Charles F. Hartt, com a cidade do Recife ao fundo, durante levantamento da Comissão Geológica do Império. Recife, 1875. Fotografia de Marc Ferrez / Acervo IMS

Mesmo nesses tempos bicudos que vivemos em 2019, São Paulo anda pródiga de boas e excelentes exposições – e olha que este ano que nunca deveria ter começado ainda não acabou!

Muitas individuais e coletivas ocorridas em galerias comerciais ou em espaços alternativos apresentaram a produção mais recente de artistas em franca atividade com produções de qualidade, como o caso de KA’RÃI, de Dora Longo Bahia, mostrada recentemente na Galeria Vermelho (e aqui comentada). Já Featuring – montada em um ateliê no bairro de Santa Cecília –, apresentou obras de Leandro Muniz, Marcelo Pacheco e Thomaz Rosa. Não, não havia um “artista principal” e seus convidados: a mostra apresentou sem distinções as produções desses três jovens pintores que um dia, com certeza, irão dar o que falar. KA’RÃI e Featuring são duas mostras que dão bem a medida da potência e potencialidades da arte produzida na cidade.

Mas como o ambiente paulistano não vive apenas de individuais e coletivas mostrando obras recentes de artistas locais, foram inúmeras as exposições que ocorreram (ou ocorrem) este ano em São Paulo com o objetivo de apresentarem resumos, antologias ou retrospectivas de artistas consagrados.

Se algumas deixaram a desejar (caso da retrospectiva de Tarsila no MASP, aqui também comentada), outras conseguiram a proeza de trazer para o público da cidade preciosidades e aspectos pouco divulgados de grandes nomes da arte produzida no Brasil e em outros países. Dentro desse universo mais restrito das exposições retrospectivas ousaria afirmar que duas das mais importantes até o momento foram, sem dúvida, aquelas dedicadas a Marc Ferrez (Marc Ferrez: Território e Imagem, em cartaz no Instituto Moreira Salles, entre março e julho) e Man Ray em Paris (até final de outubro, no Centro Cultural Banco do Brasil). Ambas apresentaram seus artistas com o que foi considerado o melhor de suas produções.

No entanto, há uma diferença entre as duas mostras: se em Marc Ferrez: Território e Imagem o objetivo era rever o percurso do fotógrafo (Rio de Janeiro, 1843-1923) no contexto de transformação do Brasil, desde o final do Segundo Império até a consolidação da República Velha, Man Ray em Paris, por sua vez, tem como foco principal demonstrar a excepcionalidade do artista norte-americano (1890-1976), durante os períodos em que passou na capital francesa (1921-1940 e 1951/1976).

Preocupado em entender as transformações passadas pelo país naquelas décadas cruciais da história do Brasil, o curador da mostra Marc Ferrez: Território e Imagem, Sergio Burgi, centrou seu interesse nos trabalhos desenvolvidos por Ferrez e sua equipe junto a diversos empreendimentos governamentais ou privados, ligados ao conhecimento mais meticuloso do território brasileiro, e da expansão da malha ferroviária do país.

Em paralelo a tal objetivo interessava também a Burgi investigar a adesão de Ferrez ao desenvolvimento da fotografia naquele período, no intuito de dar conta das demandas de suas atribuições como fotógrafo oficial das várias viagens que realizou pelo país, documentando aqueles empreendimentos.

Para traduzir essas questões para o público do IMS, a curadoria lançou mão não apenas do acervo de obras de Marc Ferrez, pertencentes ao Instituto, mas também de obras do fotógrafo, pertencentes à coleção do Getty Museum, assim como de câmeras e outros equipamentos fotográficos de época, documentos autógrafos, impressos e uma série de outros objetos que davam a exata medida do comprometimento de Marc Ferrez com as transformações da fotografia e a importância cada vez maior que ela assumia em uma sociedade em contínua mutação.

Como resultado de todo esse empenho em pensar a fotografia de Ferrez dentro do contexto mais alargado das transformações pelas quais passava o país naquela época, e também das próprias mudanças da fotografia, Marc Ferrez: Território e Imagem converteu-se em uma das exposições mais dinâmicas apresentadas em São Paulo este ano, levando o público do Instituto a uma imersão profunda, tanto na produção de Ferrez e na história da fotografia, quanto na própria história do país.

Já a curadora de Man Ray em Paris, Emmanuelle de L’Ecotais, parece ter tido por objetivo demonstrar como Man Ray pode e deve ser reconhecido como um dos principais artistas da primeira metade do século passado, ligado à experimentação no campo da fotografia e do cinema. Porém, a essa dimensão fortemente empírica da produção do artista (que, de maneira contraditória, não lhe retirava o caráter premeditado de muitas de suas produções), não correspondeu uma curadoria cujo mote também tenha sido a experimentação. Pelo contrário: Man Ray em Paris prima por uma expografia que tem a discrição como característica principal utilizada, na certa, para valorizar as estupendas fotografias vintage que compõem grande parte das peças ali apresentadas.

Creio poder afirmar que a exposição transfere para os espaços expositivos onde a maioria de suas obras são exibidas a sofisticação singular que emana das preciosas imagens do artista norte-americano. Os espaços foram trabalhados para que o visitante se concentrasse no universo de Man Ray, a partir da visualização cuidadosa de cada uma das fotografias, pensadas como se fossem objetos únicos.

O que não é o caso.

Como sabemos, a fotografia possui, talvez como sua principal característica, a possibilidade de multiplicação. Ela não é única como a pintura e é justamente nessa sua capacidade de transcender a unicidade que reside sua maior potência. E Man Ray parecia saber disso e parecia saber também como era possível fazer sua produção trafegar por vários caminhos atingindo um número imenso de pessoas, fato impossível se cada uma das imagens que criava se mantivesse única. Por isso o artista não produziu os retratos que produziu (ou qualquer outro tipo de fotografia) para permanecerem intocados como exemplares únicos – ou quase únicos – em coleções particulares. Inclusive, suas imagens chegaram a circular tanto em publicações ligadas à moda – Vogue e outras revistas da elite – quanto em revistas da vanguarda surrealista; e é em tal trânsito que, de fato, parece residir todo o seu interesse pela dimensão experimental da produção que realizou, experimentalismo que, como mencionado, contraditoriamente, em muitos casos não excluía o cálculo e uma cultura visual bastante ligada à tradição da pintura, diga-se. Mas em Man Ray em Paris essa importância da contribuição do artista para a transformação dos próprios conceitos de arte e de artista jaz confinada apenas em um ou outro texto de parede (e em algumas salas finais da mostra).

O universo de onde foram retiradas as obras que configuram Man Ray em Paris é uma coleção particular francesa adquirida diretamente do artista, segundo me informou o responsável pela produção da exposição. Este fato, a meu ver, talvez ajude a explicar o excelente estado de conservação das obras exibidas e a qualidade extrema da grande maioria delas. Ali na mostra existe o olho de um amante da fotografia que a percebia sempre como integrante do universo das Belas Artes e, portanto, distante da realidade mais brutal dos meios de comunicação de massa por onde grande parte daquelas imagens trafegou.

Teria sido produtivo que o público atento à arte e à fotografia pudesse cotejar aqueles vintages tão preciosos com as páginas da Vogue ou da Révolution Surréaliste, por exemplo, mas não foi este o escopo da mostra. Man Ray em Paris preferiu manter-se dentro das concepções mais tradicionais de “obra de arte”, de “artista como gênio” e, por consequência, de uma prática curatorial também já devidamente consagrada. Fato que, absolutamente, não retira a importância da exposição e, muito menos, o seu lugar entre as principais mostras apresentadas em São Paulo este ano.


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