. Esses três artistas – cuja participação a crítica aparentemente estava tomando por certa – não integram exposição, contrariando seu argumento de que a mostra teria sido inviabilizada por sua suposta não seletividade.

Ao criticar o que seria uma exagerada abrangência da curadoria enquanto se lança a uma desvairada busca pela presença de artistas ausentes, Amaral desvia-se daqueles que efetivamente estão lá e das urgências em torno da inclusão no âmbito da arte e da prática curatorial. Se, historicamente, mulheres, indígenas, negrxs e trans – dentre tantxs – foram marginalizadxs e invisibilizadxs na vida social e na arte, é com dor e indignação que chegamos em 2019 com as mesmas estatísticas, numa incontornável evidência da perpetuação da colonialidade. Nesse contexto, provocar as instâncias que produzem as condições de centralidade e de visibilidade nos parece necessário, donde nosso interesse por flexionar a pergunta que a própria crítica outrora lançou à arte, devolvendo-a como prática autocrítica e, quiçá, disruptiva: curadoria para que? Ou, ainda, para quem?

O comentário de Amaral – que subestima a inteligência do público, ignora “as etapas” da mostra (preferimos a ideia de “núcleos” que, no caso, são oito), como tampouco conferiu a lista dxs artistxs participantes – funda-se, provavelmente, no frustrado desejo de ver atendidas e ilustradas as suas expectativas sobre o Nordeste. Guiada por uma individual e preexistente cartografia dxs artistxs da região (evidentemente constituída ao longo de sua histórica e admirável trajetória), a crítica nem mesmo questionou suas certezas em torno de quem viria a encontrar. Atendo-se a uma espécie de mapa ficcional da exposição, atribuiu ao “labirinto” a responsabilidade pela “dificuldade” em acessar as naturalmente espectrais obras de Brennand, Câmara e dos Santos, despistando-se, assim, da evidência de que os marcos de À Nordeste são outrxs: Elielson Sayara, Marie Carangi, Pêdra Costa, Alcione Alves, Ayrson Heráclito, Saraelton Panamby & Naýra Albuquerque, @Saquinhodelixo, Nhô Cabolco, Goya Lopes, Zé de Chalé, Jota Mombaça, Jarid Arraes, Jayme Fygura, Zahy Guajajara, Mucambo Nuspano, Juliana Notari, Mestra Irineia, Romero Britto, Tertuliana Lustosa, Ana Lira, Gê Viana, Christina Machado, Michelle Mattiuzzi, Tadeu dos Bonecos, Marcelo d’Salete, Ramusyo Brasil, dentre muitxs. Passando ao largo desses marcos, não viu os corpos dançando agachadinhos, o carnaval da insurgência, a faca amolada, teile, zaga, o transe, o quilombo, a boneca, xs corpxs que geram, o kazumba, a cuceta, a moto-carranca, a siririca, a castração, os memes, Exu, Oxum, Solange, Tibira, Yolanda, não ouviu a rádio 97.5 FM nem percebeu que não “está tudo certo”: “quando eu acordei, havia 30 homens em cima de mim”.

Provavelmente sentindo no corpo – disciplinado pela razão pura – a vertigem produzida por À Nordeste em seu projeto de ocupação dos espaços (referência que nos interessa mais do que o paradigma do “display”), Aracy Amaral esquivou-se da análise do que a mostra se propõe a ser, como também parece não ter percebido que ela foi pensada para friccionar os muitos estereótipos projetados sobre o Nordeste. Se a preocupação com a visibilidade das obras é o operador central de seu comentário crítico, o que dizer da invisibilidade dxs corpxs? Há que se sublinhar que, no projeto curatorial proposto, outras visibilidades – sociais, políticas – foram igualmente prioritárias. Se causam desconforto porque convivem assimetricamente no espaço da exposição, o fazem pela preocupação ético-estética de não simular, por meio da arte, existências apaziguadoras, emolduradas, assépticas: neutralizadoras da violência dos mundos e das vidas de seus criadores. Se a performance de Jota Mombaça e colaboradorxs (capa da referida edição da Arte!Brasileiros) ameaça e vinga porque “combinamos de não morrer” (Conceição Evaristo), no âmbito da curadoria, publicizar e sustentar conflitos e divergências é uma forma de combinar de não matar.

Nesse sentido, se na mostra não é possível “localizar” os tão esperados artistas do já cartografado imaginário acerca da região, a negligência de não questionar o porquê dessas ausências só não é maior do que a cegueira crítica que prefere ignorar sua incapacidade de enxergar: olho adestrado para ver somente aquilo que um dia já foi capaz de observar. Se o que se buscava não se mostrou localizável, há ao menos que se suspeitar que ali estão em questão outras trajetórias, outras intenções, outros desejos, outros protagonismos, outras urgências, outrxs artistxs, outros nordestes. Uma crítica que não questione suas próprias expectativas e pressupostos será necessariamente um exercício de normatividade – especialmente quando realizado desde posições historicamente privilegiadas.

É preciso, todavia, sublinhar um ponto que de fato nos aproxima do comentário de Aracy Amaral e com o qual concordamos integralmente: assim como uma curadoria, uma crítica “não é tarefa fácil de ser concebida”.


Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos 
são os curadores da exposição À Nordeste, em cartaz no Sesc 24 de Maio. Neste texto, eles respondem à crítica de Aracy Amaral publicada na ARTE!Brasileiros 47.

Mostra de Adriana Varejão chega à Recife após estrear em Salvador

Obra de Adriana Varejão que está na mostra. FOTO: Divulgação

Com cerca de 25 obras bastante representativas de sua trajetória de mais de 30 anos, a artista carioca Adriana Varejão apresenta no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), em Recife, a mostra Por uma Retórica Canibal. Após passar por Salvador, a exposição com curadoria de Luisa Duarte chega a capital pernambucana com o acréscimo de alguns trabalhos, todos produzidos entre 1992 e 2016.

A produção de Varejão, centrada em grande parte em uma revisão histórica do colonialismo, escancarando suas violências e atrocidades, ganha força especial ao ser exposta em Recife, como afirma a própria artista. “Desde os anos 1980, quando comecei a pintar e pesquisar sobre o barroco, tomei como referência várias igrejas do Recife. Algumas imagens sempre permaneceram dentro de mim e as carrego até hoje, como o altar da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, a azulejaria do Convento de Santo Antônio, ou mesmo o teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares. Todo esse repertório me ajudou a moldar minha linguagem. Esses e outros exemplos reiteram a minha emoção de estar realizando esta primeira individual no Recife, tão perto de algumas importantes referências.”

Com azulejos rasgados que expõem em suas entranhas vísceras, carne, órgãos e sangue, a artista traz à luz histórias ocultas, pouco visitadas pela história oficial. Segundo o texto curatorial: “A seleção de trabalhos revela ainda a rede de influências que atravessa a obra da artista: do barroco à China, da azulejaria à iconografia da colonização, da história da arte à religiosa, do corpo à cerâmica, dos mapas à tatuagem, vasto é o mundo que alimenta a poética de Adriana Varejão”.

Assim como foi em Salvador, é a primeira vez que Recife recebe um conjunto significativo de obras da artista, que já expôs em diversas cidades do mundo e tem obras em instituições como o Metropolitan Museum of Art e o Guggenheim Museum em Nova Iorque, a Tate Modern em Londres, a Fondation Cartier em Paris, o centro Inhotim em Brumadinho, o MAM de São Paulo, o MAR no Rio de Janeiro e o Stedelijk Museum em Amsterdã, entre outros. A mostra fica em cartaz até 15 de junho e seguirá para outras cidades fora do eixo Rio-São Paulo.

Adriana Varejão – Por uma Retórica Canibal
MAMAM Rua da Aurora, 265, Recife
De 29 de junho a 8 de setembro de 2019
Gratuito