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Pinacoteca revê e atualiza Beuys e Oiticica

Sala produzida pelos integrantes do Projeto Jamac

A exposição Somos muit+s: experimentos sobre coletividade retoma o pensamento de dois artistas essenciais na segunda metade do século 20, Joseph Beuys (1921–1986) e Hélio Oiticica (1937–1980) para pensar a prática artística hoje.

De certa forma, foi o que fez a 27ª Bienal de São Paulo, Como viver junto, em 2006, que partia das propostas de Oiticica para mapear produções que questionavam a representação por meio da proposta da antiarte e buscavam criar experiências coletivas.

Passados treze anos, faz sentido seguir buscando referência em Beuys e Oiticica? SIM. Nesse período, o mercado de arte no Brasil se expandiu consideravelmente, as instituições de arte da cidade se fortaleceram, e o país entrou em uma guerra contra a cultura. Assim, as as propostas radicais da arte seguem mais necessárias, mas ainda são exercidas em poucos espaços. Contudo, elas são o oxigênio do sistema e, como tal, essenciais para se entender o que pode significar a arte hoje.

Ao visitar a mostra, ouvi uma senhora de sotaque gaúcho comentar com sua amiga enquanto lia sobre o projeto de Arte Útil da artista cubana Tania Bruguera: “Não é a toa que há tanta perseguição à arte nos últimos tempos, porque o que ela [a artista] quer é mudança”, afirmou enfática, como a buscar aprovação. Impossível não ter empatia. É até um alívio perceber que, mesmo apenas em estado de potência, já que a obra de Bruguera não estava sendo ativada, ela deixava claro que o negócio ali não é apenas entretenimento.

Faz todo sentido retomar Beuys porque afinal é dele uma das mais importantes propostas artísticas, defendida desde 1977, como se lê no texto Entrada em um ser vivo, reproduzido no catálogo da mostra, que afirma: “Todo ser humano é um artista, pois ele experimenta a essência criativa em si, a essência formadora que se relaciona a todos os campos de problemas da vida, todos os campos no qual esse ser humano se movimento”.

Essa é a chave de um pensamento ainda pouco explorado, que é a compreensão que a arte é um campo amplo e que pode se desdobrar em vários outros campos. Não se trata aí de algo absolutamente inovador, já que Marcel Duchamp, muitos anos antes já defendia que jogar xadrez era arte, mas Beuys, obviamente, foi muito além.

Fundador do Partido Verde, na Alemanha, em 1980, defensor da democracia direta, ecologista, sua militância sempre foi uma faceta importante de sua atividade artística. No campo da arte, Beuys defendia a ideia de “escultura social”, uma estratégia em conciliar a prática artística com a intervenção social, como ocorreu em Sete mil Carvalhos. Em 1979, por ocasião da Documenta de Kassel, Beuys e moradores do local plantaram sete mil carvalhos, a fim de transformar a árida cidade alemã, uma das mais destruídas na Segunda Guerra Mundial. Hoje, Kassel é um exemplo de “escultura social.

Beuys também era um crítico dos sistemas de exclusão. Expulso da Universidade de Düsseldorf, em 1972, por defender que suas aulas deveriam ser assistidas por qualquer um e não apenas pelos matriculados em suas classes, ele criou a Frei Internationale Universität (Universidade Livre Internacional) junto a outros colegas, em 1983, no seu próprio ateliê, em Düsseldorf.

Como se vê, as dimensões políticas e educacionais são essenciais em seu pensamento, mas não só: ele também tinha uma visão da importância simbólica da arte e as primeiras salas de Somos muit+s comprovam essa preocupação. Além de desenhos que acompanham questões importantes em sua obra, a escultura Bomba de mel no local do trabalho, uma máquina que bombeou mel pelo museu Fridericianum ao longo dos cem dias da Documenta 6, em 1977, trata justamente da infiltração de uma substância natural, agente de fecundação, fonte de vida e imortalidade. Mel e gordura são elementos comuns da poética de Beuys. Com mel ele leva vida e adoça as instituições de arte e, nesse sentido, é de se lamentar que a obra seja vista apenas como uma escultura inanimada, sem de fato percorrer a Pinacoteca.

Contudo, a mostra proporciona outras experiências possíveis de coletividade, como na performance Ágora, de Maurício Ianês, que estará presente durante seus três meses de duração. Nela, ele cria um espaço de convivência, onde serve chá e café e permite que visitantes se manifestem pelas paredes pintadas em vermelho intenso.

Já Monica Nador e o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac) são vistos em uma parceria com o Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca com o projeto Extramuros, que existe desde 2008. Para a mostra foram realizadas oficinas de desenho e xilogravura, com os resultados parte vistos na própria mostra ou na área externa do museu.

Sala produzida pelos integrantes do Projeto Jamac

Outra experiência é a Escola de Arte Útil, de Tania Bruguera, que ocupa uma sala da mostra com uma intensa programação ao longo de suas 11 semanas de duração, entre elas um workshop de três dias com a própria artista, de 9 a 11 de outubro.

Arte Útil é um conceito desenvolvido por Bruguera nos últimos anos que defende que a arte deve ser capaz servir como ferramenta de mudança social, capaz de ser implementada através de projetos de longo prazo, tema de matéria da edição passada de ARTE!Brasileiros. Tudo a ver com as propostas de Beuys.

De Oiticica, a mostra apresenta o ambiente imersivo Apropriação (Mesa de bilhar , d’après “O café noturno de Van Gogh”), visto pela primeira vez na mostra Opinião 66, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1966. Nele, uma mesa real de bilhar está à disposição dos visitantes em um espaço com paredes vermelhas similares à pintura de Van Gogh. Assim, além de tomar café com Ianês, os visitantes podem também jogar bilhar na mostra. Aí, Oiticica inclui um elemento importante em seu trabalho que é o prazer do jogo como elemento para criação de vínculos, um conceito transformador, especialmente em contraposição às propostas germânicas de Beuys.

É do campo lúdico, aliás, a obra de Vivian Caccuri na mostra, Ode ao Triângulo, que usa o instrumento musical para criar uma instalação sobre os elementos possíveis ligados à sua forma e função, o que reverbera em diálogo com obras do acervo e ativações ao longo da mostra.

Finalmente, o octógono da Pinacoteca é ocupado por uma plataforma para demonstração, criada pelo artista Rirkrit Tiravanija, em 2000, e que vem tendo distintas versões desde então. Trata-se de um espaço livre a ser ocupado por diversas ativações ao longo da mostra, de aulas de ioga a festas de formatura. Lá o Coletivo Legítima Defesa e Aliadxs, formado com a intenção de trabalhar uma poética da imagem da negritude e seus desdobramentos sociais e históricos, apresenta Re-existência Negrx, uma imersão poético-política e mais duas performances.

Com tudo isso, Somos muit+s, com curadoria de Amanda Arantes, Fernanda Pitta e Jochen Volz coloca a Pinacoteca com um espaço vivo e que repensa a arte e seu contexto, assim como fizeram Beuys e Oiticica em seu tempo.

Cildo Meireles: a metamorfose na obra do artista

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*Por Tiago Mesquita

O livro Cildo – estudos, espaços, tempo, lançado pela Ubu Editora, retrata a trajetória de Cildo Meireles a partir de seus procedimentos. Os organizadores Diego Matos e Guilherme Wisnik reuniram cerca de quarenta trabalhos, realizados ao longo de cinquenta anos de carreira. As obras são apresentadas por meio de fotografias de exposição, notas do artista, desenhos e projetos. Conhecemos como os trabalhos vieram a público, mas também os passos de elaboração de Cildo Meireles e parte de sua repercussão crítica.

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Os vestígios nos ajudam a reconstruir os passos da obra. Acompanhamos as metamorfoses de alguns trabalhos importantes ao longo do tempo e entender a forma que eles assumem em diferentes fases: idealização, desenho, implementação e uso. A documentação veio do arquivo do próprio artista e é arrumada em ordem cronológica.

A relação dos trabalhos no livro nos faz pensar uma relação entre as ideias do que veio antes e o que veio depois. O livro é completado por uma excelente fortuna crítica que explora a interlocução da obra com a história da arte brasileira e estrangeira, a relação com diversas formas teóricas e os sentidos que a obra ganhou quando escapou da mão do seu autor.

O livro estuda as variações de algumas ideias e o sentido que elas ganham em diferentes formas de implementação inclusive. Por isso, os trabalhos mostrados não possuem nem uma técnica definida, tampouco pedem do espectador uma forma de atenção convencional. Talvez por isso trabalhos mais objetuais, como Ouro e paus, Estojos de geometria, Árvore de dinheiro, que pedem uma forma de contemplação mais tradicional, tenham ficado de fora da narrativa do livro.

A noção de estudo organiza a obra. O estudo seria um refinamento dos enigmas que colocam as convicções ideológicas em xeque. Seria um teste dessas percepções. Assim, faz lembrar o experimento científico, o teste de hipóteses.

Guy Brett, em um texto de 2005, republicado no livro, afirma que a produção brasileira da geração imediatamente anterior a Cildo Meireles confiou nos sentidos. Essa investigação da percepção foi uma maneira de encarar os limites de uma racionalidade burocrática. A arte devia se haver com esses limites e buscar uma nova relação com a vida.

Artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica se distanciam da contemplação racionalista tradicional para criar relações entre sentidos que estavam aparentemente desconectados. Assim, criaram situações ou ambientes, em que essas formas sensuais de perceber funcionam em alta voltagem. Corpo e mente, razão e sensibilidade, até mesmo as formas de convívio seriam refeitas por essas relações mais diretas e comunitárias. Essa promessa escapista, romântica e sensorial, não parece estar diante de Cildo quando ele começa os seus primeiros trabalhos.

O artista vem da geração batizada por Frederico Morais de “geração AI-5”. As promessas de modernização e a construção de uma percepção utópica não estavam no horizonte. As sensações em seu trabalho, daí em diante, se tornam espaço para a dúvida. Como aprendemos com o texto de Frederico, a experiência sensorial é colocada em dúvida. Assim, a aparência das esferas na instalação de Eureka/Blindhotland (1970-1975) é desmentida pelo seu peso e os sons amplificam o que Sônia Salzstein nomeia como confusão dos sentidos.

Por isso, o espaço dos primeiros trabalhos de Cildo, os Espaços Virtuais: Cantos (1967-8), não é expansivo. Ele se parece como um beco sem saída. O colorido de Desvio para vermelho (1967 – 84) não potencializa a percepção para além dos limites da racionalidade: o vermelho torna os objetos homogêneos. As experiências são negativas, de se procurar algo pelas sensações, pelos instrumentos da razão e não encontrar. O estudo parece esgotar esses saberes, em um exercício cético permanente da dúvida.

Cildo Meireles é provavelmente um dos artistas contemporâneos que mais influenciou a arte contemporânea engajada, à sua revelia. Diferente de muitos que usam a arte como veículo de convicções, mas é crítica ideológica, a crítica da maneira como pensamos quando acreditamos não pensar. A sua força política é a radicalização da incerteza e a indefinição. Esse livro nos traz a força da dúvida radical.

*Tiago Mesquita é graduado em Ciências Sociais e é mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Atua como professor de História da Arte na FIAM-FAAM e escreve críticas para diversos veículos de comunicação. Seu trabalho tem ênfase em arte contemporânea, arte brasileira, arte moderna, crítica de arte e pintura


The metamorphoses of the artist’s work

The theme that comes out of the work made by Cildo Meireles reveals a good key of his history

By Tiago Mesquita

 

The book Cildo – estudos, espaços, tempo (Cildo – studies, spaces, time), released by Ubu Editora, portrays the trajectory of Cildo Meireles based on his procedures. The organizers Diego Matos and Guilherme Wisnik gathered about forty works, made over fifty years of his career. The works are shown through exhibition photographs, artist’s notes, drawings and projects. We are presented to how the works came to the public, but also to the steps of Cildo Meireles’ elaboration and part of his critical repercussion.

The traces help us rebuild the steps of his work. We follow the metamorphosis of some important pieces over time and understand the form they take in different phases: idealization, design, implementation and use. The documentation came from the artist’s own file and it is arranged in chronological order.

The relation of the works in the book makes us think a connection between the ideas of what came before and what came later. The book is finished by excellent critical essays that explore the interlocution of the artwork with the history of Brazilian and foreign art, the relationship with various theoretical forms and the meanings that the work gained when it escaped the hand of its author.

The book studies the variations of some ideas and the sense they gain in different forms of implementation. Therefore, the works shown do not have a definite technique, nor do they ask the spectator for a conventional form of attention. Perhaps that is why more objectual works, such as Diamond and Clubs (Ouro e Paus), Geometry Cases (Estojos de Geometria), Money Tree (Árvore do Dinheiro), which call for a more traditional form of contemplation, have been left out of the narrative in the book.

The notion of study organizes the work. The study would be a refinement of the puzzles that question ideological convictions. It would be a test for these perceptions. Thus, it reminds one of the scientific experiment, the test of hypotheses.

Guy Brett, in a text written in 2005, republished in the book, states that the Brazilian production by the generation before Cildo Meireles relied on the senses. This investigation of perception was a way of looking at the limits of bureaucratic rationality. Art must take these limits and seek a new relationship with life.

Artists like Lygia Clark and Helio Oiticica distance themselves from traditional rationalist contemplation to create relationships between senses that were apparently disconnected. Thus, they have created situations or environments in which these sensuous ways of perceiving the works in high voltage. Body and mind, reason and sensibility, even the forms of conviviality would be remade by these more direct and communal relations. This escapist promise, romantic and sensory, does not seem to be before Cildo when he begins his first works.

The artist comes from the generation baptized by Frederico Morais as “AI-5 generation”. The promises of modernization and the construction of a utopian perception were not on the horizon. The sensations in his work, thereafter, become room for doubt. As we learn from the text of Frederico Morais, the sensory experience is called into question. Therefore, the appearance of the spheres in Eureka/Blindhotland installation (1970-1975) is denied by their weight and the sounds amplify what Sônia Salzstein names as confusion of the senses.

For this reason, the space of Cildo’s early works, Virtual Spaces: Cantos (1967-68), is not expansive. It looks like a dead end. The colouring of Deviance for Red (1967-84) does not enhance perception beyond the limits of rationality: red makes objects homogeneous. The experiences are negative, to look for something by sensations, by the instruments of reason and not find what is desired. The study seems to exhaust these knowledge, in a permanent skeptical exercise of doubt.

Cildo Meireles is problably one of the contemporary artists who most influenced the current art commited to a cause, behind his back. Unlike many others that use art as a vehicle for convictions, but it is an ideological criticism, the criticism on how we think when we believe we are not thinking. His political force is the radicalisation of the incertitude and the indetermination. This book brings us the force of the radical doubt.

Ascânio MMM surpreende em mostra na Casa Triângulo

Vista da obra de Ascânio MMM, Quasos/Prisma1 (2019). FOTO: Leonor Amarante

A escultura, por meio de rotação, mudança de escala e local, pode submeter o espectador a uma série de deslocamentos e percepções diferentes. Isso ocorre na mostra Prisma, exposição de Ascânio MMM em cartaz na galeria Casa Triângulo. Autor de um concretismo sintético, com concepção e limpeza formal impecáveis, o artista português/carioca chega aos 78 anos ainda surpreendendo. O território atual de Ascânio é constituído por materiais similares e toma um pequeno quadrado de alumínio como módulo que se repete serialmente.

A curadoria firme e afiada do crítico e arquiteto Guilherme Wisnik permite que as obras de escala superdimensionadas, e cada vez mais espaciais, tirem partido do pé direito da galeria. “A decisão foi concentrar nesta mostra os trabalhos novos, todos em alumínio, alguns deles tendo as laterais com cores e que estão na grande sala da galeria”. No entanto, ainda há obras mais antigas na pequena sala e uma na parte externa. Algumas revelam um cinetismo discreto que ocorre devido às manchas produzidas pela parede quando nos aproximamos da peça. “Trata-se de uma percepção ativa que traz uma questão fenomenológica importante. Os halos de cor são a tônica dos trabalhos novos. Um neoconcretismo evidente em que a percepção muda dependendo do lugar onde você está”. Ascânio não trabalha sob o signo da cor, mas com a evidência do espaço criando zonas de energia. Cortes laterais, vazamentos na superfície articulam esses objetos com o espaço real. A superfície não é mais local protegido da representação, mas forma de integra-se ao espaço arquitetônico.

O escultor, que já trabalhou como arquiteto, é um grande construtor capaz de falar tecnicamente sobre uma peça por longo tempo. Em seu ateliê no Rio de Janeiro, mantém quatro funcionários fixos que trabalham com ele fazendo de tudo. Não existe concepção industrial em sua produção, salvo a tinta utilizada.

O artista começou na arte em 1966, quando ainda cursava a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) no Rio de Janeiro, e depois seguiu em paralelo à sua atuação como arquiteto. “Quando cheguei ao Rio, entrei nas Belas Artes apenas para aprimorar o desenho, porque meu objetivo principal era ingressar na faculdade de arquitetura. A opção de me tornar artista veio depois que experimentei a arte”.

Seu pensamento escultórico é construtivo e contempla a engenharia, arquitetura e design. Wisnik ressalta o domínio do escultor sobre o espaço e a espacialidade. “Não é somente a espacialidade do volume, mas também a espacialidade da percepção”. Sobre a grande escultura suspensa no teto ele a compara, pelo volume que chega tão leve no chão, aos pilares do MAM do Rio.

Ascânio levou a escultura a um processo que age entre o controle e a causalidade. Esse jogo de acasos gerou, a notável surpresa da mostra, uma escultura vazada, de forma cilíndrica, lúdica, tendo uma faixa manipulável pelo espectador exatamente em sua metade, uma espécie de versão de outra escultura igual, porém rígida, ambas com espelhos no chão o que as transformam em imagem infinita. “Ver uma e outra é bom porque provoca o envenenamento dessa lógica”. Todo o trabalho de Ascânio vem da tradição construtiva brasileira mais ligada à forma rígida. “Esse amolecimento do parafuso no meio da escultura provoca reflexibilidade, torção e flexão resultantes da desconstrução da malha geométrica construída”.

Ele centraliza todas as etapas do processo de produção e diz que o percurso entre a ideia e a execução da obra se assemelha à metodologia de Alexander Calder, inventor dos móbiles, não em relação à sua obra, mas em seu procedimento. Em ambos há uma combinação entre escultura, pintura e espaço, embora seus trabalhos sejam diferentes. “Assim como eu, Calder desenha, corta a chapa, pinta, monta, tudo passa por ele.”

Aos 78 anos, ao contrário de frear seu ritmo, o escultor segue um fluxo contínuo de criação, reinventando sua obra. Para chegar às peças da exposição, ele trabalhou e retrabalhou cada uma delas por meses até ter as formas desejadas. Ascânio radicaliza a prática escultórica assumindo a obra como um instrumento e não como um fim.

Matheus Rocha Pitta expõe no Auroras, em São Paulo, e prepara exposições na Europa

A escultura "Cadeira Cativa". FOTO: Ding Musa

Com exposições marcadas nas cidades europeias de Hamburgo e da Antuérpia, respectivamente em fevereiro e abril, o artista brasileiro Matheus Rocha Pitta exibe obras no auroras, espaço de arte em São Paulo. Até 12 de outubro, as obras do artista estão em exposição junto a trabalhos de Débora Bolsoni e G. T. Pellizzi.

Matheus agora passa apenas um terço do ano no Brasil. No auroras, ficou pouco mais de duas semanas, em uma espécie de residência artística, produzindo o tríptico da série Toque de Recolher  e a escultura Cadeira Cativa. A utilização do espaço como uma residência tornou-se algo costumeiro. Ainda neste ano, fizeram o mesmo os artistas Melvin Edwards e Tom Burr.

As três peças da mostra que compõem a série Toque de Recolher já vinham sido pensadas por Matheus há algum tempo, sendo essas as primeiras a serem mostradas. São formadas por placas de cimento quadradas, recortes de jornal que o artista coleciona há alguns anos e têm as inscrições “say something”, “hear something” e “see something”. A série “busca investigar questões em torno da liberdade de expressão, da opinião e das redes sociais”, conta Matheus.

O artista comenta seu trabalho relacionado a gestos e diz que a ideia de “toque de recolher” se tornou um gesto para ele: “Eu comecei a pesquisar e vi que a origem do toque de recolher é uma coisa que vem da Idade Média… Era o toque de um sino que pedia para as pessoas apagarem o fogo antes de dormir, para que o fogo não causasse algum tipo de acidente”. Foi então que percebeu que a expressão surge com uma conotação de “cuidado”, e não uma conotação repressiva, como é comum ser associada. “Eu comecei a olhar para esse gesto muito mais num sentido de cuidado com a linguagem do que exatamente uma repressão”.

Durante esse processo, Matheus lembrou-se dos “Três Macacos Sábios”, imagem da cultura japonesa na qual macacos não veem, falam e ouvem. “A gente também associa esses macaquinhos com uma coisa cínica. Finjo que não vejo, não falo ou não ouço. E depois descobri que tem uma questão ética, de cuidado com a linguagem”, diz. “Portanto, se você ver o mal, você não fala sobre o mal. Então você não propaga ele”, complementa. Existe nisso uma ideia de que a linguagem em si carrega uma violência, então os macacos estariam “tentando cortar uma cadeia de violência que pode entrar dentro da linguagem”.

Para Cadeira Cativa, ele achou importante que as estruturas fossem todas montadas de metal. “Queria que tivesse essa coisa do metal que funciona como um esqueleto. Achei importante que esses elementos fossem, num certo sentido, sem carne”. Ele explica que existe um corpo que não está ocupando aquele espaço, ao qual ele se refere como um “fantasma do autoritarismo”. Ao mesmo tempo, demonstra, esse fantasma estaria a ponto de ser deposto, já que com a ausência dos celulares que compõem a instalação a cadeira viraria, derrubando o corpo que estivesse nela. Sendo assim, os celulares seriam o que dá holofotes para o autoritarismo.

 

 

 

Na exposição na cidade alemã, Matheus deve mostrar mais obras da série Toque de Recolher. A individual acontecerá no Kunstverein, instituição que completou 200 anos em 2017. Já na Antuérpia, na Bélgica, a exposição será num espaço sem fins lucrativos chamado C A S S T L. Para esta última, o artista ainda não tem certeza se continuará a mostrar trabalhos da nova série. Além disso, ele também produzirá uma escultura para a Usina de Arte, instituição localizada no município de Água Preta, no Pernambuco: “É um trabalho que vai lidar com uma herança de cultura popular nordestina muito forte”, ele conta, confessando bastante alegria em realizá-lo mesmo ainda em fase de pesquisa.


Débora Bolsoni, G. T. Pellizzi e Matheus Rocha Pitta
auroras: Av. São Valério, 426 – Morumbi, São Paulo
até 12 de outubro

 

 

Concreto, neoconcreto: a semantização continua

Lyz Parayzo, obra da série "Bixinha", 2022. Foto: Filipe Berndt
Lyz Parayzo, obra da série "Bixinha", 2022. Foto: Filipe Berndt

Mais do que estudar a hegemonia que as vertentes construtivas – os movimentos concreto e neoconcreto – alcançaram no âmbito da crítica e da história da arte locais, me interessa aqui arrolar alguns diálogos que certos artistas com elas propuseram travar, relativizando seus pressupostos. Trazer à tona esses desvios às “normas” concreta e neoconcreta instituídas é, a meu ver, contribuir para o debate sobre a arte no país, questionando interpretações cristalizadas.

Se o neoconcretismo deve ser entendido como uma dissidência do concretismo, ele, com certeza, não foi o único que abrigou estratégias para desconstruir os postulados daquele movimento. Por outro lado, seu caráter alternativo em relação ao concretismo não o livrou de tornar-se igualmente objeto de crítica de artistas que duvidaram da eficácia supostamente libertária de alguma de suas proposições, assim como de sua rápida ascensão à condição de “a” manifestação artística brasileira e contemporânea.

Se a expressão Popcreto foi pensada por Augusto de Campos para definir o processo de “semantização” pelo qual passava a produção de Waldemar Cordeiro – após o artista ter superado as limitações do concretismo que ele mesmo lutara para fazer imperar –, o mesmo termo pode ser usado para definir pelo menos parte da produção de outros artistas atuantes em São Paulo no início dos anos 1960. Lembro aqui de Maurício Nogueira Lima, também de passado concretista: sua obra Não entre à esquerda (1964), estruturada a partir da grade modernista tão prezada pelos concretos, surgia contaminada pelo embate político-ideológico então travado no país, colocando em xeque os postulados idealizantes do concretismo.

 

Muitas obras produzidas por Nelson Leirner naquela mesma década também poderiam ser pensadas como popcretas, uma vez que igualmente solapavam o racionalismo concreto. Como já aludiu Aracy Amaral, o uso de materiais e objetos industrializados por Leirner[1], a racionalidade “de base” percebida em seus trabalhos à época, também são afetados por uma astúcia impregnada de ironia. Aqueles seus trabalhos, ao invés de projetarem um devir para o espectador e para a sociedade, instauravam o desarranjo do aqui e do agora (Você faz parte II, de 1964, é um exemplo desta situação).

Distúrbios semelhantes no reinado das vertentes construtivas brasileiras causaram as obras produzidas por Waltercio Caldas nos anos 1970. Críticos à dimensão idealizada da arte, tão estimada pelos concretos, e à ideologia da “arte participativa” pelos neoconcretos, os “aparelhos” de Caldas significaram (e ainda significam) um divisor de águas no âmbito da arte brasileira contemporânea[2].

Durante os anos 1970 também chama a atenção a série Cartemas, de Aloisio Magalhães. Com a série, Magalhães propunha a possibilidade de qualquer pessoa produzir obras de arte a partir do rompimento do conceito tradicional de “artista”, não pelo cálculo programado dos concretos e nem pela teatralização da vida dos neoconcretos, mas por meio da manipulação de certos objetos da sociedade de massa (no caso, os cartões-postais).

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Se as obras citadas configuraram críticas às formulações concretas e neoconcretas, não se deve ignorar outros reparos que a elas foram agregados, porém sem nenhum tipo de negatividade, pelo contrário. Refiro-me às produções de Rubem Valentim e Emanoel Araújo que, a partir dos anos 1960, atentavam para a existência de uma inteligência construtiva no âmbito da visualidade afro-brasileira. Visualidade essa que, com sua simples presença, alargava, por sua vez, a compreensão do que poderia vir a ser aquela “vontade construtiva” no Brasil, acrescentando-lhe um tipo de experiência que até então sobrevivia à margem da arte brasileira branca e hegemônica.

Porém, esse outro caminho apontado pelas obras de Valentim e Araújo parece não ter extrapolado os limites das produções de ambos. Morto Rubem Valentim, sua obra permanece à espera não apenas de estudiosos que se debrucem sobre suas potencialidades de sentido[3], mas, igualmente outros artistas que a adotem como parâmetro, quer positivo, quer negativo (não importa). Hoje em dia, ao que parece, essa vertente se processa apenas na continuidade da produção de Emanoel Araújo, sempre atingindo momentos significativos de interesse estético e artístico.

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A crítica às vertentes construtivas que Nelson Leirner produziu nos anos 1960 não foi um ato único em sua carreira. Contra o processo de transformação daquelas vertentes em balizas e parâmetros para a arte brasileira, nos anos 1990 o artista produziu uma série intitulada Construtivismo rural, composta por obras que refaziam, em couro bovino, obras emblemáticas daquelas vertentes. Passados vinte anos, elas ainda são significativas por duas razões:

1 – Os movimentos concreto e neoconcreto estabilizaram-se no topo do panteão da arte local;

2 – A associação entre aquelas vertentes e o couro bovino seria uma alegoria da possível convergência entre a arte e o grande capital do país? Ou seja: o agronegócio, além de pop, poderia ser popcreto também?

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Neste inventário interessam também as produções de três artistas: Luiz Hermano, Shirley Paes Leme e Gustavo Rezende que, entre o final dos anos 1990 e início do novo século, desenvolveram produções que lidavam com os limites, tanto das vertentes construtivas (e não apenas aquelas aclimatadas no Brasil) como também de determinadas poéticas individuais delas derivadas. São do final dos anos 1990 as séries de trabalhos de Hermano e Paes Leme, em que os artistas questionam algumas das propostas construtivas, a partir de obras que, ao solaparem a configuração perfeita do cubo e outros poliedros, questionam a racionalidade que os celebra. A lógica “industrial” entrelaçada àquela “artesanal” sintetizam as contradições do país, entre o projetar para o novo e o mover-se no arcaico.

Gustavo Rezende, por sua vez, em 2000, produziu algumas obras em que, ao problematizar uma das ferramentas principais do pensamento plástico construtivo – o módulo –, “semantiza” a tradição construtiva local a partir de um sarcasmo para além da mera ironia. Neste sentido, vale a pena rever suas obras Hero e Taj Mahal e a possibilidade do amor na era do cubo epistemológico (duas versões) – esta última tendo como módulo uma caixa de Prozac.

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Recentemente, a artista Lyz Parayzo desenvolve suas Bixinhas, transformando os Bichos de Lygia Clark – produzidos para a relação pacífica entre espectador e obra de arte – em armas de ataque. Suas Bixinhas, por sua vez, misturam-se às outras obras da artista, belos e perigosos adornos para seduzir e se proteger dos protagonistas da cultura transfóbica do Rio de Janeiro.

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Fechando esse arrolamento, destacam-se as produções de dois artistas mais recentemente introduzidos na corrente principal da arte brasileira: Rosana Paulino e Jaime Lauriano.

Em Paulino, percebe-se, desde Parede da memória (1994/2015), como ela contamina a grade modernista e sua modalidade formal mais praticada desde a pop e a minimal – obras produzidas a partir da justaposição de módulos –, introduzindo em cada elemento de Parede da memória índices de uma vivência carregada de historicidade, visíveis não apenas nas imagens usadas pela artista em cada módulo, mas também na própria construção de cada um deles. Mais recentemente, Paulino tem ido diretamente ao ponto com as séries Geometria à brasileira e A geometria brasileira chega ao paraíso tropical, ambas de 2018. Nessas colagens/monotipias em impressões digitais, a artista “semantiza” a ordem concretista/neoconcretista, impregnando-a de imagens oriundas da flora, da fauna e do universo de pessoas que um dia viveram escravizadas no Brasil.

Por sua vez, desde 2017 Jaime Lauriano desenvolve uma série intitulada Experiência concreta, colagens a partir de vários materiais e suportes. Em Experiência concreta #7, por exemplo, emula soluções concreta e/ou neoconcreta para discutir a história dos povos negros escravizados. Em Experiência concreta #1, 2017, o artista, ao operar sobre a foto da performance Diálogos de mãos (1966), de Lygia Clark, traz outra possibilidade para a “semantização” de imagens-emblemas do neoconcretismo.

Ao finalizar esse arrolamento atentando para o fato de que os três últimos artistas comentados provém de universos até há pouco tempo distantes do universo das artes visuais do Brasil. Lyz Parayzo é uma artista trans, Rosana Paulino e Jaime Lauriano são artistas afrodescendentes.

Nesta década, os três conseguiram forçar as portas do ambiente artístico local, mobilizados não apenas pela potência de suas produções, mas também pelo caráter novidadeiro do mercado e – não podemos esquecer – pelo clima de revisionismo histórico, de tolerância e acolhimento do “outro” em que vivemos no Brasil nos últimos anos. Mas, apesar da aparente absorção de suas produções, a pesada carga de conteúdo que elas trouxeram para dentro de uma história da arte apenas preocupada com a busca da depuração formal, da expressão do “eu” do artista – ou ainda como pura vivência –, não foi ainda totalmente digerida.

As histórias que esses três artistas contam, apesar de aceitas, incomodam. As críticas negativas aos cânones da arte brasileira contemporânea também. E a pergunta que fica é esta: nesses tempos mais turvos em que adentramos hoje, essas proposições continuarão sendo toleradas?

De qualquer maneira, o arrolamento acima (apesar de seu caráter lacunar) demonstra como é possível traçar uma história da arte contemporânea no Brasil na qual predomina o caráter dissidente ou alheio a dogmas. Agora é ver se essa história terá forças para continuar.


[1]Arte paulistana (1998). IN AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio. Artigos e ensaios. São Paulo: Editora 34, 2006, vol. 3 p. 303.

[2] – Sobre esses trabalhos de Waltercio Caldas, ler: BRITO, Ronaldo. Waltercio Caldas Jr. Aparelhos. Rio de Janeiro:  GBM Editoria de Arte, 1979.

[3] – Um primeiro e grande passo neste sentido foi dado pelo MASP que, no segundo semestre de 2018, realizou a mostra Rubem Valentim: Construções afro-atlânticas, que apresentou ao público um importante panorama da obra do artista. Acompanhava a mostra um catálogo em que foram reunidos alguns dos principais textos escritos sobre a obra do artista durante sua vida e, ao mesmo tempo, ensaios inéditos escritos por novos estudiosos.

Flávio de Carvalho: uma experimentação permanente

OAntropófago Ideal, em cartaz na Galeria Almeida e Dale, vem suprir essa ausência, apresentando um panorama amplo de seu trabalho, tangenciando as principais questões norteadoras de sua produção. Concebida originalmente pela curadora Kiki Mazuchelli para introduzir a obra de Carvalho ao público inglês, a mostra – que na versão brasileira pôde agregar um número maior de trabalhos – possui uma clara vocação didática, mostrando suas várias facetas, numa articulação ao mesmo tempo cronológica e de linguagem. O alentado catálogo, ricamente ilustrado, com cinco textos analíticos e um resumo cronológico (cuja versão em inglês é a primeira publicação sobre o autor nesta língua) também auxilia nesse esforço de traçar um panorama mais completo de sua produção.

Adotando uma montagem despojada, a exposição apresenta ao visitante um volume bastante denso de pinturas e desenhos. Um dos pontos altos é o grande painel de retratos realizados por ele ao longo de décadas, que testemunha seu grande apreço pela figura humana, dedicando-se quase que exclusivamente aos retratos e nus. Seu interesse não era pela fisionomia mas pelo aspecto psicológico do retratado, o que torna sua obra próxima das vertentes surrealistas e, posteriormente, expressionistas. A mostra também traz à tona experiências desenvolvidas por ele nos anos 1970, utilizando tinta fosforescente que brilha sob luz negra, reforçando seu interesse pela pesquisa de novos meios e materiais. Carvalho pintou e escreveu a vida inteira. E há, mesmo em seus trabalhos mais revolucionários, muitas vezes associados a um temperamento impulsivo, uma base teórica e uma reflexão conceitual aguda, lembra Kiki. Em diferentes momentos, e lançando mão de estratégias distintas (arquitetura, teatro, ação performática), o artista demonstra como se antecipa, e de forma bastante precoce, ao estado geral das artes no País. “Seus projetos de cunho conceitual atestam seu extraordinário feito de expandir o campo da arte para além de territórios e formas conhecidos, ampliando assim a própria definição daquilo que pode ser considerado arte”, explica a curadora.

Tais momentos de grande potência criativa, muitos deles efêmeros ou não realizados, estão representados na mostra por meio de uma farta documentação. Carvalho foi, por exemplo, pioneiro dentre os primeiros modernistas da arquitetura paulista e conquistou a admiração de vanguardistas como Mário e Oswald de Andrade com o projeto que apresentou em concurso realizado para o Palácio do Governo de São Paulo em 1927, sob o sugestivo pseudônimo de Eficácia. Em 1931, realiza Experiência n. 2, um ato contundente contra falsa moral católica, andando provocativamente na contramão de uma procissão de Corpus Christi com a cabeça coberta por uma boina, sendo quase linchado pela população. Na Experiência n. 3, realizada quase trinta anos depois, atinge em cheio a moral patriarcal quando decide desfilar pelas ruas da cidade usando o New Look, traje que havia desenvolvido como roupa ideal para os homens, trocando o tradicional terno e gravata por uma saia plissada, uma blusa de tecido leve, bufante, e uma meia arrastão, para esconder as varizes.

Em diálogo com seu trabalho mais plástico, a diversidade de experiências e o caráter muitas vezes rebelde e performático de sua obra, difícil de ser traduzida em elementos expositivos por seu caráter efêmero e conceitual, torna-se mais concreto. As réplicas das máscaras usadas na peça O Bailado do Deus Morto (originalmente escrita em 1931) e reencenada pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona em algumas ocasiões, inclusive no vernissage da mostra, convivem por exemplo com um seleto conjunto de pinturas também dos anos 1930, logo na abertura da exposição.

É impressionante sua capacidade de subverter padrões e tentar estabelecer novas bases de reflexão sobre o lugar do homem e da arte no mundo. Não tinha medo do combate. Desafiava a sociedade, se colocava contra a hipocrisia moralista de uma sociedade extremamente religiosa. “A vida inteira ele se interessou por dois campos do conhecimento a psicanálise, relativamente nova naquele momento, e a etnologia”, explica Kiki. É pela confluência desses dois campos, por um desejo permanente de tentar entender o mundo a partir de comportamentos construídos desde os tempos ancestrais, que a curadora interpreta sua produção bastante diversa.

Outro aspecto interessante da seleção é a ênfase que ela coloca na ampla rede social do artista, que de certa forma contraria a ideia corrente de que Carvalho era um homem solitário, marginalizado. De família abastada, com muitos contatos no meio artístico e social de São Paulo, ele mantinha estreitas relações com o círculo dos modernistas de primeira geração (o próprio título da mostra, Antropófago Ideal, retoma uma alcunha elogiosa que lhe foi atribuída por Oswald de Andrade) e participou ativamente de ações para aglutinação do meio artístico, como a fundação do Clube dos Artistas Modernos (CAM).

Berlim – Depois da Inglaterra, onde o artista viveu entre 1914 e 1922 mas onde seu trabalho nunca havia sido exposto antes, será a vez do público alemão conhecer mais de perto sua obra, cujo caráter disruptivo, experimental e crítico terá uma importância central na Bienal de Berlim do ano que vem. “Seu interesse pela psicologia das massas (Freud) nos permite analisar ideias de pátria, fanatismo religioso, o medo, a organização das multidões, linchamentos, fake news e corpos dissidentes no espaço público”, afirma Lisette Lagnado, uma das curadoras do evento. “Para nós, Flávio é um anti-herói”, sintetiza ela.

Mostra 3M de Arte reflete sobre “outros mundo possíveis” no Largo da Batata

Mostra 3M no Largo da Batata. Foto? André Veloso

Entre os dias 28 de setembro e 27 de outubro, o Largo da Batata é palco de mais uma Mostra 3M de Arte. Escolhidos por meio de edital, os expositores desta nona edição do evento são os artistas MINIMUM (David Paz e Patricia Passos), Lucimélia Romão, Projeto Matilha (Fafi Prado e Pedro Guimarães), Naine Terena e Renato Atuat.

A mostra, aberta ao público em área de grande circulação da cidade, se propõe a “impulsionar a produção artística nacional e gerar reflexões sobre temas contemporâneos relevantes”, segundo texto de apresentação. Com a temática “Manifestos por outros mundos possíveis”, a ideia é “dar voz e contemplar pessoas que encorajam e têm uma luta de afirmação de grupos que são minorizados”.

Mostra 3M no Largo da Batata. Foto? André Veloso

Com participantes de Minas Gerais, Ceará e Mato Grosso, a edição busca abrir espaço para a produção artística de fora do eixo Rio-São Paulo. Segundo o texto de divulgação, “a Mostra prioriza as diversidades étnicas para dialogar com todos, visando se expressar dentro da arte contemporânea e debater, de maneira poética, um novo mundo para além do político, social e econômico.

9a Mostra 3M de Arte
Largo da Batata – São Paulo
Até 27 de outubro

Cildo Meireles: Entrevendo

Com cerca de 150 obras produzidas desde os anos 1960 até os dias atuais, Entrevendo, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma das mais completas exposições já realizadas do artista carioca Cildo Meireles. Com curadoria de Júlia Rebouças e Diego Matos, a mostra parte da ideia polissêmica de “sentido” e apresenta obras nos mais variados suportes e escalas, de grandes instalações a pequenos desenhos.

Entrevendo ocupa mais de 3.000 m2 da unidade projetada por Lina Bo Bardi – desde a área de convivência até o galpão e o deck – e leva o nome da instalação projetada pelo artista em 1970 e realizada pela primeira vez em 1994. ARTE!Brasileiros entrevistou Cildo Meireles e a curadora Júlia Rebouças na véspera da abertura da mostra. Assista ao vídeo, por Coil Lopes e Marcos Grinspum Ferraz.

What an oblivion!

Gervane de Paula, "Arte aqui eu mato", 2016. Foto: Karina Bacci.

For medical science and, more recently, neuroscience, in a very simplistic way, memory involves complex processes by which the individual encodes, retains and stores, and ultimately retrieves information.  When retrieving the information, two mechanisms are important: rescue and recognition, which involve comparing old and new stimuli.  This would help the mechanism to avoid false memories.

Nevertheless, at the end of the nineteenth century, with the advent of Freudian studies, the memory device gained other contours.  Freud introduces the importance of remembering and forgetting as a focus on treating patients, as opposed to a mechanical theory of memory.  Memories would be countered by opposing forces, those seeking memory as it was supposed to be and those exerting resistance, producing a “falsification in memory.”

Mechanisms of the psychic apparatus – displacement, repression, refusal of memory traces – will form part of this “falsification of memory”.

Memory will play a fundamental role throughout psychoanalytic theory.

In 1914, Freud writes the text entitled Remembering, Repeating, and Elaborating, where he articulates more precisely the mechanisms of the memory / forgetfulness binomial, and adds yet another application to psychotherapeutic practice.  Freud introduces the “transference” and the importance of the psychoanalyst in the process of working with the patient’s memories, with his memory.  At the same time, he perceives, in the “repetition” of patients’ unconscious psychic traits, acts and representations, an intention or way of remembering.  It creates, in some way, a “new memory” of what one “does not want to remember”.

The content of this repetition is all inhibitions, pathological features and their symptoms.  Lacan, in turn, in the Freudian line, says: “The analysis has announced to us that there is a knowledge that is not known.”  The purpose of the analysis would be to enable the truth of the subject to emerge.

But the human being is built on the relationship with the other, socially established, and in a symbolic order that precedes the subject itself.  A psychic or memory device is never alone.  It is from the findings throughout psychoanalytic theory that we can also consider Freud’s theory of memory as a theory of “social memory.”

Today’s contemporary challenges require new avenues of research.  Experts from different disciplines, for example, set up the Graduate Program in Social Memory of the Federal University of the State of Rio de Janeiro (UNIRIO), where they investigate the concept of memory inserted in a field of struggles and power relations, configuring  a continuous clash between remembering and forgetting, understanding “social memory” as an inter or transdisciplinary field.  In the early twentieth century, social memory was understood as the study of the value system that unified certain social, religious, class, and territorial groups.

But now these issues are totally subverted by technology, migrations, gender issues, information overload, media, etc.  “Researchers in the field of memory, including our students, raise questions that cannot always be answered with the traditional concepts of this field of study: questions relating to intangible heritage, the new uses of language, the crisis of institutions, the  new strategies of resistance, subjectivity and artistic creation ”, say Jô Gondar and Vera Dodebei in the presentation of the book O que é memória social?  (Contra Capa, 2005).

Today we are witnessing facts and statements from various sectors of our society that are interested in not remembering, social groups that, on the contrary, make a point of forgetting.

Art, as we are tired of saying, is not dissociated from the social body and, in this edition, allows these issues to appear as concerns in the textual or visual representations, in the debates, interviews and analyzes that our collaborators found in the latter.  period.

Institutions are looking to look at their archives to talk about this.  Artists, historians, and archives are searching through documents and photographs of the past for things not to be remembered and why.  The montages are concerned with preserving sound effects and readability to improve visitor comprehension.  Art allows us to build a “fighting memory” against forgetting and barbarism.

collaborators | page 10

issue 48 september october 2019  artebrasileiros.com.br

Alexia Tala, Chilean curator and critic, she is the artistic director of Plataforma Atacama and currently works as the chief curator of the 22nd Paiz Art Biennial in Guatemala.  She was co–curator of the 8th Mercosur Biennial and the 4th Polygraphic Triennial of San Juan, Puerto Rico, among others.  In this issue of ARTE!Brasileiros, she interviews the artist Randolfo Lamounier.

Fabio Cypriano, art critic and journalist, he is the current coordinator of the Journalism course at PUC–SP and is part of the editorial board of ARTE!Brasileiros. For this edition, he interviewed the new IMS artistic director, João Fernandes, and wrote about the Vaivém show, the work of the duo Bárbara Wagner and Benjamin de Burca and the conversation between Djamila Ribeiro and Grada Kilomba.

Marcos Grinspum Ferraz is a journalist.  Graduated in Social Sciences from USP, worked between 2009 and 2012 at the newspaper Folha de S.Paulo and between 2012 and 2017 at Editora Brasileiros.  He returned to the ARTE!Brasileiros team in 2019 and in this issue he signs an interview with photographer João Pina and article about the Meta–Arquivo show.

Jamyle Rkain is a journalist, graduated from Mackenzie Presbyterian University.  In 2016 and 2017, s he dedicated herself to the magazine CULTURA!Brasileiros and since the beginning of 2018 has been working as a reporter for ARTE!Brasileiros.  In this issue, she writes about the 36th Panorama da Arte Brasileira, ArtRio, the AI–5 50 anos book and the International Seminar Art as Worldbuilding.

Enelito Cruz, graphic designer, head of art at ARTE!Brasileiros since 2012, he has a degree in Computer Science and Mathematics, but switched software and numbers to graphic arts.  He worked for 16 years at Istoé magazine and followed the evolution of the computer graphics process.  Also part of the magazine Vero and MRS Editorial.

New collaboration platforms for contemporary art seek to revise Biennials

Christian Boltanski, "Soy de... / I am from", 2019. Obra que reproduz histórias de imigrantes.

ARTE!Brasileiros: Now that BIENALSUR is already completing its second edition, better explain how this project started?

Diana Wechsler: BIENALSUR emerged in 2015 from a series of dialogues within a public university, UNTREF (National University Tres de Febrero) in Buenos Aires, Argentina. It was a dialogue between two different disciplines, the sociology of international relations and the study of the sociology of culture and the history of art. Dialogues that were born from the beginning between Aníbal Jozami, rector of UNTREF, and me.

From the beginning we had a critical eye on the way in which the [socio–economic–cultural] exchange takes place between those countries that are commonly defined as “centers” and those others that, within the instituted scheme of sharing the world, recognize themselves as “peripheries”.

Focusing on the terrain of art and culture provides a privileged platform for observing the way these exchanges take place and certainly a fertile ground for thinking and suggesting revisions. Thus, after studying circuits pre–established by the international biennials since the late twentieth century, how to establish curatorship, determine themes, “marks of the identity of the biennial format”, we think of trying to deconstruct them and rehearse others, keeping the name of biennial, because it is a form of easy identification.

What exactly is the differential of this platform in relation to the other Biennials?

BIENALSUR does not focus on a city. You choose to work simultaneously and in tune with various cities in different countries and continents. In a way, this dispersion seeks to build a new cartography, a global territory that surpasses borders without neglecting each other’s identities. Seeking to include diversity and different voices.

Another difference is that we do not work with a single curator, but with a board of international collaborators, a way to disable a certain authoritarianism or a predetermined theme. We open–call, receive hundreds of projects from well–known and otherwise established artists, and from there we select and build converging cores. This year emerged, from countless of these proposals, themes that presented synergy.

We managed to get some cities to align conceptually through, for example, the “Ways of Viewing” or “Memories and Forgetting” axis, others on the theme “Transits, Migrations and Exiles”. The work of Brazilian artist Rosângela Rennó – the installation Good Apples, Bad Apples, mounted at MUNTREF – as well as that of Betsabé Romero, form part of the “Memories and Forgetfulness” axis, but also intersect with the problematic of “Monumento / Anti –monument”. An artist proposes his project and is selected, from there we think about his work and see which institution or city it can work best.

For example, Colombian artist Iván Argote had proposed his “Children’s Activism Workshop”, an experiment he had carried forward in France. As BIENALSUR, we asked if he would be interested in setting up the project in Benin, Africa, to be carried out with one of our partners, the Zinsou Foundation, who became interested because he works with projects that are very community–oriented. It was a success and gave powerful and moving results.

Another similar case was that of Uruguayan artist Paola Monzillo who entered Marrakesh through a first residency and a show later at the MACCAL Annual Program, which eventually incorporated her work into the collection.

It is a practical way to contribute to the cultural integration of the countries participating in the platform, the network that is being built. It goes beyond the artistic process, since as a cultural project that was born in the South, it becomes an “operator” (from the singular space of culture), of international reality. The choices and exchanges are not governed by the number of audiences or the number of exhibitions that took place at the venue, but most often by their symbolic value or historical significance. For example, the show that was set up in Potosí, Bolivia, which is not a city within the traditional circuit of contemporary art, was added in this edition to the Paco Urondo Center in Buenos Aires, both working on the concept. of “friction”, whether political, aesthetic or identity.

Thus, putting on an exhibition at Rome’s MAXXII, clearly identified as a center of contemporary art, at MUNTREF in Buenos Aires or at the Colombian–Venezuelan border, as we have already done, we believe we are building new logics of production and consumption of symbolic and cultural goods.

Do you understand that you are reaching the objectives in relation to the contribution you want to bring to the contemporary art system?

Yes, BIENALSUR works in dialogue, networking and associatively. It establishes collaborative systems between artists, curators, and institutions, and these relationships have in fact grown, despite the enormous budgetary difficulties of the first edition for this