A percepção de que o itinerário de Tarsila do Amaral foi bastante peculiar torna-se cristalina frente à coleção de seus desenhos, adquirida pela Fundação Marcos Amaro[1].
Afinal, dos 203 desenhos pertencentes à instituição, apenas sete foram produzidos após 1930, sendo que a artista, falecida em 1973, produziu até 1970[2]! Ou seja: de um percurso que se inicia “oficialmente” em 1923, apenas os primeiros anos estão ali regiamente contemplados, sendo que os quase quarenta anos seguintes se encontram praticamente fora da Coleção.
O que teria ocorrido com a produção de Tarsila a partir dos anos 1930? Teria seguido o mesmo padrão dos trabalhos da década anterior, ou caminharam para algum tipo de descarrilamento, rumo a algum desastre final?
Sabe-se que os desenhos que hoje integram a Coleção foram escolhidos por Aracy Amaral para a retrospectiva da artista no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1969. A discreta presença de desenhos realizados após 1930 pode ter tido dois motivos: Tarsila talvez não tivesse guardado obras daquele período ou então – o que parece mais provável – Aracy pode ter optado, acertadamente, exibir apenas o que considerava como sendo o melhor que a artista havia produzido.
Publicados no catálogo da mostra, tanto em texto da própria Aracy quanto em de Regina Teixeira de Barros, nota-se o quanto a produção das derradeiras décadas de atuação de Tarsila constrange as estudiosas, que lamentam – não sem razão, como será visto – que as produções da artista daquele período mal se comparam, em termos de qualidade e vigor àquelas dos primeiros anos. É como se o fim melancólico de Tarsila enquanto artista, contaminasse o final das reflexões das duas especialistas[3].
Essas constatações fazem aflorar de novo um problema que assombra a todos que se debruçam sobre a trajetória de Tarsila do Amaral: o que teria ocorrido com sua produção a partir dos anos 1930 que fez com que perdesse o vigor tão característico que demonstrava em seus trabalhos iniciais? A partir, portanto, das premissas surgidas tendo a Coleção adquirida pela Fundação Marcos Amaro como ponto inicial e dos textos escritos pelas curadoras, a proposta deste texto é chamar a atenção para algumas das obras consideradas mais significativas agora pertencentes à instituição e, por último, levantar algumas considerações que talvez contribuam para que, de fato, se inicie um enfrentamento direto desse problema que constrange a todos.
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Entrar em contato com esses desenhos de Tarsila é mergulhar em algumas das produções mais instigantes da artista, desde sua iniciação com Pedro Alexandrino, no final dos anos 1910. São delicados os primeiros, onde ela anota as pessoas perdidas em momentos vagabundos do cotidiano. Seu traço é sutil, quase envergonhado por se aproximar de uma tradição em que ainda não se sente plenamente integrada. Passados poucos anos, no entanto, a timidez característica de muitos novatos parece ter sumido. Que Veneza deliciosa é aquela, captada por Tarsila, como se deslizasse numa gôndola? Desenho que, antes de registrar fielmente o local, atesta como a artista já percebia a importância do suporte bidimensional e o poder das linhas sobre ele.
Muitos falam que o desenho mais incisivo que Tarsila pratica a partir de 1923 estaria ligado a um gosto pela arte “primitiva”, que interessava a muitos naqueles anos. Creio que esse parâmetro foi importante para ela. Porém, existe neles uma nitidez, uma clareza impessoal nesses desenhos que me parecem informados pela fotografia e pela imagem publicitária dos cartazes, uma referência também presente em Léger – tão importante para Tarsila. Essa característica pode ser percebida, tanto numa obra realizada já em 1923 – vista de Veneza – quanto em produções posteriores, como uma paisagem com guindaste, de 1924 ou uma vista de Pireu, de 1926.
Reside justamente nessas possibilidades para um entendimento mais complexo do percurso de Tarsila a importância da Coleção. O autorretrato, produzido em 1923, por exemplo. Esse desenho é emblemático da capacidade da artista em transitar (ou oscilar?) entre a busca de uma grafia inaudita (fruto da miscigenação de procedimentos heterodoxos) – caso das paisagens citadas acima – e a ratificação dos valores do “bom desenho” tradicional, embora informado, é claro, por certas lições modernistas (convencionais, mas ainda assim, modernistas)[4].
Outro conjunto importante nesse contexto é aquele de estudos não-figurativos produzidos por ela em 1923 e 1925. Tarsila teria levado para a tela algum deles? Creio que não. O apoio da crítica brasileira tinha limites claros e para Mario de Andrade, por exemplo, nenhum artista brasileiro deveria “descambar” para a abstração[5]. Talvez esse tipo de posicionamento do crítico tenha refreado o interesse de Tarsila em levar adiante esse tipo de produção. No entanto, os projetos de pinturas estão ali na Coleção, à espera de alguém que tope enfrentá-los enquanto ideias/projetos frustrados ainda no nascedouro.
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Essas questões levantadas acima a partir dessa coleção de obras de Tarsila são apenas algumas de um conjunto muito maior e repleto de potência, no sentido de um conhecimento mais aguçado sobre a produção da artista durante os anos 1920. No entanto, caberia a pergunta: o que nos resta de Tarsila, além dessa produção tão rica do início de carreira? Ora, a meu ver, nada nos sobra, mas o que a artista produziu durante aquele curto período de mais ou menos uma década, vale por uma obra inteira.
Circunscrever a obra de Tarsila entre 1923 e, mais ou menos, 1933, não significa querer instrumentalizar sua produção para que ela possa bem servir aos ditames de uma historiografia modernista já muito entrada nos anos. Trata-se de marcar os limites objetivos (e imensos, aliás) da sua contribuição para a arte produzida no Brasil, sem que nos preocupemos com questões exteriores à obra de arte e suas especificidades. É claro que suas produções, após Operários (1933), podem ser entendidas como “documentos históricos”, tornando-se fundamentais para historiadores e sociólogos, ou para historiadores da arte preocupados mais com a vida e o entorno dos artistas, do que com suas produções, de fato. Porém, não deveriam ser tidas como obras de arte dentro dos mesmos padrões de sua produção dos anos 1920. Tentar relativizar a distância imensa que separa esses dois grupos de produções, do ponto de vista artístico e estético, pode resultar em curiosas biografias, assim como em bons negócios financeiros, mas dificilmente será suficiente para que, num cotejo entre uma obra dos anos 1920 e outra dos anos 1950, por exemplo – mesmo que “pau-brasil” as duas – as diferenças não sobressaiam de maneira avassaladora.
As diferenças entre os mais importantes anos da carreira de Tarsila (entre 1923 e 1930) e o despencar de sua atitude perante a pintura moderna, (iniciado com sua fase “social”, do início dos anos 1930) é tão grande, mas tão imensa, que é até possível afirmar que sua obra, de fato, cumpre menos de uma década. Quando muito – se quisermos ser generosos –, poderiam ser acrescentados mais uns anos, para que se agregue ao corpus de suas pinturas “que contam”, a tela Operários – seu já combalido, mas definitivo, canto do cisne.
O que ocorreu com sua produção, do início dos anos 1930 em diante foi uma paulatina, mas fatal desagregação das qualidades que Tarsila conseguira juntar em suas pinturas e desenhos da década anterior. De Operários em diante só ocorreram tentativas sempre não exitosas de fazer reviver suas fases “antropofágica” (ver algumas de suas pinturas dos anos 1940) e “pau-brasil” (em que Tarsila insistirá até praticamente seu falecimento), entremeadas por pinturas em que, ora flertava com o realismo social portinaresco, ora com certo primitivismo, ou então com um franco apelo conservador, “acadêmico”.
Existem justificativas para essa dissolução: a partir dos anos 1930, Tarsila não teria sido mais tão incentivada como de início, em que sua pintura contou com o apoio de alguns dos mais importantes nomes do Modernismo; após aquela data, destituída de sua antiga situação financeira abastada, ela teria produzido o que produziu porque, afinal, precisava trabalhar para sobreviver e assim por diante. Muitas outras alegações poderiam ser levantadas aqui para explicar seu malogro, mas sejam quais forem os atenuantes, o fato é que nenhum deles será encontrado fora da condução que a artista deu para o encadeamento de seu trabalho. Após 1930 nota-se que Tarsila simplesmente não conseguiu manter a pertinência de suas fases anteriores, e nem mesmo as várias retomadas dessas fases foram capazes de fazerem reviver seu antigo vigor, porque foram revisões fracas, sem nenhuma autoconfiança.
Anita Malfatti também sofreu processo semelhante, mas com diferenças importantes. Embora muitos atestem que, após 1917, ela não alcançaria mais a potência que antecedeu as exposições que fez naquele ano, é importante lembrar que já no final daquela década e até os anos 1930, Anita pelejou para redirecionar sua poética para rumos distanciados das vanguardas históricas (com quem flertara entre 1910 e 1916/17), unindo-se ao retorno à ordem internacional, que angariou vários adeptos no Brasil. O “pecado” de Anita foi não ter alinhado sua produção realista e sintética do retorno à ordem, à temática nacionalista, tão cara ao meio intelectual brasileiro da época. Independente daqueles que a marginalizaram a partir de 1917, é forçoso afirmar que Malfatti seguiu fiel aos novos encaminhamentos pensados para sua produção, constituindo uma obra que – independente de gostarmos ou não – tem lá sua coerência.
Com Tarsila isso não ocorreu. É interessante atentarmos para a sucessão de fases que ela atravessou, de 1923 ao início da década seguinte, filiando-se a vertentes opostas entre si, dentro do quadro da vanguarda internacional dos anos 1920. Vejamos: da fase “pau-brasil”, encantadora – e que soube responder às demandas por uma arte brasileira moderna, recebendo acolhida positiva junto à crítica –, Tarsila lançou-se à fase antropofágica, em que supostamente se esqueceu da rigorosa dimensão analítica da sua primeira fase para mergulhar nos ensinamentos da pintura metafísica de De Chirico e do surrealismo. Ora, entre a pintura pau-brasil e a pintura antropofágica existe um abismo considerável. Enquanto a primeira enfatiza a necessidade da lógica e da razão para encetar a obra de arte, o segundo aposta no irracional, no subterrâneo da memória pessoal e coletiva para se articular. Felizmente Tarsila conseguiu pular entre uma margem e outra da arte moderna sem alterar a qualidade de sua produção. Porém, mesmo que suas obras da fase antropofágica se mostrem ainda tão significativas quanto aquela do período “pau-brasil”, a recepção que obteve da intelectualidade modernista parece não ter sido a mesma.
Porém, o pulo do racionalismo de Léger e cia. para a metafísica de De Chirico, não foi o único naqueles gloriosos anos de Tarsila. Na visita à União Soviética, de repente ela dá outro salto (estético/ideológico), jogando-se nos braços do realismo socialista, vertente que se opunha, tanto à racionalidade das vertentes construtivas, quanto aos mistérios do surrealismo, ambas emanações da arte “burguesa” para os parâmetros soviéticos. É claro que ela tentou atenuar o autoritarismo da vertente que abraçara, arriscando levar para ela certa “delicadeza” que já impregnara suas fases anteriores. Mas não foi feliz na empreitada. Cá entre nós: nenhuma de suas pinturas produzidas durante sua fase “realista socialista” e aquelas produzidas depois, se comparam, em termos de qualidade de concepção/realização, às suas duas fases anteriores.
Acima mencionei o fato de que Tarsila, após sua fase “realista”, teria tentado “copiar a si mesma”, produzindo trabalhos que repetiam temas e soluções plásticas já desenvolvidas nos anos 1920. Esse procedimento nos remete a Giorgio de Chirico (caro a Tarsila) que durante o período final de sua vida, levou adiante uma série de pinturas em que “pintava a si mesmo”. Antes de falecer, De Chirico, aparentemente como Tarsila, também produziu uma série de obras em que “refazia” pinturas metafísicas muito próximas daquelas por ele concebidas no início de carreira. No entanto, ao contrário dela, De Chirico encetou, durante sua longa trajetória, uma volta particular às origens. Somente após transitar por grande parte dos principais períodos da história da arte ocidental (De Chirico foi renascentista, barroco, neoclássico, romântico etc.), foi que ele retornou à pintura metafísica que ajudou a constituir no início do século passado.[6] Apreciando ou não sua obra, o fato é que essas produções dos últimos anos de vida de De Chirico guardam uma coerência que, se não foi fiel à busca da originalidade (desejada pelos modernos), jamais traiu sua radical busca da origem da própria pintura. O que, infelizmente, não ocorreu com Tarsila.
Finalizo estas considerações voltando à Coleção de desenhos de Tarsila que estão na Fundação Marcos Amaro e atentando para o quanto é fundamental que tenhamos abertas ao público coleções como essa. O contato direto com os desenhos da artista e a possibilidade de também ler os textos das curadoras, presentes no catálogo da exposição que acontece a partir de 14 de março em Itu, conseguiram mobilizar e, de alguma maneira, configurar uma série de questões que vinha acalentando sobre a produção da artista, mas que, até então, não tinha tido chance de elaborá-la e dar-lhe uma primeira e ainda tímida sistematização. Saio dessa experiência com outra compreensão do papel desempenhado por Tarsila do Amaral no cenário da arte brasileira da primeira metade do século passado e isso somente foi possível pela generosidade da Fundação Marcos Amaro, que tornou pública essa série de trabalhos, depois deles terem ficado trancafiados durante cinquenta anos, em uma coleção particular, e longe da vista de todos!
Espero que a Coleção não propicie apenas novos estudos sobre Tarsila, que aprofundem sua importância e singularidade, mas também que um novo público entre em contato com a produção dessa artista que, em tão poucos anos, fez tanto para a visualidade do país. E termino perguntando: e para que existem coleções como essa, a não ser para entreter, ensinar e, sobretudo, para colocar a cabeça das pessoas para funcionar?
Estudos e Anotações, de Tarsila do Amaral
Curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros
Abertura: 14 de março, sábado, a partir das 14h
Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA Museu): Rua Padre Bartolomeu Tadei, 9, Itu, São Paulo
Visitação: quarta-feira a domingo, das 10h às 17h