Page 70 - ARTE!Brasileiros #56
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CENTENÁRIO LYGIA CLARK



            Jean me cumprimentou e, enquanto figura mais nova no   que processar uma retrospectiva, sempre um tanto
            pedaço, fui imediatamente acolhido por toda uma lista   traumática para uma artista em meio de carreira, ela
            ilustre de artistas. Jean tornou-se meu amigo e muito   havia ficado profundamente enojada com a badalação
            aprendi com ele (ele também me colocou para trabalhar   da Bienal. Para piorar, acabara de saber da morte do
            imediatamente: vendi dezenas de edições do Robho em   ex-marido). Ela concordou em me receber graças às
            meu colégio de província). Foi Jean quem me falou de   amáveis  palavras de Jean Clay e de Camargo, e porque

            Lygia Clark pela primeira vez, me mostrou fotos de seu   sabia que eu estava em Paris apenas de passagem e
            trabalho. Também me passou alguns de seus textos para   não a importunaria por muito tempo.
            ler, que ele havia traduzido, em preparação de um perfil   Quando ela começou a me mostrar suas coisas
            especial sobre ela em sua publicação (algo que só viria   – deixando-me tocá-las, manipulá-las, habitá-las
            a sair no final de 1968). Fiquei tão intrigado com essa   sob sua orientação – testemunhei uma espécie
            obra que fui movido a publicar meu primeiro artigo – um   de transfiguração. Literalmente, vi sua melancolia
            ensaio curto (e, como se pode imaginar, bem rudimentar)   sombria desaparecer, e sempre pensei, em
            sobre Lygia, publicado na edição de março de 1968 de um   retrospecto, que nossa amizade se selou durante
            semanário huguenote chamado “Réforme”, já que meu   aquela longa tarde: por puro acaso, ao estar lá na hora
            pai era pastor protestante. (Peço sua compreensão por   certa, a ajudei a se livrar de sua depressão.
            usar apenas o primeiro nome de Lygia a partir de agora,   Primeiro, havia algumas coisas espalhadas
            já que esse tratamento familiar, para alguém que eu   pelas mesas – pedras conectadas com pequenos
            conhecia tão bem, me vem mais naturalmente).      elásticos amarrados, uma ou duas pedras em cada
               O ano de 1968, lembrem-se, foi tumultuado      extremidade. Lygia me mostrou como usar aquelas
            na França. Os garotos do ensino médio eram tão    montagens precárias: você puxa uma pedrinha ou
            envolvidos politicamente quanto os universitários, e   um grupo de pedrinhas em sua direção e, em um
            eu acreditava, como todo mundo da minha geração,   determinado momento, sempre imprevisível, vai seguir
            que íamos mudar o mundo. Claro que se falava muito   a massa na outra ponta do elástico, seja com um
            sobre a possibilidade de uma “arte revolucionária”,   salto, como movidas por uma mola, ou arrastando-se
            mas graças ao pouco que já conhecia da concepção   debilmente como uma lesma. Foi a interação entre
            fenomenológica de arte de Lygia, não conseguia    diferentes forças que a moveu – sua própria tração, a
            aceitar a ideia de uma arte engajada que deixasse o   extensibilidade do elástico e o peso das pedras – e
            observador em um estado de consumo passivo. A     o fato de que o ato imensurável gerado só pode ser
            arte política, para ser eficiente, tinha que permitir um   percebido como uma metáfora fenomenológica para a
            papel diferente; isso eu sabia, mas não via bem para   relação de seu corpo com outros no mundo.
            onde seguir a partir daí. Minhas próprias tentativas –   Então ela começou a desempacotar as caixas e a
            algumas publicadas posteriormente por Jean Clay na   me entregar coisas mais velhas. Um dos “objetos” de
            Robho com o incentivo totalmente imerecido de Lygia   que mais me recordo foi o seu Diálogo de mãos, de 1966,
           – não me contentavam.                              que ela mesma idealizou com sua alma gêmea, Hélio
               Foi depois do dramático verão de 1968, logo após   Oiticica. Essa obra, ou melhor, “proposição”, como ela
            a intervenção da Rússia na Tchecoslováquia, que   já chamava suas obras, consiste em quase nada, como
            conheci Lygia – no apartamento que ela acabara de   muitas de suas peças – isto é, realmente nada é se você
            obter na Cité des Arts, em um prédio horrendo às   não a utilizar: materialmente, consiste em uma pequena
            margens do Sena, onde a cidade de Paris hospeda   fita de Moebius feita de gaze médica elástica. Cada uma
            artistas estrangeiros, de acordo com o sonho francês   de nossas mãos direitas passou por uma volta da fita
            de antes da Segunda Guerra Mundial de uma Paris   de Moebius em direções opostas e, ao juntar nossas
            capital mundial da arte. Acabava de regressar da   mãos ou soltá-las, experimentamos a resistência da
            Bienal de Veneza, onde representou o Brasil com uma   matéria (pois nossos gestos eram restringidos pela   FOTOS: ALÉCIO DE ANDRADE / ADAGP, PARIS  | JAIME ACIOLI
            grande retrospectiva da sua obra que incluía desde   elasticidade limitada do tecido). Se o “diálogo” se
            os primeiros trabalhos até suas várias Máscaras   prolongar por tempo suficiente, as sensações visuais e
            sensoriais e Roupa-corpo-roupa, de 1967, bem como   táteis parecem se separar, chegando um momento em
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            a grande instalação/ambiente A casa é o corpo . O   que surge a impressão de que as mãos estão dançando
            ateliê estava lotado de caixas de todos os tamanhos,   sozinhas, separadas do corpo. Este momento pode ser
            e Lygia estava visivelmente deprimida (além de ter   extremamente perturbador, quase alucinógeno.

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