Desde 2017 estudo o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, instalado em 1953 na entrada do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Meu interesse é estudá-lo desde as primeiras ideias surgidas na cidade para se erigir um monumento dedicado aos bandeirantes, a escolha do projeto de Brecheret, em 1936 sua inauguração e a recepção da obra pela população e artistas da cidade, nesses 70 anos de implantação.
É claro que não estou só nessa empreitada. Ao meu lado tenho o pesquisador Thiago Virava e duas orientandas: Eliane Pinheiro, que desenvolve um doutorado sobre a obra e Kelly Oliveira, graduanda. Além da produção de textos sobre o assunto, Virava e eu já nos responsabilizamos por duas disciplinas junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA USP, dedicadas ao estudo do Monumento.
Nesse processo, tenho lido muitas crônicas e críticas produzidas por escritores, poetas e jornalistas de São Paulo. Durante tais leituras tenho contactado pela primeira vez, ou então relido, textos importantes sobre São Paulo, de autores como Mário de Andrade, Oswaldo, Guilherme de Almeida, Plínio Salgado e Menotti Del Picchia.
Exatamente, vocês entenderam bem: neste estudo me interessa conhecer melhor o “Lado B” do modernismo de São Paulo – Menotti Del Picchia, Salgado e outros – uma vez que, por trás da escolha do monumento de Brecheret, esses intelectuais estavam bem atuantes. Mas não é sobre nenhum texto deles que resolvi escrever hoje.
Dentro dessa busca por considerações sobre São Paulo, tive a sorte de me deparar com o livro Pela cidade, uma antologia de crônicas escritas por Guilherme de Almeida, entre 1927 e 1928. Esses textos foram assinados pelo poeta com o pseudônimo “Urbano” e publicados no Diário Nacional. Neles, Almeida revela-se um cronista delicado, com uma visão singular sobre a cidade em constante metamorfose.
Sob o sol forte ou sob a garoa fina e fria – e já apressada e com o trânsito caótico –, a São Paulo das crônicas do poeta ainda guarda espaços de sociabilidade que resistiam (não por muito tempo, infelizmente) a todo aquele vertiginoso crescimento.
Para mim – que ando atento a tudo o que diz respeito a monumentos – duas crônicas ali me chamaram a atenção: “O mistério da Várzea”, publicada no dia 24 de março de 1928 e, um pouco mais de um mês depois, “Monumento”, uma espécie de continuação da primeira. Essas duas crônicas me interessaram porque não falavam apenas de um monumento em particular, mas porque ambas me ajudaram e entender a própria lógica dos monumentos escultóricos, ao mesmo tempo em que explicitaram como o poeta entendia a cidade em que morava, a partir de suas relações de amor e ódio com os monumentos que também a habitavam.
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Como sabemos, todos os monumentos são grandes alegorias: conjuntos de metáforas interrelacionadas de forma arbitrária e que, se destituídas desse fio condutor que lhes conferem um sentido uno, perdem completamente a simbologia concebida pelo artista.
Guilherme de Almeida, em “O mistério da Várzea”[1] , descreve seu estranhamento e o de outros usuários do Parque frente a presença de algumas “metáforas de bronze” flagradas no Parque D. Pedro II, ainda desagregadas do fio que lhes daria o sentido previsto, afirmando que fazia algum tempo as pessoas que passavam em frente do Palácio das Indústrias (localizados no Parque D. Pedro II) estranhavam ver ali “uma armação de madeira coberta de pano branco esticado, velando um pedestal importante de granito rosa”. Todos sabiam que dali surgiria um monumento, mas não sabiam dizer qual:
Há a propósito, palpites, apostas, discussões, profecias, polêmicas e até mesmo brigas. Eu, de minha parte, confesso que estou desconcertado. Não posso fazer a mínima ideia do que se está preparando ali. Tenho observado, naquele lugar, certas coisas que só servem para me desorientar e inquietar. Enormes caixões de madeira chegam ali quase que diariamente: são abertos, tiram-se lhes de dentro grandes peças de bronze que imediatamente são guindadas para trás do veleiro intrigante. Pelas partes desconexas que até agora, a muito custo, consegui lobrigar, sou incapaz de imaginar o todo[2].
Foi por ter ficado tão intrigado que Guilherme de Almeida chamou a atenção para aquela situação de mistério da Várzea. Assim ele termina o texto:
[…] Também não sei jogar puzzle: não tenho paciência para, juntando pedacinhos arbitrários de um desenho recortado, reconstruir a estampa completa […] Não vejo, entre eles, relação alguma. A primeira peça que me caiu sob os olhos foi a estátua de uma Vestal clássica. Tempos depois, vi carregarem lá para cima uma roda dentada. Depois, um Rei Assírio, muito digno e muito barbudo. Depois um índio nacional. E, afinal, ontem, um grande bode de bronze.
Estou ficando com medo[3]
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Pouco mais de um mês depois, Guilherme de Almeida volta a escrever sobre “mistério da Várzea” em outra crônica, com o título Monumento[4]. Ali somos informados de que o misterioso monumento era um presente que “a inteligente e trabalhadora colônia síria, aqui domiciliada, acaba de oferecer à cidade”. Curiosamente, embora elogie o grupo escultórico, Guilherme de Almeida não se preocupa em declinar o título do monumento e tampouco seu autor. Por que tamanho desinteresse? Por que declarar que houve a inauguração do monumento no dia anterior e, logo na sequência, passar a falar, como veremos, da série de monumentos da cidade, sem nomear a obra em questão e nem seu autor?
Apesar de ter visto o resultado com bons olhos, no monumento recém-inaugurado nada desperta atenção especial de Guilherme de Almeida ou, pelo menos, não da mesma maneira que despertavam seus pedaços desconexos, quando ainda não configuravam um conjunto com conteúdo ou “significado” preestabelecido pelo escultor italiano Ettore Ximenes, autor tanto dessa obra quanto do Monumento à Independência, instalado em frente ao Museu Paulista. Antes, aqueles pedaços de bronze eram “significantes” sem “significados” aparentes e, por isso, pulsavam repletos de mistério. Soltos e anônimos, eram muito mais atraentes e sedutores do que quando encaixados formando uma alegoria que lhes dava um significado arbitrário – uma homenagem sírio-libanesa ao Brasil. Essa identificação direta retirava delas qualquer possibilidade de apenas tensionar o real, sem explicá-lo.
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Após tê-la elogiado brevemente, Guilherme de Almeida integra a obra de Ettore Ximenes no conjunto de monumentos que, a partir das comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 1922, passaram a ornamentar a cidade de São Paulo. Ele afirma:
Depois da passagem do primeiro centenário da nossa emancipação política, há já seis anos, São Paulo ganhou uma porção de presentes. Alguns bons, dignos, apresentáveis, que a gente põe logo na sala de visitas ou no living-room; outros, envergonhantes, difamatórios, comprometedores, que a gente coloca na dispensa, entre réstias de cebolas e latas de feijão, na impossibilidade de “passar adiante”, de oferecer a um inimigo fidagal, no dia do seu aniversário. No nosso salão estão: o monumento do Ipiranga, o de Carlos Gomes, este da colônia síria, o Índio Pescador, “Eu sou Ubirajara”, a “Eva”, de Brecheret… No nosso quarto de despejo estão: a Coluna da Fundação a Cidade, o Bilac, o Feijó, o Bonifácio, o Verdi, o Garibaldi do Jardim da Luz, a tal Fonte Monumental da avenida São João… e outros bibelots, outras pastelarias, outros bolos de noiva, outras abóboras em que andam tropeçando por aí, o nosso bom gosto e a nossa dignidade […][5]
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Interessante como no texto, tendo agora São Paulo como cenário e lugar onde os monumentos citados estão instalados, Guilherme de Almeida também os perceba como metáforas, como as peças soltas que formavam o Monumento à Amizade Sírio-libanesa, antes de sua conclusão.
Os monumentos paulistanos citados pelo poeta são vistos como conjuntos estanques de metáforas, cujo sentido geral só seria alcançado, caso a cidade fosse pensada como um grande monumento e eles suas partes integrantes. Guilherme de Almeida entende São Paulo como uma residência que deveria estar sempre muito bem arrumadinha, em que os bibelôs de gosto discutível deveriam ser escondidos das visitas e aqueles mais bonitos e significativos, exibidos a todos.
Sem querer ser anacrônico, penso que caberia indagar quais outros elementos da cidade o poeta gostaria de esconder? De fato, a cidade vinha tirando da frente tudo o que poderia obscurecer (e a palavra aqui não é gratuita) e não condizer com uma ideia de cidade europeia implantada na América do Sul. Se os monumentos escultóricos de bom-gosto ficariam nas salas e os bibelôs mal-arranjados na dispensa, onde ficariam, para onde seriam mandados os índices precisos de uma sociedade desigual, como aquela São Paulo dos anos 1920?
Em 1928 – ano das crônicas –, pelo menos para o poeta, São Paulo era percebida como uma casa imensa, uma grande alegoria da civilização ocidental abaixo do Equador. Uma casa que, apesar de incompleta, parecia aspirar a um dia chegar ao momento de plenitude em que estaria completa.
Hoje, em 2022, o Monumento à Amizade Sírio-libanesa transformou-se num mictório público, coberto por tapumes e mau cheiro. Por sua vez, São Paulo parece ter perdido qualquer condição de manter-se como alegoria de uma casa (para quem quer que seja), de um lugar e um sentido unificado pois, quase cem anos depois, toda sua expansão revelou-se produção de fragmentos – corpo estraçalhado, sem totalidade possível, um não monumento.
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