Há algum tempo os pacientes falam mais de séries do que de filmes. O ritual de ir ao cinema e depois discutir impressões no café foi gradualmente substituído pela cerimônia mais íntima e às vezes muito mais solitária de consagrar o fim de semana inteiro para zerar uma série. Traições e contendas surgem quando alguém adianta a ordem dos capítulos, vai direto para a última temporada ou faz spoiler, como o leitor terá logo abaixo sobre a série Black Mirror. Há anos minha casa tornou-se um ponto de encontro domingo à noite com amigos de meus filhos vibrando a morte e a vida de Jon Snow ou Ramsey, em Game of Thrones. Antes disso vieram as quintas-feiras com House e as noitadas de Law and Order.  No Brasil este fenômeno dá continuidade à arquetípica experiência familiar de assistir novelas juntos. Narrativas deste tipo são um poderoso alimento para a nossos laços sociais não apenas pelos exemplos que trazem, pelos conflitos que tratam, mas também pela lógica específica de reconhecimento que nos convidam a praticar.

Black Mirror (2011-2016) é a primeira série que toma para si, como tema e como forma, a própria degradação da experiência exigida por este novo formato digital. Lembremos que o espelho negro é uma técnica de bruxaria que envolve visualizar o futuro a partir da deformação artificial das imagens refletidas no presente. De fato a série trabalha sistematicamente com a exageração de tecnologias que se não estão disponíveis no momento, podemos intuir sua existência em um futuro próximo. Disso tiramos consequências éticas desagradáveis. Não se trata de uma ficção científica que nos faz olhar, de longe, os efeitos distópicos do que hoje valorizamos, mas de um reflexo do que já está em curso no momento. A série é uma espécie de mapa conceitual de novas formas de sofrimento, o que torna o experimento dotado de alto valor para clínicos e psicanalistas.

No fundo, a grande questão em Black Mirror são as experiências de falso reconhecimento. Elas estão na origem de nosso sentimento de inadequação, do ressentimento incurável gerado por uma cultura de promessas não cumpridas e de amores exagerados. O déficit crônico de reconhecimento, seja ele nomeado como depressão ou como baixa autoestima, aparece em um amplo espectro de sintomas que  vão da insatisfação insolúvel com o corpo próprio, com a carreira, com o país onde se vive, com a vida que se leva. Experiências massivas de falso reconhecimento são a causa social epidêmica para a indução de sofrimento neurótico na atualidade. Vidas sentidas como deficitárias, inautênticas e abaixo do que se espera são frequentemente vidas formadas à base de ideais de reconhecimento muito além do que se pode realizar, mas sobretudo vidas que não entenderam que é possível e desejável escolher os termos pelos quais se quer ser reconhecido. A lei do reconhecimento não tem conteúdo a priori, por isso a luta pelo reconhecimento não é apenas como uma batalha narcísica para ver quem tem mais e melhor imagem, mas um antagonismo estrutural para determinar qual lei simbólica governará nossas experiências de reconhecimento.

No episódio Nosedive a protagonista só pode ter o direito de comprar uma determinada casa se estiver em certo patamar social de pontuação. Para tanto ela deve ser aprovada por pessoas da classe superior à dela. Tudo isso ocorre em meio a um sistema de avaliação permanente das pessoas por qualquer gesto, ato ou encontro cotidiano, feito por meio do celular. O reconhecimento dos mais reconhecidos vale mais que o reconhecimento dos menos reconhecidos. Logo, vale a justiça bíblica de Mateus: “quem muito tem, mais lhe será dado, quem pouco tem, mesmo este pouco lhe será tirado”.  Todos os desastres acontecem no caminho para chegar ao casamento da amiga “popular”, onde ela espera ser devidamente pontuada. Isso mostra que a degradação do reconhecimento decorre da obsessão em progredir na sua corrida sem questionar seus termos ou sua conveniência. Ao aceitar esta lei geral de “uberização” das relações sociais, com métodos e médias de aprovação que subornam as pessoas, o episódio faz emergir, ironicamente, a lei obscena que tal métrica cria.

Em outro episódio, o primeiro ministro britânico deve manter relações sexuais com um porco, com transmissão ao vivo em todos os meios de comunicação, como forma de salvar uma princesa sequestrada. Ainda que ela tenha sido liberada antes da hora, ainda que o dedo enviado pelo sequestrador seja falso, ainda que tudo tenha sido uma farsa inventada por um artista performático, a verdade criada por esta estrutura de ficção impõe um registro de realidade autônomo, impulsionando a carreira do político. O heroísmo criado pelas circunstâncias volta-se contra a intenção inicial do artista de denunciar a servidão que temos diante de nossas imagens públicas. Ou seja, ao tentar simbolizar o funcionamento imaginário da política como espetáculo, o artista teve seu ato absorvido a este mesmo imaginário.

De quantas formas podemos fracassar, bloquear ou recusar reconhecer o outro e a nós mesmos? Freud [1] tem um pequeno artigo dedicado ao falso reconhecimento em que examina esta experiência de estranhamento na qual sentimos que já estivemos ali, ou que aquela situação já aconteceu, o déjà-vu(sentimento de já ter visto) e o déjà-raconté (sentimento de que já se falou aquilo). Uma forma mais branda deste fenômeno ocorre quando nos sentimos telepatas, pensando em uma pessoa que logo em seguida nos liga, ou quando somos tomados pela intuição de que sabemos que algo vai acontecer. Pitágoras argumentou que eram reminiscências de vidas passadas e a neurologia sugere tratar-se de uma espécie de descompasso na tramitação dos impulsos cerebrais entre os dois hemisférios. Para a psicanálise as duas hipóteses são verdadeiras, trata-se de uma vida passada, a vida infantil, e estamos mesmo diante de um descompasso entre a inscrição inconsciente e consciente, entre desejo e memória. Por isso recordamos algo sem saber exatamente o que estamos recordando, mais ou menos como no luto quando sabemos que perdemos alguém, mas não sabemos exatamente o que foi perdido junto com a pessoa. Esta é a questão perturbadora que nos leva, tantas vezes, a perguntarmos: quantos gramas de real existem em uma determinada articulação simbólico-imaginária?

É o caso do episódio San Jinupero, no qual pessoas em estado vegetativo vivem uma experiência de ilusão, no interior da qual certas escolhas podem ser feitas. Neste contexto, a protagonista tem que escolher entre o companheiro familiar, com o qual levou uma vida morna, e uma grande paixão de juventude por outra mulher. Ela escolhe, improvavelmente, a segunda. Ou seja, é uma denúncia de que vidas inteiras podem ser consumidas em estado de falsidade quando não se reconhece o próprio desejo. É também uma alusão ao fato de que certos atos possuem a propriedade de separar imaginário e simbólico, decidindo seu sentido e sua ordem.

Quando se trata do falso reconhecimento entre memória e desejo, Freud cita o caso do paciente que lembrava-se de ter ferido o dedo com uma navalha e que viveu muito tempo depois disso achando que tinha um dedo a menos. Falsas lembranças levam a falsos reconhecimentos. O falso reconhecimento envolve tanto a relação consigo e o próprio corpo (sentido então como impróprio) quanto a relação com o outro (sentido então como estranho). O correlato disso em Black Mirror é o episódio da mulher que perde seu marido e gradualmente o substitui por um robô com anatomia, memórias e disposições do falecido. O incômodo que sentimos com isso é que percebemos que ela está se enganando; mas o engano é tão eficaz que será que ele não vale a pena?  Neste caso parece ser o simbólico que reocupa e substitui este grama impossível de real: a morte e a finitude.

O falso reconhecimento pode decorrer também da dificuldade de separar nossa percepção de nossa alucinação. No episódio Men Against Fire, soldados são submetidos a um implante cerebral de tal forma que enxergam seres humanos estrangeiros e indesejáveis como baratas que devem ser exterminadas. Isso evita o sentimento de piedade que pode perturbar a eficácia da operação. Um determinado erro permite que o protagonista veja as coisas como elas realmente são. Também em Polar Bear uma assassina é condenada a reviver todos os dias, em uma espécie de Big Brother, as experiências terríveis que infligiu a sua vítima. Depois de um dia neste parque de horrores e perseguições ela é submetida a uma máquina de esquecimento para reviver e repetir seu martírio no dia seguinte, sendo punida, assim,infinitamente pelo seu crime (elatorturou e matou uma criança).  Nos dois casos, o sistema de ilusões comporta uma espécie de erro na máquina. Minha percepção é real, vejo seres humanos como baratas, vivo as perseguições como reais, mas elas são em verdade percepções alucinadas porque eu não consigo reconhecê-las como falhas de memória ou falhas de percepção.  Quando emerge a possibilidade de reconhecer o erro, quase sempre o sujeito escolhe o pior. Tendo percebido que as pessoas são vistas como baratas, o soldado é indagado se quer ser tratado como uma barata pelos outros ou se prefere ter suas memórias apagadas e começar de novo. O que há, portanto, de mais real é o erro e a falha, e o que há de mais trágico é este real emergir e não o reconhecermos, nada querendo saber ou lembrar dele.

O interessante da série é que ela quase sempre supera o primeiro nível no qual certa ilusão é denunciada submetendo o sujeito a uma segunda escolha. Ou seja, quando descobrimos a mentira de nossas ilusões, podemos escolher reforçar nossas ilusões. Continuar a agir como se não soubéssemos. Nem sempre o reconhecimento do falso reconhecimento leva a uma verdadeira transformação. Ele pode nos levar a uma espécie de dupla alienação, uma alienação dentro da alienação, como vemos no episódio do jovem garoto que passa a vida viajando, evitando atender o telefonema de sua mãe, e que acaba enlouquecendo ao se submeter como cobaia em um teste para a criação de um videogame de terror.

O falso reconhecimento também pode ser produzido por meio da exageração de afetos ou interesses, ao modo de um espelhismo de recordação. Por exemplo, em Hated in the Nation, um ex-funcionário vingativo desenvolve uma rede social onde podemos escolher pessoas que devem morrer (tanto criminosos contumazes quanto pessoas comuns que cometem erros morais). Uma vez condenado, abelhas mecânicas entram pelos ouvidos da vítima e devoram a área do cérebro responsável pela dor. Aqui a metáfora é literal, se tivéssemos os meios de nos desresponsabilizar agiríamos como uma colmeia assassina. Uma releitura atualizada da Experiência de Milgram, que na década de 1960 mostrou que sob ordens de um cientista a maior parte das pessoas faria mal a outra pessoa indefesa. Só que aqui o falso reconhecimento desloca-se da autoridade constituída da ciência para a autoridade do grupo anônimo de uma rede social. Isso capta um sentimento coletivo e ascendente de que todas as nossas instâncias de autoridade – científica, moral, religiosa ou política – são no fundo apenas expressões de um sistema de interesses obsceno. Black Mirror vai além disso ao mostrar que esta insatisfação com a impostura de nossas instituições simbólicas pode ser apenas um pretexto para dar curso aos nossos impulsos sádicos e violentos.

O mal-estar que Black Mirror cria é um espelho negro de nós mesmos. Mas ele não é apenas um indutor de angústia por que mostra nosso lado imoral, mesquinho e egoísta, mas porque denuncia e explica, de forma quase didática, como nossa forma de lidar com o reconhecimento, hoje e agora, está nos levando ao desencontro de nós mesmos e de nossos desejos. Ele mostra como nós estamos produzindo ativamente e exagerando nosso próprio vazio de experiência, tocando no ponto essencial da etiologia de sofrimento narcísico de nossa época, mais além do receituário tradicional sobre esta matéria.

 


[1] Freud, S. (1914) Acerca del fausse reconnaissance (déjà-raconté) en el curso del trabajo psiconanalítico. Sigmund Freud Obras Completas V-XIII. Buenos Aires: Amorrortu  págs. 207-212.

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