O episódio envolvendo a massa falida do Banco Santos, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (o MAC USP), traz novos dados para a história do museu da USP e nos ensina sobre como mudaram as relações entre segmentos da burguesia paulista (e seus funcionários) e o Estado. Para aqueles que não sabem da história, um resumo: em 2005 o MAC USP foi indicado pelo Poder Judiciário como responsável pela guarda provisória da coleção de arte do ex-banqueiro. Embora sob essa guarda não permanente, desde o início havia a expectativa, junto a alguns setores da universidade e da sociedade paulista, de que a coleção acabasse sendo entregue em definitivo ao museu. Tal esperança, estimulada por alguns setores envolvidos no processo, acabou frustrada. Neste ano, a coleção que durante quase uma década e meia não foi apenas guardada pelo museu, mas também conservada, estudada e exibida, foi retirada da instituição para ser leiloada, visando ressarcir os credores do Banco.
Este texto reflete o caso, tendo como parâmetro a história inicial do próprio MAC USP, atentando para como a história quando se repete, o faz como farsa.
***
A origem do MAC USP está ligada à história do Museu de Arte Moderna de São Paulo (o antigo MAM-SP), uma instituição que, fundada em 1948 por um segmento da elite econômica de São Paulo, foi por ela instrumentalizada até o início dos anos 1960. Em 1963, quando deixou de servir aos interesses do líder daquele segmento, o MAM-SP foi passado para a Universidade de São Paulo (USP), e seu nome trocado para MAC USP[1].
***
A criação do antigo MAM-SP pode ser entendida como a realização do desejo de um membro da elite paulista de extravasar, no atacado, seu viés empreendedor, à semelhança de seus congêneres norte-americanos; no varejo, ele pretendia lustrar ainda mais sua figura de industrial bem-sucedido e voltado para o campo da cultura. Seu nome era Ciccillo Matarazzo, um homem pertencente a uma família enriquecida de imigrantes italianos. Outro fato da vida de Ciccillo que também serviu para ampliar seu capital simbólico foi ter se unido matrimonialmente a um dos baluartes da tradicional “aristô” paulistana, Yolanda Penteado.
É incontornável a importância de Ciccillo para a arte do país, a partir da criação do antigo MAM-SP[2]. Com a instituição, ele ofereceu ao público, além do convívio com um rico acervo de obras de arte, outras atividades que adensavam a vida cultural do país. Em seus primeiros anos, o antigo MAM-SP pareceu significar um projeto civilizatório de longo prazo, fomentado por um industrial preocupado com o futuro da comunidade.
Dentre as atividades empreendidas pelo antigo MAM, a mais importante foi a instauração das suas Bienais Internacionais, cuja primeira edição ocorreu em 1951. O leitor concordará com o quanto as bienais foram importantes para a arte no Brasil, pois foi no embate por ela criado entre as produções local e aquela internacional que muitos artistas brasileiros deram início às suas respectivas poéticas, elevando a arte aqui produzida a um patamar, de fato, internacional.
Mas houve também a ampliação do acervo do MAM-SP, por meio tanto da premiação regulamentar das Bienais quanto dos prêmios-aquisição, ocorridos em suas primeiras edições[3], o que foi outra contribuição importante do museu para a comunidade. Por mais que se possa discutir os limites de um projeto de ampliação de acervo atrelado a premiações, foi por meio delas que entraram para o antigo museu obras de artistas como Max Bill, Maria Martins, Barbara Hepworth, Karel Appel, Fritz Winter e Lygia Clark, entre outros.
***
Percebe-se hoje que Ciccillo Matarazzo, já no final dos anos 1950, viu-se dividido entre as duas estratégias que até então usava para ampliar seu capital simbólico: continuar capitaneando o MAM-SP – mirando no processo ininterrupto do aprimoramento artístico-cultural da comunidade –, ou dedicar-se apenas às bienais, cujo reconhecimento e prestígio que traziam pareciam mais imediatos. Seja como for, o fato é que, entre o MAM de São Paulo e as bienais do museu, Ciccillo optou por seguir à frente das bienais, desvinculando-as da instituição matriz e criando a Fundação Bienal de São Paulo. Porém, antes de devotar-se apenas à fundação, o que fazer com o museu, seu acervo de obras de arte e suas outras propriedades?
Em uma atitude que ainda lembrava aquelas de milionários norte-americanos, Ciccillo doa para a USP o “seu” MAM-SP[4]. Ou seja, ao querer se ver livre de um patrimônio que começou a lhe parecer um obstáculo para o pleno exercício de sua atividade como presidente da Bienal, Ciccillo opta por de novo atuar como mecenas, doando a coleção do museu à Universidade. O empresário, portanto, se livra daquilo que se transformara num estorvo, mas, ao fazê-lo, age de forma diferente daqueles que, mais tarde, irão transferir para a mesma USP a Coleção do Banco Santos (mas não em definitivo, é claro).
***
Um dia serão estudados os pormenores que explicarão as razões que levaram a USP – também tendo a experiência norte-americana como parâmetro – a aceitar a oferta de Ciccillo e a lutar por ela. Uma luta que, na verdade, se “esquecia” de que, entre as suas diversas unidades nenhuma delas era ligada à formação de artistas, historiadores da arte e outros especialistas da área. Se na maioria das universidades norte-americanas o museu de arte era criado como o coroamento de uma política de incentivo e formação de artistas e outros profissionais ligados às artes, o novo museu da USP tornou-se a cereja de um bolo inexistente[5].
***
Uma reflexão sobre as relações do MAC USP e as instâncias superiores da universidade comprovariam a hipótese de que o interesse inicial da cúpula universitária pelo museu foi claudicando com o passar dos anos, até atingir uma relação protocolar, com breves episódios de confluência. É certo que os diversos dirigentes da universidade, desde 1963, nunca negligenciaram suas obrigações quanto à manutenção da equipe de profissionais especializados do museu, fornecendo as bases para que ela não deixasse de cumprir todas as demandas relativas à guarda, conservação, restauro, pesquisa e exibição das obras. Porém, um ponto nessa relação demonstra a falta de um interesse efetivo da universidade para com o MAC USP: em nenhum momento da história do museu foi instaurada uma política de aquisição de obras para o acervo – fato que distancia ainda mais a Universidade de São Paulo de suas congêneres norte-americanas.
Tal situação não significou, porém, que o MAC USP tenha persistido até o presente apenas com as coleções que herdou do antigo MAM-SP. Pela diligência de alguns de seus diretores e diretoras, suas curadorias e os artistas que sempre acreditaram em sua importância, o MAC USP ampliou consideravelmente o acervo que lhe deu origem, transformando-se num dos principais museus de arte do século XX e XXI do hemisfério Sul. No entanto, apesar desses esforços, muitas vertentes e artistas permaneceram não representados no acervo do MAC USP, criando lacunas em seu interior e em alguns casos dificultando que se procedessem estudos e exposições que levassem para o público novas interpretações sobre a arte do período coberto pelo museu.
Foi por essa situação ainda distante do ideal em termos de amplitude do acervo, que a designação do MAC USP como responsável pela guarda provisória da Coleção Banco Santos foi em parte bem saudada pela equipe do museu, apesar dos problemas que ela, desde o início, trouxe para a instituição. Mesmo provisoriamente, receber um acervo de quase 1600 pinturas de variadas dimensões e técnicas, esculturas e objetos de diversos materiais, fotografias do século XIX ao XXI, tapeçarias e vários outros tipos de objetos de arte, é de uma enorme complexidade e responsabilidade. Uma responsabilidade tão grande que deveria ter levado a universidade a, desde o início, condicionar o recebimento da coleção a uma verba que viabilizasse a contratação de profissionais para atuarem junto àqueles já presentes na Instituição.
Mas a USP aceitou o envio da coleção sem exigir contrapartida. Nem verba para contribuir na manutenção do conjunto de obras, nem um ressarcimento em obras da coleção, para que o MAC USP não servisse apenas como um depósito qualificado, pago com dinheiro público, para guardar temporariamente a coleção do ex-banqueiro. Esse assunto tão grave foi tratado pela USP apenas como mais uma ação jurídico-burocrática, uma forma de atender a uma determinação do Poder Jurídico, sem uma reflexão sobre o ônus que tal aceite causaria no orçamento do museu ou sobre com o que a universidade poderia ganhar com essa guarda da coleção, enquanto instituição pública.
De novo, depois de pouco mais de quarenta anos, segmentos da burguesia paulista, agora por meio de seus funcionários, transferiam para a Universidade – ou seja, para o Estado –, um conjunto de obras de arte que se tornara um estorvo para ser conservado. Só que, como visto – e ao contrário da experiência com Ciccillo –, essa transferência não seria definitiva. Diferente do início dos anos 1960, hoje acredita-se que, para o Estado, não se deve doar nada, apenas retirar. A universidade que cuidasse das obras para esse segmento da elite de São Paulo enquanto, se destrinchava o embroglio todo do Banco Santos. Resolvido, as obras voltariam para pagar as contas dos credores. E voltaram.
Houve, é claro, o canto da sereia, afirmando que, talvez, quem sabe, aquele acervo pudesse permanecer no museu, como ocorrera com o acervo do antigo MAM-SP. É claro que essa possibilidade era inexistente se posturas mais firmes não fossem tomadas.
***
Desde o início existia a desconfiança de que, dada a falta de atitudes efetivas da universidade para reverter a situação, o museu corria, de fato, o risco de ver aquela Coleção ir embora. Nesse sentido, todo o trabalho e todos os gastos da Instituição com ela só teriam servido para aumentar-lhe o prestígio, tornando seus itens ainda mais preciosos para os colecionadores ávidos. A consciência desse perigo com o passar dos anos foi ficando tão presente que, em 2011 – quando atuava como diretor do MAC USP (no período de 2010 a 2014) – ao escrever o texto institucional do museu para a mostra Fotógrafos da Cena Contemporânea, com curadoria de Helouise Costa a partir da Coleção Banco Santos, externei o problema do seguinte modo:
“Ao dar visibilidade a estas obras o museu pretende também lançar um alerta. Esse patrimônio corre o risco de se dispersar, cabendo à sociedade manifestar-se sobre a importância de sua permanência em uma instituição pública, em um meio como o nosso, tão carente de acervos representativos da experiência fotográfica contemporânea”[6].
Apesar desse e de outros alertas, nada de concreto foi realizado no sentido de reverter a situação[7]. Quando, passados mais alguns anos, seu atual corpo diretivo finalmente tomou consciência da situação humilhante em que a instituição havia se colocada desde o início desse processo, era tarde demais.
***
Finalizando, acrescentaria que esse triste episódio envolvendo o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e a Coleção Banco Santos deve, pelo menos, servir de lição para as instituições museológicas públicas do país: estabeleçam condições concretas de ressarcimento quando surgir a possibilidade de recepção de coleções ou parte de coleções por meio de comodato ou guarda provisória. Toda instituição pública precisa garantir que, no final desses processos provisórios de guarda, ela não saia sem algum dividendo de interesse para a comunidade. Não é possível que instituições públicas como a Universidade de São Paulo – um dos pontos altos da produção de conhecimento em todas as áreas, no Brasil – sejam usada apenas como depósito.
Leia mais da coluna de Tadeu Chiarelli, clique aqui.
____________________________________________________________________