'Negros na piscina' (2014), de Paulo Nazareth. Cortesia: Mendes Wood DM
'Negros na piscina' (2014), de Paulo Nazareth. Cortesia: Mendes Wood DM

Lançado discretamente no primeiro semestre deste ano (embora impresso ainda em 2023), o livro Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação (Ed. Fósforo) chegou nadando de braçadas para conquistar o pódio das melhores publicações saídas em 2024 sobre arte e cultura na cena contemporânea brasileira. Organizado pela jovem intelectual – com presença já expressiva no campo da curadoria e dos estudos curatoriais – Diane Lima, o livro traz textos, depoimentos e entrevistas produzidas por um conjunto formado por intelectuais e artistas afrodescendentes, afro-indígenas e indígenas.

Em todo o material ali reunido são apresentados aspectos que, por maneiras diversas, trazem possibilidades para que se entenda e se reflita sobre as transformações ocorridas no campo da arte contemporânea do Brasil nos últimos anos, a partir da emersão de novas gerações de artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as, representantes das camadas populacionais até então com rara representatividade nos ambientes privilegiados dos museus de arte, das muito exclusivas galerias paulistanas e cariocas e das afamadas coleções particulares dessas localidades.

Capa de 'Negros na piscina' (Ed. Fósforo), de Diane Lima. Cortesia da editora
Capa de ‘Negros na piscina’ (Ed. Fósforo), de Diane Lima. Cortesia da editora

Um dos pontos positivos de Negros na piscina é ter sido composto por textos ligados a diversas correntes metodológicas normalmente usadas para as reflexões sobre o fenômeno acima mencionado, o que demonstra uma saudável pluralidade no tratos das questões. Apesar dessa qualidade dos textos ali publicados – todos merecedores de comentários específicos – tratarei aqui de apenas dois desses ensaios, não somente pelo espaço exíguo desta resenha, mas sobretudo pelo impacto que ambos me causaram durante a leitura do livro. Refiro-me a Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação, de Diane Lima e Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, escrito por Amanda Carneiro, curadora.

Creio que, ao comentá-los, delineando seus principais pontos e a qualidade de muitas de suas observações e análises, estarei também chamando a atenção para a qualidade geral da publicação.

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O texto de Diane Lima, que também atua como introdução ao livro, não interessa apenas pelas reflexões fundamentadas, a respeito das mudanças ocorridas na cena artístico-cultural brasileira nas últimas décadas, no plano da absorção, no âmbito do circuito de arte, de agentes não-brancos[1]. Além da pertinência das considerações elaboradas por Diane sobre esse tema, seu ensaio igualmente interessa pela dimensão estética do seu texto que soube conjugar o conteúdo tão significativo a uma forma sofisticada de escrita. É interessante como a autora tece seu texto a partir da interpretação de duas fotografias que, ao impactarem a autora pela contundência imagética de ambas, funcionam como fios com os quais Diane engendrará sua escrita. A primeira é uma fotografia do artista afro-indígena Paulo Nazareth, sem título, de 2014, pertencente a uma série de trabalhos chamada Cadernos de África (iniciada em 2013 e ainda em processo); a segunda, uma foto produzida pelo intelectual e fotógrafo afrodescendente Jônatas Conceição, Por uma educação que interessa aos negros, produzida nos anos 1980, durante protesto ocorrido no Dia Nacional da Consciência Negra, em Salvador.

Diane usará a foto sem título de Paulo Nazareth – em que o artista posa com uma criança no colo e segurando um cartaz manuscrito, onde se lê Negros na piscina, não apenas como título para o livro por ela organizado, mas igualmente como metáfora para suas indagações sobre quais seriam as atuais condições dos artistas, curadores/as e educadores/as não-brancos/as que, a partir sobretudo da segunda metade da década passada, começam a ter uma presença mais significativa no campo das artes visuais, após séculos em que raramente foram percebidos/as para além de sua condição de objeto de interesse estético e/ou etnológico. Em um dos momentos mais argutos do ensaio, Lima explicita o quanto o uso metafórico da obra de Nazareth lhe trouxe condições para pensar sobre a situação recentemente alcançada por esses jovens intelectuais e artistas. Assim ela escreve:

Mais uma vez a ironia e o duplo sentido despertam nossa dúvida, interesse e curiosidade de entrar na piscina. Momento em que nos abrimos à possibilidade de imaginar aquilo a que a palavra “piscina”, usada como figura de linguagem, nos convida: a piscina-foto, , a piscina-museu, a piscina-galeria, a piscina-instituição, a piscina-mercado de trabalho, a piscina-festa, a piscina-livro, a piscina-escola, a piscina-faculdade, a piscina-piscina e todas as infinitas possibilidades ou impossibilidades de ser e estar na piscina. Ou seja, todos os contextos, espaços ou situações – algumas vezes possíveis, antes impossíveis, inimagináveis, de algum modo desejáveis, proibitivos ou mesmo ilegais a corpos como o seu e os nossos – que a piscina, como campo da disputa, possibilita[2].

Caracterizada essa nova situação alcançada pelas jovens gerações e artistas e intelectuais não-brancas no Brasil, a autora se posiciona criticamente sobre o que de fato pode significar, ou pode vir a significar, essa entrada nas várias “piscinas”, antes ocupadas apenas por brancos e brancas. Será a partir das possíveis consequências que essa “ultravisibilidade” pode ou poderá trazer para o devir desse contingente de novos/as intelectuais e artistas não-brancos, que a autora encaminhará suas considerações, até alcançar a outra foto mencionada, de Jônatas Conceição. Assim Diane descreve o que a impactou naquela imagem: “Na cena, registrada durante um protesto ocorrido nos anos 1980, em Salvador, duas mulheres negras, cercadas por muitas outras, empunham cartazes que, em meio às muitas palavras de ordem ilegíveis, dizem: ‘Por uma educação que interesse aos negros'”[3].

Para Lima, a imagem de Conceição serve como uma espécie de alerta para, em primeiro lugar, lembrar que a luta de muitas e muitos, no passado, foi crucial para a conquista de certas posições que podem ser usufruídas hoje; em segundo, lembra da necessidade de não se conformar e de desconfiar dos efeitos aparentemente bons que a recente conquista dos espaços institucionalizados trouxe para artistas e intelectuais não-brancas/os. Afinal, mesmo com a vitória, os espaços aparentemente conquistados – as piscinas – continuam pertencentes àqueles a que sempre pertenceram.

É a partir dessa espécie de encruzilhada que as duas imagens fotográficas lhe sugeriram que Diane, então, chamará a atenção para a necessidade de que o debate crítico continue, para que seja possível, efetivamente, realizar no concreto o que propunha a palavra de ordem lida na fotografia de Conceição: “Por uma educação que interesse aos negros” – ampliando, em muito os sentidos da palavra “educação”. E será, portanto, a partir da consciência de todos estarem naquela encruzilhada que a autora, então, esclarecerá os meandros conceituais que guiaram a escolha daqueles e daquelas que foram convidados/as a colaborarem com a publicação.

Nesse momento de reorganização necessária das táticas e das lutas a serem ainda travadas para que a hipervisibilidade alcançada pelos/as não-brancos/as não desague na mera submissão desses/as agentes ao mundo já instituído pelos antigos donos de todas as “piscinas”, é que Diane opta pela pluralidade de pontos de vista para convidar seus colaboradores. O que amplia ainda mais o interesse e importância de O negro na piscina, mostrando que a organizadora agiu bem ao tomar o partido da diversidade.

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Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional, ensaio de Amanda Carneiro[4], além da qualidade das considerações e argumentações que apresenta, enquadra-se bem nos propósitos de Diane Lima em trazer para o interior do livro textos que, plurais, confiram novo gás para todas as questões que perpassam os sentidos da metáfora “os negros na piscina” e da palavra de ordem, “Por uma educação que interesse aos negros”.

Em Violentamente pacífica: …, a autora tem como propósito trazer para o setor dos museus de arte a discussão sobre a descolonização desse tipo de instituição, tradicionalmente mais atrelada aos museus de extração etnográfica. Ainda introduzindo seu temário, Amanda ajuda a definir de forma ainda mais explícita aquela encruzilhada percebida por Diane Lima, no texto anterior. Ela afirma:

Há quem associe a descolonização com a inclusão e diversidade, ou seja, com a entrada de grupos historicamente subalternizados nas hierarquias institucionais. Alguns indicam que é necessário ser radicalmente anticolonial e antirracista e se posicionam em favor de um rompimento radical com fundamentos estruturais do mundo da arte, não raro alicerçados na extração colonial de recursos e conhecimentos. Há quem denuncie também a cooptação do termo[5].

Depois dessa sintética caracterização da complexidade geral do debate, a autora traz a questão para o Brasil, afirmando que, apesar de uma tênue melhoria na frequência mais democrática aos museus, esta ainda é uma prática alheia ao interesse da maioria da população brasileira (periférica e trabalhadora). Mas o problema, para a autora, não termina aí. Se como público, as populações não-brancas ainda são raras nas instituições museológicas, essas, por sua vez, continuam sendo geridas por pessoal majoritariamente branco: “Ao olhar para o corpo diretivo e gestor – artístico e executivo, incluindo conselheiros e patronos –, amplia-se o fosso e a disparidade de representação dos diferentes grupos que compõem a sociedade”.[6]

A autora fará alusão ainda à série de saques que potências coloniais fizeram da produção de várias culturas não-brancas, atentando para um dado de muito interesse: o fato de que nos espaços museológicos europeus, essas coleções etnográficas pilhadas são tratadas dentro de uma prática que as tornam equivalentes a obras de arte. Ela declara, fazendo referência ao Humboldt Forum, de Berlim, que, ao receber uma coleção de mais de 70.000 objetos vindos da África, transformou aquela: “a coleção etnográfica com ares de equivalência a obra de arte. É claro que não se deve diminuir o valor artístico de tais objetos, no entanto, não soa coerente camuflar com isso as inúmeras coerções impressas no fluxo que os levaram até a instituição que hoje o abriga[7].

De volta ao cenário brasileiro, Amanda lembrará de algumas iniciativas no campo museológico que se prestaram a atender às demandas dos grupos sociais marginalizados, como negros, (o Museu de Arte Negra, de Abdias Nascimento), os indígenas (o Museu do Índio, de Darcy Ribeiro) e o dedicado a pessoas com distúrbios mentais (o Museu do Inconsciente de Nise da Silveira). Amanda lembra que tais instituições, no entanto:

Enquanto atendiam demandas de movimentos contestatórios, também reproduziam padrões excludentes, seja de maneira benevolente ou autoritária, sobretudo em torno das discriminações e da opressão de gênero e raça, mais em suas estruturas hierárquicas e ocupação de posições de poder do que em sus coleções, embora a primeira esteja contida na segunda.[8]

Face a essa situação complexa em que ações e comportamentos estruturalmente preconceituosos quanto à raça e a gênero imperam mesmo em iniciativas que se propõem atender à quebra dos privilégios nos museus, Carneiro se pergunta como, mesmo assim, descolonizar os museus? Não sendo uma indagação apenas retórica, a autora então começa a encaminhar seu texto para o final, afirmando que não se pode confundir os termos diversidade, pluralidade, multiculturalidade, decolonialidade e descolonização. Para Amanda, eles não são sinônimos e usá-los dessa maneira pode fazer com que, inadvertidamente, se acabe indo ao encontro dos interesses dos donos das piscinas (para reutilizar a metáfora cunhada por Lima).

Segundo Amanda, um museu diverso não será necessariamente decolonial. Para ela, o fato de uma instituição exibir e possuir em seu acervo obras de artistas negros, mulheres, pessoas transgênero e indígenas, não a transformam em uma instituição decolonial. E isto porque, mesmo em museus com esse novo perfil, a autora não percebe nenhuma mudança estrutural nos cânones que regem a hierarquização por trás das escolhas nas compras e nas exibições. Toda a diversidade das obras é submetida a valores apenas eurocêntricos que ainda direcionam as políticas da maioria dos museus.

Para agravar ainda mais a situação, todas essas instituições, mesmo as que buscam uma maior diversidade, estão mergulhadas naquilo que o intelectual peruano Aníbal Quijano, no final do século passado, definiu como “colonialidade”. Será, então, apenas nesse momento que Amanda explicitará o que entende pelos termos “colonialidade’, “descolonizar’, antes apenas sugeridos. Para tanto, afirma que, do ponto de vista de Quijano:

[…] se o conhecimento estiver sob influência da colonialidade, é fundamental a empreitada de descolonizá-lo. Mesmo após o término dos períodos coloniais em territórios anteriormente subjugados, a colonialidade perdura de diversas maneiras ao longo do tempo e no espaço. Seguindo essa linha de raciocínio, é necessário reconhecer que a colonialidade continua a se manifestar, inclusive na esfera cultural, onde sua detecção e superação podem ser mais complexas.

E finaliza sua definição do conceito de Quijano, afirmando: “Com frequência, essa noção de colonialidade conflui com outras tradições críticas que têm genealogias e interesses distintos, como os estudos subalternos e os estudos pós-coloniais”.[9]

Como fazer para romper com essa condição perene, de certa forma, também estrutural do processo da colonialidade? Esta é, no fundo, a maior e mais interessante questão que Amanda Carneiro enfrenta em seu ensaio, mas é claro que não vou relatar aqui o que a autora propõe para superar esse impasse, ou mesmo se ela proporá qualquer possibilidade de superação. Que o leitor/a tenha o interesse de saber como a intelectual conclui seu ensaio, como me referi antes, um dos mais interessantes presentes em O negro na piscina.

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Com outras contribuições assinadas por Jaider Esbell, Daniel Lima, Rosana Paulino e Claudinei Roberto da Silva, entre outros e outras, O negro na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação chega na frente e logo se institui como uma contribuição fundamental para a crítica e para a história da arte no país – o primeiro trabalho coletivo de fôlego, ao que me consta, que, em forma de livro, chega para peitar de frente a emersão desses intelectuais e críticos não-brancos e todos os desafios que eles trazem e instauram em pleno centro do poder da arte contemporânea no Brasil.

Que os grandes temas levantados e discutidos nas páginas do livro alcancem outros cantos e façam proliferar novos debates que ajudem a desanuviar as sombras e meios-tons que pairam sobre a prática da arte e da crítica no país. Impossível ler O negro na piscina e não reparar que é mais do que necessário explicitar a contradição em continuar pensando a produção artística brasileira apenas como continuidade dos valores artísticos e estéticos importados (ou “herdados”, como querem alguns e algumas) da Europa e/ou dos Estados Unidos.

Em que pese que grande parte das questões levantadas em O negro na piscina também surgiu da importação de temas originariamente levantados nos Estados Unidos, parece não restar dúvida de que eles, devidamente deglutidos por nossa circunstância, podem vir a fornecer subsídios importantes para que o debate aqui ganhe outros e mais interessantes contornos.

[1] – Essas mudanças, é preciso não se esquecer, têm suas origens mais remotas no início deste século, período da aprovação de leis que – consequências concretas da luta dos movimentos negros organizados –, criaram condições para as mudanças ocorridas na vida das comunidades não-brancas do país.

[2][2] – LIMA, Diane. “Negros na piscina: arte contemporânea, curadoria e educação” In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 16.

[3] – LIMA, Diane. Op. cit. p.22.

[4] – CARNEIRO, Amanda. “Violentamente pacífica: arte, decolonialidade e inserção institucional”. In LIMA, Diane (org.). Negros na piscina. Arte contemporânea, curadoria e educação. São Paulo: Fósforo, 2023 p. 51.

[5]Op. cit. p. 52.

[6]Op. cit.

[7][7] – Op. cit. p.53

[8]Op. cit. p. 54.

[9]Op.


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