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ENTREVISTA FRANÇOISE VERGÈS
– Você escreveu que, em 2011, ainda acre- que haveria uma revolução. Mas quando ela abriu,
ditava que era possível fazer uma exposição que as pessoas perceberam que ainda é uma bienal,
não disciplinasse fisicamente os quilombolas. afinal essa é a regra….
Penso hoje na Bienal de São Paulo porque é um Isto é o que eu digo: a impossibilidade dentro do
tema importante para eles e sei que você esteve sistema em permitir que você vá além dos limites.
lá. Você pode dizer algo sobre essa afirmação e Você pode transformar o espaço, não colocar a
Coreografias do Impossível? mesa e a cadeira no mesmo lugar da casa do senhor
Françoise Vergès – Quando eu disse isso, pen- patriarcal. E isto já provoca desafios à perspectiva
sei que era possível realmente fazer do jeito que da forma como circulamos no espaço, mas a parede
queríamos, não apenas para mostrar algo sobre ainda está lá. Ainda não desafiamos o sistema. Per-
os quilombolas e a escravidão, mas fazer de forma manecemos dentro do sistema. Fazemos as coisas
diferente, muito densamente, para que realmente de maneira diferente e elas são incríveis, mas como
houvesse mudança. Não é necessário que se conte a eu digo, é hora de ir além, porque senão o espaço
história que não foi contada, porque isso está sendo impõe uma certa forma de ser.
feito, é realmente para mudar totalmente. E percebi
que não era possível porque não somos livres. Então, Às vezes sim, mas, digamos que a documenta
o museu não é um espaço de liberdade, precisa ser quinze, em 2022, foi muito surpreendente ao
fora dele, em um lugar que teríamos criado como repensar o uso dos espaços, porque as pessoas
um lugar de liberdade, pelo menos por um tempo, dormiam e cozinhavam no museu, havia um lugar
talvez por muito tempo. Ainda é o que penso hoje. para crianças. A meu ver, eles mudaram comple-
Na Bienal há coisas que são absolutamente fan- tamente a estrutura.
tásticas e há um desejo real e um impulso para algo Sim, eles ocuparam o espaço que foi dado de forma
além. E o fato de você ter o Movimento dos Sem-teto diferente, e com esta ocupação de uma maneira
é realmente algo próximo de uma proposta que vá diferente, eles estavam efetivamente contestando,
além do campo da arte. Mas ainda é uma Bienal. Não desafiando o sistema. Quando você não consegue
estou dizendo que não deveríamos fazê-la ou que alterar as paredes, você muda o conteúdo e a docu-
isso seria ruim. Não tenho um vírus para julgar, mas o menta no ano passado tentou fazer isso. Então, o
que quero dizer é que sabemos o suficiente hoje que que você pode fazer se estiver dentro de um espaço
deveríamos fazer outra coisa. Sabemos o suficiente, dado é transformar ele em um quilombo ou repensar
pois temos trabalhado em estratégias pós-coloniais e aquele espaço a partir daquela cidade, mas dentro
decoloniais, sobre representação, analisando imagens, daquele ambiente que foi construído por forças
produzindo textos. Mas estamos em um momento sociais que são racistas, patriarcais, usando o espaço
decisivo em que realmente é preciso dar um salto de da forma possível.
imaginação, fugir da norma ocidental. Estive na Ocupação 9 de Julho, e existe lá um
espaço de liberdade, onde a vida está sendo inven-
Muita gente esperava, já que é a primeira vez que tada, a vida no sentido de que o que temos fora
a curadoria da Bienal é majoritariamente negra, de lá não é vida. Então para mim os espaços de
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