Cena de Bacurau, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Foto: Divulgação

Acabo de sair de Bacurau (ainda não saí do filme, ou ele não saiu de mim).

Entre o desejo de ser arte e a certeza de ser espetáculo, ele me pareceu ao mesmo tempo bem-intencionado e dissimulado. Bem-intencionado porque se pretende como “obra”, uma grande alegoria do Brasil, a favor de seu “povo”, e cínico porque parece saber o quanto é difícil (talvez impossível) sintetizar numa única peça a complexidade do país das últimas décadas. A narrativa de Bacurau, apesar de forjada como sendo um faroeste (“caboclo”, mas, ainda assim, um faroeste), é repleta de citações pontuais ou difusas a outros filmes que sublinham sua dimensão intencionalmente alegórica. E talvez seja essa característica nele tão presente que, a meu ver, o torna irremediavelmente datado, apesar de colocar-se em devir.

Tento compará-lo a outros filmes brasileiros atuais, mas não consigo. Quando penso qualquer tipo de cotejamento possível, só me vêm à mente produções mais antigas e que também assumiram a propensão alegórica que caracteriza Bacurau: Terra em transe (1967), Iracema – uma transa amazônica (1976), Bye bye Brasil (1980); mas esses filmes, parece, guardam uma atualidade que Bacurau não logrou manter. Bacurau, estranhamente, enquanto ideia e realização, parece ter se alojado justamente ali, em algum lugar entre os anos 1960 e 1970 – “período ideológico” em que ele parece ter sido forjado – e naquele buraco ficou como um monumento a uma ideia de um “povo brasileiro” ou de um Brasil que hoje não existe, ou quem sabe nunca tenha de fato existido. Aqueles outros filmes, de uma maneira ou de outra – e apesar de terem servido de espelho para Bacurau – me parecem mais próximos da atualidade e isso pelo fato de terem sido produzidos no momento certo, e não depois, como uma espécie de soluço nostálgico.

A Bacurau tendo a preferir filmes com pretensões menos totalizadoras, que não usam a alegoria como linguagem, mas que podem ser interpretados como. São produções que, a meu ver, dão conta de interpretarem o país e os vários segmentos de sua população em dimensões pouco ou nada maniqueístas. Amarelo manga (2003), O céu de Sueli (2006), Elvis & Madonna (2011), O som ao redor (2013), A que horas ela volta? (2015) Pela janela (2017), Todo clichê do amor (2018) e tantos outros filmes vêm traduzindo (cada um com sua singular traição, não vamos nos esquecer) as inúmeras nações brasileiras e as inúmeras tribos que coexistem nesta região do planeta. Para usar uma metáfora cara a Barthes, esses filmes são como inúmeros fios tecendo uma contínua possibilidade de pensar o Brasil, trama que jamais se esgotará em seu vir a ser.

Mas não são apenas esses filmes que me chamam a atenção. Também me interessam mais do que a Bacurau e sua alegoria supostamente portentosa do Brasil atual, alguns documentários que investigam segmentos do multifacetado cotidiano do país, como Waiting for B. (2017) ou Yoonahle – a palavra dos Fulni-ô (2013) (este em exibição até 15 de novembro no 36º Panorama do MAM-SP). Também chamam a atenção, pelas perspectivas que lançam sobre o Brasil, documentários recentes, como Ser tão velho cerrado (2018), Bloqueio (2019) e Travessia Brasil – Haiti (2019).

A partir dessas ficções menos pretensiosas e desses documentários que buscam interpretar os diversos problemas brasileiros, é possível ao espectador ir aos poucos tecendo seu próprio entendimento sobre o país e, a partir dele, estabelecer prioridades para reflexão e ação possíveis. Sem catarse, sem alívio.

E é dentro desse quadro repleto de indagações do audiovisual brasileiro atual que coloco igualmente o trabalho de vários artistas que, vindos das artes visuais ou de outros segmentos, encontram naquilo que se convencionou chamar de “videoarte” um espaço proteico para a discussão sobre o país e seus habitantes.

Seria difícil enumerar todos aqui, mas os vídeos de Rosangela Rennó, Chico Zelesnikar, Rafael Cordeiro, Dias & Riedweg, Lais Myrrha, Dora Longo Bahia e outros, trazem diversos e impensados fios para que o espectador teça sua própria ideia de país e da realidade contemporânea.

Assistir a Bacurau, inclusive, me fez relembrar a potência presente na mostra ocorrida no início do ano aqui em São Paulo, no Sesc 24 de maio, À Nordeste. Frente ao maniqueísmo incontornável de Bacurau, como não rever a importância dos vídeos de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, e aquele de Jonathas DE Andrade? É claro que tais artistas já haviam demonstrado a importância de seus trabalhos antes daquela mostra, mas entrar em contato com seus novos trabalhos naquele contexto e poder cotejá-los com a força dos vídeos de Cristiano Lenhardt e Ton Bezerra (entre outros), reafirma a sensação de que é no que se chama de “videoarte” o lugar onde reside parte do que de mais potente se produz em termos de arte no Brasil hoje (aliás, a produção de Guerreiro do Divino Amor está aí para provar esta tese).

Ao invés de Bacurau, obra fechada, tendo a preferir esses petardos soltos em direção à nossa consciência.

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Fico pensando que daqui a um tempo Bacurau e todo o seu proselitismo terminarão no mesmo lugar onde estão ou estarão os outros trabalhos citados: em sites e/ou plataformas de streaming. Tal localização levanta pelo menos uma questão sobre o devir do cinemão, do cinema (ficcional ou documental) e da “videoarte”: nesse arquivo imenso, creio que todos eles reassumirão a condição de mercadorias, só que agora à disposição do consumidor planetário, capaz de acessá-los de onde estiver, nesse grande supermercado que parece sempre ter sido a internet, e não mais nas salas de cinema ou nos espaços imantados das galerias e dos museus.

Muitos já falaram que, com esses novos dispositivos, tudo vai mudar ou já está mudando. Aquilo que um dia chamamos de cinema, vídeo etc. já não é o que foi ontem e será muito diferente do que é hoje.  Nesta nova situação caberá aos espectadores em potencial entenderem que alguns desses produtos, apesar de estarem ali à disposição para seu entretenimento, podem ser mais do que isso, podem ser também instrumentos para sua sensibilização e/ou engajamento; outros, pelo contrário, destituídos de seu elã inicial, irão para o beleléu. O que ocorrerá com Bacurau?

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