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O doutor e os monumentos

"Cena de família de Adolfo Augusto Pinto", 1891, de Almeida Jr. Foto: Divulgação

Quem já visitou a Pinacoteca de São Paulo contemplou uma das pinturas de Almeida Jr. pertencentes ao acervo: Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, óleo sobre tela de 1891. Nela estão representados um casal e cinco crianças em uma sala: dois pequenos cuidam de um bebê[1]; um garotinho examina um álbum de fotografias; a mulher ensina algum segredo de costura para uma menina enquanto o homem lê a primeira página de um jornal de engenharia com um cão deitado ao seu lado.

O ambiente que envolve aquela reunião não podia ser mais indicativo das pretensões do casal: os instrumentos musicais, os quadros na parede, o tapete, a manta, as fotografias e o álbum revelam um interior onde os proprietários aspiram gravitar em um bem viver “civilizado”, europeu. A natureza tropical, único sinal de “brasilidade” da composição, está representada pela forte luz do sol lá fora (atenuada quando entra no ambiente), e pelos índices de sua domesticação: o canteiro ladeando o muro que limita a propriedade, a pintura de paisagem sobre o piano, os vasos que decoram a sala.

O doutor Adolfo Augusto Pinto – ali retratado –, então reconhecido como um importante engenheiro na cidade de São Paulo, não pode ter sua biografia resumida apenas a essa atividade. Nascido em Itu, ex-estudante de medicina em Salvador, formado engenheiro no Rio de Janeiro e posteriormente trabalhando em alguns dos principais empreendimentos de infraestrutura que sustentavam o rápido crescimento da cidade e do Estado de São Paulo, Adolfo A. Pinto era mais do que um engenheiro bem-sucedido. Ele agia também como uma espécie de ideólogo, um “intelectual orgânico” da burguesia ilustrada do Estado, tendo como uma de suas missões colocar São Paulo como o centro inconteste do país, não apenas no plano econômico, mas também cultural e simbólico.

Católico e certo de suas convicções sobre o passado, o presente e o devir, tanto do Estado, quanto da capital de São Paulo, o engenheiro, em 1929, publicou um libreto para sensibilizar paulistanos a contribuírem para o término da construção da nova Catedral da Sé, iniciada em 1913. Nele, o engenheiro assumia-se como porta-voz daqueles que acreditavam ser a cidade a sede de uma verdadeira civilização cristã na América do Sul e a futura Catedral, o seu monumento máximo:

[…] a cidade de São Paulo, em suma, que está assim a se cobrir de todas as galas de que o progresso e a opulência são capazes de esmaltar uma grande metrópole moderna, não pode permanecer indefinidamente descoroada de seu monumento máximo, testemunho inconfundível da nobreza espiritual de sua civilização, da obra que mais pode dignificar a velha alma paulista, valendo por um perene Te Deum de ação de graças à suprema onipotência divina pelos extraordinários dons de que cumulou este abençoado recanto do Brasil […][2]

Monumento da civilização paulista, na cripta da futura Catedral, e junto aos restos mortais dos bispos locais, seriam colocados aqueles de Tibiriçá e do Regente Feijó:

[…] Se amanhã ali se erguerem os mausoléus de Tibiriçá e Feijó, bem se poderia dizer que a alma histórica de São Paulo viverá em sua Catedral. É que Tibiriçá representa não só o fator decisivo da fundação da cidade, mas também o primeiro grande ascendente dos Piratininganos, a tropa heroica das famosas bandeiras descobridoras.
E ao encerrar-se o período colonial e raiar a era da Independência […], não foi porventura a nobre figura de Feijó, uma das que mais brilharam no cenário político do Brasil?[3]

A burguesia paulistana de então não brincava em serviço: impensável “apenas” criar infraestrutura para que a cidade e o Estado se firmassem como pontos máximos do capitalismo nacional. Era necessário criar uma narrativa que justificasse a hegemonia paulista de então, enfatizando a suposta precessão de seus habitantes de antigamente na construção do Brasil – sempre sob a égide do catolicismo.

Se Feijó, um paulistano, devia ser venerado por ter lutado pela integridade do Brasil entre o primeiro e o segundo reinados, Tibiriçá – um indígena “paulista” – era o iniciador, o “grande ascendente” dos bandeirantes de São Paulo, aqueles que ampliaram o território brasileiro que Feijó manteve centralizado dentro da crise do século XIX.

***

A luta de Adolfo A. Pinto por monumentos que expressassem a visão de seu grupo sobre a história de São Paulo, constituída a partir da convergência entre a religião católica e a “tropa heroica das famosas bandeiras descobridoras”, não se restringiu à batalha pela conclusão da Nova Catedral. Antes, em 1910, membro da Comissão que escolheria o projeto de Amadeu Zani para o Monumento à Fundação de São Paulo (inaugurado em 1925, no Pátio do Colégio), é nítido seu interesse em juntar ali as figuras de Anchieta, Tibiriçá e Nóbrega, ou seja: representantes da Igreja Católica e, de novo, o “grande ascendente” dos bandeirantes[4].

O engenheiro também teria papel vital no concurso para o Monumento à Independência, situado em frente ao Museu Paulista. Em suas memórias ele informa que, como relator da Comissão encarregada dos projetos, emitiu parecer sobre eles, votando favoravelmente ao projeto vencedor, do escultor italiano Ettore Ximenez. Pinto enfatiza que propôs modificações ao projeto de Ximenez, aceitas pelo escultor:

Essa modificação consistiu em substituir dois grupos de figuras alegóricas, que decoravam os lados direito e esquerdo do corpo central do monumento […], por dois grupos de figuras históricas precursoras da Independência, representando um deles os revolucionários de Pernambuco, e outro os inconfidentes mineiros.[5]

Cioso para que os monumentos paulistas estivessem submetidos aos fatos que celebravam, Adolfo Pinto, nesse episódio, entendeu ser fundamental gravar em pedra e bronze o “processo” da independência do país, preterindo alegorias decorativas em favor dos episódios pernambucano e mineiro que culminariam, é claro, na independência ocorrida em São Paulo (e não em qualquer outro lugar do país).

Essa observância aos fatos históricos também parece ter motivado a Comissão responsável pelo já citado concurso para o Monumento à Fundação de São Paulo, a rejeitar o projeto apresentado pelo escultor brasileiro Correa Lima, rebaixando-o para o segundo:

Correa Lima […] concorreu ao certame com excelente projeto. A composição é feliz e todas as figuras são modeladas com aprimorada fatura […]. Para ser completo este projeto, só faltou que o ilustre artista lhe tivesse acentuado a individuação histórica. É que, posta de parte a figura do Bandeirante, que aliás não pertence à época em causa, não há ali nenhum traço característico, não é evocado nenhum episódio do acontecimento histórico que o monumento é destinado a comemorar – a fundação de São Paulo.[6]

A noção de que o monumento à fundação da cidade devia ser um “documento” daquele fato (uma missão impossível, como sabemos) levaria Adolfo Pinto a rebaixar o posicionamento de Correa Lima no concurso, reprovando-o, inclusive por ter colocado em seu projeto a figura do bandeirante, que não pertenceria “à época em causa”.

Tal censura ao projeto de Correa Lima absolutamente não significava que Pinto não reconhecesse a importância do bandeirante para a narrativa heroica que ajudava a construir sobre a cidade de São Paulo. Em seu discurso na abertura da Primeira Exposição Brasileira de Belas-Artes em São Paulo, em 1911, o engenheiro, após lamentar a falta de monumentos públicos no tecido urbano da cidade, salientando apenas o projeto do Monumento à Fundação de São Paulo – “condigna obra de arte em homenagem à benemérita e inolvidável memória de Anchieta, de Nóbrega, de Tibiriçá…”[7] – ele assim se manifesta sobre a necessidade de um monumento que homenageasse a figura do bandeirante:

Depois da fundação de S. Paulo, pode-se dizer que encheu a maior parte do período colonial a incomparável epopeia bandeirante. São troféus da extraordinária campanha o efetivo descobrimento do Brasil, a exploração do território em toda a sua vastidão continental, desde a costa marítima até as vertentes andinas do Amazonas, e, por fim, a formação dos primeiros núcleos interiores de vida e trabalho – tudo à custa dos mais arrojados lances de estoica bravura, empreendidos e levados a cabo por um pugilo de heróis, os mamelucos de Piratininga!
Todos nós vivemos a exalçar as lendárias arrancadas desses intrépidos “caçadores de esmeralda”, argonautas do novo mundo; o povo paulista ufana-se da mais profunda e valorosa de suas raízes étnicas; no entanto, onde se levanta o monumento público, onde a obra de arte destinada, como o selo da História, a autenticar solenemente, perpetuando na memória dos séculos, a veneranda tradição daqueles feitos sublimados?[8]

***

Como sabemos, agora em 2020 será comemorado o centenário da primeira maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, encomendada ao artista pelos então jovens intelectuais de São Paulo Oswald de Andrade, Monteiro Lobato e Menotti Del Picchia, projeto que somente seria executado a partir de 1936, sendo inaugurado em 1953[9].

“Monumento às Bandeiras”, de Victor Brecheret. Foto: Divulgação

Relata a tradição historiográfica modernista que a encomenda teria surgido como a reação desses intelectuais à ousadia da colônia portuguesa de São Paulo, que se propunha oferecer à cidade um monumento em homenagem aos bandeirantes, ligando irremediavelmente a história daqueles supostos heróis a Portugal[10]. Portanto, da maneira como foi e é narrada, a necessidade de ereção de um monumento que louvasse o “passado bandeirante” paulista teria surgido como uma reação modernista à empáfia dos portugueses então residentes na cidade.

Ao construir tal versão, no entanto, essa historiografia deixou de lado outro projeto de monumento às bandeiras comissionado pelo Estado ao escultor italiano residente em São Paulo, Nicola Rollo, ainda em 1920, que deveria ficar situado em frente ao Museu Paulista, entre o edifício da instituição e o Monumento à Independência.

Por sua vez, em frente a esse, era ideia de Afonso de E. Taunay, diretor do Museu Paulista, mandar erigir um monumento em homenagem à proclamação da República, conferindo àquela avenida o papel de simbolizar o “fato” de que, de São Paulo, teriam partido os paulistas para conquistar o território brasileiro, sua independência e posterior República.[11] Como se percebe, tal projeto possuía o mesmo substrato ideológico das demandas de Adolfo Augusto Pinto.

Somando essas questões, conclui-se que a demanda por um monumento que louvasse a história das bandeiras paulistas, não se iniciou propriamente com o embate entre a colônia portuguesa de São Paulo e os modernistas, repletos de gás nacionalista, às vésperas das comemorações do centenário da independência do país, em 1922. Ela vem de antes: passa pelo projeto de Rollo e volta pelo menos a 1911, quando Adolfo A. Pinto, como porta-voz dos paulistas bem-postos e bem situados economicamente, clama pela necessidade de se erigir na cidade um monumento que louvasse os bandeirantes.

Quais as razões que teriam levado a historiografia modernista a apagar ou, pelo menos, colocar em segundo plano tanto o projeto de Rollo quanto as demandas anteriores, aqui comentadas? De início eu diria que, frente à realidade do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, no Parque Ibirapuera, Marta Rossetti e outros pesquisadores tiveram o cuidado de buscarem apenas a história da obra desse escultor, sem se preocuparem com outras possíveis evidências de demandas e projetos anteriores ou contemporâneos àquele do escultor[12].

Por outro lado, não se deve esquecer também que, se existe o mito do bandeirante paulista, os pesquisadores “históricos”, aqueles comprometidos com os primeiros relatos sobre o modernismo de São Paulo, foram responsáveis pela criação de outro mito: justamente aquele dos intelectuais e artistas comprometidos com aquele movimento, vistos como jovens intrépidos que começaram uma revolução do nada, numa São Paulo despossuída de um debate cultural e artístico preexistente. Uma narrativa que deixa de lado um ponto fundamental, ou seja, aquele que demonstra terem sido os modernistas, por origem ou por adesão, partidários da elite econômica e cultural que dava as cartas na cidade no início do século XX.

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As tentativas de homenagear os bandeirantes formaram, de fato, uma demanda que uniu modernistas e passadistas de São Paulo, levando à ereção do Monumento às Bandeiras, a partir de 1936, num outro momento da história de São Paulo e do país. Sua inauguração, em 1953 – iniciando as comemorações do IV Centenário da Fundação de São Paulo, que ocorreria no ano seguinte –, por sua vez, levou-o a transformar-se em um dos grandes símbolos da cidade e do Estado, festejado, tanto pelas elites modernas e passadistas, como por vários artistas, e por grande parte da população.

Em 2016, no entanto, o artista Jaime Lauriano apresentou a obra Monumento às Bandeiras, uma miniatura do monumento de Brecheret colocada sobre um tijolo. A miniatura, fundida em latão e cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas (dados que constam explícitos em sua ficha de identificação), conferem e reforçam um aspecto evidente à obra: aquele tijolo encimado pela réplica do Monumento, depositado no chão da sala de exposição, atua como uma arma de ataque, a resposta possível de membros de comunidades marginalizadas à truculência policial.

Monumento às Bandeiras, 2016, Jaime Lauriano. Foto: Filipe Berndt/ Divulgação

Sem querer circunscrever a potência alusiva da obra de Lauriano a um único significado, me parece claro que, se para muitos, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, significou a homenagem máxima dos paulistas a seus ancestrais, Monumento às Bandeiras, de Jaime, surge como índice de uma mudança de percepção sobre o que pode ter sido a experiência bandeirista entre nós, a partir da visão de segmentos até então marginalizados da população local, que percebem o Monumento ali no Parque Ibirapuera como o símbolo do genocídio cometido há séculos por setores da elite contra as populações indígenas e pretas.

Se, para Adolfo A. Pinto, um monumento aos bandeirantes seria uma homenagem àquele “pugilo de heróis”, para Jaime Lauriano, o seu Monumento às Bandeiras é:

[…] uma arma para se atirar contra os policiais que, junto com os grandes agropecuaristas são os novos bandeirantes, a meu ver, é claro […]. Para mim o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, é um totem à barbárie. Um monumento à violência que estripa a terra brasilis, desde sua invenção. Para mim é um ídolo fálico que a todo momento nos lembra, ou relembra, que a construção do Brasil é uma construção de machos brancos, que chegavam violentando quem se opusesse à sua pulsão de desejo […].[13]

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Com sua maquete primeira completando cem anos, agora em 2020, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, continua sendo o resultado em granito de uma demanda antiga de parte da população de São Paulo para homenagear seus ancestrais tornados míticos. Ao mesmo tempo, e para muitos, ele é o símbolo da barbárie que fundou o Estado brasileiro.

Como reagiria o dr. Augusto A. Pinto frente a essa divergência? Continuaria tranquilamente lendo seu jornal especializado, satisfeito com suas certezas, enquanto, com sua esposa e filhos, repisava os estereótipos de uma família burguesa, branca e feliz? E como ficamos nós, seus pósteros, neste futuro da cidade de Augusto A. Pinto? Continuaremos absortos em nós mesmos e alheios às demandas que chegam das ruas?

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[1] – Especula-se sobre a representação desse bebê, o quinto filho do casal Generosa e Adolfo Augusto Pinto, e batizado com o mesmo nome do pai. Na tela, sua pele escura levantou algumas hipóteses: seria ele filho ilegítimo de Adolfo Augusto, seria uma criança adotada? A jovem pesquisadora Natália Cristina de A. Gomes, em seu trabalho Cena de família de Adolfo Augusto Pinto: um estudo sobre o retrato coletivo de Almeida Jr. (TCC, Unifesp, 2016) chama a atenção para o fato de que a pele escura do bebê pode ter sido causada por algum processo de deterioração da própria pintura (observado em outros segmentos da mesma), hipótese mais plausível, uma vez que, em nenhum outro documento consultado ficou estabelecido a origem afro-brasileira de Adolfo Augusto Pinto Filho.

[2] – PINTO, Adolfo A. A Cathedral de São Paulo. 1929. São Paulo: Melhoramentos de São Paulo. S.d. s. pag.

[3] – Idem.

[4] – Sobre o assunto, consultar o relatório da Comissão constituída para o Monumento, da qual Adolfo A. Pinto foi o relator (também faziam parte da Comissão: Claudio Rossi e Ricardo Severo): “Monumento comemorativo da fundação de São Paulo”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 294.

[5] – PINTO, Adolfo Augusto. Minha vida (memórias de um engenheiro paulista). Prefácio e Notas: Hélio Damante. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1970, pág. 129.

[6] – “Monumento comemorativo da fundação de São Paulo”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 303.

[7] – “A Cultura Artística”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 318.

[8] – Idem.

[9] – Sobre o assunto ler, entre outros: BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret. História de um Monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985.

[10] – Idem.

[11] – Sobre Nicola Rollo, consultar: KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo. Dissertação de Mestrado. ECA USP, 2001. Sobre o Monumento à Independência: MONTEIRO, Michelli Cristine S. São Paulo na disputa pelo passado: o Monumento à Independência de Ettore Ximenes. São Paulo. Tese de Doutorado. FAU USP, 2017.

[12] – Vale ressaltar que a pesquisadora Aracy Amaral, em seu livro Artes Plásticas na Semana de 22 (2ª. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1972, pág. 65 e segs.), cita o projeto do Monumento às Bandeiras, de Nicola Rollo.

[13] – Depoimento do artista ao autor, em 28 de março de 2017. Publicado em: “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós” in CHIARELLI, Tadeu (cur.). Metrópole: experiência Paulistana. Catálogo da exposição homônima. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017, pág.26.

A realidade escancarada na ficção de Guerreiro do Divino Amor

Studo para uma Cosmogonia Supercomplexa Metropolitana Expandida
"Studo para uma Cosmogonia Supercomplexa Metropolitana Expandida", 2017, Painel de backlight animado, 200 X 105cm

As Superficções concebidas por Guerreiro do Divino Amor poderiam também ser chamadas, segundo ele mesmo, de hiper-realistas, neorrealistas ou documentários. Pois através delas, na série de trabalhos intitulada Atlas Superficcional Mundial, o artista de 36 anos, nascido na Suíça e radicado no Rio, trás à tona algumas das temáticas mais profundas e complexas de nossa sociedade, tanto geopolíticas quanto referentes ao imaginário coletivo. Assuntos atuais – e nada ficcionais – como a atuação dos poderes políticos, religiosos, midiáticos e do marketing, as desigualdades sociais, a violência do Estado e as estratégias de embranquecimento da população.

Em vídeos que se desdobram em painéis, revistas e outros suportes, Guerreiro apresenta os universos superficcionais de cada cidade ou região em que trabalha, sob uma perspectiva apocalíptica e a constatação de que vivemos em guerra. De 2005 para cá já foram imersões em Bruxelas, Rio, São Paulo, MG e Brasília. O artista não teme “dar nome aos bois” quando estampa nos vídeos, “como totens”, rostos de figuras poderosas como Silvio Santos, Doria, Bonner, Eduardo Cunha, Malafaia e o pastor Davi Miranda. Chegou a ser processado pela filha deste último, mas absolvido “em uma sentença inclusive muito bonita. Um alívio, porque hoje em dia não se sabe o que esperar da justiça”.

Com uma estética bastante peculiar, de cores fortes e referências ao universo da internet, o artista questiona as ideias de bom gosto e os padrões visuais hegemônicos, por vezes de modo debochado e irônico. Formado em arquitetura em Bruxelas, ele conta que achava a forma de apresentação usual dos projetos, tudo meio cinza e neutro, “uma cafonice”. Preferiu retomar suas referências de infância e adolescência, de novelas e videoclipes a programas da Xuxa – “acho que o pop mexe mais com o coração, tem esse impacto direto e mais abrangente” –, e aprofundar “a pesquisa da estética como ficção, ao observar como cada segmento social cria uma estética ficcional que carrega consigo códigos bem definidos”.

Seu Atlas deve ganhar agora episódios na Suíça, “que tem essa narrativa superficcional de perfeição”, na Itália, “à procura das raízes do cristianismo e do fascismo, muito importantes para entender São Paulo e o Sul do Brasil”, e no México. Guerreiro foi o vencedor, este ano, do Prêmio Pipa, um dos mais importantes das artes visuais no país, e concedeu entrevista à ARTE!Brasileiros.

ARTE!Brasileiros – Para começar, queria te perguntar de onde vem esse nome, Guerreiro do Divino Amor, e o que ele significa para você.

Guerreiro do Divino Amor — Guerreiro é meu sobrenome mesmo. Já Divino Amor foi uma brincadeira que surgiu quando eu era adolescente e meu pai namorava uma pastora. Ela queria me colocar para dentro da igreja, e foi um pouco uma provocação, eu queria montar uma banda de heavy metal para atuar na igreja. Nunca aconteceu, mas gostei muito do nome, Guerreiro do Divino Amor. Depois foi ganhando muitos significados ligados ao meu trabalho e à vida, até que hoje ele representa como que minha missão de vida.

Nunca conseguiram te cooptar para a igreja?

Não. Na verdade eu fiquei muito curioso com aquele universo, neopentecostal, que eu não conhecia bem. Foi um dos motores do meu trabalho, tentar entender aquela fé arrebatadora e ao mesmo tempo com uma estética muito forte, colorida. Era envolvente.

Me parece que várias dessas suas vivências e experiências de vida estão muito presentes no seu trabalho. Você já falou de outra parte da família que vem de uma aristocracia decadente, além de sua formação na Europa…

Sim, acho que foi um motor. Morava na Europa, num contexto onde todos eram relativamente misturados, e volta e meia frequentava a família no Brasil, uma gente profundamente racista, muito fúteis, mas com certo verniz culto, uma obsessão por poder, hierarquia e status e a certeza de saber que tudo e todos estão em seu devido lugar. Queria entender quais eram os mecanismos de perpetuação dessa casta que continuava vivendo na época do Brasil colônia sem ser perturbada. E também desse mundo evangélico. São mundos fechados em si, com respostas para tudo. Comecei a analisar, a cavar, e foi aparecendo como um buraco sem fundo com raízes muito antigas e profundas, lógicas de dominação complexas e perversas. O trabalho é todo de desemaranhar essas estruturas, que por serem tão antigas e familiares formam como um ecossistema, uma coisa dada, atemporal. E ver o papel das mídias, da família, das genealogias, da herança, do capital simbólico nessa manutenção. O SuperRio, segundo capítulo do Atlas, é um retrato mais direto dessa tentativa de entender o que se encontrava ao meu redor e a relação com fenômenos mais globais de marketing, lógicas corporativas, e como isso influi na mente, na forma de agir das pessoas, quais são suas estratégias e como isso se traduz em todas as escalas, da individual à geopolítica. Depois fui explorando outros fenômenos adjacentes. Assim começou, ao tentar entender esses universos e os cruzamentos entre eles, e até hoje trabalho essas questões.

E como é que essas Superficções, esses capítulos, se relacionam entre si, neste grande Atlas Mundial?

No começo cada projeto tinha sua independência, explorava temáticas próprias. Só depois é que eu fui entender isso como um Atlas. São capítulos que vão se relacionando, com questões que atravessam o trabalho todo, como as ideias de império e galáxia, a guerra entre civilizações em suas diferentes facetas sociais, religiosas, econômicas, simbólicas, estéticas, as diferentes estratégias de embranquecimento da população. No primeiro capítulo, em Bruxelas, era uma coisa mais estritamente analítica. É uma cidade bastante pobre e suja para os padrões da Europa, mas com uma tentativa de se construir como cenário de cidade mundial, capital da Europa. E eu, quando estudava arquitetura, comecei a perceber muito um discurso bélico, de conquista das mentes e do espaço. Essa ideia atravessa todo o trabalho, de modos diferentes. E a ideia de superficção mesmo veio no trabalho seguinte, no Rio, que eu escrevi em 2005 e retomei em 2013, no período pré-Copa e Olimpíadas, o ápice de superficção carioca. Muitas vezes, nos meus vídeos, eu parto de filmes turísticos, propagandas, que é como a cidade quer se vender, qual ficção ela vai criar para se exportar, essa criação da imagem.

Mas você parte do que a cidade quer mostrar para expor o que a cidade não quer mostrar…

É, como são construções muito bem elaboradas e antigas procuro identificar as raízes simbólicas e históricas e as suas diferentes manifestações, de como essas ficções acabam sendo incorporadas no imaginário coletivo da cidade, e como elas agem e são instrumentalizadas nas diferentes guerras pelo poder. No caso de Minas isso também é muito forte. Minas é um pouco a “fofura encarnada”. Ninguém vai falar mal de MG, que tem aquela comida, um ideal de hospitalidade. Mas fora isso é um lugar de poder, de dinheiro, é um dos poucos estados que não tem Dia da Consciência Negra, apesar de seu passado, é tudo muito velado.

Nas superficções você trabalha com vários planos e camadas de poder que caracterizam as sociedades como política, religião, mídia, polícia, mercado. Como escolhe estes temas trabalhados?

É bem natural, chegando nos lugares e observando, sentindo, conversando. Claro que todas estas camadas estão presentes em todos os lugares, mas em cada um elas agem de uma forma diferente, com outras narrativas. Por exemplo, a religião funciona de modos distintos em cada lugar, até com construções físicas muito distintas e com estilos de pregação diferentes. Mas, no fundo, com a mesma vontade de conquista. No caso da mídia também. No Rio, por exemplo, tem uma construção midiática muito forte através tanto das novelas quanto dos noticiários policiais, criando essa narrativa esquizofrênica, representada pela rosa dos ventos no SuperRio. Em MG você vê sempre uma narrativa de uma “volta para a terra”, uma imagem mais rural, uma ideia mais de pureza, e isso é exaltado na mídia.

E seu trabalho está sempre questionando essas narrativas oficiais, trazendo coisas ocultas.

Sim, a ficção da democracia racial, por exemplo, que em cada lugar é narrada de um jeito. E é uma das ficções centrais da construção do Brasil, que serve ao apaziguamento, à exploração. Essa negação do passado escravagista. Falando de Minas de novo, que é o que está mais fresco para mim, tem toda essa instrumentalização do mito de Chica da Silva. Em todo lugar que você vai tem essa narrativa que diz “olha, tem a Chica da Silva, escrava rica, linda”. E aí parece que está tudo certo. A coisa fica mais sútil, mas talvez por isso mesmo mais perversa. Com essa camada de mel, de glacê doce.

Para além de tratar de cidades reais, surgem também muitas figuras reais. Como é que escolhe esses personagens e como eles se inserem nos trabalhos?

São ícones né? São como totens. Por exemplo, Silvio Santos, a vida dele, a trajetória dele, é como um totem de São Paulo. É a encarnação do mito da meritocracia. E trabalhando no photoshop vi que ele e João Doria tem traços muito parecidos. Então no trabalho eles se juntam, como se fossem um só. Se complementam. Porque Doria também é como uma caricatura, um arquétipo do herdeiro, do capitalismo selvagem. Você vê essas figuras e já sabe do que se trata, elas já trazem todo um universo junto. E não são fenômenos abstratos. São pessoas que estão lá agindo, um exército. Claro que têm muitas outras, é muito mais complexo que isso. 

Você disse certa vez que seu trabalho procura lidar com a complexidade do apocalipse. Também disse que o trabalho todo trata de guerra, em diferentes planos. Enfim, estamos no apocalipse? Estamos em guerra?

Existe essa percepção de que há um apocalipse, em todos os níveis, na questão dos recursos naturais por exemplo. E o trabalho tenta ver esses detalhes, como isso é uma construção, é uma guerra que vem de muito longe. No trabalho de Brasília, por exemplo, fui vendo esses ciclos, como na inauguração de Brasília reencenaram a primeira missa do Brasil, da época da conquista. É um apocalipse que vem se preparando há muitos séculos, mas agora é como se fosse o momento apoteótico, que veio para valer. E trabalhar com isso, mexer nessas coisas às vezes é assustador. Foi ficando mais nítido no decorrer dos capítulos, tendo seu ápice em Brasília, onde a pesquisa foi feita na época das eleições de 2018. Parece que os senhores escravocratas conseguiram a fórmula perfeita. A junção da força da fé com o marketing emocional e as tecnologias da informação é arrebatadora.

Ao mesmo tempo em que temos esse quadro apocalíptico, o meio artístico tem dado reconhecimento para trabalhos que lidam com questões raciais, indígenas, de gênero etc. Você acaba de ganhar o Pipa, por exemplo. É uma resistência ao apocalipse?

Acho que talvez o mundo das artes tenha despertado mais agora também porque as coisas começaram a atingir uma “branquitude” que estava tranquila, protegida, presa num romantismo. Mas tem gente que já estava acostumada com a perseguição, que tem sabedoria do que é estar em guerra. E acho que as artes agora talvez se voltem mais para estes, os que já sabem do que se trata. Quando há necessidade, tudo se aprende mais rápido.

Repasse de R$ 451 mil garante funcionamento do MAR até o fim do ano

O MAR, na Praça Mauá, Rio de Janeiro. Foto: Divulgação

Em meio a uma grave crise financeira e política que envolve o Museu de Arte do Rio (MAR) – junto a tantas outras instituições culturais da cidade e do país –, a Prefeitura do Rio repassou a quantia de R$ 451 mil para o museu carioca, garantindo seu funcionamento pelo menos até o fim deste ano.

O dinheiro depositado para o MAR garante também o fim do aviso prévio dado aos funcionários em novembro. Segundo as informações divulgadas, a pauta agora é o pagamento do R$ 1,5 milhão que ainda está atrasado e a renovação do contrato de concessão do Instituto Odeon por mais um ano.

Para 2020, o órgão já tem uma série de atividades programadas, como explicou o crítico e curador Paulo Herkenhoff em depoimento à ARTE!Brasileiros (leia aqui). Os patrocínios privados e apoios para o próximo ano – o instituto Itaú Cultural, por exemplo, além de emprestar a obra “Spider”, de Louise Bourgeois, vai aportar R$ 500 mil para a inauguração da exposição – não suprem ainda as despesas de custeio, que têm que ser garantidas pela Prefeitura.

Um ativista das cores

Color in Space and Time
Color in Space and Time. Foto Rafael Guil/Articruz S.A. Panama.

“Foi a perda de um amigo” é a frase com a qual concordam os galeristas Raquel Arnaud e Luiz Sève, que representam o artista venezuelano Carlos Cruz-Diez. Falecido em julho deste ano aos 95 anos de idade, a ideia que deixa na memória daqueles que o conheceram é de um homem que transbordou sua fé na arte, trabalhando com vigor nas decisões que envolveram o seu trabalho até o fim.

Na Galeria de Arte Ipanema, da qual Sève é proprietário, foi realizada a até então última exposição do artista no Brasil, em 2014, intitulada Um Olhar Sobre a Cor. Agora, o Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, abriu a mostra Cruz-Diez: a liberdade da cor, em 9 de novembro. A exposição é a última a ser apresentada em todo o mundo que teve a chancela do artista, que participou de todo o processo de concepção ao lado do curador Rodrigo Villela, diretor executivo e artístico da instituição paulistana.

É da coleção de Raquel Arnaud que vêm duas das quatro obras que integram a primeira sala da exposição. Em uma delas, uma pequena fisiocromia de 1965, o trabalho de Cruz-Diez ainda passava por um período pré-industrial, conta Villela. “Depois o trabalho dele vai se tornando muito industrial. Ele tinha essa procura de fazer com que o trabalho saísse da escala de artesão. Ele falou que não se dedicou à pintura porque a pintura tinha muito artesanato e ele queria algo que pudesse ter maior escala”, comenta o curador. Na parte externa do edifício, uma obra efêmera de grandes proporções, escolhida pelo próprio artista, também faz parte da individual.

Ambiente Cromointerferente, 1974–2019, no Museu de Arte Contemporânea-MAC cidade do Panamá. Foto: Rafael Guil/Articruz S.A. Panama

O artista foi muito assertivo naquilo que acreditava. Em texto de 1967, ao qual deu o título de Minhas Ideias Sobre a Cor, propõe o conceito de “cor autônoma”, na qual a cor não depende de forma, especificidade ou de suporte. E, desta forma, extrapola suportes e técnicas, utilizando vídeos, pinturas, instalações, fotografias e se apropriando de paredes, de ruas e até mesmo de jardins.

No mezanino da instituição, o público encontra a obra Labirinto Transcromia (1965/2017), pela primeira vez exibida no Brasil. “Ele traz para a experiência todo o aspecto de trabalho com a cor, que ele propõe, mais voltado para o corpo”, destaca o curador. A proposta é que o público caminhe entre esse labirinto de peças retangulares presas por fios de nylon e o efeito de sobreposição das cores aconteça aleatoriamente, refletida nas paredes brancas e no concreto do espaço. Essa transferência para as paredes se dá em espécies de figuras dançantes, às quais se misturam as sombras das pessoas que por ali passam, presas entre a instalação labiríntica que irradia cores. A cinética, a cromática e o geométrico do artista são completamente vivenciados na obra.

Ambiente Cromointerferente
“Labirinto Transcromia”, 1965-2017. Foto: ArtiCruz

A primeira obra no subsolo é Ambiente Cromointerferente, 1974/2019. As projeções em quatro paredes caminham de forma reta, enquanto no chão caminham para encontrar uma a outra, como se somassem, formando figuras randômicas nessas junções. O público se torna parte da obra quando as projeções recaem sobre os corpos que adentram a sala. Na sequência, vê-se duas obras efêmeras adesivadas na parede: “As obras são estáticas, mas o movimento está sempre presente na percepção do olhar”, diz Villela.

Cromossaturação criada em 1965. O ambiente é formado a partir de três espaços iluminados artificialmente, vermelho, verde e azul.

Uma das obras mais icônicas, Cromossaturação é instalada em um espaço composto de três salas onde são montadas, respectivamente, luzes vermelha, azul e verde. À medida que se anda entre elas e dependendo de onde o olhar parte, a percepção da cor sofre modificações. “É realmente uma pintura no espaço”, comenta o curador. Objetos em forma de cubos são espalhados pelo espaço também, dando uma dimensão de como as cores afetam cada uma de suas partes.
Um núcleo mais documental traz duas televisões que exibem vídeos: um com fotografias de obras em espaços público, trazendo a questão da arte envolvida com a arquitetura, e outra com depoimentos de Cruz-Diez sobre os trabalhos.

Um outro artista

A última sala da exposição abarca vinte fotografias em preto e branco tiradas por Cruz-Diez desde o início de sua carreira. Rodrigo conta que foi um desafio convencer o artista a mostrá-las junto aos outros formatos que a exposição abraça: “Conseguimos compor de uma maneira que ele ficou contente, que é ter uma separação das instalações e criar um cantinho mais íntimo para essas fotografias, não conectando com o resto da produção”. As fotografias trazem elementos tradicionais, como retratos e paisagens, evidenciando um artista jovem. “Quase que temos que fazer um exercício de abstração para pensar que é o mesmo artista”, brinca.

Represa del Guri, 1986

Alguns dos cliques de Cruz-Diez lembram Pierre Verger e até Cartier Bresson, na opinião do curador, e têm uma procura certa abstração. São imagens desde a Venezuela dos anos 50 a fotos de viagens à Espanha, que “tem uma coisa muito do calor da hora”, de acordo com Rodrigo, mas também um caráter documental evidente: “Quando eu vi essas fotos, fiquei muito impactado justamente porque não dá para imaginar que é o mesmo artista”. O curador procurou fazer uma seleção que fosse representativa de um contexto que conectasse suas diferentes abordagens da fotografia.

Rodrigo revela que o contato para a exposição foi o primeiro que teve com Cruz-Diez, apesar de já conhecer muito de sua obra. O curador ficou impressionado com a infraestrutura da equipe do artista, muito afinada entre si, com o trabalho e com o artista: “Tinha uma coisa de uma presença muito forte dele e uma clareza total”, conta ao se referir também a um “cotidiano de trabalho” vivido pelo artista mesmo com 95 anos de idade.

As fotografias ainda mostram um Cruz-Diez em relação muito afetiva com a Venezuela, para onde voltava com certa frequência, residindo na França desde a década de 60. Rodrigo comenta que ele falava muito de seu país de origem. Uma de suas maiores obras está no aeroporto Simon Bolívar, em Caracas, que se tornou ponto de partida de muitos venezuelanos devido à crise vivida no país.

“Imagined Communities”, no need to scream to be heard

Dana Awartani
instalação da obra de Dana Awartani, "I went away and forgot you. A while ago I remembered. I remembered I’d forgotten you. I was dreaming", 2017

The diversity of themes, poetics and approaches of the 21st edition of Sesc_Videobrasil is one of its highlights. There are no redundancies or overlaps between the more than 60 works selected for the show, which for the first time in history has a definite lead even before the call. Imagined Communities a motto inspired by Benedict Anderson’s work, becomes a potent but nonimposing guide that has brought together a wide range of research whose main common feature may be the delicate manner in which they deal with often dramatic issues.

Destruction, threat of extermination, distorted view of the world due to racial, economic or social prejudice are largely dealt with by the 50 artists selected by the judging committee and the 5 invited by the curator. And yet, a certain subtlety predominates in the show, a bet on the transformative power of art, which does not have to scream to be heard. Some examples clearly demonstrate this defense of utopia in the face of contemporary tragedy. Working prominently in the exhibition, the series of urban landscape photos taken by England-based Syrian Hrair Sarkissian subtly and surprisingly deals with totalitarian repressions by showing places where public executions are often made in various countries where punishment of death is state policy.

Hrair Sarkissian
Hrair Sarkissian, fotos da série “Execution Squares”, 2008

Peruvian Claudia Martínez Garay explores with a mix of subtlety and sharp aim the annihilation of indigenous ancestral culture and the effects of colonization on indigenous people. She appears in the exhibition with two works: the installation titled Somos aún! , made from the sum of a series of anthropomorphic sculptures, which mix traces of ancient cultures with a persistent defense of popular imagination, and a touching video, I Survived to you, in which close-up images are seen of the shapes of an ancient 7th-century vase of Moche civilization, famous for its pottery work, kept at the Ethnological Museum in Berlin. While getting lost in the twisting and mysterious forms of this archaeological object, the viewer hears a strange, somewhat surreal narrative, made in the first person by the vase, narrating from its making to its closure in a distant museum.

Claudia Martínez Garay
Claudia Martínez Garay, I Will Outlive You, 2017

The ancient culture of its people is also the theme of Dana Awartani’s work. In a specular relationship between video and installation, the Arabian artist makes a critical comment about the abandonment of the millenary Hejazi architecture, typical of her region until the beginning of an overwhelming modernization process that began in the 1950s. Dana covers the floor of her installation with a beautifully patterned, typically Islamic tile carpet patiently made with colored sands. The ephemerality of the composition is even more evident in the video, which shows the artist sweeping the same formation in one of the few houses with such architecture still in Saudi Arabia.

Of course the presence of the video is striking in the show, but it is by no means hegemonic. Many works combine language with other forms of expression such as painting, photography and drawing, or simply incorporate typical video procedures into works that do without moving image, as can be seen in works such as those by Brazilian André Griffo, from the Malinese. Tiécoura N’Daou and Tunisian Nidal Chamekh, who travel freely through different media to develop a work of high political resistance. In other words, the event puts us in front of a series of works that speak, in the words of artistic director Solange Farkas, “different languages ​​for very similar situations”.

Alto Amazonas Audiovisual
Alto Amazonas Audiovisual, Detalhe de “About Cameras, Spirits and Occupations: A Montage-essay Triptych”, 2018

In terms of denunciation, the highlight of the show is the work related to the indigenous population, taking from the invisibility the drama of those populations increasingly threatened by violence and that have long been relegated to a position of invisibility. Collective groups such as the Alto Amazonas Audiovisual, which brings together indigenous anthropologists and filmmakers, sew and dialogue images captured in the region. There are also historical records such as interviews made by filmmaker Andrea Tonacci with indigenous leaders in the late 1970s that only now, in 2014, were recovered and restored. But there are still in the show, and in chorus, strong warning voices about the situation of communities and groups in search of survival and affective spaces of conviviality and struggle. This effort is epitomized by the incisive action led by Mexican Teresa Margolles, one of five artists specially invited to participate in the Biennale, which denounces the brutal violence against transsexuals. The work, entitled Priscilla Present honors the stabbed transvestite a year ago in downtown São Paulo and unfolds into three different elements: performance action, embroidery and video. Or in the paintings by No Martins, who associates powerful portraits of black figures to the phrase “It is enough!”

The internationalization of Sesc_Videobrasil

With 21 editions and 36 years of existence, Sesc_Videobrasil is one of the most powerful and long-lived cultural events in the country. In the current edition, which can be seen until February 2020, at Sesc 24 de Maio, the show has made some important changes in its structure. Among them are the incorporation of a theme not only for the selection of works, but already announced before the artists registered their projects (Imagined Communities was the guiding thread adopted for the current edition); the expansion of the curatorial team; and – perhaps the most impactful of changes – the transformation of the event into a Biennial.

The term Biennial, incorporated into the title of the event that is now called the Sesc_Videobrasil Contemporary Art Biennial, is not just periodic information or a brand hit. Taking on itself as an event of its kind inserts the now biennial into a broad international agenda of contemporary art. It is a way of reaffirming itself as part of a broad and active circuit of cultural action. Brazil already has two other important Biennials, São Paulo and Mercosur, but the field of Videobrasil is well defined: it acts clearly against the hegemonic nuclei, bringing together artists and thinkers from Africa, America, the Middle East and Brazil. Caribbean “This is the place we have to research, we have to investigate,” says Solange Farkas, founder and current artistic director of the project.

Solange Farkas. Foto: Divulgação

She makes a point of stressing the importance of keeping the event always ready for adaptations. Sesc_Videobrasil has already resembled a movie show, has taken on the identity of a major festival and is now completing an important step in this slow process of moving from the black box of the movie theater to the “white cube” of the exhibition space. “The first decade was to understand video production in Brazil”, explains Solange. In the 1990s, there is a certain disappointment, a frustration of the hope that video would occupy a more significant place in the cultural scene. “We went from romanticism to pragmatism, and in the face of the realization that we were not going to occupy TV, people began to investigate and experiment more intensely with the specifics of language”.

In the wake of this process, there was an important process of internationalization, first gathering and showing in Brazil the best of the international scene and the historical basis of video art and, subsequently, making room for a young, intense, hard-to-reach production from the south. geopolitical “There was a lack of knowledge, a great ignorance about the history of the video here”, says. The result of this mapping can be measured in the archive of almost three thousand works gathered in the Videobrasil Association’s collection, available for consultation. “It is a broad material that allows us to understand this place of critical invisibility”, she adds.

According to her, the strategy of assuming itself as a specialized biennial has been drawing for three editions, when it brought Olafur Eliasson’s work to Brazil. Among the challenges facing the new model of the event, Solange cites the increase of international and local dialogues, adding groups and issues traditionally relegated to the margins. “It’s no use getting self-conscious”, she concludes.

Na ponta do lápis

Sobre o Desenho no Brasil
"Sobre o Desenho no Brasil" Claudio Mubarac (Org.) Editora Escola da Cidade, 260 Páginas - Preço R$70,00

Sobre o Desenho no Brasil, livro organizado por Claudio Mubarac e recentemente publicado pela Editora da Escola da Cidade, vem suprir uma lacuna, trazendo a reflexão sobre o desenho — que costuma ser relegada a uma posição secundária no ensino das artes no Brasil — ao lugar de protagonista. Reunindo textos esparsos, representativos de diferentes momentos históricos e um conjunto potente de imagens, a obra traz uma seleção de sete estudos sobre o tema. Esse mergulho se enriquece muito pela opção de acompanhar cada um dos ensaios com trabalhos de artistas próximos, no tempo e no estilo, dos autores das análises escritas.

A opção por mesclar imagem e texto, nesta ordem, é uma espécie de posicionamento, uma maneira de colocar em pé de igualdade o discurso teórico e o trabalho artístico. Assim, estabelecem-se diálogos instigantes entre Joachim Lebreton e Jean-Baptiste Debret; Rui Barbosa e Henrique Bernardelli; Mario de Andrade e Lasar Segall. Nos casos de Lucio Costa, Vilanova Artigas e Flavio Motta, eles são autores tanto da reflexão escrita como dos desenhos que acompanham, aprofundando ainda mais a relação inteligente entre as duas formas de expressão proposta pela obra.

A reflexão de abertura, essencial para todos que estudam a história da arte no Brasil, é o projeto detalhado apresentado por Joaquim Lebreton, chefe da Missão Francesa, em 1816 e inédito até 1958. Endereçado ao Conde da Barca, o escrito apresenta uma proposta detalhada para a fundação de um sistema de ensino no País. Trata-se na verdade de um projeto com duas bases: defende a criação de uma Escola Imperial de Belas Artes e também de um Liceu das Artes — que só viria a existir décadas depois. Ele defende a necessidade de estimular, ao mesmo tempo, a ciência do desenho como base da arte e como técnica vital para a formação de uma mão de obra capacitada.

Questões semelhantes perpassam os textos subsequentes. Os escritos de Ruy Barbosa e Lucio Costa, relacionados com projetos de reforma educacional iniciados nos anos 1880 e 1930, respectivamente, também enfatizam a necessidade de incorporar a arte e a ferramenta da ilustração, do esboço, do projeto no ensino dos jovens, habilitando-os não apenas à técnica, mas a uma sensibilidade formal, desenvolvendo uma qualidade estética cuja germinação é necessária para o progresso não só econômico, mas também cultural do país, que ansiava por uma acelerada atualização e modernização nacional.Mario de Andrade, Vilanova Artigas e Flávio Motta, os autores dos ensaios subsequentes, adotam pontos de vista diferenciados e complementares. O que fascina Mubarac no ensaio de Andrade sobre Lasar Segall é seu tom poético, sua ousadia na tentativa de esmiuçar a relação entre obra visual e escritura. “Se para Lucio Costa, rabisco não é desenho, para Mario de Andrade é”, exemplifica o artista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que há muito tempo garimpa textos e reflexões sobre o tema. “Não sou um teórico, sou um desenhista que gosta de estudar”, brinca.

O apreço à diversidade, à importância de se considerar as diferentes formas de pensar/fazer/traçar imagens dá a tônica ao ensaio de conclusão, de sua autoria, que tem como ponto de partida o esforço de síntese para uma aula sobre o desenho, proferida em 2017 na Escola da Cidade. No caso deste texto de encerramento, a seleção de trabalhos gráficos com os quais se relaciona é ainda mais ampla. Contempla ensaios visuais de oito artistas contemporâneos, com os quais o artista e professor vem mantendo há décadas uma troca intensa sobre o fazer gráfico. São eles Alberto Martins, Elisa Bracher, Ester Grinspum, José Spaniol, Madalena Hashimoto, Marco Buti, Paulo Monteiro e Paulo Pasta. A diversidade e complementariedade entre eles só faz reforçar a ideia expressa pelo autor, relativa à complexidade, centralidade e diversidade do tema, que não pode nem deve ser reduzido a um único ponto de vista, nem tampouco considerada como algo em decadência, vítima inexorável das profundas transformações na nossa cultura visual.

Apesar de diagnosticar que na segunda metade do século 20 houve um descenso da produção teórica sobre o desenho (a tarefa de reunir reflexões sobre a questão não revelou-se fácil), o século 21 aparece, segundo ele, com uma visão renovada. “Quando olho para os cursos e discursos da arte, arquitetura e design, vejo que o desenho continua firme e forte, como práxis e como reflexão”, conclui.

A dive into Ceará’s poetics

Índios e Mandacaru
Detalhe de "Índios e Mandacaru", xilogravura, 150 cm x 222 cm

ARTE!BrasileirosWhat is the history of Unifor Plástico? How does it work, how is the selection of artists performed?

Denise Mattar – The 1st Plastic Unifor opened its doors in 1973, the year the University of Fortaleza was created, showing the vocation of the Edson Queiroz Foundation and its proximity to the regional and national arts and culture. From its inception, it worked through a public notice and the works were chosen by a notorious commission in the arts field. From 2013, a more curatorial model was adopted and started to operate every two years as the Unifor.

The first two exhibitions were curated by art critic and curator Ivo Mesquita. He did, in one of the exhibitions, a tribute to Sérvulo Esmeraldo, called A Constellation for Sérvulo Esmeraldo.

When I thought about the current exhibition, focusing on a cast of Ceará artists, I was careful to select a significant number of artists, but allowing an unpolluted show. With the help of Cecilia Dedê, and together with conversations with Bitu Cassundé, from the Dragão do Mar cultural center, which has a wide knowledge of Ceará’s history, I looked at almost 100 portfolios and ended up editing approximately 25 artists.

Bluebird
Henrique Viudez, “Bluebird”, 2019, Mista sobre lona, 100 x 100 cm. Foto Ares Soares

Do you feel that the contact with these artists brought you a differential?

I have noticed for many years in the North and Northeast production. In 2012, I went to Belém and met Emmanuel Nassar, born in Capanema, Pará, with a work that impressed me deeply. In fact, being out of the Rio-São Paulo axis, artists from the North and Northeast are harmed. I knew his sparse works and not the whole work. For the first time I made an important exhibit of him at the CCBB of Rio and Brasilia and I’m sure that contributed to his visibility. I saw several exhibitions by curator Paulo Herkenhoff who, in my opinion, was of great importance to make this understanding of Brazil as a whole, donated much of his time to know these new production centers.

What caught your attention most when looking at this set?

On this occasion, what caught my attention was the repeated use of the word. I saw in the works presented a common thread: the word.

Used sporadically throughout history in paintings and tapestries, the word was incorporated into the fine arts more steadily in the early 20th century, from the modernist avant-garde. Marcel Duchamp was deep in this idea and used the term “differentiated simultaneities” to define the articulation between the verbal and visual fields. One of the artists best known for this imbrication is Leonilson, whose work belongs to this ethos. This idea gave the name to the exhibition: Simultaneity – the art with the word.

Poemetos de Memória e Sal
Rian Fontenele, “Poemetos de Memória e Sal”, 2010-2016, acrílica nanquim e pigmento sobre tela. Foto Ares Soares

Can we name some of its main features?

Some are more conceptual and others more visceral.

Francisco de Almeida has a special room. His work as a woodcutter is highly regarded. Son of a goldsmith father, embroidering mother and grandson of a lace-up grandmother, he grew up in an environment that founded his imaginary universe. Allegories, religion, a fantastic world, built by sometimes real figures: the beatos, the sertanejo man and the caatinga; sometimes for figures from the religious or magical world, such as saints and angels.

Attended university, participated in exhibitions in Fortaleza, traveled a lot, participated in the Panorama of Brazilian Art of MAM, in São Paulo, in 2005; the Valencia Biennial in 2007 and the VII Mercosur Biennial in Porto Alegre in 2009. In the words of the critic Pedro Costa: “The deal with mothers; its endless effects of engraving, inking and printing; its permanent reuse and arrangements will make Francisco de Almeida a researcher-craftsman, a recorder par excellence”.

But I would like to highlight several of the artists I chose who were the result of this dive. Henrique Viudez, a young artist, with a work of this kind that I call “more visceral”, works with painting, truck canvas and its interferences. It is more figurative and broadens research on beliefs, myths and religiosity. It also works gender issues and binary conventions male, female, with great quality of execution. It has a more allegorical work.

On the other hand, there is a very young artist, Iago Barreto, who works with the Tapebas Indians, a native indigenous society gathered in the village of Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, and which originated the municipality of the same name, in the city of Fortaleza. He is fully involved in this truly dedicated culture. He lives with the community, and in an authentic, non-marketer way as some artists end up adopting. He uses the language of the body work of the Indians at the intersection with photography, brings the Indian to the present, in his own space, but attentive to contemporary issues.

Marcados de urucum, sangue e terra
Iago Barreto, “Marcados de urucum, sangue e terra”, 2019, Foto 80 x 120 cm e depoimentos gravados

Then you have an artist like Rian Fontenele, more consolidated, with a larger work, and who, however, does not have the visibility that, in my opinion, should have.

Therefore, I also tried to show works of various aspects. Haroldo Saboia, for example, made a video showing cities in the interior of Ceará whose names are Desert, Pleasures, Mirages and Passages.

Diego de Santos presents burned shells, small sculptures, bringing the idea of ​​real estate speculation, where the advance burns the houses and the residents leave their “shell houses” leaving everything behind.

Bia de Paula too, with Every son is a motherfucker. When he began his work, he wanted to do something about his parents’ absence from home, but as he interviewed the women, he realized that this was not an issue for them. On the other hand, he found another, much richer story, the potency of these women, who had left it behind and faced life with their own strength. It has wonderful photos and testimonials.

I liked a lot of people. The Virginia Pinho that did the work on Maracanaú, where there was that necrosario who was later extinct, but who lived still there. People have bonded with that region and do not leave that place, which was a prison for them.

All the works were already existing, there was no commissioned work. Just Nivardo Victoriano, who had a smaller photo production, and then we made a suggestion to enlarge the photos. He works with pain.

What strikes me is that the production of Ceará is very poetic. All works have a concern to question the problems, the environment, the status quo, but with an unexpected poetic footprint for me. They have stories, twine, embroidery.

When I showed the works, they commented to me: “Wow, how it looks like Leonilson”. And I said, “No. It’s just that Leonilson belongs to this place”.

Marcela Cantuária: “Doe a quem doer”

Fantasmas da esperança
"Fantasmas da esperança", 2018 Foto: Vicente de Mello

*Por Clarissa Diniz

No centro da exposição SUTUR|AR LIBERT|AR   individual de Marcela Cantuária apresentada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica em julho —, estava a mandala de Tarot desenvolvida por Alejandro Jodorowsky com a intenção de dar a ver sua simultânea unidade e pluralidade: “O Tarot tem que ser visto. (…) É uma linguagem que fala do presente”1, e não do futuro.

Interpretar o Tarot é também uma terapêutica. Segundo Jodorowsky, ao nos defrontarmos com suas “imagens ricas em símbolos”, devemos “rejeitar [os significados] que são o produto da angústia e escolher os que [nos levam] para perto da consciência divina”2. É, por isso, como uma terapêutica coletiva que Marcela Cantuária tem encarado as imagens dos traumas e das feridas coloniais, elegendo, em seu vasto imaginário, aquelas às quais se dedica a interpretar, atribuindo-lhe sentidos.

Sua obra produz um imaginário singular ao intencionalmente corromper a história hegemônica e os significados por ela atribuídos às memórias coletivas. Cantuária provoca glitches e torna falhas as imagens legadas pelo mundo colonial, arregaçando o necessário espaço simbólico por onde brotam suas alegóricas pinturas. Constituídas a partir de colagens de imagens diversas, retiradas de contextos distintos e ressignificadas sob a singularidade do regime estético-político de suas pinturas, as alegorias da artista disputam a historicidade vigente, ocupando-a com heroínas, anônimos e memórias que têm sido dela programaticamente excluídas.

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“Corpo Fechado”, instalação realizada em parceria com Michelle Exu na Lapa, 2019. Foto: Vicente de Mello

Eram muitas as alegorias reunidas em SUTUR|AR LIBERT|AR.

Em volta da mandala estavam as pinturas da série Rainhas (2018) – quatro mulheres cujas potências são alegorizadas como atualização e refundação dos arquétipos das damas do Tarot. Como alegorias, sustentam-se sobre a força simbólica e social de elementos como pombos, foices, biquínis ou balaclavas, pintados, por sua vez, como partes de um regime de intensidade de cor, de matéria e de espaço que implicam, ao mesmo tempo, nossa retina, nosso corpo, nossa memória e nossa imaginação.

Às dimensões arquetípicas femininas estavam, por sua vez, combinadas alegorias de guerreiras, ativistas, mães, militantes e outras mulheres cujas vidas foram e são sinônimo de luta por justiça social e liberdade. Dentre outras, Jovita Feitosa, Juana Azurduy, Dolores Cacuango, Tránsito Amaguaña e Marielle Franco integram a série Mátria Livre (2018/19), na qual são alegorizadas através dos símbolos das lutas que encamparam. As pinturas instituem imagens nas quais essas mulheres não são índice de uma batalha perdida, mas ícones de uma territorialidade liberta e matriarcal: historicidade pautada num porvir por elas já habitado na medida em que foram suas histórias que o constituíram e que permitiram com que chegasse até aqui na forma de um futuro em luta.

Não à toa, Voltarei e serei milhões – frase do revolucionário indígena Tupac Katari – torna-se o título da pintura que Cantuária dedica a Marielle Franco, a qual, sentada numa cadeira-trono de mãe de santo que se tornou ícone dos Panteras Negras (simbolizados, por sua vez, por uma pantera aos pés da personagem central), segura a cabeça do governador Wilson Witzel numa lança enquanto, no peito, sustenta a imagem da Favela da Maré.

Do vasto conjunto de alegorias propostas por Marcela destacam-se, ainda, duas que lidam diretamente com símbolos do poder, da colonização e da nação: a cruz cristã (Jamais uma estrela na bandeira do norte, 2019) e a bandeira do Brasil (Fantasmas da esperança, 2018). Fragmentadas pela alegorização da artista, enquanto a cruz surge em partes e de cabeça para baixo, a bandeira tem seu círculo central descolado do plano da pintura, adquirindo verso e somente voltando a encaixar-se quando nosso corpo, no centro daquela espacialidade, faz coincidir as linhas de fuga da instalação. A essas estruturas decompostas, Cantuária sobrepõe imagens adversas da formação e da atualidade do Brasil, contradizendo suas interpretações e sentidos oficiais.

Voltarei e serei milhões
“Voltarei e serei milhões”, 2018, Coleção Museu da Maré. Foto: Vicente de Mello

Como também acontece nas séries de pinturas dedicadas às ditaduras na América Latina, às guerras ou ao trabalho industrial e sua relação exploratória, a pesquisa iconográfica de Marcela Cantuária encontra símbolos e imagens que, relacionados, montam as alegorias que nos advertem da coabitação de outras histórias nos interstícios da história oficial. A partir da memória de lutas passadas e da evocação das forças do porvir, elabora um imaginário cuja historicidade não se circunscreve cronológica, mas politicamente. Como alegorista, não “retrata” personagens ou “representa” momentos históricos: as matérias das obras de Cantuária são menos as imagens do que os imaginários – ambiciosa e insurgentemente – performados em suas alegorias.

Porque se fazem no âmbito dos sentidos sociais, essas pinturas são ofertadas à nossa “interpretação” à semelhança de um baralho de Tarot, desejosamente convocando-nos a lê-las para que possam, por seu turno, realizar-se. Sua força política – e socialmente mágica – é a de ser um imaginário instituinte que, ao possibilitar que reconheça a si própria a coletividade interessada e capaz de interpretá-las, institui uma espécie de comunidade semântica cujos laços sociais, políticos e estéticos são experimentados através das alegorias de Marcela Cantuária. Nossos universos simbólicos são povoados pelos imaginários que as pinturas performam e pelxs corpxs por eles imantados: diante de tanta gente e tanta voz, nos sentimos menos sós.

Enquanto institui uma comunidade com a qual podem se identificar sujeitos diversos (inclusive aqueles que ocupam posições sociais contraditórias entre si), Marcela Cantuária – que há anos milita junto às Brigadas Populares – busca pavimentar trajetórias político-econômicas singulares para sua obra, visando friccionar a cumplicidade da arte com um patrimonialismo benevolente e canibal que tudo consome porque tudo compra. Por isso, ao final de SUTUR|AR LIBERT|AR, não vender Voltarei e serei milhões para algum dos muitos colecionadores que a disputavam e, alternativamente, doá-la ao Museu da Maré, é um gesto político que enuncia uma posição compromissada com a dor e sua terapêutica para além de uma alegorização extrativista.

É o que reivindica a artista quando, depois da doação, incide sobre nossas responsabilidades quanto ao endereçamento social da arte que produzimos: «doe a quem doer».


¹Alejandro Jodorowsky sobre o Tarot de Marselha. Trecho retirado dos extras do filme A Montanha Sagrada.

²Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa. The way of Tarot: the spiritual teacher in the cards (2004). Tradução da autora.


*Clarissa Diniz é curadora e escritora. É mestre em história da arte pelo PPGArtes/UERJ e doutoranda em antropologia pelo PPGSA/UFRJ. Foi editora da revista Tatuí e publicou inúmeros textos, catálogos e livros, a exemplo de Crachá – aspectos da legitimação artística (Ed. Massangana, 2008). Curou diversas exposições e, entre 2013 e 2018, atuou no Museu de Arte do Rio – MAR, onde organizou mostras como Pernambuco Experimental (2013) e Dja Guata Porã: Rio de Janeiro indígena (2017). É professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

“Comunidades Imaginadas”, não precisa gritar para ser escutada

Dana Awartani
instalação da obra de Dana Awartani, "I went away and forgot you. A while ago I remembered. I remembered I’d forgotten you. I was dreaming", 2017

A diversidade de temas, poéticas e abordagens da 21ª edição do Videobrasil é um de seus pontos altos. Não existem redundâncias ou sobreposições entre as mais de 60 obras selecionadas para a mostra, que pela primeira vez na história conta com um fio condutor definido antes mesmo da convocatória. “Comunidades Imaginadas”, mote inspirado na obra de Benedict Anderson, torna-se um guia potente, mas não impositivo, que permitiu congregar um leque amplo de pesquisas cuja principal característica comum talvez seja a maneira delicada com que tratam de questões muitas vezes dramáticas.

Destruição, ameaça de extermínio, visão distorcida de mundo em função de preconceitos raciais, econômicos ou sociais são aspectos largamente tratados pelos 50 artistas selecionados pela comissão julgadora e pelos 5 convidados pela curadoria. E, no entanto, predomina na mostra uma certa sutileza, uma aposta na potência transformadora da arte, que não precisa gritar para ser escutada. Alguns exemplos demonstram claramente essa defesa da utopia diante da tragédia contemporânea. Trabalho com grande destaque na exposição, a série de fotos de paisagens urbanas feitas por Hrair Sarkissian, sírio radicado na Inglaterra, lida de forma sutil e surpreendente com as repressões totalitárias ao mostrar lugares onde costumam ser feitas as execuções públicas em diversos países onde a pena de morte é política de Estado.

Hrair Sarkissian
Hrair Sarkissian, fotos da série “Execution Squares”, 2008

A peruana Claudia Martínez Garay explora com um misto de sutileza e pontaria aguda o aniquilamento da cultura ancestral indígena e os efeitos da colonização sobre o povo indígena. Ela comparece na mostra com dois trabalhos: a instalação intitulada Somos aún!, feita a partir da somatória de uma série de esculturas de caráter antropomórfico, que mesclam vestígios de culturas ancestrais a uma persistente defesa do imaginário popular, e um vídeo tocante, Eu Sobreviverei a Vocês, no qual são vistas imagens em grande proximidade as formas de um antigo vaso do século 7 da civilização moche, célebre por seu trabalho em cerâmica,  guardado no Museu Etnológico de Berlim. Enquanto se perde nas formas sinuosas e misteriosas desse objeto arqueológico, o espectador escuta uma narrativa estranha, um tanto surreal, feita em primeira pessoa pelo vaso, narrando desde sua confecção até seu encerramento num museu distante.

Claudia Martínez Garay
Claudia Martínez Garay, I Will Outlive You, 2017

A cultura milenar de seu povo também é o tema do trabalho de Dana Awartani. Numa relação especular entre vídeo e instalação, a artista árabe tece um crítico comentário sobre o abandono da milenar arquitetura Hejazi, típica de sua região até o início de um processo de modernização avassalador, iniciado nos anos 1950. Dana recobre o chão de sua instalação com um tapete de belos ladrilhos com padronagem geométrica, tipicamente islâmica, feito pacientemente com areias coloridas. A efemeridade da composição fica ainda mais evidente diante do vídeo, que mostra a artista varrendo a mesma formação, numa das poucas casas com esse tipo de arquitetura ainda existentes na Arábia Saudita.

Evidentemente a presença do vídeo é marcante na mostra, mas não é de forma nenhuma hegemônica. Muitos trabalhos mesclam a linguagem com outras formas de expressão como a pintura, a fotografia e o desenho ou simplesmente incorporam procedimentos típicos do vídeo em obras que prescindem da imagem em movimento, como é possível constatar em obras como as do brasileiro André Griffo, do malinês Tiécoura N’Daou e do tunisiano Nidal Chamekh, que trafegam livremente pelos mais diferentes meios de expressão para desenvolver um trabalho de alto teor de resistência política. Em outras palavras, o evento nos coloca diante de uma série de trabalhos que falam, nas palavras da diretora artística Solange Farkas, “línguas diferentes para situações muito similares”.

Alto Amazonas Audiovisual
Alto Amazonas Audiovisual, Detalhe de “About Cameras, Spirits and Occupations: A Montage-essay Triptych”, 2018

No quesito denúncia, o ponto alto da mostra são os trabalhos relativos à população indígena, tirando da invisibilidade o drama dessas populações cada vez mais ameaçadas pela violência e que há muito são relegadas a uma posição de invisibilidade. Grupos coletivos como o Alto Amazonas Audiovisual, que congrega antropólogos e cineastas indígenas, costuram e colocam em diálogo imagens captadas na região. Há também registros históricos como as entrevistas feitas pelo cineasta Andrea Tonacci com lideranças indígenas no final dos anos 1970 e que só agora, em 2014, foram recuperadas e restauradas. Mas ainda estão presentes na mostra, e em coro, contundentes vozes de alerta sobre a situação de comunidades e grupos em busca de sobrevivência e espaços afetivos de convívio e luta. Esforço que está sintetizado na incisiva ação comandada pela mexicana Teresa Margolles, um dos cinco artistas especialmente convidados para participar da Bienal, que denuncia a brutal violência contra os transexuais. A obra, intitulada Priscila Presente homenageia a travesti assassinada a facadas há um ano atrás no centro de São Paulo e se desdobra em três diferentes elementos: ação performática, bordado e vídeo. Ou nas pinturas de No Martins, que associam potentes retratos de figuras negras à frase “Já Basta!”.

21ª edição da bienal Sesc_Videobrasil
Sesc 24 de Maio – R. 24 de Maio, 109 – República, São Paulo
Até 2 de fevereiro
Entrada gratuita

A internacionalização da Sesc_Videobrasil

Com 21 edições e 36 anos de existência, o Sesc_Videobrasil se afirma como um dos mais potentes e longevos eventos culturais do país. Na atual edição, que pode ser vista até fevereiro de 2020, no Sesc 24 de Maio, a mostra realizou algumas importantes mudanças em sua estrutura. Dentre elas, estão a incorporação de um tema não só para a seleção dos trabalhos, mas já anunciado antes que os artistas inscrevessem seus projetos (Comunidades Imaginadas foi o fio condutor adotado para a atual edição); a ampliação da equipe curatorial; e — talvez a mais impactante das alterações — a transformação do evento em uma Bienal.

O termo Bienal, incorporado ao título do evento que passa a ser chamado de Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, não é apenas uma informação de periodicidade ou um golpe de marca. Assumir-se como um evento do gênero insere a agora bienal numa ampla agenda internacional de arte contemporânea. É uma maneira de reafirmar-se como parte de um circuito amplo e ativo de ação cultural. O Brasil já possui duas outras importantes Bienais, a de São Paulo e a do Mercosul, mas o campo do Videobrasil é bem delimitado: atua de maneira clara na contramão dos núcleos hegemônicos, congregando basicamente artistas e pensadores da África, América, Oriente Médio e Caribe. “É esse o lugar que temos que pesquisar, temos que investigar”, diz Solange Farkas, idealizadora e atual diretora artística do projeto.

Solange Farkas. Foto: Divulgação

Ela faz questão de ressaltar a importância de manter o evento sempre pronto a adaptações. O Sesc_Videobrasil já se assemelhou a uma mostra de cinema, já assumiu a identidade de um grande festival e agora conclui uma etapa importante desse lento processo de sair da caixa preta da sala de cinema e ir para o “cubo branco” do espaço expositivo. “A primeira década foi para entender a produção de vídeo no Brasil”, explica Solange. Nos anos 1990, nota-se um certo desapontamento, uma frustração da esperança de que o vídeo ocuparia um espaço mais significativo no cenário cultural. “Passamos do romantismo ao pragmatismo e, diante da percepção de que não íamos ocupar a TV, as pessoas passaram a investigar e experimentar mais intensamente as especificidades da linguagem”.

Na esteira desse processo, houve um importante processo de internacionalização, primeiro reunindo e mostrando no Brasil o melhor da cena internacional e as bases históricas da videoarte e, na sequência, abrindo espaço para uma jovem e intensa produção, de difícil acesso, oriunda do sul geopolítico. “Havia um desconhecimento, uma ignorância muito grande sobre a história do vídeo aqui”, conta. O resultado desse mapeamento pode ser mensurado no arquivo de quase três mil trabalhos reunidos no acervo da Associação Videobrasil, disponível para consulta. “É um amplo material que permite entender esse lugar da invisibilidade crítica”, acrescenta.

Segundo ela, a estratégia de se assumir como uma bienal especializada vem se desenhando há três edições, quando trouxe o trabalho de Olafur Eliasson para o Brasil. Dentre os desafios que se colocam para o novo modelo do evento, Solange cita a incrementação dos diálogos internacionais e locais, agregando grupos e questões tradicionalmente relegadas à margem. “Não adianta ficar ensimesmado”, conclui.

Um mergulho na poética cearense

Índios e Mandacaru
Detalhe de "Índios e Mandacaru", xilogravura, 150 cm x 222 cm

ARTE!Brasileiros — Qual é a historia da Unifor Plástica? Como ela funciona, como se realiza a seleção de artistas?

Denise Mattar — A 1ª Unifor Plástica abriu suas portas em 1973, no ano que foi criada a Universidade de Fortaleza, mostrando já a vocação da Fundação Edson Queiroz e sua proximidade com as artes e a cultura regional e nacional. Desde seu começo, funcionou através de um edital e os trabalhos eram escolhidos por uma comissão de notório saber no campo das artes. A partir de 2013, se adotou um modelo mais curatorial e passou a funcionar a cada dois anos como Bienal Unifor Plástica.

As duas primeiras exposições foram curadas pelo crítico de arte e curador Ivo Mesquita. Ele fez, em uma das exposições, uma homenagem a Sérvulo Esmeraldo, chamada Uma Constelação para Sérvulo Esmeraldo.

Quando fui pensar a exposição atual, focando num elenco de artistas cearenses, tomei cuidado em selecionar um número expressivo de artistas, porém que permitisse uma mostra não poluída. Com auxílio de Cecilia Dedê, e junto a conversas com Bitu Cassundé, do centro cultural Dragão do Mar, que possui um amplo conhecimento da história cearense, olhei quase 100 portfólios e acabei editando aproximadamente 25 artistas.

Bluebird
Henrique Viudez, “Bluebird”, 2019, Mista sobre lona, 100 x 100 cm. Foto Ares Soares

Você sente que te trouxe um diferencial poder entrar em contato com estes artistas?

Eu reparo há muitos anos na produção do Norte e Nordeste. Em 2012, fui para Belém e conheci o Emmanuel Nassar, nascido em Capanema, no Pará, com um trabalho que me impressionou profundamente. De fato, por estar fora do eixo Rio-São Paulo, os artistas do Norte e do Nordeste ficam prejudicados. Eu conhecia obras esparsas dele e não o conjunto da obra. Fiz, pela primeira vez, uma exposição importante dele no CCBB do Rio e de Brasília e tenho certeza que isso colaborou com sua visibilidade. Vi várias exposições do curador Paulo Herkenhoff que, na minha opinião, foi de enorme importância para fazer esse entendimento do Brasil como um todo, doou muito do seu tempo em conhecer esses novos centros de produção. 

O que te chamou mais a atenção ao olhar esse conjunto?

Nesta oportunidade, o que me chamou a atenção foi o uso reiterado da palavra. Vi, nas obras apresentadas, um fio condutor: a palavra.

Empregada esporadicamente, ao longo da história, em pinturas e tapeçarias, a palavra foi incorporada às artes plásticas de maneira mais constante no inicio do século 20, a partir das vanguardas modernistas. Marcel Duchamp foi fundo nessa ideia e usava o termo “simultaneidades diferenciadas” para definir a articulação entre os campos verbal e visual. Um dos artistas mais conhecidos por esse imbricamento é o conterrâneo Leonilson, cuja obra pertence a esse ethos. Essa ideia acabou dando o nome à exposição: Simultaneidade – a arte com a palavra.

Poemetos de Memória e Sal
Rian Fontenele, “Poemetos de Memória e Sal”, 2010-2016, acrílica nanquim e pigmento sobre tela. Foto Ares Soares

Podemos citar alguns e suas características principais?

Alguns são mais conceituais e outros mais viscerais. Francisco de Almeida tem uma sala especial. Seu trabalho como xilogravurista é extremamente conceituado. Filho de pai ourives, mãe bordadeira e neto de avó rendeira, cresceu num ambiente que fundou seu universo imagético. Alegorias, religião, um mundo fantástico, construído por figuras por vezes reais: os beatos, o homem sertanejo e a caatinga; ora por figuras do mundo religioso ou mágico, como santos e anjos.

Frequentou a universidade, participou de exposições em Fortaleza, viajou muito, participou do Panorama da Arte Brasileira do MAM, em São Paulo, em 2005; da Bienal de Valência, em 2007, e da VII Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, em 2009. Nas palavras do crítico Pedro Costa: “O trato com matrizes; seus infinitos efeitos de gravação, entintagem e impressão; sua permanente reutilização e arranjos, vão fazer de Francisco de Almeida um pesquisador-artesão, um gravador por excelência”.

Mas gostaria de destacar vários dos artistas que escolhi e que foram resultado deste mergulho. Henrique Viudez, um artista jovem, com um trabalho desta vertente que chamo de “mais visceral”, trabalha com pintura, lona de caminhão e suas interferências. É mais figurativo e amplia a pesquisa sobre crenças, mitos e religiosidade. Trabalha ainda as questões de gênero e convenções binárias masculino, feminino, com grande qualidade de execução. Tem um trabalho mais alegórico.

Por outro lado, tem um artista muito jovem, Iago Barreto, que trabalha com os índios Tapebas, uma sociedade indígena nativa reunida na Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, e que deu origem ao município do mesmo nome, na cidade de Fortaleza. Ele está inteiramente envolvido nessa cultura, realmente dedicado. Mora com a comunidade, e de uma forma autêntica, não de escolha marqueteira como alguns artistas acabam adotando. Ele usa a linguagem do trabalho corporal dos índios na interseção com a fotografia, traz o índio para o presente, no seu próprio espaço, porém atento às questões contemporâneas.

Marcados de urucum, sangue e terra
Iago Barreto, “Marcados de urucum, sangue e terra”, 2019, Foto 80 x 120 cm e depoimentos gravados

Aí você tem um artista como Rian Fontenele, mais consolidado, com uma obra maior, e que, no entanto, não tem a visibilidade que, na minha opinião, deveria ter.

Por isso, também procurei mostrar trabalhos de várias vertentes. Haroldo Saboia, por exemplo, fez um vídeo onde mostra cidades no interior do Ceará cujos nomes são Deserto, Prazeres, Miragens e Passagens.

Diego de Santos apresenta conchas queimadas, pequenas esculturas, trazendo a ideia da especulação imobiliária, onde o avanço queima as casas e os moradores saem da suas “casas-conchas” deixando tudo para trás.

A Bia de Paula também, com Todo filho é filho da mãe. Quando, começou seu trabalho, queria fazer algo sobre a ausência dos pais nos lares, porém, à medida que foi entrevistando as mulheres, percebeu que para elas esta não era uma questão. Encontrou, em contrapartida, uma outra história muito mais rica, a potência nessas mulheres, que tinham deixado isso para trás e encarado a vida com enorme força própria. Tem fotos e depoimentos maravilhosos.

Gostei de muita gente. A Virginia Pinho que fez o trabalho sobre Maracanaú, onde tinha aquele necrosario que depois foi extinto, mas que quem morava continua lá. As pessoas criaram um vínculo com aquela região e não saem daquele lugar, que foi uma prisão para eles.

Todas as obras já eram existentes, não houve trabalho comissionado. Apenas Nivardo Victoriano, que tinha uma produção de fotos menores, e aí fizemos uma sugestão de ampliar as fotos. Ele trabalha com a dor.

O que me chama a atenção é que a produção do cearense é muito poética. Todas as obras tem uma preocupação de questionar os problemas, o ambiente, o status quo, mas com uma pegada poética inesperada para mim. Eles têm histórias, cordéis, bordados.

Quando mostrei os trabalhos, me comentaram: “Nossa, como parece com Leonilson”. E eu falei: “Não. É que o Leonilson pertence a este lugar”.


20ª Unifor Plástica: Simultaneidades – A Arte com a Palavra
Espaço Cultural Unifor
Até 1º de março de 2020