Em 1985, no primeiro número de Chiclete com Banana, Luiz Gê publicou a historieta “Entradas e Bandeiras”. Nela, um casal de paulistanos – Arnaldo e a esposa –, parado dentro de um carro no cruzamento da Brigadeiro Luiz Antonio com a Avenida Brasil, foi impedido de seguir porque um indígena se postou na frente dele. O índio, monstruosamente grande, bloqueava o cruzamento para que um estranho cortejo passasse: eram os demais integrantes do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (situado ali ao lado, no Parque Ibirapuera), caminhando pela avenida, em direção ao Morro do Jaraguá.
Instalados naquele local desde 1953, os integrantes do Monumento, por ordem e graça de Luiz Gê – e depois de vinte e dois anos –, se colocavam em movimento por uma cidade muito diferente daquela que viu o monumento ser erguido no Parque, num tempo e num espaço completamente distintos da São Paulo onde, supostamente, viveram aqueles que teriam servido de matriz para o grupo escultórico de Brecheret[1].
O que aconteceria com os integrantes do Monumento às Bandeiras durante aquela caminhada? Contarei no final deste texto. Antes, seria interessante chamar a atenção para um fato que poucos conhecem: até serem instalados na entrada do Parque Ibirapuera, os bandeirantes – ou os projetos de monumentos que deviam homenageá-los – mantiveram-se em movimento constante pela cidade.
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Desde o início do século passado, segmentos importantes da sociedade paulistana pensavam em homenagear os bandeirantes, entendidos como os pais da “pátria paulista”; por décadas tais projetos foram idealmente situados em locais os mais diversos da cidade, forçando os bandeirantes a migrarem de região a região, sempre a serviço dos projetos e projeções que os paulistanos da época faziam do seu próprio futuro e do seu próprio passado.
Ao que se sabe, a primeira ideia de um monumento que homenageasse os bandeirantes surgiu em 1912, em um artigo publicado em vários segmentos pelo engenheiro Adolfo Augusto Pinto, em O Estado de São Paulo[2]. Sua ideia era contribuir para as transformações pelas quais a cidade deveria passar para, dali a dez anos, sediar as comemorações do Centenário da Independência. No seu pensamento, aquela data não deveria ficar marcada em São Paulo apenas pelo Monumento à Independência que já povoava a mente de muitos paulistanos. Era preciso transformar a cidade como um todo, tendo em mente seu crescimento intenso e pensar em novas avenidas, novos parques, novos monumentos que dessem a ela a distinção de ser, ao lado de Buenos Aires e da Capital Federal, uma primorosa metrópole europeia em plena América do Sul. Das transformações que Pinto propunha para a melhoria de São Paulo, destaca-se a de um parque público, às margens do Tietê:
Enfim, um grande parque destinado a ser frequentado pela massa popular de uma grande cidade e em termos de ser ao mesmo tempo o “rendez-vous” da sociedade elegante, não pode deixar de ser situado nas proximidades do centro urbano, de recomendar-se pela beleza da avenida de acesso, assim como pela facilidade e barateza dos meios de transporte ao seu serviço.
Para o acesso ao Parque, a Avenida Tiradentes deveria ir até o rio, e seria justamente na grande avenida que surgiria o monumento em homenagem aos bandeirantes:
A Avenida Tiradentes, estendendo-se então desde a estrada inglesa até as barrancas do Tietê, já seria por si um belo boulevard e elegante via pública, muito teria a ganhar sob o ponto de vista decorativo se, no ponto de deflexão de sua primeira grande reta, fosse interrompida a dupla arborização para aí abrir-se um claro circular, a semelhança do around point da Avenida dos Campos Elíseos, em Paris, destinado a ser embelezado por uma suntuosa obra de arte, a qual não poderia ser senão o monumento aos Bandeirantes.
Para Adolfo Pinto, São Paulo devia essa homenagem aos “legendários mamelucos” porque teria sido dali – “palmilhando o chão dessa mesma avenida Tiradentes” – que eles haviam conquistado o interior do país. E continuava:
Em sua grande espiritualidade histórica, o monumento aos Bandeirantes, representará o traço de união da velha alma paulista, em seus primeiros lances de arrojada iniciativa e rude intrepidez, com o culto espírito de energia, ação e progresso das gerações sobrevindas (…)[3]
Como se sabe, durante os anos 1910 e 1920, Adolfo Pinto se notabilizará por suas contribuições para transformar São Paulo em uma metrópole repleta de símbolos que a colocassem como portadora de um passado enobrecido pelo heroísmo de seus pioneiros, uma metrópole por eles plasmada na América do Sul sob a égide do catolicismo, e repleta de símbolos dessas suas singularidades[4].
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Em 1920, causa alvoroço no pequeno universo de intelectuais e artistas modernistas que então se formava em São Paulo, a maquete para o Monumento às Bandeiras que o então jovem escultor Victor Brecheret apresentava ao público e aos governantes. Onde seria instalado esse monumento? Em qual lugar de São Paulo? Até hoje não se sabe ao certo[5]. Mais do que uma “mera” conclusão estética de alguma equação urbanística, o Monumento às Bandeiras era uma tomada de posição “nacionalista”, contrária à ideia de que a comunidade portuguesa local presenteasse São Paulo com um monumento em homenagem aos bandeirantes, produzido pelo escultor lusitano Teixeira Lopes.
Para os modernistas soava como uma afronta os portugueses pensarem que a “epopeia” bandeirante pudesse ser pensada como sendo lusitana, e não paulista. Menotti Del Picchia, se opondo à doação portuguesa, mostra a guerra entre narrativas então existente entre os grupos (ou povos, ou “raças”) que deviam merecer o reconhecimento como protagonistas na construção do país:
Os filhos do Brasil eram tão brasileiros na colônia lusitana, como o são hoje na República. Não há, pois, ilusões: O Brasil foi feito pelos brasileiros.
A admitir-se a tese portuguesa […] “As Bandeiras” eram proezas dos lusitanos, o que S. Paulo conseguiu com o fruto do esforço dos filhos da Itália é italiano… Isso é monstruosamente absurdo. O nosso nativismo repele esse enxerto de nacionalidades estranhas dentro da nossa pátria.
Posta a tese neste pé, estabelecidos os marcos do que pertence, no nosso passado, a cada povo, evitando que os últimos caciques vivos na selva reivindiquem ao Brasil dos brasileiros os trabalhos dos índios de João de Barros, Duarte Coelho Pereira, Pereira Coutinho, Jorge Correa, Pedro Tourinho, Pero Góes, Mem de Sá e outros donatários e governadores; que os negros da Costa da África nos peçam conta do esforço do braço escravo – direitos nesse caso. Iguais aos dos lusitanos – não me resta mais que ver nas “Bandeiras” a epopeia máxima dos paulistas, únicos fixadores do arcabouço da nossa pátria[6]
Nessa visão, como se percebe, somente os paulistas (brancos, é de se supor) entrariam na composição das bandeiras. Tal posição, por sua vez, esclarece algumas das características encontradas na maquete do Monumento de 1920. Tendo sido del Picchia quem instruíra o escultor sobre a história dos bandeirantes[7], entende-se perfeitamente a razão para que, no núcleo principal da composição, só tivessem sido representados os paulistas (brancos). Na maquete não existia a representação de negros e, os indígenas, bem, os indígenas estavam relegados a duas figuras laterais, símbolos das insídias que espreitavam os bandeirantes nos sertões.[8]
Nos textos de época publicados, não foi encontrada nenhuma notícia sobre o local em que esse monumento deveria ser localizado. Naquele momento, acredito, não se fazia premente justificativas de cunho urbanístico. Mais do que qualquer racionalidade, cabia apenas reivindicar a precessão dos paulistas na narrativa sobre o bandeirismo. Para comprovar que o debate era mais ideológico do que prático é importante lembrar que também não se noticiava onde os membros da colônia portuguesa visavam situar o monumento que gostariam de doar para a cidade.
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Teixeira Lopes chegou a produzir uma maquete do seu monumento? Não se tem notícia a respeito [9]. Já a maquete de Brecheret foi doada para a Pinacoteca de São Paulo, após sua exposição, uma vez que as autoridades paulistas não se interessaram em levar adiante a produção do Monumento[10]. E por que isso teria ocorrido?
Os modernistas pouco esclareceram sobre essa falta de interesse, sendo que del Picchia lamentou a “falta de bandeirantes modernos” que pudessem bancar a edificação do grupo escultórico[11].
A historiografia modernista, por sua vez, será discreta ao se referir ao fato de que as autoridades paulistas não se interessaram pelo monumento proposto por Brecheret porque já haviam se comprometido com o projeto de outro artista italiano residente em São Paulo – Nicola Rollo. O monumento concebido por Rollo – Heroísmo dos Bandeirantes –, possuía um local determinado para ser instalado: o primeiro lance das escadarias sobre a bacia d’água afrontando os jardins do Museu Paulista[12].
Segundo a estudiosa Maria Cecilia M. Kunigk, o monumento era dividido em três partes distintas, mas complementares, formando uma unidade indivisa:
Representando os “Heróis” na parte central do monumento, estaria uma figura feminina austera e mítica, sobressaindo-se da proa de uma barca sobre um pedestal elevado […] os “Conquistadores”, do lado esquerdo do monumento, representando os primeiros homens a descravar novas terras, englobariam símbolos dos colonizadores impetuosos; e, por fim, do lado direito, os “Fecundadores”, simbolizando a tomada da terra, o trabalho do solo, a agricultura, representando a etapa final da conquista […][13]
Esse projeto de Rollo faria parte de um complexo viário monumental, ligando o Museu Paulista ao centro da cidade por meio de uma grande avenida, decorada com parques em “estilo inglês” e monumentos que louvassem a importância de São Paulo dentro da história do Brasil. O Heroísmo dos Bandeirantes deveria ficar no sopé do Museu, entre esse e o Monumento à Independência, de autoria de Ettore Ximenez – cuja construção seria iniciada no ano seguinte[14]. Mais para frente, na intersecção entre essa avenida monumental e a Avenida do Estado, deveria ser levantado ainda um “obelisco alegórico” à República[15]. A mensagem dos paulistas não poderia ser mais clara: São Paulo, tendo por base a herança bandeirista, tornara possível não apenas a independência do país, como também a própria República.
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Segundo Konigk, Rollo teria iniciado seu trabalho, levantando o monumento em argila, em tamanho definitivo, em seu estúdio no Palácio das Indústrias. Porém:
Para sua edificação, seria necessário, contudo, a conclusão da reurbanização do parque que formaria os jardins do Museu, fazendo com que o artista dependesse de terceiros para dar prosseguimento a seu trabalho […] o artista precisou aguardar a finalização das obras do jardim para ter a aprovação definitiva de sua obra, o que ocorreria somente por volta de abril de 1924 […].[16]
Mas 1924 também foi o ano da Revolução comandada pelo General Isidoro Dias Lopes, visando depor o presidente Artur Bernardes. O Palácio das Indústrias foi tomado pelos rebeldes e Rollo, impedido de continuar o trabalho com a maquete definitiva. Ressecada, em breve a maquete se deteriorou por completo.
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Especula-se que o projeto de Rollo, Heroísmo dos Bandeirantes, teria ainda uma sobrevida: em um estudo de 1930, ao menos parte dele seria usada no projeto que Francisco Prestes Maia propunha para sua monumental Ponte Grande (atual Ponte das Bandeiras), uma memorial bridge que deveria ligar a cidade ao outro lado do rio Tietê.
Prestes Maia pensava construí-la em dois grandes arcos, que se encontrariam no centro do Tietê, (alargado naquela região), numa pequena ilha artificial. Por sua vez, essa ilha abrigaria um monumento em homenagem aos bandeirantes. É preciso que se diga que, em nenhuma parte do texto, como será visto, Prestes Maia cita o monumento de Rollo como sendo a matriz de onde ele retiraria a decoração principal para a sua Ponte Grande.
Seria importante sublinhar a razão para o arquiteto desejar homenagear os bandeirantes com aquela ponte/monumento:
Os acontecimentos memorados pela Ponte Grande são as “bandeiras”. Já um monumento aos bandeirantes fora iniciado pelo Governo no Parque Ipiranga e outro projetado pela Prefeitura à margem do Tietê. Agora imaginamo-lo não à margem, em situação secundária, mas no centro mesmo do rio, como uma grande proa a emergir das águas, voltada para a jusante, justamente na direção do sertão, que o paulista devassou e que é ainda, dentro do Estado, a “terra prometida”.[17]
Note-se que, no texto, Prestes Maia não cita explicitamente o projeto de Nicola Rollo, mas alude, tanto ao monumento que se pensou fazer no “Parque Ipiranga”, quanto o outro, “à margem do Tietê”[18]. Embora ele faça referência a “uma grande proa a emergir das águas” – um elemento que igualmente constava no estudo de Rollo – também na sequência da descrição sobre a ponte projetada, ele não citará o monumento concebido por escultor italiano:
O projeto acha-se concebido em estilo moderno. Os pilones e o monumento principal reduzem-se a uma casca de pedra ou granilito […] sobre esqueleto de cimento armado. Tudo liso e simples, o que fará valer as esculturas. Mas não a nudez ou a estéril abstenção decorativa do pseudo racionalismo. Como diz o professor de Viena, “nem todo o necessário é bonito, nem todo o supérfluo é feio”.
O grupo central inferior compõe-se de grandes figuras simples, ligeiramente rígidas e geométricas, – ao gosto da época e da arquitetura circundante. Ainda mais que os outros grupos o seu valor será sobretudo de massas e de silhueta. Esta explicação responde de antemão a diversas objeções. Trata-se dum monumento destinado a produzir essencialmente efeitos de massa e não a exibir estatuária delicada.
O grupo inferior representa uma “bandeira”; os que encimam os pilones figuram episódios e lendas referentes à época; o grupo de coroamento é puramente simbólico. A representação realística, aliás perigosa na arte monumental é no caso secundária, dado o caráter da obra.
A decoração reduz-se quase exclusivamente a dois motivos: aos escudos das cidades ribeirinhas (São Paulo, Mogi, Tietê etc.) e a anhuma estilizada. Sabe-se realmente que este curso d’água era o Tieté-Anhembi, o “rio grande das anhumas”.[19]
Comparando essa concepção com a descrição que Maria Cecilia M. Kunigk fez do Heroísmo dos Bandeirantes (citada acima), parece evidente existir pontos de contato evidentes entre a ideia de Maia e o projeto de Rollo.
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Da Avenida Tiradentes ao Parque do Museu; da Praça da Sé ao meio do Rio Tietê, como sabemos, os bandeirantes acabaram parando no início do Parque do Ibirapuera, por meio do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, não gratuitamente nas bases da Avenida Brasil, voltados para o Jaraguá.
Embora o projeto original de Brecheret seja de 1920, até o início da implantação do Monumento, em 1936, ele passou por uma série de transformações, sublinhando as mudanças que ocorriam na poética do artista, e que se manifestavam em desenhos, projetos para outros monumentos etc.[20]. Mas não apenas.
Mesmo que se leve em conta o rigor formal desse que, sem dúvida, é o monumento escultórico esteticamente melhor concebido da cidade, o Monumento às Bandeiras aponta para uma proposta de conciliação das elites paulistas para com o restante da população. Quem domina o Monumento são os dois homens a cavalo – o branco “superior” e o mameluco, seu descendente “direto” –, mas, se no projeto original os negros estavam fora da proposta e os indígenas simbolizados como as mazelas da selva, nessa nova versão eles configuram o “povo”, a nação e suas distintas etnias comandadas pelos brancos e seus apaniguados. É que os paulistas haviam perdido a Revolução de 1932 e, assim, deviam ir com calma em sua reinserção no plano simbólico e real do Brasil.
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Retomo agora “Entradas e Bandeiras”, de Luiz Gê, de 1985, ano de início da abertura política, quando o país começa a sair das agruras do regime civil-militar, instituído em 1964.
Assim que passa o cortejo pelos olhos atônitos do casal, Arnaldo resolve finalmente seguir viagem. Mas, surpresa: eis que Borba Gato aparece correndo, vindo de Santo Amaro, em busca dos amigos do Monumento. Atrasado, o bandeirante deselegante, concebido por Júlio Guerra, destrói o carro, Arnaldo e sua esposa.
“Entradas e Bandeiras” pode ser lida apenas como uma divertida história em quadrinhos ou, então, como uma forte alegoria do Brasil e dos brasileiros, que ressurgiam após aquele período obscuro. Corriam os bandeirantes para a luz no fim do túnel ou ali haveria um alçapão?[21]
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