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VII SEMINÁRIO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
democracia” não existe, porque os governos res- Uma sociedade não pode viver em paz se cada
ponderiam aos interesses do poder econômico. O grupo jogar só por seus interesses individuais,
filósofo Ortega y Gasset, apesar de conservador, deixando os demais participantes abandonados
tinha uma visão dinâmica do indivíduo. A sua nos seus anseios e impotências, pois isso cria
célebre frase “o homem é o homem e sua circuns- um dilema político estrutural. O característico
tância” nos revela que não é possível considerar e promissor do jogo político é que este nunca
o ser humano como sujeito ativo, sem levar em termina e as regras podem, dentro do princípio
conta simultaneamente tudo que o circunda, a da legalidade, ser sempre adaptadas aos novos
começar pelo próprio corpo e o contexto histó- desenvolvimentos sociais, às diversas narrativas
rico, político e social em que se insere. Aquele que estão sendo construídas ao mesmo tempo
que nunca teve a oportunidade de participar ou agora. E se o jogo não fosse competitivo, mas
aquele que desistiu ou foi excluído do jogo por cumulativo? Venceríamos se compreendêsse-
questões adversas à sua vontade terão as mes- mos que somos um, que somos todos. Como
mas chances e cartas na mão que aquele que foi diria Vicente Mateus, o lendário presidente do
sempre privilegiado por sua classe social, sua Corinthians, “o jogo só acaba quando termina”.
etnia, seu fenótipo, sua crença? Diante dessas Em uma democracia – em movimento – nem
contingências, será que jogamos todos o mesmo sempre ganhamos, mas quando perdemos,
jogo com as mesmas regras? temos na próxima eleição uma nova possibilidade
Lembrei-me do cultuado e complexo filme de lutar por nossas convicções e vencer. Esse
de Jean Renoir, A Regra do Jogo. O filme é um é o maravilhoso e sóbrio jogo da democracia.
jogo coletivo, com várias narrativas e claras Essa é a minha deixa: temos a chance real de
regras. Percebe-se que a obra se relaciona determinarmos uma nova narrativa para o nosso
com a ideia de Corte/Estado, traz uma série país através do exercício do direito de sufrágio.
de interações humanas, além de pincelar inda- Portanto, cidadãos brasileiros, avante!
gações sobre a democracia e o jogo político no E, para o caminho, uma frase do patrono da
prelúdio da Segunda Guerra Mundial. Assim educação brasileira, Paulo Freire, odiado pela
como o ser humano, a sociedade não é algo extrema-direita no poder: “Ninguém liberta nin-
estático e insuscetível de mudanças. Diante guém, ninguém se liberta sozinho – os homens
dessas transformações estruturais do mundo se libertam em comunhão”
pós-moderno, a arte é um importante meio de
se entender casos multifacetados, nos quais é o abismo e a Costura
preciso fazer uma análise mais ampla e crítica A fala de Paulo Freire reverberou na apresentação de
para que haja soluções mais justas e democrá- Sandra Benites. A curadora, educadora e doutoranda
ticas no plano político. em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ
A política tem que modelar e balancear per-
manentemente distúrbios de afetividade – fruto
da disputa de concepções de mundo e de exis-
tência social – nas sociedades contemporâneas.
O reconhecimento virou moeda de câmbio e a
rejeição, um tema de extrema relevância nesse
jogo político. A melhora de um determinado grupo
não pode significar a desvalorização material e FOTOS: COIL LOPES | MAURÍCIO BURIM / CORTESIA MUSEU DAS CULTURAS INDÍGENAS
cultural do próximo. As perdas econômicas, o
medo de declínio, a sensação de não ter lugar e
nenhum valor na sociedade são pontos nevrál-
gicos nesse tabuleiro. Temas como esperança,
confiança, medo, liberdade, igualdade, justiça,
segurança determinam a partida. Sandra Benites
1 Passagem inspirada nos pensamentos de Robert Habeck numa entrevista para o jornal quinzenal Die Zeit, em março de 2021.
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