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Em 1781 Immanuel Kant publicou “A Critica da Razão Pura”, que rapidamente tornou-se um marco para a teoria do conhecimento ao definir as condições pelas quais a ciência separa-se da metafísica. Com isso ele criava novos critérios para distinguir o que é uma opinião, relativa, subjetiva e interessada do saber que aspira universalidade, objetividade e imparcialidade e que na origem é o que chamávamos de verdade. Ao mesmo tempo ele reinventava um método que comportava sua própria reatualização: o método crítico. Separava-se assim o conhecimento, resultado da comparação entre conceitos e fenômenos e crítica do conhecimento, o exame do processo, dos pressupostos, das condições ou dos pontos de vista pelo qual este conhecimento se realiza.

Toda informação depende, portanto, de uma formação. Formação tem aqui dois sentidos diferentes: produção de fatos, dados e acontecimentos, mas também educação de sujeitos, usuários, leitores, cidadãos ou consumidores, para os quais o conhecimento será útil, válido ou relevante. Portanto, a crítica incide duas vezes neste processo, examinando as deformações causadas no curso da construção dos fatos e também desfazendo as deformações inerentes aos processos educativos do sujeito: seus preconceitos históricos, crenças particulares e interesses individuais. Comprimindo muito o assunto, poderíamos dizer que este modelo de crítica determinou fronteiras importantes até hoje: ciência ou política, fatos ou interpretações, Estado ou família, leis gerais e valores particulares. Foi este modelo que implantou também o sentimento social de respeito pela razão, fonte e origem da autoridade que estamos dispostos a reconhecer.

Disse que em 1781 Kant publicou a “Crítica da Razão Pura” e você, caro leitor, deve ter pensado em coisas como “isso é antigo demais”, afinal “quem foi Kant?” ou “este texto vai ser chato, universitário e elitista demais”. Legendas mentais como: “esquerdismo vermelho” e “chega de crítica, precisamos de ideias positivas, práticas e resolutivas” podem ter piscado no canto esquerdo de seu cérebro. Quando usei palavras quase técnicas como “ciência” e “metafísica” perdi metade dos leitores para a máxima: “não complica o que não existe” e mais um terço para “legal, mas muito difícil para quem está no corre da vida real”.  Mas duvido que alguém tenha pensado que o ponto mais problemático do parágrafo anterior esteja em sua quarta palavra, ou seja: publicou. Kant publicou, ou seja, tornou público através de um livro, composto por tipos móveis impressos em folhas de papel.

Suas ideias foram lidas, primeiramente por alunos de universidades que falavam alemão, começando pela pequena cidade prussiana chamada Königsberg, onde o rio cruzado por sete pontes. Dali ele tornou-se inspiração para os teóricos ingleses da moral, para o entendimento do que foi a revolução francesa, para formação das instituições americanas, para os modelos de educação, cultura e ciência no mundo. Portanto, tudo o que afirmei acima e todo o legado de Kant, também chamado de o debate das luzes, depende deste acontecimento que tornou possível o acontecimento Kant, que é a existência de um espaço público. É tão somente pelo uso da razão no espaço público que alcançamos maioridade, autonomia e liberdade, os meios e os fins de como queremos ser reconhecidos. É no espaço público que os interesses se cruzam formando conflitos, nele acontece a disputa de ideias e de palavras que caracteriza a política em sentido moderno, é nele também que se formam discursos e narrativas pelos quais nos fazemos reconhecer e podemos reconhecer os outros. O trabalho da crítica, neste contexto, é o de denunciar deformações, zelando pela pureza do processo, mais do que pelas teses vitoriosas ou perdedoras a cada rodada. Por isso o afeto fundamental da crítica clássica é a culpa. Culpa por ter corrompido a pureza da lei com interesses e inclinações.

Disso decorre um problema crucial: o que acontece quando o espaço público se deforma? Se ele é condição para o exercício da crítica, como fazemos quando ele passa a ser controlado de tal maneira que, em vez de comportar tendencialmente a participação de mais pessoas, generalizando a inclusão de vozes e sujeitos, que quiseram ou puderam se emancipar de suas minoridades, ele passa a ser organizado, reversamente, por regras de exclusão? É o caso, por exemplo, das políticas públicas que retiram investimentos da educação (criando tetos de aplicação de receitas), ou que desprezam a importância da ciência (cortando bolsas de estudo), ou que desfazem do papel da cultura (extinguindo ministérios). Quando se diz que isso está a serviço da redução do tamanho do Estado, outros objetarão que está em curso uma identificação equívoca entre Estado e espaço público.

Ciência, arte e educação são justamente meios decisivos para formação qualificada de novos habitantes para o espaço público. Pode-se contra argumentar aqui que tais práticas habilitam apenas formalmente alguém a participar do jogo. Se a economia não permitir, não haverá expansão do espaço público. Não há espaço público para pessoas passando fome, morando na rua ou desempregadas no que restou de suas casas. Por isso muitas políticas públicas percebem tais “ocupantes indevidos” do espaço público (ruas, pontes e regiões centrais de grandes cidades) como um obstáculo a ser removido e não como um sintoma provocado pela própria contração do espaço público (redução de serviços de suporte social, saúde e políticas de emprego, habitação e circulação de pessoas). Muitos intervirão dizendo que o fato fundamental é que não há dinheiro para tudo e que em situação de falência precisamos primeiro arrumar a casa da economia para depois pensar na educação ou na saúde, afinal os bens materiais são condição para os bens simbólicos.  Contra isso outros argumentarão que talvez a falência não seja tão profunda assim, que a crise esteja sendo fabricada ou exagerada para produzir e justificar a conveniência dos “remédios” anti-crise.

Ora, o que o leitor encontrou no parágrafo acima, parece apenas uma recapitulação bem comportada e genericamente civilizada do debate entre esquerda e direita que se encontrará em versões mais ou menos tendenciosas nos grandes jornais e na imprensa brasileira. A forma debate é um dos aspectos assumidos pelo uso da razão em espaço público. Debater presume argumentos e argumentos dependem de fatos, mas também, como vimos de interpretações e de interesses. O debate tem por isso uma dupla função, ele exerce e cria condições para novas formas jurídicas e deliberações políticas, mas ele também é uma experiência formativa, ou seja, ele educa, ele ensina como falar e como lidar o outro por meio da linguagem e da razão. Outra palavra chave para entender a noção de debate é a ideia de reflexão. Refletir implica suspender a ação e o juízo, examinar o que se apresenta diante de nós, reconstruir o processo de formação do que se apresenta diante de nós, seja isso um fato, seja isso uma interpretação.

Refletir significa ainda sair de si mesmo, deixar a sua posição e assumir a conjectura da pertinência e existência de outro lugar. Finalmente, refletir é fletir novamente, ou seja, retornar a si, mas agora transformado pela jornada da reflexão. Se a reflexão funciona bem o outro também se transforma ao participar de nossa reflexão. E ela é melhor ainda se implica consequência e responsabilidade. Ora, a urgente necessidade de reconstruir o debate público no Brasil não é uma operação de legislativa, feita apenas de novas e melhores leis, da radicalização de atitudes morais, ela é uma tarefa urgente. Uma reforma da reflexão, uma reforma da crítica, uma reforma das instâncias que deveriam ter cuidado do debate e do espaço público e que não o fizeram durante os anos 2013 a 2017. Tudo isso precisa ocorrer junto com a reforma política. É preciso refundar a crítica, e como toda crítica ela começa pela auto-crítica. Isso implica rever o papel daqueles que tem por ofício cuidar da conversa assim como participar dela. Aqueles que funcionam como os representantes das “regras do jogo”, e estes representantes classicamente são a universidade e os intelectuais (Kant volta aqui mais uma vez), a imprensa e o sistema da cultura, a educação e o judiciário. É curioso como todas estas funções foram convocadas e parasitadas no interior do debate que evoluiu para não-debate em 2016, culminando na suspensão organizada da lógica da conversa e assunção da lógica do golpe, da pós-verdade e da  pós-política. Esquerda e direita estão agora juntas e envergonhadas, ainda que por motivos distintos. A operação limpeza moral, baseada na purificação do mal, parou no ridículo golpe dentro do golpe que mantém um corrupto no poder “por motivos práticos”, assim como teria retirado uma corrupta do poder “por motivos igualmente práticos”. Afinal, que racionalidade é esta senão a vitória da deformação sobre a formação e a informação? Como tão poucos conseguiram enganar tantos com razões tão deformadas?  Aqueles que repudiam professores, intelectuais e artistas, que desmerecem o espaço público, aqueles que se aproveitaram do ressentimento social para suspender o debate, aqueles que usaram a retórica da limpeza para contrariar a “razão pura”, aqueles que ganharam muito com a emergência do novo irracionalismo brasileiro, estão agora quietos, indiferentes e envergonhados. É o momento de refundar a crítica, sem tripudiar deste engano, mas entendendo como ele se tornou possível.

Quando identificamos espaço público com Estado, quando confundimos interesse público com bens públicos, quando reduzimos bens públicos aos recursos e responsabilidades do Estado, estaríamos deixando de enfrentar a pergunta realmente crucial, ou seja, a redução do Estado não seria um artifício para melhor controlá-lo em favor de interesses particulares? Aqui o problema da deformação do espaço público encontra outra versão. Neste caso não é que ele se contraia, diminuindo seu tamanho, excluindo pessoas, por exemplo, pobres e analfabetos ou negros e mulheres, mas ele muda de dono, ele deixa de ser de todos e passa a ser de alguns, por exemplo, daqueles que estão representando as pessoas e que usualmente chamamos de políticos. A rigor, político não é o que assume isso como uma profissão ou carreira parlamentar, mas todo aquele que fala e age em espaço público. É apenas por uma destas deformações, típicas da redução do espaço público a uma lógica de condomínio, que ressurge esta tendência anti-política, expressa, por exemplo, pela recusa ou desleixo com o voto. Ainda que baseado em atitude crítica, (note o retorno da palavra crítica mais uma vez), a atitude anti-política é no fundo uma política suicidária. Ela afirma garbosamente que os políticos lá em Brasília estão destruindo o Brasil (e estão mesmo), mas não se dá conta de que ao dizer isso, preguiçosamente, se está a afirmar ao mesmo tempo: “eu sou uma criança infantil, que não tenho interesse em participar disso, ou seja, do espaço público, pois ele é cheio de interesses, sujeiras e negociatas. Ademais quem se mete com isso torna-se imediatamente suspeito”. Tudo verdade. Uma verdade tão verdade que habilita os “não políticos” os “homens de ação e obras” a praticar a pior das políticas, a saber, aquele que consagra-se a reduzir o espaço público, econômica e formativamente e aquela que serve aos particulares amigos no melhor dos mundos possíveis para os negócios, ou seja, o negócio que é supervisionado pelo Estado em favor de uns e não de outros. Um negócio que não e um verdadeiro capitalismo, mas um uso do Estado para fazer bons negócios com minha família, amigos ou protegidos.

Ocorre que a crise da crítica brasileira envolveu um elemento novo, a formação de uma geração de atores políticos em uma nova linguagem, cujo suporte é a internet, e uma nova gramática de reconhecimento, cujo suporte são as experiências de sofrimento, de classe, de raça, de gênero, combinadas com processos de inclusão-exclusão social quanto a bens simbólicos, como educação, saúde, habitação e circulação.  Nossa geografia clássica, formada por fronteiras claras e distintas entre o público e o privado, cuja violação era percebida como deformativa, passou por uma mutação. Redes sociais são espaços nos quais não é mais o ator que define seu posicionamento, nem mesmo seu lugar de fala, enquanto identidade, mas é o próprio discurso que alterna interesse público e razões privadas. Isso se choca brutamente com o razão baseada em instâncias, que divide administrativamente os problemas e suas funções, as autoridades e suas prerrogativas. Uma crítica baseada em áreas ou especialidades, em autoridades constituídas e reputações firmadas, tem que se haver com um espaço que subitamente pode se tornar horizontal, onde todos falam de igual para igual. Mas este espaço pode, em seguida, ser extinto ou transformado em um deserto de indiferença ou irrelevância.

Rapidamente, o mesmo espaço anódino pode ser reocupado por um discurso vertical de uso, posse e propriedade da razão. A crítica deixa assim de confiar em seus representantes legais constituídos e passa a depender de eventos locais, de reviravoltas cuja característica mais interessante é que ela não é prontamente organizada ao modo de um mercado nem de uma garantia de autoridade. Ora, esta novidade promissora corroeu grandes impérios de informação, criando outros em seu lugar. Ocorre que a produção de informação relevante assim como a de formação qualificada custa muito caro, ao passo que a disponibilidade de informação segue a curva histórica de barateamento. Essa nova linguagem se torna disponível, para um contingente expressivos de brasileiros, no exato momento em que a tensão social se aprofunda. Ou seja, no ponto em que precisaríamos agudamente do trabalho da crítica ela teve que ser, por assim dizer, reinventada às pressas. Esta reinvenção prática da crítica obviamente produziu novas fórmulas e novos espaços de fala, no entanto, criou também o que se poderia chamar de uma reação regressiva baseada na anti-crítica, no obscurantismo e na reaparição de fórmulas pré-kantianas de pensar o espaço público. A pós-verdade é um nome muito novo para designar um fenômeno muito antigo.  A renovação da crítica não se dará pela adesão ao ponto neutro e angelical, uma purificação teológico-política, na qual os verdadeiros eleitos deverão nos guiar ao paraíso. Ela também não virá pela exaustão da culpa e da denúncia de impostores, mas talvez da reformulação da experiência com a vergonha por ser enganado, e com a humildade pelo reconhecimento da extensão do problema.

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