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O primeiro Leonilson

Leonilson
Sem título, 1981, lápis de cor, lápis metálico, guache e aquarela sobre, papel 32,5 x 36,5 cm

Foi no final dos anos 1970, que dois estudantes de artes plásticas, ao entrarem em uma galeria, se deram conta que arte não diz respeito apenas à criação. “O que mais chamou a nossa atenção foi o preço do trabalho. Era um negócio totalmente fora da realidade, da realidade do Brasil daquela época. Não é possível, não custa isso, deve estar errado!”, conta Luiz Zerbini, hoje ironicamente um dos mais caros artistas brasileiros, lembrando da visita com José Leonilson a uma mostra de Antonio Dias (1944-2018).

O depoimento, contudo, serve como um preambulo à amizade que acabaria se desenvolvendo entre Leonilson (1957-1993) e Dias, em Milão, logo em seguida. Foram laços tão fortes que levariam, décadas depois, o então artista valioso a comprar obras do amigo prematuramente falecido em decorrência da Aids, tornando possível, hoje, a mostra Leonilson por Antonio Dias — Perfil de uma coleção, que entre 11 de novembro e 14 de dezembro está em cartaz na Pinakotheke São Paulo (rua Ministro Nelson Hungria, 200), após ter passado pela sede carioca.

Se tudo começou com o choque dos altos valores, como narra Zerbini no catálogo da exposição, foi no outono de 1981 que Leonilson de fato encontraria Antonio Dias, em sua casa em Milão, por indicação de outro brasileiro, Arthur Luiz Piza (1928–2017), que vivia em Paris.

Em outro depoimento no catálogo da mostra, agora de Paola Chieregato, ela conta como Dias influenciou o então jovem artista recém-chegado à sua casa em Milão, que já estava pronto para voltar para Jericoacoara — Leonilson é cearense —, com uma pasta cheia de desenhos embaixo dos braços. “Foi aí, naquela casa de Milão na frente do castelo, que Leonilson foi impulsionado por seu mentor para que tomasse finalmente as rédeas de sua profissão de artista nas próprias mãos e, assim, com coragem e determinação, foi se apresentando na cena italiana”, conta Paola, viúva de Dias.

Foi ele, nesse contexto, quem indicou a galeria de Enzo Cannaviello para Leonilson, que comprou seus trabalhos e o inseriu em algumas mostras, além do pai da Transvanguarda, Achille Bonito Oliva. A amizade se fortaleceu e, mesmo Antonio Dias vivendo na Europa, ambos se encontravam regularmente. Uma carta de 3 de maio de 1993, enviada pouco antes da morte de Leonilson, mostra o apreço de Dias pelo amigo, ao falar de duas obras de Leonilson que havia trazido para sua residência permanente, em Colônia, na Alemanha: “Agora, penso em você todo dia. (…) gostaria muito de lhe rever e dizer novamente que eu gosto mesmo de lhe ter como amigo”.

Não deu tempo, mas após a morte de Leonilson, Dias passou a buscar adquirir seus trabalhos, especialmente os vendidos em Milão, com a ajuda de Paola, a “garimpeira”, como ele a chamava. A mostra na Pinakotheke reúne, assim, os 38 desenhos e pinturas da coleção de Antonio Dias, exposição que começou a ser planejada em 2015, quando Dias preparava sua individual na Galeria Multiarte, em Fortaleza. Quatro obras pertencentes a outras coleções particulares complementam a exposição.

Trata-se, portanto, de uma faceta um tanto desconhecida de Leonilson, tomando-se em conta as recentes mostras a ele dedicadas no Brasil, um recorte de seu início de carreira, com a maior parte das obras vindas dos anos 1981 e 1982. Há apenas um bordado dos anos 1990, por exemplo, técnica que dá a ele maior projeção e reconhecimento, especialmente pelo caráter autobiográfico que ele imprime aos seus últimos anos.

As obras na mostra são mais experimentais, como um políptico em papel colorido, que lembram mesmo certos trabalhos do próprio Antonio Dias. Por outro lado, a escultura Ponte, de 1982, traz já uma imagem que ficará recorrente em sua carreira.

Os trabalhos em exposição de fato apresentam uma alegria, que contrastam com a melancolia do final de carreira, em parte assim vistos pelo tom das fitas deixadas pelo artista. Nesse diário gravado, que gerou dois filmes, Leonilson projeta uma imagem contestada por Zerbini no catálogo, que o levava a planejar a destruição das fitas, junto com Antonio Dias: “Achávamos, e acho ainda, que elas propagam uma imagem que não corresponde à realidade. Leonilson foi uma das pessoas mais engraçadas, inteligentes e rápidas de raciocínio que conheci. Dono de um humor rasgante, cruel.” E Zerbini conclui defendendo que “o sofrimento que a doença causou não há de contaminar o seu trabalho, mas, para isso, não deveríamos repercutir, supervalorizar o momento em que ele aparece mais fragilizado”.

Travessias de Anna Bella Geiger

Vista e detalhes da instalação "Circa", de Anna Bella Geiger
Vista e detalhes da instalação "Circa", de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019.
instalação "Circa",
Vista e detalhes da instalação “Circa”, de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019. Foto: Gabriela de Laurentiis.

 

 

 

 

 

Por Gabriela de Laurentiis

“Todo mundo sabe que cidades foram feitas para serem destruídas”. Essas palavras grudaram em meus pensamentos sobre a obra Circa, montada pela artista Anna Bella Geiger na 16ª Bienal de Istambul. Circa traz significados semânticos e poéticos de um tempo incerto, algo ocorrido para o qual não há precisão de datas. Geiger produz uma instalação na qual se conjugam construções efêmeras – realizadas em areia, cimento seco, terra — e objetos pré-fabricados —, como uma pequena réplica de uma casa Bauhaus, um trenzinho e pedaços de vidro que formam uma piscininha. Há, ainda, um vídeo construído em conversação com a ópera Akhnaten de Philip Glass.

A primeira instalação da obra foi realizada como parte do Projeto Respiração (2006), na Casa Museu Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro, com curadoria de Marcio Doctors. A escolha dos materiais faz com que o trabalho ganhe, a cada montagem, características singulares. Entre as especificidades da montagem de Istambul estão as estradas de areia branca, inspiradas nas vistas áreas durante a vigem do Brasil para Turquia: “Eu notei essas estradas no meio do deserto. Esse traçado das estradas eu não tinha feito em nenhuma das instalações anteriores”, diz Anna Bella Geiger. 

Elaborações poéticas a partir de mapas, arquiteturas e espacialidades são marcantes na prática artística de Geiger. Em Circa, essas discussões ganham a forma de uma cidade fantástica/fantasmagórica com configurações temporais-espaciais descoladas de periodizações lineares. Para a pesquisadora e artista Ana Hortides, que realizou uma série de montagens da obra, incluindo a da Bienal de Istambul, “Circa apresenta uma espécie de cidade que mescla, à primeira vista, diferentes culturas e espaços temporais em situação de ruínas, ou aparentemente, próximas a ruir”.

Vista e detalhes da instalação “Circa”, de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019. Foto: Gabriela de Laurentiis.

A fragilidade da matéria e as construções arquitetônicas em desmanche trazem uma sensação de destruição, de um território sendo devastado. Geiger lembra que a primeira construção de Circa estava envolta no imaginário da Ocupação do Iraque – que ocorria três anos antes – adensando, por meio das palavras, as sensações de devastação operadas pelas formas e as matérias da instalação.

Os sentidos da obra expandem-se na situação da Bienal de Istambul, que com curadoria de Nicolas Bourriaud leva o título O Sétimo Continente. A expressão se refere a uma área flutuante no Oceano Pacífico de três milhões e quatrocentos mil quilômetros quadrados composta por sete milhões de toneladas de plástico.

Entram em curso na Bienal de Istambul os impactos da ação humana em dimensões catastróficas no marco do Antropoceno — conceito dos pesquisadores Paul Crutzen e Eugene Stoermer para denominar a Era geológica efeito da atuação humana no globo — ou do Capitalocene — como proposto por Andreas Malm, dimensionando politicamente essas questões contemporâneas1. As guerras motivadas por interesses econômicos entrecruzados com problemas religiosos, os impactos nas infraestruturas de recursos básicos e nos modos de vida existentes em diversas regiões do planeta compõem a contemporaneidade. Circa traz essa dimensão.

A obra foi montada no prédio projetado por Emre Arolat, que a partir de 2020 abrigará o Museu de Pintura e Escultura de Istambul. Ali também foi exibido, entre outros trabalhos, o vídeo O Peixe (2016), do alagoano Jonathas de Andrade. Adentrando o prédio, é impossível desconsiderar as vistas das numerosas janelas. Da grande maioria delas o que se pode ver no exterior são trabalhadores, andaimes e estruturas inacabadas. Forma-se um canteiro de obras em meio às águas do Bósforo, prédios e mesquitas, que compõem a paisagem da região,  no momento passando por um grande projeto de reurbanização.

A arquiteta e artista Laura Nakel conta que “a transformação do antigo Armazém n˚5 na orla da região de Karaköy em Museu compartilha características com grandes empreendimentos recentes, como o Puerto Madero em Buenos Aires, o Porto Maravilha no Rio de Janeiro e o V&A Waterfront na Cidade do Cabo”.

Vista e detalhes da instalação “Circa”, de Anna Bella Geiger, montada na Bienal de Istambul de 2019. Foto: Gabriela de Laurentiis..

A produção de Circa nesse local tem como efeito um questionamento sobre as relações entre o dentre o fora do Museu. A cidade em ruínas de Geiger faz pensar nas construções de Istambul e vice-versa. Como lembra Geiger, Circa lida com “questões relativas à espiritualidade, memória, história e estórias, em uma dimensão de um espaço tempo que se estende”. Na cidade de Istambul, todas essas questões ressurgem na própria estruturação do espaço urbano, por vezes em dimensões catastróficas. Nakel lembra que na região do Museu ocorre “um processo que começa nos anos 1990, no qual galerias e coletivos de arte ocupam os antigos armazéns abandonados iniciando um processo de gentrificação da região, intensificado com a chegada dos grandes investidores privados”.

Na travessia entre continentes, entretanto, as construções de Circa ganham uma outra camada de possibilidade: de uma transformação esperançosa. Para Hortides, “a inclusão de uma terra molhada, viva e aparentemente fértil faz com que na montagem da Bienal de Istambul a passagem do tempo contenha um pouco mais de esperança no que está por vir, prenúncio de construção e transformação, apesar das catástrofes”. Anna Bella Geiger, com suas travessias por tempos incertos, faz imaginar espaços múltiplos e agonísticos, elaborando uma poética vibrante e viva.

 

¹ Bourriaud, N. “The Seteventh Continet: These Upon Art In The Age Of Global Warming”. In Seventh Continent. Catálogo da 16ª Bienal de Istambul. Istambul, 2019. P.47.


*Gabriela De Laurentiis é artista visual e pesquisadora. É autora do livro Louise Bourgeois e modos feministas de criar. É graduada em Ciências Sociais na PUC-SP e mestra pelo Departamento de História Cultural na UNICAMP. Atualmente é doutoranda na FAU-USP, com uma pesquisa sobre Anna Bella Geiger, sobre quem escreve para esta edição.

Bakun e a vida das coisas

Miguel Bakun, Caules, óleo sobre tela, 46 x 54 cm. FOTO: Rafael Dabul

Quem me apresentou a obra de Miguel Bakun foi Eliane Prolik. Em uma das inúmeras visitas que fiz a Curitiba no início dos anos 1990, a então jovem artista certo dia me ofereceu uma cerimônia especial de boas-vidas: após me buscar no aeroporto, me levou a uma exposição do artista numa das instituições da cidade (teria sido o Museu de Arte Contemporânea? Não me lembro mais ao certo). Diante de minha reação, na sequência me levou para visitar uma coleção particular em que outras obras do artista se destacavam.

Com esse encantamento perante as pinturas daquele Bakun, até então um completo desconhecido para mim, Eliane parecia confirmar o acerto de sua proposta: como era gratificante apresentar a um então jovem crítico de São Paulo a obra de um artista excepcional e praticamente desconhecido fora do Paraná, um filho de imigrantes ucranianos, nascido no interior do Estado em 1909 e que morrera tragicamente em 1963.

Mas só depois fiquei sabendo desses fatos. Meu encontro com Bakun, graças à sensibilidade de minha amiga, digamos, foi a frio. Sem biografia que sublinhasse traços românticos ou romantizados, fui levado direto à sua obra, que se revelou como uma verdade sobre a existência da pintura enquanto celebração da vida das coisas porque era – em cada um dos quadros por ele pintados –, uma celebração da própria pintura.

Daquele primeiro contato até hoje, Bakun ficou para mim como uma das principais referências sobre como determinados procedimentos nascidos durante o início da arte moderna internacional (impressionismo, pós-impressionismo etc.) podiam medrar em países periféricos como o Brasil, anos depois de seus respectivos nascimentos na Europa; como alguns artistas, anos depois, tinham a capacidade de torna-los de novo atuais e, de certa maneira, fundamentais para uma compreensão mais abrangente sobre cada um deles, sobre seus desvios e aprofundamentos. O encontro com a obra de Bakun, naquela manhã fria de Curitiba, me ajudou a entender que devia haver uma história dos reaparecimentos das vertentes modernas em localidades isoladas desse mundo de meu Deus, reaparições que desmentiam qualquer sentido de “ideia fora do lugar” ou do tempo. Foi como descobrir que o pós-impressionismo nas produções do paranaense ali reaparece porque, para se completar enquanto forma de enxergar o mundo, aquela vertente necessitava de Bakun.

(O primeiro resultado mais importante desse meu encontro com a obra de Miguel Bakun foi a inclusão de sua obra na mostra “Bienal Brasil Século XX (São Paulo, 1994) no segmento “Modernismo”, sob minha responsabilidade e de Annateresa Fabris).

Bakun se tornou Bakun porque, em certo período, teve um contato forte com outro artista brasileiro significativo como José Pancetti, mas Bakun se tornou ele mesmo porque também se impregnou da visualidade criada por Van Gogh escrutinado por meio de revistas e livros. Em certa medida (aliás, como Iberê Camargo em seus inícios), visualizar o artista holandês por meio de reproduções permitiu-lhe descobrir que a pintura não era apenas o assunto tratado, mas que ele (o assunto) só poderia existir pela construção da forma, que se dá pelo agenciamento da cor e do gesto sobre a matéria.

A obra que Bakun, retirando de si mesma a condição de mera repetidora de estilemas criados pelos mestres do passado moderno por meio da realização plena de pintura, no aqui e agora, tem o poder de propiciar ao espectador o prazer (intraduzível em palavras) de uma pintura que se manifesta em sua totalidade no próprio ato de visualiza-la.

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Estas lembranças e considerações surgiram a partir da visita à mostra “Miguel Bakun”, na Simões de Assim Galeria de Arte, em São Paulo, em cartaz até 14 de dezembro próximo. Uma exposição impecável que tomou como partido restringir a produção apresentada às obras que antecedem a última fase do artista, atitude perfeitamente compreensível dado, inclusive, às limitações do espaço. Porém, ao não apresentar exemplares da última fase do artista, a Galeria fica devendo ao público paulistano uma exposição em que contemple, justamente, os derradeiros anos de Bakun. Nesse período, me parece, sua visão animista (perceptível, de maneira sutil em algumas das obras apresentadas) ganhará uma força transgressora e desconcertante e que, sob determinados aspectos, consegue ir além de onde chegou a própria pintura Van Gogh.

Um autorretrato do artista Miguel Bakun. FOTO: Reprodução

Enquanto essa nova exposição não ocorre, sugiro ao leitor que assista ao documentário Autorretrato de Bakun (1984), de Sylvio Back, uma demonstração cabal do quanto um documentário sobre a obra de um determinado artista pode se transformar, ele mesmo, numa obra de arte. Back, em Autorretrato de Bakun, longe de assumir um tom historicista ou “crítico”, mergulha de cabeça na complexa subjetividade do artista, recriando-a enquanto arte. Assim, fica aqui a dica para este final de semana: Bakun e Back.

Pivô promove 8ª edição do Leilão Anual de Parede

Obra de Erika Verzutti no Leilão

No dia 23 de novembro, o Pivô promove o almoço beneficente anual que arrecada fundos para sua manutenção. Em atividade desde 2012 sob a direção artística de Fernanda Brenner, o Pivô é uma plataforma de intercâmbio e experimentação artística. Sua sede, um espaço de 3500 m² no icônico Edifício Copan, no centro de São Paulo, atua como uma fomentador da produção artística nacional e internacional, articulando a interlocução entre diferentes agentes culturais. Desde sua abertura o Pivô já recebeu mais de 65 mil visitantes, 95 projetos artísticos e 180 artistas de mais de 20 nacionalidades para o programa de residência.

O retorno do projeto para a cidade é amplo: além da retomada de um espaço que permaneceu fechado por duas décadas, anualmente o Pivô recebe em média 40 artistas, brasileiros e estrangeiros e em diferentes estágios de carreira, que participam de seu programa de residências artísticas, o Pivô Pesquisa. Sua programação é composta por cerca de oito exposições de arte contemporânea, palestras e programas públicos, todos com gratuidade.

Na oitava edição, o Leilão de Parede Anual reúne mais de 100 obras doadas por nomes como: Anna Maria Maiolino, Adriano Costa, Alexandre da Cunha, Ana Mazzei, Cristiano Lenhardt, Eduardo Navarro, Leda Catunda, Lenora de Barros, Marcius Galan, Paulo Pjota Nimer, Sonia Gomes, Lucia Koch, Jac Leirner, Erika Verzutti e outros. O cardápio do evento beneficiente fica a cargo dos chefs Janaína e Jefferson Rueda, com a premiada feijoada da Casa do Porco, a sonorização com a DJ Cris Naumovs, além de uma performance musical da cantora Aretha Sadick.

O Pivô é uma associação cultural sem fins lucrativos que atua como plataforma de experimentação para artistas, curadores, pesquisadores, estudantes e público em geral. Desde 2012, o espaço vem se consolidando com um dos principais centros de exibição e produção de conteúdo em arte contemporânea da cidade. Situado no icônico edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, o espaço é totalmente aberto, acessível e tem visitação gratuita.

EntreMeadas — Sesc Vila Mariana

Idealizada pelo Sesc São Paulo, com curadoria da crítica e historiadora do design Adélia Borges, a mostra dá destaque ao artesanato brasileiro feito por mulheres e valoriza o patrimônio cultural ao reunir o trabalho de artesãs e coletivos de 14 cidades paulistas, para as quais o artesanato é um meio de expressão, de afirmação de identidade e de geração de renda.

Com riqueza de trançados, cores e formas, a exposição apresenta obras artesanais e suas raízes, desde o material escolhido, a comunidade de origem e a artesã criadora. O trabalho de curadoria também se destaca pelo recorte geográfico. Durante o processo de pesquisa, Adélia Borges mapeou uma rica diversidade artesanal no estado, que tem como resultado uma mostra com obras feitas na capital paulista e oriundas das cidades de Carapicuíba, Atibaia, Olímpia, Cananeia, Bertioga, São Bento do Sapucaí, Miracatu, Bauru, Américo Brasiliense, Guapiara, Eldorado, Tremembé, Bertioga e Osasco.

A mostra fica em cartaz até 9 de fevereiro de 2020.

Dentro do Furacão

Esta é a última edição do ano de 2019, um ano onde todas as áreas produtivas neste país tiveram que trabalhar além de suas forças, em um ambiente mesquinho. Foi um ano de dificuldade econômica para a maioria da população. Não fosse suficiente, estamos em meio a uma inacreditável demonstração de pobreza intelectual.

Dentro da pobreza de pensamento generalizada, o governo tomou a decisão de transformar a cultura num apêndice do Ministério do Turismo. Talvez tenham pensado: “Vejam, nos guias turísticos há indicações de cinemas, teatros e museus, vamos colocar tudo junto”. Seria cômico se não fosse trágico.

Não obstante, enquanto ouvíamos a burrice de inúmeras bravatas — algumas que nos fazem retroceder décadas na história de nossas vidas e do país —, o que nos salvou mais uma vez foi a arte, com sua força absolutamente inquebrantável. A possibilidade de ainda ter acesso à cultura permitiu que a população se voltasse em massa a exposições em museus e instituições culturais.

ARTE!Brasileiros, junto ao Itaú Cultural, conseguiu realizar um profundo debate sobre várias abordagens e alternativas possíveis para a sustentabilidade das instituições e a importância da gestão cultural, no seminário Gestão Cultural: desafios contemporâneos. A partir daí, decidimos dar início a uma série de entrevistas que nos permitam ouvir e acompanhar outras vozes de forma permanente. Cada vez mais se reforça a ideia de uma instituição cultural participativa, capaz de envolver a população em suas causas, e não apenas um espaço de contemplação.

Nessa função mesquinha, o Estado só aprofunda as cicatrizes de séculos de discriminação e violência e abre caminho para mais violência. Na arte a resposta é uma denúncia ativa. Os artistas buscam se expressar, definitivamente, estética e eticamente. Pesquisam arquivos, suportes e temáticas que os ajudem a falar. As lutas raciais, de gênero e contra a censura estiveram presentes, ao longo do ano, nas obras de bienais, como a do Sesc_Videobrasil, nos prêmios, tanto no Marcantonio Vilaça como no Pipa, e na maioria das exposições nacionais.

Na capa, obra de No Martins, da série #JáBasta!, 2019. Em exibição na 21ª Bienal Sesc_Videobrasil.

Mais de 100 artistas participam de uma exposição na Ocupação 9 de Julho em São Paulo, engajando-se no apoio à luta pela moradia. Aline Motta, uma das ganhadoras do Prêmio Marcantonio Vilaça, faz de sua obra uma procura permanente, nas suas raízes, da memória coletiva de milhares de famílias brasileiras construídas (ou destruídas) no violento processo de formação do país, baseado na escravidão e na estrutura patriarcal. 

Guerreiro do Divino Amor, ganhador do Prêmio Pipa deste ano, numa linguagem completamente original e de experimentação, dá nome aos bois e denuncia as manobras de setores evangélicos fascistas, defensores de costumes já ultrapassados, e a responsabilidade que certos grupos midiáticos estão tendo nisso.

Nossa capa, obra do artista paulistano No Martins, que faz parte sem dúvida deste ethos, sintetiza de alguma maneira o nosso sentimento, expressado também no texto extraído do livro Crítica da Razão Negra, da n-1 edições, do camaronês Achille Mbembe: “Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria  a cripta viva do capital. Porém e esta é sua patente dualidade —, numa reviravolta espetacular, tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias simultaneamente”.

Assim como No Martins, nós dizemos BASTA!!!

Aline Motta e o mergulho pessoal na memória coletiva

Filha natural #6
Filha natural #6. Foto: Divulgação

A jornada da artista Aline Motta à procura de suas raízes e dos vestígios de seus antepassados é, sem dúvida, uma empreitada pessoal. O resultado, no entanto, diz respeito à memória coletiva de milhares de famílias brasileiras construídas (ou destruídas) no violento processo de formação do país, baseado na escravidão e na estrutura patriarcal.

“Levou um tempo até que eu adquirisse alguma maturidade e centramento psíquico para lidar com questões tão profundas e difíceis que dizem respeito a minha própria história e família”, conta a artista em entrevista à ARTE!Brasileiros. Esse tempo de maturação incluiu não só alguns primeiros trabalhos artísticos que tratavam de outros temas, realizados especialmente a partir do início desta década, mas também uma vasta trajetória como continuísta de cinema, iniciada em 2001.

Foi a partir de 2016, quando teve o projeto Pontes sobre Abismos selecionado pelo programa Rumos, do Itaú Cultural, que Motta, hoje aos 45 anos, passou a se dedicar em tempo integral aos trabalhos autorais, com uma produção multimídia que não deixou de lado o cinema, mas se desdobrou também em instalações, fotografias, textos, publicações e performances.

Além do projeto para o Rumos, obras como (Outros) Fundamentos, Se o Mar Tivesse Varandas, Filha Natural e Jogo da Memória – este último, vencedor da Bolsa ZUM do IMS e ainda em desenvolvimento – levaram a artista a diversas cidades do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia e a travessias além-mar para Portugal, Serra Leoa e Nigéria. E aprofundaram, de diferentes modos, uma pesquisa sobre a história familiar de Motta e, ao mesmo tempo, sobre a herança africana na formação do Brasil.

No último mês de setembro a artista foi agraciada, ao lado de Dalton Paula, Dora Longo Bahia, Ismael Monticelli e Rodrigo Bueno, com o Prêmio Marcantonio Vilaça, em sua 7a edição. Neste contexto, a ARTE!Brasileiros conversou com Motta sobre sua trajetória e produção. Leia abaixo.

Pontes sobre Abismos #8
Pontes sobre Abismos #8. Foto: Divulgação

ARTE!✱Seu trabalho parece ter caminhado, ao longo dos anos, de modo mais contundente para discussões sociais e políticas. Elas não estavam ausentes anteriormente, mas pareciam menos explícitas do que as preocupações formais e de linguagem. Faz sentido pensar assim? Como você enxerga essa sua trajetória?

Aline Motta — Certamente discussões em torno de questões raciais foram ganhando corpo no meu trabalho paulatinamente, à medida que eu me sentia mais confiante e preparada para abordar esse assunto com o rigor e pesquisa que eu julgava necessários. Isso levou um tempo até que eu adquirisse alguma maturidade e centramento psíquico para lidar com questões tão profundas e difíceis que dizem respeito a minha própria história e família.

ARTE!✱ – Através de uma pesquisa pessoal, sobre memória familiar, você trata também de um vasto universo da memória coletiva, que tem a ver com as violências históricas na formação do Brasil, com a escravidão, com o patriarcado. Queria que contasse um pouco sobre essa pesquisa e sobre o que descobriu a partir dela.

A pesquisa se iniciou tendo como base a genealogia da minha própria família, no caso eu sou fruto de um casamento interracial. Logo ficou evidente que a pesquisa genealógica sobre os familiares brancos poderia continuar ad infinitum, já que muitos eram primos e se casaram entre si, em consonância com os arranjos comuns em que se formaram muitas famílias de origem portuguesa no Brasil. Já em relação à família negra, precisei procurar em lugares não tão óbvios, mas encontrei, por exemplo, farta documentação sobre a escravidão no Vale do Paraíba, indo contra a ideia de que esses papéis foram queimados. Não foram. Então, é urgente que se dê visibilidade a essa documentação e se façam estudos críticos da iconografia, principalmente a do século XIX, para que ninguém mais possa se sentir no direito de propagar inverdades ou minimizar os efeitos da escravidão em nosso país.

Filha natural #5
Filha natural #5. Foto: Divulgação

ARTE!✱ – Em uma entrevista, você afirmou que somos um país violentamente racista e que poucas medidas reparatórias foram implantadas ao longo do tempo. Até que ponto você diria que a arte pode ter também um papel reparatório, seja no sentido de “fazer justiça” ou no caminho mais de cura?

Talvez um trabalho em artes visuais possa despertar em um determinado público algumas conexões profundas, que podem levar a algum entendimento acerca de traumas pessoais, familiares, coletivos. Ainda assim é algo restrito e as artes visuais ainda são um campo muito elitista. Ou seja, falar em cura não dá conta dos complexos modos de ser e estar no mundo que precisamos enfrentar cotidianamente, muitas vezes abraçando uma série de contradições apenas para nos manter vivas ou nos comportar como é esperado de nós. Em relação ao conceito de “justiça”, sou bastante cética, já que a todo momento precisamos explicar o óbvio em relação a medidas reparatórias como cotas raciais, por exemplo, e mesmo assim essas poucas medidas são duramente contestadas.

ARTE!✱ – Em seus trabalhos que lidam com memória, é notável também o lugar que assumem as “lacunas” e o “apagamento”. De que modo você lida com essas lacunas?

A partir do momento em que surgem lacunas, cabe à nossa imaginação criar um passado e um futuro para essa falta.

ARTE!✱ – Até que ponto você diria que o apagamento e a manipulação da história e da memória são causadores (ou os perpetuadores) de violências e desigualdades no Brasil ainda hoje?

O modo proposital como esse apagamento é feito cotidianamente em nossa sociedade é só mais um fator que explica porque certas famílias continuam mandando nesse país desde as capitanias hereditárias.

Filha natural #6
Filha natural #6. Foto: Divulgação

ARTE!✱ – Tanto no que se refere ao racismo quanto ao machismo, dois temas muito presentes em seu trabalho, parece haver um quadro bastante complexo na sociedade brasileira hoje. Se de um lado os movimentos negros e feministas ganharam força e protagonismo, de outro vemos um movimento conservador de forte perfil machista e racista tendo também cada vez mais espaço. Como você enxerga esse momento?

Espero que esses movimentos conservadores que, na verdade, atentam contra a vida – ao fim e ao cabo são discursos de morte –, voltem-se contra si mesmos. Perceba que a cultura negra em nosso país é uma cultura de resistência, portanto de afirmação da vida e de emancipação do ser, através de processos vividos coletivamente. Isso vai na direção contrária destes movimentos de motivação profundamente individualista, narcisista, militarmente hierarquizada, que não levam em conta a vida em comum.

ARTE!✱ – Em seus trabalhos você se utiliza de diferentes linguagens e suportes – fotografia, vídeo, texto, performance, documentos. Queria que contasse um pouco como se dá esse trabalho. Normalmente, surgem primeiro os temas a serem trabalhados, os suportes, ou cada caso é diferente um do outro?

Eu acho que os trabalhos são verdadeiramente interdisciplinares, congregando vários campos de estudo e saberes artísticos, refletindo a minha formação um pouco fora dos padrões e que também não segue uma linearidade. Então, é natural para mim que os trabalhos se desdobrem em vários suportes ao longo de bastante tempo, o que, às vezes, me dá a sensação de que estou construindo um extenso e único trabalho.

Inhotim mostra novo fôlego ao inaugurar obras, exposição e jardim

Nova obra permanente de Robert Irwin. Foto: Leo Lara/Divulgação

No último dia 9 de novembro, em um sábado ensolarado marcado por inaugurações de obras e de um novo jardim, pela reabertura de pavilhões que estavam em manutenção e por um show ao ar livre, o clima no Instituto Inhotim era de celebração. Um enorme número de visitantes caminhava pelos vários trajetos dos 140 hectares do “parque museu” mineiro, localizado na cidade de Brumadinho, e formava filas para adentrar as galerias de arte contemporânea, os restaurantes e cafés e para conseguir lugar nos carrinhos que levam às obras mais afastadas do parque.

Não que 2019 tenha sido um período fácil para a instituição, criada pelo empresário Bernardo Paz e que completa 13 anos aberta ao público. Pelo contrário, se Inhotim já atravessara diversas crises políticas e financeiras nos últimos anos – da condenação de Paz na justiça em 2017 ao surto de febre amarela na região em 2018, que resultou em enorme queda na visitação – nada seria comparável ao rompimento da barragem da mineradora Vale no dia 25 de janeiro deste ano, que inundou grandes áreas de Brumadinho e deixou 251 mortos na região.

Se a lama não atingiu diretamente o território do instituto, afetou a vida de grande parte de seus funcionários – entre os 600 empregados diretos de Inhotim, 80% são da cidade – e causou outra drástica queda no número de visitantes, com a quase paralisação do turismo local. Para quem começou o ano neste quadro, chegar a novembro inaugurando a maior obra já construída do americano Robert Irwin, uma instalação na galeria Claudia Andujar, uma grande exposição coletiva de esculturas e reabrindo para visitação célebres obras de Matthew Barney, Tunga e Yayoi Kusama parece ser, de fato, motivo de celebração. Ainda mais considerando a rápida retomada nos números de visitação e o aumento nos valores de patrocínios e doações financeiras.

Instalação de Claudia Andujar, Leandro Lima e Gisela Motta. Foto: Leo Lara/Divulgação

Para alcançar tais resultados, Inhotim focou primeiro em campanhas de esclarecimento – “precisávamos mostrar que estávamos abertos e em pleno funcionamento”, conta o diretor-presidente do instituto, Antonio Grassi. Além disso, promoveu uma renovação institucional, com a chegada da nova diretora executiva, Renata Bittencourt, e um fortalecimento dos vínculos com a cidade de Brumadinho. O programa Nosso Inhotim, criado este ano para permitir aos moradores da cidade visitação gratuita e regular ao parque, já soma 5500 cadastrados. Grassi ressalta que o instituto contou ainda com a “sensibilização de patrocinadores e doadores”, por mais que ainda dependa de um aporte de Bernardo Paz para fechar o orçamento anual de cerca de R$ 34 milhões.

“A ideia de regeneração é muito cara hoje a Brumadinho, tanto no sentido do meio ambiente, físico, como também emocional, em uma cidade que foi atingida por essa tragédia”, afirma Bittencourt. “E além do nosso compromisso com a arte contemporânea, existe esse Inhotim que é símbolo de regeneração do meio ambiente, especialmente lembrando que toda essa área que é hoje um jardim botânico era área desmatada, de pasto ou usada para transporte de minérios”. Deste modo, afirma Bittencourt, além de espaço cultural, Inhotim também se consolida cada vez mais como “local de encontro, de paz e de cura”.

Inaugurações

Maior destaque entre as novidades, a obra permanente de Robert Irwin, hoje aos 91 anos, dá sequência ao trabalho de um dos artistas pioneiros na criação de ambientes imersivos que proporcionam experiências multissensoriais. No ponto mais alto do parque, a escultura octogonal de concreto, aço e vidro – com 6,3 metros de altura por 14,6 de diâmetro – cria, a partir da luz do sol que transpassa o vidro esverdeado, uma espécie de pintura que se desloca pelo chão e paredes. Ao lado da também grandiosa Bean Drop, de Chris Burden, trata-se de mais um trabalho que revela um Inhotim de realizações ambiciosas. “É uma obra muito sensível e que também fala desse instituto que viabiliza, que materializa projetos que são audaciosos, por vezes sonhados por décadas pelos artistas e que aqui encontram condições para serem realizadas”, diz Bittencourt.

A nova exposição temporária, na Galeria Mata, partiu da circunstância da inauguração do trabalho de Irwin para debater questões sobre a escultura contemporânea, tais como abstração e tridimensionalidade, uso das matérias primas e ressignificação de objetos cotidianos. Fazem parte da mostra os artistas brasileiros Alexandre da Cunha, Iran do Espírito Santo, José Damasceno, Laura Vinci, Marcius Galan e Sara Ramo.

Trabalho de Alexandre da Cunha na exposição “Visão Geral”. Foto: Leo Lara/ Divulgação

No pavilhão dedicado à obra de Claudia Andujar, com suas marcantes séries de fotografias feitas entre os povos Yanomami na Amazônia, uma nova videoinstalação feita por Gisela Motta e Leandro Lima inserem o trabalho de Andujar em um campo ainda não explorado pela artista. Em uma sala escura, uma foto de 1976 de uma maloca pegando fogo parece ganhar cor e vida com a projeção feita através de um filtro vermelho e uma camada de água em movimento. Com a chama em permanente movimento, a obra, intitulada Yano-a, transmite uma ideia de suspensão no tempo, de algo que queima eternamente, e acende o sempre atual debate sobre a causa indígena.

O novo jardim, por sua vez, intitulado Sombra e Água Fresca e com mais de 3 hectares de área, é o maior dos jardins do parque e tem paisagismo assinado por Pedro Nehring. Com cerca de 700 espécies de plantas nativas e exóticas – entre elas 100 espécies de árvores frutíferas – e um trecho de mata fechada ao lado de um riacho, o espaço também dialoga com a ideia de cura, segundo Bittencourt.

Assim, um trabalho de reestruturação financeira e fortalecimento de vínculos com a comunidade local, associado às ideias de regeneração e cura, pautam o trabalho de Inhotim em um ano difícil não só pelo desastre em Brumadinho, mas também pelos constantes ataques à cultura por parte do governo federal – incluindo casos de censura que voltam a assombrar o país. Como ressalta Grassi, “nossa instituição preza e foca seu trabalho na defesa da liberdade de expressão. Isso é um bem do qual não se pode abrir mão. E claro, como OSCIP (organização da sociedade civil de interesse público), nós temos a obrigação de estar abertos e dispostos a dialogar”.

Por fim, após listar com otimismo uma série de shows e novos projetos planejados para o ano de 2020 (incluindo a abertura de uma galeria dedicada à obra da japonesa Yayoi Kusama), Grassi conclui ressaltando sua preocupação com o cenário: “A gente acompanha o panorama com muita atenção, e com certa tensão, e torce para que as coisas possam se desenvolver cumprindo os ritos constitucionais, da liberdade de expressão, da valorização da arte. É claro que esse quadro todo é muito preocupante, e que não é uma coisa só do Brasil. Por isso, afirmar o papel fundamental da cultura e da arte, num momento de muita incompreensão, é para nós uma missão”.

*O jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim

Celebrações de centenário de León Ferrari têm início em Berlim

León Ferrari, obra da série "Brailles y relecturas de la Biblia"

“Uma das grandes vozes internacionais do continente latino-americano”, assim diz o texto de apresentação da exposição TOASTED ANGELS, SOUNDS OF STEEL (Anjos Torrados, Som de Aço, em tradução livre), individual de León Ferrari na KOW Galerie, em Berlim. A exposição que tem abertura em 23 de novembro marca o começo das homenagens ao artista argentino que completaria 100 anos em 2020.

Falecido em 2013, em Buenos Aires, aos 93 anos, Ferrari foi um artista provocador, que iniciou sua carreira em 1955, considerando “a história da civilização ocidental como uma história de violência institucional globalizada”. Apesar de aclamado na Bienal de Veneza de 2007, na qual recebeu o Leão de Ouro, o artista ainda é pouco conhecido na Alemanha. Desta forma, a KOW Galerie recebe um panorama significativo da produção do artista, um dos nomes mais importantes das artes visuais na Argentina.

Serão apresentadas obras como La Civilización Occidental y Cristiana (1965), que faz uma reflexão crítica à Guerra do Vietnã e as relações de poder em um vínculo entre política e religião. A mostra abarca esculturas, litografias e desenhos, formatos nos quais León trabalhou uma linguagem também abstrata e conceitual. Inclui-se também uma escultura sonora.

A exposição em Berlim se estende até o dia 3 de fevereiro. Também em solo paulistano, onde Ferrari se exilou entre as décadas de 70 e 80, há uma exposição do artista: Nós não sabíamos, na Pinacoteca de São Paulo, estará aberta ao público até 16 de fevereiro e reúne 94 obras do artista que pertencem ao acervo do museu.

Vendo e entrevendo Cildo Meireles

"Missão/Missões (Como Construir Catedrais)", (1987/2019). Foto: Carol Mendonça/ Divulgação
À frente, “Olvido” (1987-1989). Ao fundo, “Entrevendo” (1970/1994). Foto: Everton Ballardin/ Divulgação

Na vasta e diversa obra de Cildo Meireles, se há construção, há também desconstrução; se há realidade, há ilusão; se há visibilidade, há o que está oculto; se há razão, há loucura; se há o afeto, existe o trauma; se há afirmações, existe o mistério; se há ordem, ela mesma pode gerar o caos; se há formalismo, há abstração; onde há caminho, há o desvio; no circuito, curto-circuito; se há vastidão, há também o gueto; se há versão, há subversão; se há equilíbrio, ele é tenso; e se há violência, há resistência. Não se trata necessariamente de oposições, muito menos de incompatibilidades, mas de perceber que na contundente produção do artista carioca não há verdades fáceis e únicas, e que os caminhos óbvios e mais usuais estão sempre sendo desafiados – as coisas nem sempre são o que parecem.

Deste modo, quem visitar Entrevendo, no Sesc Pompeia, uma das maiores mostras já realizadas de Cildo Meireles, 71, vai se deparar com paradoxos, ambiguidades, ironias, contrastes e inquietações que percorrem as cerca de 150 obras da exposição, curada por Júlia Rebouças e Diego Matos. Nos trabalhos em variados suportes, linguagens e escalas, espalhados pelos vastos espaços desenhados por Lina Bo Bardi, o artista apresenta uma produção que ativa, amplia e embaralha os sentidos, como explica Rebouças. “É um projeto que trata da ideia de sentido a partir de suas múltiplas definições. Pensando não só nessas capacidades perceptivas ligadas ao tato, audição, visão, olfato etc., mas também pensando em sentido como medida, como direção, como equilíbrio, como tino. E é muito importante entender que na obra do Cildo essas formas de percepção do mundo estão aí se afirmando, mas estão também se contradizendo, se desafiando”, diz ela.

Entrevendo, obra que dá título à mostra, propõe que o público coloque na boca duas pedras de gelo, uma doce e uma salgada, adentre uma grande instalação cilíndrica e caminhe em direção a uma fonte de ar quente. O trabalho, projetado em 1970 e realizado pela primeira vez em 1994, aciona no próprio corpo do visitante diferentes sensações e formas de compreensão ao lidar com os contrastes entre doce e salgado, quente e frio, claro e escuro. “E curiosamente é um trabalho que exige muito pouco da visão. A ideia de que a visão é o sentido primordial da experiência artística é muito desafiada na obra do Cildo”, afirma Rebouças. O artista concorda: “No início do século passado, Marcel Duchamp já falava da intenção de libertar a arte apenas do domínio retiniano. Aqui no Brasil, a partir dos anos 1950, sobretudo a partir do neoconcretismo, isso se tornou uma coisa muito importante. Exercitar essa plurisensorialidade passou a ser uma especificidade da produção brasileira a partir do Oiticica, da Lygia Clark… E algumas das minhas peças também lidam com isso”.

“Eureka/Blindhotland” (1970-1975). Foto Carol Mendonça/ Divulgação

Os contrastes, ambiguidades, paradoxos ou subversões, que se mostram também convites à imaginação, são notáveis ainda em outras obras que, por vezes, explicitam em seus próprios títulos essas características. Seja em Espelho Cego (1970), feito de uma massa cinza e disforme sem reflexo; Descala (2003), com escadas disfuncionais; Volumes Virtuais (1968-969), em desenhos que apresentam volumes sem fisicalidade; Esfera Invisível (2012), com uma caixa de alumínio que, quando aberta, sugere uma esfera pela ausência interna de material; Obscura Luz (1982), em que uma sombra forma o desenho de uma lâmpada; na série de notas ou moedas de zero, que questionam a relação entre valor real e simbólico e explicitam que o valor estampado no dinheiro é uma abstração; ou ainda em obras como A Menor Distância entre Dois Pontos é uma Curva (1976) e nos trabalhos da série Arte Física (1969).

A série Blindhotland (“terraquentecega” em tradução livre), por sua vez, com três trabalhos na mostra, confunde o visitante quando sua visão é “traída” pela aparência dos objetos. Na célebre Eureka/Blindhotland (1970-1975), por exemplo, dezenas de bolas de mesmo tamanho, cor e forma – espalhadas para serem manipuladas pelo público – apresentam pesos sensivelmente diferentes; em Blindhotland/Gueto, de outro modo, bolas de tamanhos diferentes apresentam o mesmo peso, outra vez criando uma espécie de confusão cognitiva que desafia os sentidos. Assim como elas, várias outras obras da mostra convidam o visitante à interação, à uma vivência que vem por meio da participação, dialogando com o que o Cildo chama de “caráter de sedução” das artes visuais.    

“Eu acho que tem duas características que as artes plásticas deveriam preservar, dois aspectos que não deveriam nunca ser negligenciados. Primeiro é o caráter de sedução. Acho que de certa maneira a arte conceitual, num primeiro momento, tentou limpar isso, tornar asséptico, e você perde a chance de lidar com o teor de sedução que um trabalho pode ter”, diz o artista. “E a outra coisa é que as artes plásticas são uma atividade que permite para cada ideia nova você começar do zero. Você quer fazer um filme, pode ter mil ideias e caminhos, mas aquilo sempre acaba no fotograma. Em artes plásticas não existe isso, você pode pegar qualquer coisa, de qualquer natureza, com qualquer material, usando qualquer procedimento, e você chega ao trabalho final”, afirma, explicando também que nunca teve um método definido de produção.

“Para Ser Curvada com os Olhos” (1970-1975). Foto: Carol Mendonça/ Divulgação

Veia poética e política

Tanto a sedução quanto a variedade de materiais e linguagens estão presentes também nas obras que tratam mais explicitamente de questões sociopolíticas e econômicas, e que lidam com memórias que se repetem na história brasileira. Em Missão/Missões (Como Construir Catedrais), milhares de moedas espalhadas pelo chão se conectam, por meio de uma coluna de hóstias empilhadas, aos ossos pendurados no teto, criando uma “anticatedral” que denuncia as violências da exploração colonial e sua sede por acumulação financeira. “O extermínio indígena, essa história truculenta, isso é uma questão que persiste ao longo do tempo. Quando fiz esse trabalho, em 1987, pensando nos Sete Povos das Missões do século 17, eu estava falando genericamente sobre esse processo de aniquilamento. Mas isso acaba caindo como uma luva para a situação atual”, afirma o artista, sem perder, no entanto, a esperança de que ainda possa haver justiça. “Mas cedo ou tarde a responsabilidade por esses crimes vai cair no colo dos autores.”   

O sentimento de contemporaneidade que percorre a exposição, segundo Rebouças, é consequência não só da escolha de obras que dialogam com “questões absolutamente não solucionadas”, mas é “resultado de uma produção muito complexa e contundente, dessa capacidade do Cildo de agenciar os afetos, mais do que responder a eventos específicos. Ele está respondendo a um sentimento que se compartilhou em outro momento e que se compartilha ainda hoje”. E isso não se refere apenas à história brasileira. No conjunto de obras que lidam com a estrutura colonial estão também Olvido (1987-1989), em que milhares de velas e ossos de bois cercam uma tenda indígena – ao estilo de povos norte-americanos – forrada de cédulas de dinheiro, e Amérikkka (1991/2013). Com referência já no título à organização terrorista e supremacista de extrema-direita Ku Klux Klan, a instalação cria um ambiente tenso ao colocar o público sobre ovos de madeira, no chão, e sob a mira de projéteis de armas de fogo presas ao teto.

Assim como Amérikka, a mostra apresenta uma série de outros trabalhos nunca expostos no Brasil, ou que apenas foram apresentados no país há muito tempo. Segundo Rebouças, ao menos duas gerações não tiveram contato com um recorte amplo da obra de Cildo, já que a última grande mostra do artista no Brasil percorreu o MAM do Rio e de São Paulo em 2000. Pouco afeito a montar exposições – ao menos atualmente –, Cildo diz que um dos motivos que o atraiu na proposta foi a localização da mostra no Sesc Pompeia, onde há grande circulação de pessoas de todas as classes e idades e entrada gratuita. “Essa característica do Sesc, que é um profundo respeito e interação com o entorno, com a comunidade, traz também um público que não é aquele especializado, específico das artes plásticas. E essa expansão me interessava”, ressalta.

“Missão/Missões (Como Construir Catedrais)”, (1987/2019). Foto: Carol Mendonça/ Divulgação

Paralelos com a ditadura

Não é apenas entre os dias atuais e a história colonial que Entrevendo traça paralelos. Artista de forte atuação durante os anos da ditadura militar (1964-1985), Cildo é enfático ao denunciar os abusos do atual governo federal e as semelhanças com o período militar. “Mas esse de hoje é ainda mais sinistro e mais ridículo, porque é de uma ingenuidade paradigmática”, dispara. A repetição da história nas mortes do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e da vereadora Marielle Franco, em 2018, ambos frutos de perseguições políticas, aparece nas célebres Inserções em Circuitos Ideológicos, série iniciada pelo artista em 1970 e desenvolvida até os dias de hoje.

Ao carimbar, durante a ditadura, cédulas de cruzeiro com a pergunta “Quem matou Herzog?” e, nos dias atuais, notas de real com o rosto de Marielle, Cildo propõe colocar em giro símbolos, críticas sociais ou palavras de ordem em objetos do cotidiano (o projeto começou com garrafas de Coca-Cola retornáveis), criando uma espécie de rede de contrainformação em circuitos preexistentes. Como explica o próprio artista, as Inserções têm a capacidade de dar “voz ao indivíduo diante da macroestrutura”, além de levantar questionamentos sobre a autoria artística e sobre o lugar da obra de arte, fora de ambientes especializados.

Ainda que resistente à qualquer enquadramento de seu trabalho como “arte engajada” – “tenho ojeriza por arte panfletária”, já disse certa vez – Cildo não receia destacar a preocupação política presente em sua obra. E conta como ela surgiu. “Foi em 1969 que eu me senti impelido mesmo a tratar mais contundentemente de temas políticos”, afirma, sobre o ano em que participou de uma mostra de onde seria selecionada a representação brasileira para a Bienal de Jovens de Paris. “Três horas antes da inauguração, com a exposição já montada, os agentes do DOPS cercaram o prédio do MAM do Rio e exigiram o cancelamento da exposição. Inclusive houve o início de um inquérito policial militar envolvendo todos os artistas. E eu, que naquela exposição tinha trabalhos formais, sem cunho político, a partir dali me senti quase na obrigação de me referir a essas questões políticas na minha obra”, recorda.

Obras da série dos “Zeros”. Foto: Carol Mendonça/ Divulgação

Ao relacionar o contexto atual e o período ditatorial, o artista se diz indignado com os episódios recentes de censura e com o tipo de tratamento que a cultura tem recebido do governo. “A gente está testemunhando esse tipo de coisa, um idiota como esse cara que era da Funarte (o atual secretário de cultura Roberto Alvim) vir à público dizer que a Fernanda Montenegro é sórdida e mentirosa. Ela que é uma espécie de tesouro nacional. E vem um carinha qualquer e acha que pode defecar em público. Isso se tornou a característica desse governo”. E ele conclui: “Mas tem uma lei de física que diz que à toda compressão corresponde uma explosão. Então quanto mais você espremer uma coisa, vai provocar uma reação maior, isso é uma coisa básica”.

Cildo Meireles: Entrevendo
Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, São Paulo
Até 02 de fevereiro
Entrada gratuita