Lançado discretamente no primeiro semestre deste ano (embora impresso ainda em 2023), o livro Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação (Ed. Fósforo) chegou nadando de braçadas para conquistar o pódio das melhores publicações saídas em 2024 sobre arte e cultura na cena contemporânea brasileira. Organizado pela jovem intelectual – com presença já expressiva no campo da curadoria e dos estudos curatoriais – Diane Lima, o livro traz textos, depoimentos e entrevistas produzidas por um conjunto formado por intelectuais e artistas afrodescendentes, afro-indígenas e indígenas.
Em todo o material ali reunido são apresentados aspectos que, por maneiras diversas, trazem possibilidades para que se entenda e se reflita sobre as transformações ocorridas no campo da arte contemporânea do Brasil nos últimos anos, a partir da emersão de novas gerações de artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as, representantes das camadas populacionais até então com rara representatividade nos ambientes privilegiados dos museus de arte, das muito exclusivas galerias paulistanas e cariocas e das afamadas coleções particulares dessas localidades.
Um dos pontos positivos de Negros na piscina é ter sido composto por textos ligados a diversas correntes metodológicas normalmente usadas para as reflexões sobre o fenômeno acima mencionado, o que demonstra uma saudável pluralidade no tratos das questões. Apesar dessa qualidade dos textos ali publicados – todos merecedores de comentários específicos – tratarei aqui de apenas dois desses ensaios, não somente pelo espaço exíguo desta resenha, mas sobretudo pelo impacto que ambos me causaram durante a leitura do livro. Refiro-me a Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação, de Diane Lima e Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, escrito por Amanda Carneiro, curadora.
Creio que, ao comentá-los, delineando seus principais pontos e a qualidade de muitas de suas observações e análises, estarei também chamando a atenção para a qualidade geral da publicação.
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O texto de Diane Lima, que também atua como introdução ao livro, não interessa apenas pelas reflexões fundamentadas, a respeito das mudanças ocorridas na cena artístico-cultural brasileira nas últimas décadas, no plano da absorção, no âmbito do circuito de arte, de agentes não-brancos[1]. Além da pertinência das considerações elaboradas por Diane sobre esse tema, seu ensaio igualmente interessa pela dimensão estética do seu texto que soube conjugar o conteúdo tão significativo a uma forma sofisticada de escrita. É interessante como a autora tece seu texto a partir da interpretação de duas fotografias que, ao impactarem a autora pela contundência imagética de ambas, funcionam como fios com os quais Diane engendrará sua escrita. A primeira é uma fotografia do artista afro-indígena Paulo Nazareth, sem título, de 2014, pertencente a uma série de trabalhos chamada Cadernos de África (iniciada em 2013 e ainda em processo); a segunda, uma foto produzida pelo intelectual e fotógrafo afrodescendente Jônatas Conceição, Por uma educação que interessa aos negros, produzida nos anos 1980, durante protesto ocorrido no Dia Nacional da Consciência Negra, em Salvador.
Diane usará a foto sem título de Paulo Nazareth – em que o artista posa com uma criança no colo e segurando um cartaz manuscrito, onde se lê Negros na piscina, não apenas como título para o livro por ela organizado, mas igualmente como metáfora para suas indagações sobre quais seriam as atuais condições dos artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as que, a partir sobretudo da segunda metade da década passada, começam a ter uma presença mais significativa no campo das artes visuais, após séculos em que raramente foram percebidos/as para além de sua condição de objeto de interesse estético e/ou etnológico. Em um dos momentos mais argutos do ensaio, Lima explicita o quanto o uso metafórico da obra de Nazareth lhe trouxe condições para pensar sobre a situação recentemente alcançada por esses jovens intelectuais e artistas. Assim ela escreve:
Mais uma vez a ironia e o duplo sentido despertam nossa dúvida, interesse e curiosidade de entrar na piscina. Momento em que nos abrimos à possibilidade de imaginar aquilo a que a palavra “piscina”, usada como figura de linguagem, nos convida: a piscina-foto, , a piscina-museu, a piscina-galeria, a piscina-instituição, a piscina-mercado de trabalho, a piscina-festa, a piscina-livro, a piscina-escola, a piscina-faculdade, a piscina-piscina e todas as infinitas possibilidades ou impossibilidades de ser e estar na piscina. Ou seja, todos os contextos, espaços ou situações – algumas vezes possíveis, antes impossíveis, inimagináveis, de algum modo desejáveis, proibitivos ou mesmo ilegais a corpos como o seu e os nossos – que a piscina, como campo da disputa, possibilita[2].
Caracterizada essa nova situação alcançada pelas jovens gerações e artistas e intelectuais não-brancas no Brasil, a autora se posiciona criticamente sobre o que de fato pode significar, ou pode vir a significar, essa entrada nas várias “piscinas”, antes ocupadas apenas por brancos e brancas. Será a partir das possíveis consequências que essa “ultravisibilidade” pode ou poderá trazer para o devir desse contingente de novos/as intelectuais e artistas não-brancos, que a autora encaminhará suas considerações, até alcançar a outra foto mencionada, de Jônatas Conceição. Assim Diane descreve o que a impactou naquela imagem: “Na cena, registrada durante um protesto ocorrido nos anos 1980, em Salvador, duas mulheres negras, cercadas por muitas outras, empunham cartazes que, em meio às muitas palavras de ordem ilegíveis, dizem: ‘Por uma educação que interesse aos negros'”[3].
Para Lima, a imagem de Conceição serve como uma espécie de alerta para, em primeiro lugar, lembrar que a luta de muitas e muitos, no passado, foi crucial para a conquista de certas posições que podem ser usufruídas hoje; em segundo, lembra da necessidade de não se conformar e de desconfiar dos efeitos aparentemente bons que a recente conquista dos espaços institucionalizados trouxe para artistas e intelectuais não-brancas/os. Afinal, mesmo com a vitória, os espaços aparentemente conquistados – as piscinas – continuam pertencentes àqueles a que sempre pertenceram.
É a partir dessa espécie de encruzilhada que as duas imagens fotográficas lhe sugeriram que Diane, então, chamará a atenção para a necessidade de que o debate crítico continue, para que seja possível, efetivamente, realizar no concreto o que propunha a palavra de ordem lida na fotografia de Conceição: “Por uma educação que interesse aos negros” – ampliando, em muito os sentidos da palavra “educação”. E será, portanto, a partir da consciência de todos estarem naquela encruzilhada que a autora, então, esclarecerá os meandros conceituais que guiaram a escolha daqueles e daquelas que foram convidados/as a colaborarem com a publicação.
Nesse momento de reorganização necessária das táticas e das lutas a serem ainda travadas para que a hipervisibilidade alcançada pelos/as não-brancos/as não desague na mera submissão desses/as agentes ao mundo já instituído pelos antigos donos de todas as “piscinas”, é que Diane opta pela pluralidade de pontos de vista para convidar seus colaboradores. O que amplia ainda mais o interesse e importância de O negro na piscina, mostrando que a organizadora agiu bem ao tomar o partido da diversidade.
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Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, ensaio de Amanda Carneiro[4], além da qualidade das considerações e argumentações que apresenta, enquadra-se bem nos propósitos de Diane Lima em trazer para o interior do livro textos que, plurais, confiram novo gás para todas as questões que perpassam os sentidos da metáfora “os negros na piscina” e da palavra de ordem, “Por uma educação que interesse aos negros”.
Em Violentamente pacífica: …, a autora tem como propósito trazer para o setor dos museus de arte a discussão sobre a descolonização desse tipo de instituição, tradicionalmente mais atrelada aos museus de extração etnográfica. Ainda introduzindo seu temário, Amanda ajuda a definir de forma ainda mais explícita aquela encruzilhada percebida por Diane Lima, no texto anterior. Ela afirma:
Há quem associe a descolonização com a inclusão e diversidade, ou seja, com a entrada de grupos historicamente subalternizados nas hierarquias institucionais. Alguns indicam que é necessário ser radicalmente anticolonial e antirracista e se posicionam em favor de um rompimento radical com fundamentos estruturais do mundo da arte, não raro alicerçados na extração colonial de recursos e conhecimentos. Há quem denuncie também a cooptação do termo[5].
Depois dessa sintética caracterização da complexidade geral do debate, a autora traz a questão para o Brasil, afirmando que, apesar de uma tênue melhoria na frequência mais democrática aos museus, esta ainda é uma prática alheia ao interesse da maioria da população brasileira (periférica e trabalhadora). Mas o problema, para a autora, não termina aí. Se como público, as populações não-brancas ainda são raras nas instituições museológicas, essas, por sua vez, continuam sendo geridas por pessoal majoritariamente branco: “Ao olhar para o corpo diretivo e gestor – artístico e executivo, incluindo conselheiros e patronos –, amplia-se o fosso e a disparidade de representação dos diferentes grupos que compõem a sociedade”.[6]
A autora fará alusão ainda à série de saques que potências coloniais fizeram da produção de várias culturas não-brancas, atentando para um dado de muito interesse: o fato de que nos espaços museológicos europeus, essas coleções etnográficas pilhadas são tratadas dentro de uma prática que as tornam equivalentes a obras de arte. Ela declara, fazendo referência ao Humboldt Forum, de Berlim, que, ao receber uma coleção de mais de 70.000 objetos vindos da África, transformou aquela: “a coleção etnográfica com ares de equivalência a obra de arte. É claro que não se deve diminuir o valor artístico de tais objetos, no entanto, não soa coerente camuflar com isso as inúmeras coerções impressas no fluxo que os levaram até a instituição que hoje o abriga[7].
De volta ao cenário brasileiro, Amanda lembrará de algumas iniciativas no campo museológico que se prestaram a atender às demandas dos grupos sociais marginalizados, como negros, (o Museu de Arte Negra, de Abdias Nascimento), os indígenas (o Museu do Índio, de Darcy Ribeiro) e o dedicado a pessoas com distúrbios mentais (o Museu do Inconsciente de Nise da Silveira). Amanda lembra que tais instituições, no entanto:
Enquanto atendiam demandas de movimentos contestatórios, também reproduziam padrões excludentes, seja de maneira benevolente ou autoritária, sobretudo em torno das discriminações e da opressão de gênero e raça, mais em suas estruturas hierárquicas e ocupação de posições de poder do que em sus coleções, embora a primeira esteja contida na segunda.[8]
Face a essa situação complexa em que ações e comportamentos estruturalmente preconceituosos quanto à raça e a gênero imperam mesmo em iniciativas que se propõem atender à quebra dos privilégios nos museus, Carneiro se pergunta como, mesmo assim, descolonizar os museus? Não sendo uma indagação apenas retórica, a autora então começa a encaminhar seu texto para o final, afirmando que não se pode confundir os termos diversidade, pluralidade, multiculturalidade, decolonialidade e descolonização. Para Amanda, eles não são sinônimos e usá-los dessa maneira pode fazer com que, inadvertidamente, se acabe indo ao encontro dos interesses dos donos das piscinas (para reutilizar a metáfora cunhada por Lima).
Segundo Amanda, um museu diverso não será necessariamente decolonial. Para ela, o fato de uma instituição exibir e possuir em seu acervo obras de artistas negros, mulheres, pessoas transgênero e indígenas, não a transformam em uma instituição decolonial. E isto porque, mesmo em museus com esse novo perfil, a autora não percebe nenhuma mudança estrutural nos cânones que regem a hierarquização por trás das escolhas nas compras e nas exibições. Toda a diversidade das obras é submetida a valores apenas eurocêntricos que ainda direcionam as políticas da maioria dos museus.
Para agravar ainda mais a situação, todas essas instituições, mesmo as que buscam uma maior diversidade, estão mergulhadas naquilo que o intelectual peruano Aníbal Quijano, no final do século passado, definiu como “colonialidade”. Será, então, apenas nesse momento que Amanda explicitará o que entende pelos termos “colonialidade’, “descolonizar’, antes apenas sugeridos. Para tanto, afirma que, do ponto de vista de Quijano:
[…] se o conhecimento estiver sob influência da colonialidade, é fundamental a empreitada de descolonizá-lo. Mesmo após o término dos períodos coloniais em territórios anteriormente subjugados, a colonialidade perdura de diversas maneiras ao longo do tempo e no espaço. Seguindo essa linha de raciocínio, é necessário reconhecer que a colonialidade continua a se manifestar, inclusive na esfera cultural, onde sua detecção e superação podem ser mais complexas.
E finaliza sua definição do conceito de Quijano, afirmando: “Com frequência, essa noção de colonialidade conflui com outras tradições críticas que têm genealogias e interesses distintos, como os estudos subalternos e os estudos pós-coloniais”.[9]
Como fazer para romper com essa condição perene, de certa forma, também estrutural do processo da colonialidade? Esta é, no fundo, a maior e mais interessante questão que Amanda Carneiro enfrenta em seu ensaio, mas é claro que não vou relatar aqui o que a autora propõe para superar esse impasse, ou mesmo se ela proporá qualquer possibilidade de superação. Que o leitor/a tenha o interesse de saber como a intelectual conclui seu ensaio, como me referi antes, um dos mais interessantes presentes em O negro na piscina.
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Com outras contribuições assinadas por Jaider Esbell, Daniel Lima, Rosana Paulino e Claudinei Roberto da Silva, entre outros e outras, O negro na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação chega na frente e logo se institui como uma contribuição fundamental para a crítica e para a história da arte no país – o primeiro trabalho coletivo de fôlego, ao que me consta, que, em forma de livro, chega para peitar de frente a emersão desses intelectuais e críticos não-brancos e todos os desafios que eles trazem e instauram em pleno centro do poder da arte contemporânea no Brasil.
Que os grandes temas levantados e discutidos nas páginas do livro alcancem outros cantos e façam proliferar novos debates que ajudem a desanuviar as sombras e meios-tons que pairam sobre a prática da arte e da crítica no país. Impossível ler O negro na piscina e não reparar que é mais do que necessário explicitar a contradição em continuar pensando a produção artística brasileira apenas como continuidade dos valores artísticos e estéticos importados (ou “herdados”, como querem alguns e algumas) da Europa e/ou dos Estados Unidos.
Em que pese que grande parte das questões levantadas em O negro na piscina também surgiu da importação de temas originariamente levantados nos Estados Unidos, parece não restar dúvida de que eles, devidamente deglutidos por nossa circunstância, podem vir a fornecer subsídios importantes para que o debate aqui ganhe outros e mais interessantes contornos.
[1] – Essas mudanças, é preciso não se esquecer, têm suas origens mais remotas no início deste século, período da aprovação de leis que – consequências concretas da luta dos movimentos negros organizados –, criaram condições para as mudanças ocorridas na vida das comunidades não-brancas do país.
[2][2] – LIMA, Diane. “Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação” In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 16.
[3] – LIMA, Diane. Op. cit. p.22.
[4] – CARNEIRO, Amanda. “Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional”. In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 51.
[5] – Op. cit. p. 52.
[6] – Op. cit.
[7][7] – Op. cit. p.53
[8] – Op. cit. p. 54.
[9] – Op.