Não entre à esquerda, 1964, de Maurício Nogueira Lima (Col. MAM SP) poderia ser enquadrada como uma obra para espaços domésticos e não propriamente para um museu. Mais próxima de uma placa de sinalização, ela obedece a uma estrutura formal ligada ao movimento concreto, do qual Nogueira fez parte[1]: o suporte é dividido ao meio por uma vertical que, surgindo na parte inferior, desaparece para ressurgir na representação do sinal de tráfego, desaparecendo em seguida. Paralelas a essa vertical, mais duas são indicadas, à direita e à esquerda. Nove horizontais, em conjunto com as verticais, estabelecem uma grade virtual na base, cuja estabilidade é comprometida pela curva formada pela palavra “não”, encimando a pintura. Outro parentesco importante de Não entre à esquerda é com a poesia visual que então era produzida em São Paulo.
Esse hibridismo – misto de placa de sinalização, poesia visual e pintura concretista – ganha complexidade maior, devido tanto à inclusão de duas pequenas peças de metal sobre a pintura quanto ao sinal de tráfego e às palavras inscritas. As duas peças podem sugerir o interesse do artista em conferir materialidade à abstração daquele “mapa” tão sucinto. Elas são e ao mesmo tempo representam a “engrenagem” que move São Paulo.
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As palavras inscritas na obra podem ser divididas em dois grupos. O primeiro segue a objetividade de uma placa de sinalização com frases de fácil entendimento para quem domine a língua portuguesa. Elas enunciam: “Não entre à esquerda”, “Conserve-se à direita”. Essas reforçam o sinal de trânsito – elemento principal do trabalho. Já a terceira, embora inteligível, traz um ruído. A frase “Entre pelo cano” somente ganhará sentido quando aliada a outras informações inscritas no trabalho.
O segundo grupo de palavras – concentradas na base da obra – apesar de aludir a determinados topônimos da cidade, estão inscritos de forma a não seguirem a topografia de São Paulo.
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Durante o cubismo (mas não apenas), o uso de letras, palavras e mesmo de frases foi estratégico para vários artistas para sublinharem a bidimensionalidade da pintura, e também – ou ao mesmo tempo – outorgarem a ela um caráter mais entranhado na vida cotidiana ou vice-versa. O mesmo pode ser dito sobre os cubistas também terem usado pedaços de papel na produção de suas pinturas[2].
Se tal estratégia é visível na produção de alguns cubistas e entre outras vertentes do modernismo internacional, aqui no Brasil letras, palavras ou frases tiveram um uso mais parcimonioso: são raros os exemplos de obras que usaram desses dispositivos antes dos anos 1960. Na primeira metade do século XX, podem ser rememorados a pintura de Tarsila do Amaral, São Paulo (Gazo) (Col. Particular), de 1924, e algumas obras do artista paulistano Mick Carnicelli como raros exemplares desse tipo de procedimento. No caso da pintura de Tarsila, o uso da palavra “Gazo” testemunha sua adesão ao cubismo, ao mesmo tempo em que constata a modernidade de São Paulo (potencializada pela inclusão da palavra), convivendo com índices de seu caráter ainda provinciano. Já em Carnicelli, a palavra comparece em algumas de suas pinturas como mais um elemento que compõe o cenário urbano da cidade de São Paulo, captado por procedimentos ancorados numa tradição de feição naturalista.
O que singulariza Não entre à esquerda é como Nogueira Lima lança mão dessa estratégia para conferir novos significados à cidade. Ele se vale de frases objetivas de orientação de tráfego ao lado de uma frase irônica – “Entre pelo cano” – e também dos nomes de alguns bairros da cidade para reposicioná-los fora da ordem que seria de se esperar de uma placa de sinalização de São Paulo. Tudo motivado por um fato conjuntural e traumático: o golpe civil-militar de 1964.
A partir daquela data fatídica – 31 de março de 1964 –, São Paulo passou a ser vista por Nogueira Lima como um território dividido em dois blocos: aquele que apoiava o golpe militar (à “direita”) e aquele que a ele se opunha (à “esquerda”). Reorganizando assim a cidade, Nogueira Lima junta à esquerda os nomes dos bairros que formam para ele um território específico: “Liberdade”, “Paraíso” e “Bela Vista”. Ou seja, à esquerda do cidadão que hipoteticamente se depara com aquela espécie de placa à sua frente existe em São Paulo um território de liberdade, paz, harmonia e beleza. Do outro lado, à direita, há outra organização, reunindo bairros cujos nomes possuem, além do sentido estrito, significados específicos entendidos apenas pelos paulistanos: “Consolação”, “Casa Verde” e “Carandiru”. “Consolação” refere-se ao bairro homônimo onde está localizado o cemitério que lhe deu o nome; “Carandirú”, por sua vez, reporta ao bairro que cresceu ao lado de uma penitenciária. E “Casa Verde” diz respeito a um outro bairro que também abrigava uma antiga prisão.
Apesar de todo maniqueísmo de Não entre à esquerda – compreensivo, aliás, se não nos esquecermos do impacto do referido golpe naqueles que possuíam outras expectativas para o Brasil –, não resta dúvida de que o artista empreendeu uma operação de contundente invocação poética ao propor outra possibilidade para registrar sua revolta frente à situação da cidade (e do país) por meio da reorganização de seu mapa. O que interessa salientar é que talvez pela primeira vez um artista se valeu da subversão dos códigos de representação estandardizado de uma cidade brasileira para propor um novo mapa, uma nova representação, no caso, de São Paulo: um mapa movido pela atitude revoltosa frente ao fato de ter visto solaparem seu projeto de país? Sem dúvida. Porém, não há como não reconhecer a carga de afeto pela cidade misturada àquela revolta. Um afeto que o leva a buscar entender a nova realidade do país a partir da rearticulação e reposicionamento de alguns topônimos de São Paulo, em sua representação mais imediata e objetiva: uma placa de sinalização, um tipo de mapa mais enxuto.
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Ao reinventar no plano da pintura um novo mapa para a cidade, Nogueira Lima traz para o âmbito da arte contemporânea local uma vontade de intervir na configuração estratificada de São Paulo, fornecendo-lhe outra configuração, expandindo sua consciência sobre a cidade e a circunstância que ela e todos seus habitantes viviam.
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São Paulo não teve sua fisionomia captada pelo desenho, pela aquarela, pela pintura e mesmo pela gravura com a mesma intensidade com que foram retratadas outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Salvador. Mesmo assim, a partir do século XIX ela foi registrada por artistas como Thomas Ender, Eduard Hildebrandt e outros. No entanto, nenhum pintor ou gravador que se saiba conseguiu assinalar o processo de transformação da cidade com tanta perspicácia como Militão Azevedo, com as fotografias que compõem seu Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo. Justapondo imagens da cidade captadas em 1862 com outras dos mesmos lugares produzidas em 1887, Azevedo conseguiu – dentro dos limites da fotografia de sua época – sublinhar as transformações que já caracterizavam São Paulo como um contínuo vir a ser.
Obras de artistas como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva e Antonio Ferrigno, entre outros, apresentam cenas pacatas da cidade, sempre interpretada por um viés naturalista, revelador de uma placidez interiorana e sossegada.
Mesmo no âmbito do modernismo dos anos 1920 e depois, a São Paulo que aparece – e quando aparece –, é uma cidade destituída de dinamismo, de qualquer índice de seus aspectos transformadores. A cidade que emerge nas telas de Tarsila do Amaral, por exemplo, revela poucos sinais de transformação. Tanto em São Paulo (Pinacoteca) quanto na citada São Paulo (Gazo), ambas de 1924, a cidade – talvez subjugada demais pelos rigores pós-cubistas de linhagem purista –, aparece austera e cristalizada pelos conceitos de “equilíbrio, construção, sobriedade”[3].
Talvez o único modernista que captou a metrópole em potencial que era São Paulo nas primeiras décadas do século passado tenha sido Flávio de Carvalho, em seu Viaduto Santa Ifigênia à noite, (1934, Col. Particular). A São Paulo noturna de Carvalho, mesmo com a multidão ausente, apresenta-se possante, com o viaduto e os edifícios indicando seu crescimento e modernidade. Essa pintura não retrata uma cidade pacata, retida no torpor. Ela é a representação de uma metrópole que descansa, ao mesmo tempo em que revela sua pujança, a partir de linhas horizontais e curvas, repleta de vazados que se interpõem a formas verticais altivas.
Parecem existir duas São Paulo no período entre as duas guerras mundiais, e mesmo após 1945:
A primeira, a dos fotógrafos, flagra a cidade no seu crescimento até então inconcebível. Hildegard Rosenthal, Hans Gunter Flieg, Peter Scheier, Alice Brill, Georg Paulus Waschinski, dentre outros, captaram o rumor das ruas, fábricas e avenidas, a potência dos edifícios de concreto sendo erguidos, a multidão, a mercadoria tomando conta. Para esses fotógrafos imigrantes, as referências, os lugares, a São Paulo representada na fotografia é outra. Agora, a marca é a aceleração do tempo, do tempo como mercadoria.
Em um álbum analisado pelas pesquisadoras Solange F. de Lima e Vânia C. de Carvalho[4], a foto Nylotex Tecelagem e Confecção S.A., de Georg Paulus Waschinski, esclarece a fusão entre homem e máquina, entre tempo e dinheiro. O primeiro plano – em que operárias se confundem com máquinas e fios – caminha para o fundo da cena, num continuum realçado pelas verticais das colunas da fábrica à esquerda. As diagonais produzidas pelas máquinas tomam a maior parte do campo da fotografia. Ao fundo, uma luz intensa vinda das janelas de vidro contrasta com o teto escuro da fábrica.
Se Waschinski sublinha a fusão entre homem e máquina com a própria fábrica representada dentro de uma mecânica formal que acentua o processo avassalador da produção industrial, já uma parte considerável da produção de Flieg tem outro objetivo: transformar o produto, a mercadoria saída daquele universo em objeto de cobiça. Em Pneus Pirelli, s.d., Flieg transforma as qualidades do produto em elementos de sedução do consumidor[5].
Nas fotos de Waschinski e Flieg não ficam evidenciados os índices exteriores de São Paulo. Nelas, é como se a cidade apresentasse suas entranhas ou, para seguir na metáfora fabril, suas engrenagens. Contextualizadas[6], elas tinham como função sublinhar a potência de São Paulo, atentando para o fato de que novos lugares e objetos podiam mapear outros significantes e significados para a metrópole.
Viaduto do Chá, São Paulo, 1954, de Alice Brill revê um local tradicional da cidade, mas flagra ali um momento em que, imerso em espaços de luz e sombra delimitados, o caos da cidade é desmentido pela ordem quase marcial dos componentes da foto: a multidão, a frota de autos, a avenida, as janelas no fundo da cena, o viaduto, nada diverge do sistema engendrado pela lente da artista. A não ser, talvez, o automóvel fora de foco, (e prestes a sair do enquadramento), passando sobre as inscrições no asfalto que cobre o antigo Anhangabaú, convocando a todos para as celebrações do Primeiro de Maio.
Se na foto de Brill impera a ordem, em Rua Direita, São Paulo, 1939, de Hildegard Rosenthal, surge, esvaziado de horizonte, outro pedaço do centro da cidade. Os edifícios fecham a cena, tornando o espaço claustrofóbico, os transeuntes caminhando para dentro e para fora da área mais iluminada parecem atores de uma peça de Beckett. No entanto, como nas encenações do dramaturgo irlandês, existe uma ordem ali estabelecida, dada pelas linhas que conduzem a multidão para lá e para cá. Uma ordem, no entanto, de natureza distinta daquela apresentada na imagem de Brill. Se nessa o espaço amplo, cortado por linhas cruzadas, implanta um sentimento de expansão e devir, na foto de Rosenthal a ordem subjacente parece ser da natureza do círculo ou elipse deformada, sugerindo nenhuma possibilidade de reversão.
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A segunda São Paulo, aquela dos pintores, é infensa a qualquer inquietação, a qualquer ruído do moderno. Foram poucos os artistas que no século passado deixaram os arrabaldes ermos, os confins longínquos de São Paulo. Poucos trouxeram para o campo da pintura o centro vigoroso da metrópole. E quando o fizeram, preferiram eternizá-lo na modorra das manhãs de domingo, ou então nos momentos breves em que a metrópole silencia, como se de repente ficasse exausta do barulho contínuo.
No primeiro caso, temos Francisco Rebolo. Em seu Arredores de São Paulo, 1938 (Col. MAM SP), a metrópole é evocada apenas no título e negada na sua realidade. O arrabalde da cidade é tudo o que ela não é: calmo, silencioso, onde a luz é o único ruído benfazejo, diga-se, a fertilizar, com o trabalhador em primeiro plano, a terra dadivosa.
Quando Rebolo pinta o centro de São Paulo, seus tons esmaecidos, delicados, parecem almejar mais o que vem depois do primeiro plano, em que os índices do urbano estão demarcados com singeleza e muita parcimônia. Em Praça Clóvis, 1944 (Col. Particular), por exemplo, a São Paulo ali descrita situa-se ainda entre a metrópole que se insinua por meio do edifício de concreto, do ônibus em primeiríssimo plano, e os índices do ontem ainda presentes: a igreja, o casario baixo que se alonga e esgarça até perder-se no campo, entre uma ou outra discreta chaminé, que também alude ao moderno que se avizinha cada vez mais.
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Mick Carnicelli foi um dos raros pintores que registrou São Paulo sistematicamente até o início dos anos 1960. Com formação veneziana, e estágios em Londres e Paris, o artista voltou e se estabeleceu em São Paulo no início dos anos 1920. Com a cidade manterá uma relação peculiar, optando por retratá-la por meio de recortes menos explorados, usando dessas imagens de São Paulo como subterfúgios para expressar uma visão pouco confiante não apenas na metrópole, mas na própria vida. Aderente a um naturalismo reanimado pelo apreço por alguns pós-impressionistas (Cézanne entre eles), Carnicelli, entretanto, não costumava juntar o cavalete e outros apetrechos e sair à caça de locais que chamassem sua atenção, quer pela luz, quer por outros aspectos pitorescos. Reservado, tendente à reclusão, o pintor atuou como um espectador que via São Paulo de sua janela, do pátio ou do quintal de seu ateliê ou moradia. Era desses postos de observação privilegiados, e à parte do embate direto com a cidade e com a arte de ponta, que ele a investigava a si mesmo.
Apesar de, desde o início, ter tido São Paulo como um dos estímulos para sua pintura, o que interessa sublinhar aqui é sua produção realizada a partir dos anos 1950, quando Carnicelli se instala na residência de seus pais, na Avenida Paulista. É daquele ponto privilegiado que o pintor anota o crescimento rápido da cidade moderna que avança.
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No artigo mais recente aqui publicado[7], escrevi sobre a obra de Nelson Leirner, Você faz parte II que, como Não entre à esquerda, de Maurício Nogueira Lima, foi produzida em 1964. Chamo a atenção para essa coincidência: duas obras que representaram desvios significativos no campo da arte contemporânea – contribuindo para a sua introdução entre nós –, foram produzidas num ano tão fatídico para nossa história. Se a obra de Leirner pode ser entendida como uma crítica ao golpe e como introdutora entre nós da crítica institucional, Não entre à esquerda demonstra como a cidade pode ser pensada e reelaborada enquanto imagem, fora do âmbito da iconografia mais previsível.
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[1] – Um concretismo agora semantizado, mas, mesmo assim, concretismo.
[2] – Neste sentido também podem ser pensadas as peças de metal colocadas na pintura por Nogueira.
[3] – Esses seriam os focos que, segundo Mario de Andrade, Tarsila deveria perseguir. Trecho de uma carta do crítico à artista: “(…) Creio que não cairás no cubismo. Aproveita dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato (…”). Carta de 16 de junho de 1923, de Mario de Andrade para Tarsila do Amaral. In, AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. Sobre as relações do modernismo brasileiro com o “pós-cubismo de linhagem purista”, consultar: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
[4] – LIMA, Solange f. de/CARVALHO, Vânia C. de. Fotografia e cidade. Da razão urbana à lógica de consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado de Letras, 1997.
[5] – Em foto mais recente, o artista mantém o mesmo padrão de objetividade recorrendo, no entanto, a outro expediente: Calculadora Logos 270, Olivetti, Guarulhos, de 1970, apresenta não apenas o produto com seu desenho eficaz, objetivo, mas igualmente o resultado de toda essa eficácia: contrasta de maneira saborosa na imagem, a frieza com que é captada a calculadora e a sensualidade (acentuada pelo jogo sofisticado e sinuoso de luz e sombra) da fita de papel que sai da pequena máquina, marcada pelos registros da contabilidade empresarial.
[6] – Como visto, a foto de Wichinsk foi produzida para um álbum sobre São Paulo e as fotos de Flieg para o catálogo das indústrias mencionadas nos títulos das fotos de sua autoria. Em tempo: essas fotos hoje pertencem ao Instituto Moreira Salles.
[7] – “Para Nelson ou os perigos da fúria interpretativa”, dia 23 de setembro de 2020. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/para-nelson-ou-os-perigos-da-furia-interpretativa/