
O radical grego katá refere-se ao movimento do alto para baixo, oposto, portanto, do movimento de ascese ou elevação. Assimilação, ou metabolismo, opõe-se a catabolismo, como processo de desassimilação; cataclismo é um grande dilúvio, ou queda de água; catáfora é descenso da consciência; catatonia, a paralisia por perda da tensão dos músculos. Vem do radical kata a palavra katharsis, que inspirou o método psicanalítico de Freud e a interpretação das tragédias gregas por Aristóteles[1]. Se há uma estética da catástrofe, ela é uma variante do que chamamos anteriormente de estética do abismo.
A catástrofe, como voltar para baixo, difere do desastre, que em grego quer dizer “má estrela”, pois esta última se aplica aos humanos e ao seu destino. Se o desastre depende dos planos e intenções humanas, sendo portanto uma contingência social e se a tragédia é psicológica, no sentido da transformação dos afetos, a catástrofe é ontológica. Ela indica uma mutação ou uma perturbação do mundo.
Em psicanálise se fala na catástrofe, como a catástrofe narcísica, que acontece quando a criança se apercebe como “caída” do centro fálico de desejo de seus pais. Há também a catástrofe imaginária, que corresponde à corrosão do mundo, a descrença tal como nos revela a experiência do desencadeamento psicótico. Winnicott observou que muitos pacientes, que sofrem com a iminência persistente de uma catástrofe vindoura, na verdade expressam uma catásttofe passada, infantil, não realizada inteiramente do ponto de vista psíquico. Todas estas versões da catástrofe caracterizam-se por um acontecimento que ultrapassa as condições de subjetivação e simbolização presentes no sujeito.
A catástrofe, em sua dimensão traumática, possui uma grande afinidade com o conceito clínico de trauma, pois ele excede o que se pode simbolizar em uma data situação subjetiva e objetiva de mundo, induzindo uma série de efeitos de repetição, dissociação e negação. Uma catástrofe cria uma “coisa” inominada referida a um coletivo, cuja tarefa é sancionar o nível de realidade deste acontecimento. Daí a importância clínica de um outro que confirme, ateste ou valide que a catástrofe aconteceu. Isso torna a catástrofe um dispositivo de criação e destruição de nós e de mundos.
Artistas têm se dedicado à estética da catástrofe, seja pela via dos monumentos de memória, seja na deformação necessária para “respeitar” a catástrofe enquanto catástrofe, ou seja, traduzir na forma estética o silêncio e o que excede sua própria representação. Por exemplo, a Guernica de Picasso distorce animais e personagens, assimilando sua representação natural ao cubismo, mas também a estética da ruína e do escombro. Como nos tanques de giz e lousa, de Alfredo Jaar, representando as aulas que jamais serão dadas às crianças que morreram no desastre atômico de Fukushima, é o negativo que se faz presente, pela ausência. Nestas figurações aprendemos a lembrar não apenas dos fatos e monumentos positivos, mas de tudo aquilo que poderia ter sido e também do que não se pode dizer ou representar. As pesquisas de Ilana Feldman[2] têm enfatizado como o irrepresentável pode ser figurado sem ser representado, graças a certas propriedades da imagem.

Estéticas da desaparição olham para baixo, até o abismo da dissolução, assim como estéticas da ascese olham para o céu, em busca de elevação. A estética da desaparição pode nos ajudar a entender o fenômeno clínico da devastação, como uma espécie de experiência convergente entre o desastre imaginário, a catástrofe real e a tragédia simbólica. Uma renovação da ideia de catharsis poderia nos ajudar a entender tanto os destinos da devastação como seu tratamento conjugado pelas formas clínicas e estéticas.
Desastre
A Balsa da Medusa (1818) de Theodore Géricault é uma tela gigantesca, exposta no Louvre, onde se observa vinte sobreviventes da fragata Medusa naufragada no Mediterrâneo, levando seus sobreviventes ao desespero e à antropofagia no afã de sobrevivência. Percebe-se que cinco estão definitivamente vivos; outros doze, provavelmente mortos, e oito estão em estado indeterminado. Uma borboleta paira na testa daquele que avista o horizonte. Um verdadeiro desastre ocasionado por um capitão que desconhecia os mares por onde navegaria até o Senegal, mas acreditava firmemente em Deus, certo de que isso bastaria.
No Seminário sobre a Ética Lacan afirma que o que ele pretende demonstrar “situa-se entre a ética freudiana e a estética freudiana”[3]. Esta esthethica, contração de esthétique e ethique, conforme a feliz formulação de Lacoue-Labarthe[4], estaria na base das estratégias de formalização da clínica psicanalítica desde o conceito seminal de catharsis. Freud teria herdado de Jakob Bernays, crítico literário e tio de sua esposa, Martha Bernays, um entendimento demasiadamente médico do conceito de catharsis, pelo qual este se ligaria com as noções de purificação e purgação de afetos. Mais recentemente Martha Nussbaum[5] tem reforçado o uso da catharsis no contexto de novas formas de pensar a educação, envolvendo a experiência da corporeidade no contexto das discussões feministas. Para ela seria importante pensar a catharsis como forma de clareamento, iluminação ou método intuitivo para organização e apropriação do prazer cognitivo inerente ao processo de aprendizagem. Mas não há nenhuma aprendizagem no desastre do Medusa, apenas tolice e desespero. Não há nenhuma tragédia no desastre, porque o canibalismo não denota nem covardia nem coragem, apenas falta de recursos.
Catástrofe
No dia 15 de setembro de 1961 o Gran Circo Americano estreava suas atrações em Niterói (RJ). Uma dívida trivial com o dono do empreendimento fez com que três funcionários organizassem um incêndio por vingança. No dia do desastre o circo contava com mais de três mil pessoas, mais de trezentas morreram na hora. Tudo porque a nova lona adquirida não era de nylon, como tinha sido anunciada, mas de algodão coberto com parafina, material altamente tóxico e inflamável, resultando em grande morticínio. Faltaram médicos e padres para fazer frente à catástrofe. O desastre já estava marcado pelo plano vingativo de um dos funcionários que montavam o circo e fora demitido. Seu plano, porém, era infligir danos materiais ao dono do circo, mas nem tudo saiu como ele planejara. A cena aterradora foi testemunhada por José Datrino, motorista de caminhão, que, diante da tragédia teve um chamado à vida espiritual. Deste dia em diante passou a residir no local do incêndio, iniciando assim uma missão não terrena como Profeta Gentileza, nome pelo qual ficou conhecido o poeta. Ao assumir a dimensão pofética do evento Gentileza, transforma o desastre em catástrofe e esta em tragédia, com o seu tratamento continuado pela palavra, doravante escrita como mensagens pelas ruas do Rio de Janeiro.

Nakba, palavra que significa catástrofe ou desastre em árabe, passou a designar, para os palestinos, a Resolução 181 da Assembleia Geral, que recomendava a criação de dois Estados e a administração internacional de Jerusalém. Algo análogo, mas diferente, ocorre com a shoah, enquanto, catástrofe referida ao morticínio nazista:
“Não é nossa compreensão do evento e a compreensão do que veio depois que foram afetadas: a compreensão de tudo o que veio antes, também, foi afetada pela Shoah. Já Paul Valery tem uma frase que é quase o contrário da de LaCapra. Ele dizia: “O futuro não e mais o que era.” Então o passado não é mais o que era e o futuro também não. A Shoah é um evento de tal natureza que transforma a nossa compreensão de tudo o que veio antes e tudo o que veio depois.”[6]
Se na estética da catástrofe inclui-se tanto o belo, quanto o feio e ainda o sublime e grotesco, isso não pode ser atribuído as propriedades imanentes da imagem ou da obra, mas à sua recepção, capaz de reunir estética, ética e política. A shoah e a nakba são eventos catastróficos, porque eles apresentam um certo impossível de ser dito. Disso se depreende que eventos catastróficos, comportam negatividade, expressa no impossível de dizer, mas sem que exista identidade entre eles. Afinal seria o nada idêntico ou não é idêntico a si mesmo?
Isso aparece nas recentes dificuldades de figurações em torno do fim do mundo, mas também nas lutas contra-hegemônicas para aumentar a representação de grupos, perfis e condições sub-representadas. Tudo se passa como se o problema da origem comum, da gênese histórica, teológica ou evolutiva, típico das escatologias, por exemplo, persa ou mesoamericana, tivesse agora se invertido na luta pela precedência na ocupação do espaço terminal da humanidade. Os conceitos de catástrofe e desastre se reúnem, neste caso, para fundar as bases da noção de antropoceno. No antropoceno iniciamos uma virada para baixo, fruto de nossas imprevidência e superestimação, que na verdade são uma ausência de estrela, ou seja, uma ausência de orientação.
Catástrofe da sobrenatureza[7] é o modo como os indígenas brasileiros da etnia marico designam a dinâmica ontológica dos mundos diante da potência destrutiva do Ocidente. Para eles a “paz policial” é cada vez mais difícil se ser dissimulada. A “maldição da tolerância”, quando ela é uma tática de adiamento do conflito, são versões da catástrofe como “experiência da própria divergência e potencial de transformação entre os mundos”, cuja experiência política está baseada num “equívoco ontológico”[8]. A catástrofe aqui não aparece como um marco histórico ou como uma ameaça a unidade política, formada pela ética e pela estética, mas como um choque entre mundos. Choque de mundos que frequentemente apela para o sonho e para o estranhamento (Unheimlich) como paradigma.
Sem um caráter ostensivo, uma representação indireta e onírica aparece no relato do pajé Neiri como a retirada dos deuses (Tohõ):
“Ele havia visitado Tohõ, o Sol, que o recebeu em sua casa. Sentado em seu banco e portando seu chapéu, Tohõ lhe contou que estava muito envergonhado e pensava inclusive em ir embora. Com sua luz, Tohõ vê tudo o que acontece aqui na terra, e tem observado a recorrência das brigas, violências e mortes entre as pessoas. Aliado a este fato, Tohõ estava realmente aborrecido com “as fábricas, as químicas e as queimadas” dos eré (não indígenas). Toda a poluição estava prejudicando sua visão e o seu “suspiro”, sua respiração. Tohõ, que lá de cima consegue ver tudo aqui embaixo, não estava mais respirando bem. O pajé sonhador tentou argumentar, dizendo-lhe que ele não poderia abandonar os filhos que ele mesmo havia criado. Seu comentário não surtiu muito efeito, pois Tohõ retrucou: “Antes vocês me davam colar e chapéu, me agradavam. Agora, estou ficando doente e envergonhado! Vou embora”. [9]
A retirada dos deuses é uma das figurações recorrentes da catástrofe da sobrenatureza. Entre os ameríndios ela regula a relação mítica da distância entre mundos, como na queda do céu, seja na distribuição do espaço, pela nomadismo ou segmentação de aldeamentos, seja pela dinâmica da guerra, aliança e parentela. Catástrofes da sobrenatureza remetem ao exílio, ao deslocamento forçado e a diáspora, e com isso ao trabalho de acomodação em uma nova terra e a reorganização do trato dos viventes entre mortos, vivos e ainda não nascidos. Neste processo a distância ao Outrem, dada pela separação entre nós e eles, deve ser distinguida da distância ao Outro, no sentido psicanalítico da distância entre Ideal de eu e objeto. Terra, rios, lagos, animais e plantas, assim como o lugar dos mortos, envolvem o esforço de composição de geografias múltiplas e co-presentes, como as casas flutuantes de Guinard.
O adoecimento residual, gerado pela catástrofe, não é apenas uma violação do tabu e um desacato ao totem, como reza a regra totemista. Ele pode ser efeito da hibridização de mundos, efeitos do rapto e cativeiro animista do Outrem, como vemos no programa de Arthur Bispo do Rosário. Ao reunir os dois aspectos a estética da catástrofe torna-se uma interpretação genérica da colonização.
“As catástrofes produzem uma estética cuja característica é a elevação dos sentimentos, do respeito, da seriedade e do silêncio, enfim uma estética do sublime. No entanto, quase sempre, paralelamente aparece também uma estética do grotesco, marcada pelo desrespeito, pelos sentimentos baixos e pelo riso. (…) Portanto as catástrofes não são inomináveis e irrepresentáveis” [10]
Tragédia
No dia 13 de setembro de 1987, na rua 57, em Goiânia, os amigos Wagner e Roberto entraram no prédio abandonado onde funcionava o Instituto Goiano de Radiologia retirando um pesado equipamento, pensando em vendê-lo como sucata de chumbo. No seu interior havia um composto de césio-137, elemento radioativo, encontrado na forma de um pó branco, semelhante ao sal de cozinha. Quando o Devair desmontou a máquina, ele percebeu que durante a noite o estranho pó emitia uma luminosidade de coloração azul. Deslumbrado, ele passou adiante pequenas quantidades de cloreto de césio para os vizinhos. Depois de duas semanas os habitantes da rua 57 começaram a apresentar sintomas como vômito, diarreia, cefaleia, sangramento e febre. Tratava-se de um grande acidente radioativo que deixou mais de 1600 vítimas, entre elas Leide das Neves, filha de Devair com apenas cinco anos de idade, hoje símbolo do acidente. Assim que soube do acontecido o pintor Siron Franco, que havia morado na rua 57 iniciou uma série de telas que cobrem vários aspectos do ocorrido: a corrupção e morosidade do governo, a censura sobre os jornais, a pele descamada das vítimas, a transformação das pessoas em animais. O hibridismo das figuras animistas, geradas pelas alteração da carne, combinava-se assim com a denúncia da violação das regras de cuidado com aparelhos hospitalares.
Aqui temos uma catástrofe na qual a catharsis não é expressiva de um acontecimento brutal, muito maior do que a capacidade de representação, como o incêndio do Gran Circo Americano, nem uma imprevidência como o naufrágio da Medusa, mas uma inversão desintegrativa da experiência ético-estética. A linda luminosidade brilhante do Césio, nos leva a morte e à transformação silenciosa e invisível do corpo. Inversão irônica do conceito médico e religioso de purgação, limpeza e purificação, que historicamente carrega as metáforas educativas e intelectivas ligadas ao radical de “luz”. Assim como a dimensão universalista iluminada das formas mais prósperas e coloniais de vida são invertidas para baixo na catástrofe da tragédia decompositiva decolonial.
Desastre, catástrofe e tragédia estão presentes no comentário de Lacan a Antígona. A experiência universal da morte e da finitude (entre-duas-mortes), o erro de julgamento de Creonte (hamartia) e a desmedida da ação humana (hubris). O caráter criador do desejo de Antígona ao cruzar seu próprio limite (até), a denúncia de uma lei-não-toda escrita encontram seu momento decisivo no brilho em excesso, a luz que cega (imeros, ekphanestaton)[11]. Vemos assim que a noção de catharsis, pode ser aplicada tanto à tragédia quanto ao desastre e à catástrofe.
- O conceito médico e religioso de purgação, limpeza e purificação, envolve uma transformação restaurativa, que traz de volta um momento anterior.
- O conceito estético educativo, preso ao radical de brilho (iluminação) e ligado à prática da criação metafórica, que cria novos mundos a partir do desastre.
- O conceito ético político ligado à dimensão universalista de produção de formas de vida e de leis que ainda não são reconhecidas na pólis, mas que uma catástrofe pode justificar sua introdução.
Jonathan Lear[12] argumenta que esta ambiguidade não deve ser hierarquizada em torno da noção mais genérica de brilho, da qual a limpeza e a unidade seriam traços subordinados, como defende Martha Nussabum. Ele advoga que o poder de iluminação pedagógica da catharsis, não pode ser entendido como uma educação das emoções, tanto porque é dirigida exclusivamente aos gregos adultos, portanto já educados, quanto porque o prazer experimentado na tragédia não é o mesmo que se obtém na vida cotidiana. Assim também o desprazer da tragédia não é o mesmo da catástrofe. Lear observa que a mera expressão ou liberação das emoções não seria em si prazerosa, segundo Aristóteles. Desta forma ele resguarda e recusa a acepção clínica de catharsis. Ou seja, não é a intensidade dos afetos convertidos em sentimento social, de identificação, indignação ou piedade que define a catharsis, conferindo-lhe potência estética contemporânea, mas na conexão que o conceito possui de unir uma experiência entre política, ética e estética. É o desejo de transformação, efetivado esteticamente na própria solução apresentada pela obra, que converte um desastre em tragédia, bem como uma tragédia em catástrofe. Mas nem toda catharsis anuncia uma catástrofe em seu horizonte, pois esta demanda tanto a contingência do desastre, envolvida nos atos humanos, quanto a impossibilidade, que destrói a consistência ontológica do mundo que a tornou possível.
Catharsis
Lembremos que a noção de catharsis pertence ao universo da produção e da apropriação, pública ou privada, da metáfora ou da realidade. A tríade freudiana da cura, composta pelo trabalho de recordar (erinern), repetir (Wiederholung) e elaborar (ducharbeiten), ressoa com a tríade grega da catástrofe: mímeses, aesthesis e catharsis. Também na cura produz-se uma unidade ético-política-estética envolvida. A cura psicanalítica, assim como a curadoria estética, realizam-se sob a condição da transferência.
(…) nesta ocasião eu lhes mostro que, nos textos de Freud, repetição não é reprodução. Jamais qualquer oscilação sobre este ponto – Wiederholung não é Reproduzieren. Reproduzir, é o que se acreditava poder fazer no tempo das grandes esperanças da catharse. Tinha-se a cena primitiva em reprodução como se tem hoje os quadros dos grandes mestres por nove francos e cinquenta. Só que, o que Freud nos indica quando dá os passos seguintes, e ele não demora muito para dá-los, é que nada pode ser pego, nem destruído, nem queimado, senão de maneira, como se diz simbólica, in effigie, in absentia. A repetição aparece primeiro em uma forma que não é clara, que não é espontânea como uma reprodução, ou uma presentificação em ato.[13]
Repetir (apreender negativamente), reproduzir (mimesis) e presentificar em ato (iluminar, criar) são modalidade de entendimento da metáfora e parâmetros para sua teoria da mediação. Há pelo menos três tipos de negação envolvidos em uma metáfora que fusionam função ontológica, a função representativa e função pragmática da linguagem. Tal entendimento criativo e ontológico da metáfora teria sido absorvido por Lacan a partir de Hegel determinando a acepção lacaniana de metáfora.
Conclusão
Seria o filme Shoah de Claude Lanzmann[14], assim como a obra de Anselm Kiefer, um tratamento possível para a experiência histórica do holocausto, promovido pelos nazistas? Estaria o poeta Gentileza espalhando, pelas ruas do Rio de Janeiro, a poesia que faltou sobre o grande desastre do Circo Americano? Seria o sonho de Neiri uma figuração do impronunciável da catástrofe? Seriam documentários como Al Nakba[15], Farha[16] e Born in Gaza[17], maneiras de representar o irrepresentável da situação ético-estético-política da Palestina?
Por trás destas questões remanesce a ideia de que uma boa representação do ocorrido nos previne contra sua repetição. Mas uma boa mimesis não é um retrato realístico do que ocorreu, assim como a tragédia da rua 57 não será captada pelas imagens radiológicas do afetados. Do ponto de vista psicanalítico pode ser exatamente o contrário. Uma boa representação nos fixa a uma imagem da qual podemos fugir impedindo-nos de perceber que as catástrofes se modificam em suas reatualizações. Uma má representação não é uma representação mal-feita, mas uma representação que esconde que ela mesma é uma representação. Uma boa representação pode ser feita pelo seu contrário, pela sua ironia, pela precariedade, pela forma como guarda o invisível e silencioso, dentro do visível mostrado. Uma boa representação porta sua própria regra de desaparição.
Aprofundar o problema da catharsis no interior da tradição de comentário do gênero e trágico, adotá-la como caso paradigmático de reflexão sobre formalização e conceitualização da prática psicanalítica, pode nos ajudar a entender melhor a afinidade estrutural entre a cura psicanalítica e a curadoria estética no contexto da catástrofe. Para isso temos que levar em conta que a concepção lacaniana de estética é profundamente disruptiva e não conciliatória, levando a catharsis a ser pensada como um processo desintegrativo:
A estética lacaniana do real é o resultado de um tempo que não vê mais a arte como uma promessa de felicidade, como dizia Stendhal, ou seja, uma determinação concreta e adequada da Coisa. Ao contrário, o tempo da estética lacaniana é o momento histórico no qual a arte aparece como maneira sensível de sustentar o que não pode encontrar determinação para se afirmar positivamente em uma realidade totalmente fetichizada. A arte como rasura do poder reconciliador da simbolização e da linguagem.[18]
A catharsis é uma resposta social e historicamente datada para a catástrofe, tragédia ou desastre. Reações catárticas sem mediação tendem a se tornar uma mistura de pedagogia estética, política expressiva disciplinar e moralidade expressiva. Essa é a retórica do cinema catástrofe, que assim como a banalidade do sofrimento neurótico torna a tragédia drama, o desastre uma aventura de entretenimento e a catástrofe um fetiche. A catharsis precisa se associar com os processos de desintegração para poder ser efetivamente uma força de transformação. Nesta medida ela aponta para uma forma de vida por vir e para uma forma de vida em desaparecer, não obstante, histórica e real. Assim como o sonho Marubi fala do futuro como passado e do passado como futuro a catharsis desintegrativa nos permite criar diante do abismo. ✱
[1] Aristotle. Poetics. Trans. Gerald F. Else. Ann Arbor: U of Michigan P, 1967.
[2] Feldman, Ilana. “De ‘Holocausto’ (1978) a ‘Chernobyl’ (2019): o que pode o audiovisual face a um passado traumático e a um futuro ameaçado?”. In: Alceu – revista de comunicação, cultura e política, dossiê “Distopia e narrativas contemporâneas: a difícil arte de imaginar o futuro”. PUC Rio, edição 43, v.21, n.43, 2021, p.24-49.
[3] Lacan, Jacques (1959-1960) O Seminário Livro IThe Seminar Book VII On Ethics of Psychoanalysis. Trans Dennis Porter (New York:Routledge, 2007).
[4] Lacoute-Labarthe, Philippe (2007) On Ethics: a propôs de Antigone. Journal of European Psychoanalysis, n24, 2007
[5] Nussabaum, Martha (1992) “Tragedy and Self-Sufficiency: Plato and Aristotle on Fear and Pity.” Oxford Studies in Ancient Philosophy (1992), 10:107-159.
[6] Arthur Nestrovski (2004) Shoah: catástrofe e representação. In Gragoata, Niteroi, n. 16, p. 51-68, 1. sem. 2004.
[7] Soares-Pinto, N.. (2023). A catástrofe da sobrenatureza: a relação entre morte e terra no Complexo do Marico. Mana, 29(1).
[8] Valentim, Marco Antônio (2018) Extramundanidade e Sobrenatureza Ensaios de ontologia infundamental. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie, p. 28.
[9] Soares-Pinto, N.. (2023). A catástrofe da sobrenatureza: a relação entre morte e terra no Complexo do Marico. Mana, 29(1), p. 32.
[10] Idem Oliveira, 2008, p.39.
[11]Lacoue-Labarthe, Philippe (2007) On Ethics: a propôs de Antigone. Journal of European Psychoanalysis, n24, 2007
[12] Lear, Jonathan (1992) ‘Katharsis’, in Amélie Oksenberg Rorty (ed.), Essays on Aristotle’s Poetics, Princeton University Press, Princeton, 1992, 315–40.
[13] Lacan, J. (1964) O Seminário Livro XI Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 1988, pág. 52.
[14] Claude Landsmann (1985) A Shoah. http://cinema.encyclopedie.films.bifi.fr/index.php?pk=56125&_ga=2.129406284.1136031695.1564686845-262964486.1557257221
[15] Benny Bruder (1966) Al-Nakba: The Palestinian Catastrophe of 1948. https://web.archive.org/web/20110914133108/http://www.sfjff.org/film/detail?id=797
[16] ELIA, Nada. Farha and the story of the Palestinian collaborator. Aljazeera, 7 de janeiro de 2023, disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2023/1/7/farha-and-the-story-of-the-palestinian-collaborator.
[17] Ernan Zanin (2019) Born In Gaza. https://palestinefilms.org/en/Film/2014/Born-in-Gaza
[18] Safatle, Vladimir (2010) A Paixão do Negativo: Hegel com Lacan. São Paulo:Unesp, pág. 289